Resumo: O Direito Português do Jogo assenta numa bipartição fundamental entre o jogo lícito e o jogo clandestino. Este último é objeto de repressão penal, ao passo que o primeiro goza das prerrogativas da legalidade. Sem embargo, o jogo legal é estreitamente controlado pelo Estado, que procura dele retirar os possíveis benefícios de cariz económico e fiscal, não deixando contudo de o encarar com uma ineludível carga de desconfiança. A posição do legislador português é assim um pouco ambígua, tratando o próprio jogo legal como uma atividade dalgum modo tolerada (mais do que abertamente admitida), o que se traduz numa regulamentação pouco linear, senão mesmo intrinsecamente nebulosa.
Palavras-chave: Jogo de fortuna ou azar. Direito Português. Casinos.
Resumen: El Derecho Portugués del Juego se basa en una división fundamental entre el juego legal e el juego ilegal. Este último está sujeto a represión penal, mientras que el primero goza de las prerrogativas de la legalidad. Sin embargo, el juego legal queda estrechamente controlado por el Estado, que intenta sacar de él los posibles beneficios de carácter económico y fiscal, no dejando sin embargo de tratarlo con una visible carga de desconfianza. La posición de la ley portuguesa es pues un tanto ambigua, tratando al mismo juego legal como una actividad simplemente tolerada (más que abiertamente admitida), lo que se traduce en una regulación poco lineal o tal vez inherentemente imprecisa.
Palabras clave: Juego de azar. Derecho Portugués. Casinos.
Abstract: Portuguese Gambling Law is based on a fundamental splitting between lawful and illegal gambling. The latter is subject to criminal prosecution, whereas the first enjoys the prerogatives of legality. Nevertheless, legal gambling is closely controlled by the State, which seeks to seize its possible economic and fiscal benefits, though facing it with a load of mistrust. The position of Portuguese Law is thus somewhat ambiguous, treating legal gambling as an activity somewhat tolerated (rather than openly admitted), being thus the object of a few linear, if not inherently nebulous, regulation.
Keywords: Gambling. Portuguese Law. Casinos.
Sumário: Introdução. 1. A história jurídica próxima. 2. O regime jurídico atual. Conclusão
O jogo de fortuna ou azar (que doravante identificaremos também, indistintamente e brevitatis causa, como jogo) continua envolto, em Portugal, num clima de nebulosos enleios, que nem a sua legalização conseguiu dissipar.
Desde há muito considerado ética e socialmente reprovável por corporizar um perigoso embarque numa ilusão[1], e objeto de proibição jurídica já no Direito Romano Antigo[2], o jogo foi também criminalmente perseguido logo no Portugal Medievo; é certo que se encontra, nas Ordenações Manuelinas, uma alusão à permissão da prática dos jogos que eram jogados com tábulas em tabuleiros, a fim de não vedar estas formas de divertimento (Livro V, Título XLVIII); mas os ditos jogos com tábulas (pequenas peças redondas) em tabuleiro (mais precisamente o jogo do gamão, das damas, etc.) devem distinguir-se dos jogos de fortuna ou azar, pois os resultados daqueles não dependiam exclusivamente nem principalmente do acaso. É de notar que não existiu no Direito Português, durante muito tempo, um conceito legal de jogo de fortuna ou azar; foi com o Código Civil de 1867 que surgiu a primeira definição legal daquele, tomado como o jogo em que a perda ou o ganho dependiam unicamente da sorte e não das combinações do cálculo ou da perícia do jogador (art. 1542º, nº 2, § 1º).
O jogo continuava a constituir, à data, um ilícito criminal, qualificação que foi confirmada pelo Código Penal de 1886 (artigos 264º a 269º). Mas deu-se em 1927 uma mudança na perspetiva do seu enquadramento jurídico, quando o Estado Português, admitindo que a erradicação daquele não era possível, optou por autorizar a respetiva exploração e prática sob apertada regulação e controlo. A referida mudança de regime, que ocorreu com o Decreto 14.643, de 3 de Dezembro de 1927, não se consubstanciou porém no recorte conceitual do jogo de fortuna ou azar, considerado então como aquele cujos resultados fossem inteiramente contingentes, não dependendo da perícia, destreza, inteligência ou cálculo do jogador (art. 1º). Com a supradita alteração de regime esperava-se, isso sim, contribuir para afastar da clandestinidade jogadores que perigosamente se iam acoitando em autênticos antros, para além de se alcançar um precioso meio de obtenção de apreciáveis receitas. A regulação do jogo não viria contudo a seguir os cânones legislativos habitualmente aplicáveis às demais atividades económicas, e isso quanto a variados aspetos: no tratamento sui generis previsto para as relações entre jogador e casino; na tributação especial das receitas do jogo; no confinamento do jogo a espaços afastados das vistas públicas; nas exigências de requinte dos ambientes de jogo impostas às empresas exploradoras deste; etc.
A lei atualmente em vigor, que prescreve, para a qualificação dum jogo como de fortuna ou azar, que os seus resultados assentem exclusiva ou fundamentalmente no acaso (art. 1º da Lei do Jogo, aprovada pelo Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei 114/2011, de 30 de Novembro), não se afasta, nos seus traços gerais, do rumo do Decreto de 1927. Neste particular houve contudo alguma alteração, com os resultados do jogo podendo assentar não só exclusivamente, mas também fundamentalmente, no acaso; isto decerto devido à diversidade de jogos que foram sendo autorizados, muitos dos quais exigem alguma perícia por parte dos jogadores, continuando embora a ter o acaso como fator determinante do seu desfecho (e portanto enquadráveis com propriedade na categoria de jogos de fortuna ou azar).
Independentemente destas precisões, interessa sublinhar, em termos gerais, que o Estado Português tem balançado entre o dever de diminuir os malefícios do jogo e a vantagem da admissibilidade deste como atividade generosa para o erário público.
1. A história jurídica próxima
Como foi dito, o jogo de fortuna ou azar foi visto em Portugal, durante muito tempo, como algo endémico e socialmente reprovável em absoluto, tendo-se mantido durante séculos a sua proibição jurídica; a título de mero exemplo, basta referir que o jogador, que fizesse do jogo o seu modo de vida, não só se arriscava a ser interdito por prodigalidade (art. 340º do Código Civil de 1867), como, sobretudo, era punido como vadio (art. 264º do Código Penal de 1886). Tal estado de coisas prolongou-se até finais da segunda década do Séc. XX, altura em que, reconhecendo embora o carácter maléfico do jogo mas considerando que a respetiva inclusão no domínio da legalidade acautelaria melhor os interesses dos jogadores (e, nomeadamente, dos seus familiares), o Estado Português optou por autorizar a exploração daquele, embora de forma condicionada, passando a controlar a respetiva prática. Ocorreu assim, com o Decreto 14.643, de 3 de Dezembro de 1927, uma histórica viragem: a legalização do jogo de fortuna ou azar foi a medida de que o Estado Português lançou mão, na tentativa de contribuir para a diminuição dum flagelo cuja erradicação não havia conseguido pela via da repressão penal[3]. Apostado em transferir os jogadores dos antros de jogo clandestino para um ambiente controlado, onde a proteção dos seus interesses seria garantida pela tutela do Estado, o legislador estabeleceu, pela primeira vez, um sistema de jogo lícito[4], cuja licitude circunscreveu porém a estabelecimentos especialmente criados para o efeito (os casinos e, mais tarde, também as salas de bingo), em áreas qualificadas como zonas de jogo (artigos 2º, 3º e 4º). A exploração do jogo de fortuna ou azar passou a ser concessionada, em regime de exclusivo e por meio de concurso público (art. 6º), a empresas que, aceitando as exigentes condições contratuais impostas pelo Estado, se obrigavam a fazer nascer luxuosas construções, dotadas de espaços capazes de oferecer um alto nível de comodidade e conforto aos jogadores, ao mesmo tempo que tinham de garantir recato na prática do jogo (artigos 8º, 20º, 26º e 28º, nomeadamente).
O Decreto 14.643 fornecia uma definição jurídica de jogo de fortuna ou azar, conceituando-o como aquele cujos resultados eram inteiramente contingentes por não dependerem da perícia, destreza, inteligência ou cálculo do jogador (art. 1º). E determinava que a prática deste jogo tivesse lugar exclusivamente em casinos, explorados por empresas a quem tal exploração viesse a ser concessionada; em quaisquer outras circunstâncias este jogo permanecia proibido, e a sua repressão era cometida a todas as entidades policiais e às próprias empresas detentoras do exclusivo do jogo regulamentado (art. 5º).
O acesso aos locais de jogo foi vedado a certas categorias de pessoas, a saber, menores, estudantes, funcionários de certos ministérios, militares no ativo, magistrados judiciais, profissionais cujas funções implicassem ter dinheiro à sua guarda, todos os que não conseguissem fazer prova de auferirem determinados rendimentos anuais, e ainda cidadãos de outras nacionalidades que não provassem estar de passagem em Portugal (art. 32º). Tal restrição, naturalmente limitadora da liberdade de ação dos destinatários, visava porém, dum lado, afastar do meio viciante do jogo as pessoas às quais eram reconhecidas certas fragilidades ou incompatibilidades relacionadas com o exercício das respetivas funções e, doutro lado, acautelar o património dos próprios ou os patrimónios de outras pessoas ao alcance daqueles.
A fiscalização das normas reguladoras da exploração e prática do jogo foi cometida aos agentes de polícia com delegação do Ministro do Interior, bem como a qualquer funcionário superior da polícia de segurança pública quando uniformizado, para além de agentes especiais do Ministério do Interior encarregados de vigiar a atividade dos empregados das concessionárias e a adequada prática do jogo em função dos interesses do Estado; em matéria tributária, a fiscalização ficou a cargo dos funcionários do Ministério das Finanças (art. 35º).
A concessão da exploração da indústria do jogo implicava encargos especiais nada despiciendos. Desde logo era devida ao Estado, pelas empresas concessionárias, uma renda anual fixa, a título de contrapartida pela atribuição da concessão (art. 8º, nº 7º). Para além disso, o exercício desta indústria ficava sujeito ao pagamento do imposto de jogo, que incidia sobre o jogo efetivamente disponibilizado e sobre os lucros brutos obtidos nas bancas: esse imposto recairia sobre os jogos através de uma parcela contabilizada em função do capital em giro inicial, vale dizer, da soma da importância com que a banca se iniciava acrescida dos respetivos reforços, e de uma outra respeitante aos lucros mensais brutos das mesmas bancas; nos últimos quinze anos do prazo de cada concessão far-se-ia o apuramento total dos lucros auferidos, os quais, após deduzidos os prejuízos sofridos e os impostos pagos ao Estado pelos jogos jogados, seriam tributados segundo um figurino de taxas progressivas (artigos 44º a 51º). As empresas concessionárias do jogo tinham ainda de assumir, nos termos dos respetivos contratos de concessão, obrigações específicas relativas à construção de equipamentos como casinos e hotéis, bem como obrigações de promoção de atividades ligadas à cultura e ao lazer (art. 8º, nº 6º).
Os montantes pagos ao Estado em contrapartida da exploração do jogo eram consignados, na sua maior parte, à receita geral do Estado e, em distintas e menores proporções, à assistência pública, às câmaras municipais dos concelhos das respetivas zona de jogo, às câmaras municipais das regiões de turismo oficialmente designadas, e à dotação especial das estradas de maior acesso aos centros e regiões de turismo (art. 50º). Tais verbas forneciam um precioso contributo financeiro para o processo de desenvolvimento económico-turístico das regiões de implantação do jogo.
A inclusão da exploração do jogo no âmbito das atividades permitidas por lei viria a revelar-se uma medida com algumas virtudes: para além de instrumento de combate ao jogo clandestino e, por essa via, de toda a ação criminosa que frequentemente lhe é associada (branqueamento de capitais, tráfico, corrupção, etc.), a legalização do jogo viria a tornar-se, por via da tributação deste, um importante meio de angariação de receitas para o Estado.
Pesem embora as alterações que sobrevieram ao texto do Decreto 14.643, pode dizer-se que a disciplina jurídica atual do jogo se mantém muito próxima do quadro delineado por aquele decreto: na verdade, como de seguida se verá, a atividade legiferante posterior incidiu essencialmente no aprofundamento da regulação e da fiscalização do jogo.
O Código Civil de 1867 foi substituído pelo Código Civil de 1966, o qual, deixando de conter qualquer noção legal de jogo de fortuna ou azar, se limita a preceituar que o contrato de jogo não é válido nem constitui fonte de obrigações civis, sendo embora fonte de obrigações naturais quando lícito, exceto se nele concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade ou houver fraude do credor na sua execução (art. 1245º). Noutra disposição essencial, o Código Civil de 1966 ressalva contudo a legislação especial sobre a matéria (art. 1247º), corporizada presentemente no Decreto-Lei 114/2011, de 30 de Novembro. Este último, muito largamente baseado no Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, contém o essencial da disciplina especial atual do jogo de fortuna ou azar.
Com o Decreto-Lei 114/2011 continua a ser rigidamente enquadrado o jogo lícito, cujo regime jurídico se pauta por um conjunto normativo bastante detalhado. Tal postura resulta designadamente duma certa desconfiança do legislador quanto ao fenómeno do jogo[5], que o leva a restringir, confinar e controlar estreitamente a respetiva prática: na verdade e por via de regra, aquela somente pode ter lugar em casinos, que são estabelecimentos do domínio privado do Estado ou reversíveis para este no término das concessões (art. 27º, nº 2), e que visam essencialmente, entre mais, assegurar a honestidade do jogo (art. 27º, nº 1).
No Decreto-Lei 114/2011 consigna-se uma noção legal de "jogo de fortuna ou azar", cujos ingredientes definitórios revelam alguma variação relativamente ao conceito consagrado no Decreto 14.643 e mantido até ao Decreto-Lei 422/89: aponta-se na lei atual, como elemento caracterizador deste jogo, uma contingência maioritária (não absoluta) dos resultados da sua prática (art. 1º), com o que se melhorou o teor do conceito legal[6]; por outro lado, o legislador continua a não definir o que considera como "jogo"[7], embora tudo indique que tem em vista a ideia corrente de um sistema no qual um (ou mais) jogador(es) se envolve(m) num conflito artificial submetido a regras e conducente a um resultado; a lei acaba por continuar a identificar implicitamente os jogos que tem em vista, dado fazerem parte duma listagem taxativa cuja característica geral identificadora consiste em serem praticados em casinos (art. 4º). Embora não conste da noção legal, verifica-se, desde logo, que este tipo de jogo cabe nos vulgarmente chamados "jogos a dinheiro"[8], pois a lei vem dizer que os ditos jogos só podem praticar-se com a utilização efetiva de moeda com curso legal (art. 59º, nº 1), sem prejuízo de o dinheiro poder ser substituído por símbolos convencionais representativos daquele (art. 59º, nº 2). Para completar o entendimento da visão legal dos jogos de fortuna ou azar, importa ainda notar que a lei os contrapõe às "modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar", caracterizadas como sendo as operações oferecidas ao público, em que a esperança de ganho reside conjuntamente no acaso e perícia do jogador, ou somente no acaso, e que atribuem como prémios coisas com valor económico (art. 159º, nº 1); numa enumeração meramente exemplificativa, são legalmente qualificados, como tal, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (art. 159º, nº 2).
A continuidade legislativa básica reflete-se outrossim no facto de o regime jurídico do jogo de fortuna ou azar se manter assente na divisão fundamental entre o jogo legal e o jogo clandestino, que ressalta com particular visibilidade dos artigos 9º, 27º, e 108º a 111º.
De igual modo se mantém, como base do edifício normativo de enquadramento do jogo, a existência de zonas de jogo (quer permanente quer temporário) nas quais é assegurado o exclusivo da respetiva exploração e prática (art. 3º), bem como o recurso a concurso público para efeitos de seleção dos exploradores dessas zonas (art. 10º) e a celebração dum contrato público de concessão contendo as cláusulas consubstanciadoras dos termos da exploração do jogo (art. 9º e seguintes). Por outo lado e salvo poucas exceções, nomeadamente o caso especial do bingo (art. 8º), o jogo continua a poder ser unicamente praticado em casinos (artigos 3º e 27º, nº 1), mais precisamente nas salas de jogos dos casinos (art. 32º, nº 1).[9]
A legislação atual consolida a antecedente escolha duma íntima ligação entre o jogo e o turismo[10], desdobrada numa série de vertentes que passamos a enumerar. Desde logo, a tutela do jogo compete ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo (art. 2º). Depois, as receitas fiscais advindas da exploração do jogo, fundamentalmente consubstanciadas no imposto especial de jogo, revertem na sua larga maioria (77,5%) para um organismo do Estado que apoia o sector do turismo (art. 84º). Por ocasião de manifestações de relevante interesse turístico, o membro do Governo da tutela pode autorizar a exploração e a prática fora dos casinos de jogos não bancados (art. 7º, nº 1); e, em localidades onde a atividade turística seja predominante, o membro do Governo da tutela pode autorizar a exploração e a prática do jogo em máquinas de fortuna ou azar em estabelecimentos hoteleiros ou complementares (art. 7º, nº 2); tudo isto, portanto, em derrogação da proibição da prática do jogo fora dos casinos. As concessionárias têm ademais obrigação de levar regularmente a cabo, nos casinos, programas de animação de bom nível artístico (art. 16º, nº 1, al. a)). As concessionárias têm outrossim obrigação de promover e organizar manifestações turísticas, bem como de colaborar nas iniciativas oficiais de idêntica natureza, e também de subsidiar ou realizar a promoção das respetivas zonas de jogo no estrangeiro (art. 16º, nº 1, al. b)). Os empreendimentos turísticos previstos nos contratos de concessão podem usufruir dos benefícios inerentes à figura da utilidade turística (art. 18º, nº 3). Os casinos visam fundamentalmente, para além do resto, proporcionar uma oferta turística de alta qualidade (art. 27º, nº 1): devem satisfazer, mais precisamente, os requisitos de funcionalidade, conforto e comodidade próprios dum estabelecimento turístico de categoria superior (art. 27º, nº 5). Para além disso deve ser assegurado, nas salas de jogo, um bom nível social e turístico (art. 76º, nº 2, al. d)). E finalmente, pelo que toca ao destino das receitas fiscais do jogo arrecadadas pelo Estado, pode fazer-se uma associação direta ou indireta ao turismo no concernente a 77,5 % dessas receitas (art. 84º, nº 3).
Prevê a lei, ainda, uma certa ligação entre o jogo e a assistência social, ao prescrever que certas quantias oriundas do mundo do jogo revertam para a assistência social: é assim que as importâncias ou fichas encontradas no chão, deixadas sobre as mesas ou abandonadas no decurso da partida e cujo dono não seja possível determinar, serão entregues às misericórdias (art. 66º, nº 1); e também será dado igual destino às quantias das paradas em divergência quando, não sendo possível identificar o verdadeiro dono, os litigantes não cheguem a acordo até ao momento de se iniciar o golpe seguinte (art. 66º, nº 2); prevê-se igualmente que tais disposições são aplicáveis a situações idênticas ocorridas nas salas privativas de máquinas e do jogo do bingo (art. 66º, nº 5).
Pode ainda falar-se dum certo elitismo do jogo legal, embora ligeiramente menos enfatizado no cotejo com tempos anteriores, pois já não tem lugar uma rotunda imposição de características luxuosas dos casinos. A lei atual pretende garantir mais exatamente, em termos gerais, a comodidade dos jogadores (art. 27º, nº 1), acrescentando que os casinos devem satisfazer os requisitos de funcionalidade, conforto e comodidade próprios dum estabelecimento turístico de categoria superior (art. 27º, nº 5); e decretando, para além doutras particulares imposições (art. 29º, nº 2, al. e), art. 30º, nº 1 e art. 96º, nº 2), que a abertura à exploração de salas, bancas, máquinas ou grupos de máquinas deve ter em conta o imperativo de assegurar a comodidade dos jogadores (artigos 54º e 55º, nº 2). Preceitua-se ainda que as concessionárias devem fazer executar regularmente nos casinos, nas dependências para tal destinadas, programas de animação de bom nível artístico (art. 16º, nº 1, al. b))[11]. Dentro da mesma ordem de ideias incide também, sobre os trabalhadores em serviço nas salas de jogos, o dever especial de cuidarem da sua boa apresentação pessoal (art. 82º, al. c)). Portugal não optou todavia pelo modelo dos mega-casinos, contrariamente ao que tem sido seguido ou proposto noutros Estados[12].
A exploração e a prática do jogo encontram-se sujeitas a uma especial inspeção tutelar do Estado (art. 95º, nº 1), caracterizada nomeadamente pela circunstância de o serviço de inspeção em cada casino ser permanente (art. 97º, nº 1), traduzindo pois uma fiscalização apertada do próprio jogo legal.
Verificam-se também, no atual diploma regulador do jogo, variadas restrições pessoais de contacto com o jogo legal, seja por proibição da própria frequência dos locais de jogo, seja por proibição da prática do jogo. Prevêem-se desde logo, numa enumeração exemplificativa, proibições pessoais de frequência dos próprios casinos, abrangendo: no período sequente às 22 horas, os menores de 14 anos, exceto quando maiores de 10 anos e acompanhados pelos respetivos encarregados de educação (art. 29º, nº 2, al. a))[13]; as pessoas que não manifestem a intenção de utilizar ou consumir os serviços prestados nos casinos (art. 29º, nº 2, al. b)); as pessoas que recusem, injustificadamente, o pagamento dos serviços utilizados ou dos bens consumidos (art. 29º, nº 2, al. c)); as pessoas que possam causar cenas de violência, distúrbios do ambiente ou causar estragos (art. 29º, nº 2, al. d)); as pessoas que possam incomodar os demais utentes do casino com o seu comportamento e apresentação (art. 29º, nº 2, al. e)); as pessoas que sejam acompanhados por animais, exerçam a venda ambulante ou prestem serviços (art. 29º, nº 2, al. f)); e, genericamente, as pessoas que deem azo a indícios suficientes da inconveniência da sua presença nos casinos (art. 29º, nº 3). Prevêem-se ademais, noutra enumeração meramente exemplificativa, proibições de acesso às salas de jogos dos casinos, visando: os menores de 18 anos (art. 36º, nº 2, al. a)); os incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta, desde que não tenham sido reabilitados (art. 36º, nº 2, al. b)); os membros das Forças Armadas e das corporações paramilitares, de qualquer nacionalidade, quando se apresentem fardados (art. 36º, nº 2, al. c)); os trabalhadores das concessionárias que prestam serviço em salas de jogos, quando não em serviço (art. 36º, nº 2, al. d)); os portadores de armas, engenhos ou matérias explosivas e de quaisquer aparelhos de registo e transmissão de dados, de imagem ou de som (art. 36º, nº 2, al. e)); e as pessoas que deem azo, em termos gerais, a indícios suficientes da inconveniência da sua presença nas salas de jogos dos casinos (art. 37º, nº 2). Existem ainda proibições de acesso às salas de jogos dos casinos determinadas oficiosamente pelas autoridades fiscalizadoras do jogo, ou sequentes a pedidos dos próprios jogadores, ou então sequentes a pedidos das concessionárias (art. 38º). Mas não se vislumbram, por outro lado, restrições específicas à prática do jogo por pessoas estranhas ao funcionamento dos casinos e autorizadas a aceder às respetivas salas de jogos.
A lei prescreve que é proibido fazer empréstimos nas salas de jogos ou em outras dependências ou anexos dos casinos (art. 60º, nº 1). Nessa conformidade veda designadamente que os trabalhadores afetos às salas de jogos façam empréstimos nos casinos (art. 83º, nº 1, al. b)), determinando preventivamente que esses trabalhadores são obrigados a usar, em serviço, o trajo aprovado pela concessionária, o qual, excetuando um pequeno bolso exterior de peito, não pode ter quaisquer bolsos (art. 83º, nº 1, al. c)). Com esta rigorosa proibição de empréstimos para jogo parece ter-se elegido, como objetivo principal, o de procurar contrariar-se qualquer tendência dos jogadores para eventuais prosseguimentos insensatos da prática do jogo, defendendo-os contra impulsos próprios compulsivos a jogar[14].
O jogo clandestino é, por seu turno, alvo duma clara repressão, operada em algumas frentes: a exploração do jogo levada a cabo fora dos locais legalmente autorizados é qualificada como crime e punida com pena de prisão (art. 108º, nº 1); é igualmente qualificada como crime, e punida com pena de prisão, a prática do jogo fora dos locais legalmente autorizados (art. 110º); e incorre também numa pena de prisão, por conduta criminosa, quem for encontrado em local de jogo ilícito e por causa deste (art. 111º).
Nos últimos anos vem-se assistindo, internacionalmente, à tendência para uma crescente tolerância ao jogo a dinheiro[15], tendo esta expansão mundial do jogo gerando uma próspera indústria[16]. Todavia, dados os inúmeros malefícios associados ao jogo[17], existem motivos ponderosos para o restringir ou mesmo, na opinião de alguns, para o proibir[18]. A lei portuguesa mantém a escolha da via não proibitiva, associada porém a um forte condicionamento da exploração e prática do jogo legal. Como vantagens importantes da permissão do jogo legalmente admitido podem apontar-se uma maior fiscalização da sua prática, bem como a contribuição daquele para a dinamização da economia e para o aumento das receitas fiscais[19], adicionadas à subtração de certos jogadores às tentações do jogo marginal. E a favor duma admissibilidade moderada do jogo pode aduzir-se o considerando de que nem todos os males sociais provêm necessariamente daquele[20].
Conclusão
O regime jurídico português do jogo de fortuna ou azar assenta, desde os anos vinte do século passado, na fundamental bipartição entre jogo legal e jogo clandestino.
O jogo clandestino é alvo de repressão penal: é criminalizada a exploração do jogo bem como a sua prática, fora dos locais legalmente autorizados; e incorre também em conduta criminosa quem for encontrado em local de jogo ilícito e por causa deste.
O jogo lícito não se encontra liberalizado: é objeto dum enquadramento estrito, devido a alguma desconfiança do legislador quanto ao fenómeno geral do jogo, a qual conduz a lei a restringir e controlar apertadamente o próprio jogo legal. Como base do edifício normativo deste último lobrigam-se três pilares: a existência de zonas de jogo, onde é assegurado o exclusivo da sua exploração e prática; o recurso a concurso público para seleção dos exploradores das zonas, ligado à celebração dum contrato público de concessão para a respetiva exploração; e, salvo poucas exceções, a permissão do jogo unicamente em casinos. Para além disto, a exploração e a prática do jogo legal encontram-se sujeitas a uma especial e apertada fiscalização, contando-se, mais especificamente, a proibição da celebração de empréstimos nos casinos (parecendo procurar contrariar-se assim eventuais impulsos excessivos a jogar, que seriam fortemente alimentados por tais empréstimos). Sem embargo, e num sentido algo contraditório, pode falar-se todavia dalgum elitismo do jogo legal, manifestado designadamente no imperativo de que os casinos satisfaçam os requisitos próprios de estabelecimentos turísticos de categoria superior.
Existem, por outro lado, variadas restrições pessoais de acesso ao jogo legal, assentes em dissonantes posturas do legislador: manifestação de reserva face ao mundo do jogo; preocupação com a comodidade dos jogadores e com uma boa ambiência dos casinos; consideração implícita do jogo como uma realidade menos digna; e também, entre mais, receio de inseguranças derivadas da atividade do jogo.
Realça-se finalmente uma profunda ligação entre o jogo e o turismo, desdobrada em várias vertentes, como as identificadas nos seguintes pontos: tutela do jogo (atribuída ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo); receitas fiscais da exploração do jogo (revertendo em larga maioria para um organismo do Estado que apoia o sector do turismo); dever das concessionárias de realização de manifestações turísticas e de promoção das respetivas zonas de jogo; e obrigação, incidente sobre os casinos, de proporcionarem uma oferta turística de alta qualidade. Prevê-se ainda uma ligação entre o jogo e a assistência social, embora bastante menor, ao prescrever-se que certas quantias oriundas do mundo do jogo revertam para a assistência social.
Pode dizer-se, num balanço, que o Direito Português admite o jogo, condicionando porém fortemente a sua exploração e prática. O jogo é simultaneamente visto como portador dalguns benefícios (nomeadamente económicos e fiscais), mas também de vertentes nocivas, senão mesmo perigosas. E, apesar de se lhe apontar algum elitismo, é outrossim encarado como roçando a zona cinzenta das realidades sociais menos confessáveis. O legislador português revela afinal, sobre um pano de fundo algo equívoco, uma posição pouco espontânea e compromissória.
Informações Sobre o Autor
Abel Laureano
Docente da Universidade do Porto (Portugal). Mestre em Direito (Integração Europeia) pela Universidade de Coimbra (Portugal). Titular do Diploma de Estudios Aprofundizados (D.E.A.) pela Universidad de Santiago de Compostela (Espanha). Titular do Diploma em Estudos Europeus (D.E.E.) pela Universidade de Lisboa (Portugal). Pós-Graduado em Estudos Europeus pela Universidade de Lisboa (Portugal). Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal)