Autoras:
- Maria Carolina Vidal Siqueira – Acadêmica de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE).
- Juliane Castro Dias – Acadêmica de Direito na Universidade de Pernambuco (UPE).
Orientadora: Flávia Danielle Santiago Lima.
Resumo: O presente trabalho versa sobre o julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) que teve como objeto o conflito entre direitos e princípios fundamentais, quais sejam: o direito à vida, o direito à saúde, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia e do direito à escola, razão pela qual teve como fundamento normativo decisório da lide o princípio da proporcionalidade, responsável por dirimir conflitos entre preceitos normativos essenciais que se contrapõe ante ao caso concreto. Ademais, este estudo se propõe a analisar o emprego do princípio da razoabilidade a fim de garantir a aplicação racional do direito.
Palavras-chave: Antecipação do Parto; Princípio da Proporcionalidade; Princípio da Razoabilidade.
Abstract: The present work deals with the judgment of the Supreme Federal Court (STF) whose object was the conflict between fundamental rights and principles, namely: the right to life, the right to health, the principle of human dignity and the principle of autonomy and the right to school, which is why the principle of proportionality was based on the decision-making principle of the dispute, responsible for resolving conflicts between essential normative precepts that are opposed to the specific case. Furthermore, this study aims to analyze the use of the principle of reasonability in order to guarantee the rational application of the law.
Keywords: Anticipation of Childbirth; Principle of Proportionality; Principle of Reasonability.
Sumário: Introdução. 1. A relevância da ponderação de valores. 2. O princípio da proporcionalidade. 3. O princípio da razoabilidade. 4. Descrição do caso. 5. Resumo do julgado e da decisão final do STF. 6. Direitos, Metodologia e Princípios empregados. 6.1. O direito à vida. 6.2. O princípio da autonomia e o direito de escolha. 6.3. O direito à saúde. 6.4. O princípio da dignidade da pessoa humana. 6.5. Os métodos hermenêuticos clássicos. 7. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A princípio, faz-se necessária uma breve explanação sobre a temática a ser desenvolvida no presente trabalho. Este, versará sobre os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, de forma teórica e prática, a fim de demonstrar a conceituação, bem como a aplicabilidade desses princípios.
Além disso, é oportuno definir e distinguir os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, que, embora sejam amplamente difundidos, ainda são bastante confundidos erroneamente por grande parte da população.
Posteriormente, este trabalho se propõe a tratar da aplicação desses princípios nos tribunais, mediante a exposição do casos julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual há conflito entre direitos fundamentais e princípios, sendo necessária, para a obtenção de uma solução adequada, a utilização de juízos de ponderação, uma vez que não há hierarquia entre os direitos fundamentais e os princípios.
Para realizar as considerações acerca do caso concreto, será realizada uma breve descrição do caso a ser examinado, tal como dos direitos, dos princípios e da metodologia empregada pela Corte Constitucional na sua tomada de decisão, tomando por base profissionais do ramo jurídico para facilitar a elucidação das nuances específicas do caso concreto, a fim de provocar uma melhor compreensão no que tange à temática da ponderação de valores.
Por último, este trabalho visa propor uma análise particular acerca do caso narrado e dos instrumentos constitucionais utilizados pelos ministros como fundamento decisório da sua interpretação no julgamento do caso concreto.
- A RELEVÂNCIA DA PONDERAÇÃO DE VALORES
É válido, inicialmente, destacar a importância da razoabilidade e da proporcionalidade da aplicação do texto constitucional. Isso porque, embora a soberania popular tenha sido materializada na forma de texto com a promulgação da Constituição de 1988, a sua validade está sujeita à concretização das situações por ela reguladas e há, como obstáculo a essa premissa, situações de conflitos entre valores contidos na Constituição, nos quais a observância isolada da norma não é suficiente para a obtenção de uma solução adequada. Nesses casos, deve-se fazer uma ponderação de valores, que se traduz na aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O princípio da proporcionalidade, a fim de resolver o conflito entre princípios ou direitos fundamentais, a partir da análise do caso concreto e o princípio da razoabilidade, que tem como propósito tornar o direito mais justo, através da utilização da razão como base decisória para a aplicação do direito.
- O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Dessa forma, torna-se salutar esclarecer no que consiste o princípio constitucional a ser analisado, o princípio da proporcionalidade, também denominado de princípio da vedação de excesso ou mandado de ponderação (conforme leciona Robert Alexy), que pressupõe uma correlação entre dois elementos, a premissa (causa) e a conclusão (finalidade). Este princípio visa analisar se o meio empregado para se alcançar um determinado fim é adequado ou excessivo à obtenção do que se almeja.
À vista disso, nota-se que o princípio da proporcionalidade tem como objetivo coibir excessos desarrazoados, através da verificação da proporção entre os meios e os fins na aplicação do direito, a fim de evitar restrições desnecessárias ou abusivas.
Acerca da aplicação desse princípio, faz-se oportuno destacar o seu tríplice fundamento de observação – classificação elaborada pela doutrina alemã -, segundo José dos Santos Carvalho Filho:
a)adequação, significando que o meio empregado na atuação deve ser compatível com o fim colimado; b) exigibilidade, porque a conduta deve ter-se por necessária, não havendo outro meio menos gravoso ou oneroso para alcançar o fim público, ou seja, o meio escolhido é o que causa o menor prejuízo possível para os indivíduos; c) proporcionalidade em sentido estrito, quando as vantagens a serem conquistadas superam as desvantagens. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 31)
Por fim, ressalta-se a importância do princípio da proporcionalidade para uma aplicação mais justa do direito, uma vez que proporciona uma solução mais adequada, necessária e proporcional para solução da contrariedade entre os valores em conflito, através de uma análise mais profunda do caso concreto.
- PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
O princípio da razoabilidade, por sua vez, é uma diretriz de bom-senso aplicada ao Direito, que se torna indispensável à medida que as exigências formais, decorrentes do princípio da legalidade, que tendem a valorizar mais a letra da lei, do que o seu espírito.
Ademais, tal princípio impõe a observação da razão na aplicação do direito, tendo como consequência, a valoração do fato concreto em relação ao direito a ser aplicado, uma vez que se propõe a analisar a situação fática e, a partir disso, empregar os preceitos normativos de modo racional.
Nesse sentido, por força do princípio da razoabilidade, interpreta-se os casos analisados sob aspectos qualitativos, tais como, social, econômico, cultural e político, sem se afastar dos parâmetros legais. Devendo o magistrado agir de modo razoável, utilizando-se dos meios adequados, a fim de que sejam tomadas decisões moderadas, desprovidas de excessos e abusos normativos.
Para esclarecer tal entendimento, faz-se pertinente expor a menção feita pelo professor Humberto Ávila:
a razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente das regras. A razoabilidade é usada com vários sentidos. Fala-se em razoabilidade de uma alegação, razoabilidade de uma interpretação, razoabilidade de uma restrição, razoabilidade do fim legal, razoabilidade da função legislativa. (ÁVILA, 2006)
Ainda sobre o tema, aduz Fábio Pallaretti Calcini:
A razoabilidade é uma norma a ser empregada pelo Poder Judiciário, a fim de permitir uma maior valoração dos atos expedidos pelo Poder Público, analisando-se a compatibilidade com o sistema de valores da Constituição e do ordenamento jurídico, sempre se pautando pela noção de Direito justo, ou Justiça. (CALCINI, 2003, p. 146)
- DESCRIÇÃO DO CASO
O caso analisado pelo STF trata de uma ação para julgar procedente ou não a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Acerca do caso referido, destaca-se que este se refere, pontualmente, ao aborto em caso de feto anencéfalo, que consiste em um defeito congênito, que o torna praticamente incompatível com a vida extrauterina, levando a óbito, logo após o parto, 99% dos tem possuem essa anomalia.
No que concerne à defesa do feto, foi utilizado com um base argumentativa o direito fundamental à vida – previsto no caput, do Art. 5, da Constituição Federal -, ao afirmar que o feto, embora ainda possua apenas vida intrauterina, trata-se de um ser humano e, por essa razão, deveria ser tratado como tal, sendo fundamental a garantia do seu direito à vida. Além disso, os defensores desse entendimento argumentam que o princípio da dignidade humana, diretriz fundamental do ordenamento jurídico, prevê que todo ser humano tem direito a uma vida digna e aduzem que, caso seja permitido o aborto nesses casos, o feto anencéfalo será reduzido à condição de acessório incômodo.
No que tange aos argumentos em favor da mulher, fundamentou-se o argumento no princípio da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da autonomia da vontade, além dos direitos fundamentais à saúde (física e psicológica) e à vida digna. Isso porque, conforme esse entendimento, não é razoável comparar a vida de um feto anencéfalo – incompatível com a vida extrauterina – com a saúde, liberdade e até a vida da mãe, visto que, além dos danos à integridade física e mental, a gestação de feto anencéfalo possui elevados índices de morte da gestante. Ademais, equiparou-se à tortura a imposição à mulher do dever de carregar por nove meses um feto que se sabe, com quase plenitude de certeza, que não sobreviverá, violando, desse modo, a dignidade da pessoa humana.
À vista disso, faz-se indispensável ressaltar que a situação fática posta a exame revela um conflito entre o direitos fundamentais, por um lado, o direito fundamental à vida digna e, por outro lado, o direito fundamental à saúde, à autonomia da vontade e à vida digna.
Cabe ao Tribunal Constitucional, portanto, a tarefa de realizar uma ponderação de bens jurídicos tutelados pela Constituição, uma vez que todos os direitos supramencionados são de inegável relevo para a vida dos cidadãos e para o bem-estar social, utilizando-se nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade a fim de se obter a solução mais adequada e coerente.
- RESUMO DO JULGADO E DA DECISÃO FINAL DO STF
A discussão foi iniciada no ano de 2004, no momento em que foi analisada uma proposta realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde, o qual solicitou ao Supremo Tribunal Federal a permissão para, em caso de anencefalia, ser interrompida a gravidez. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a entidade pedia que o STF fixasse o entendimento de que a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico não é aborto. A Confederação afirmava que não havia potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Argumentava, da mesma forma, que apenas o feto com potencial de ser pessoa pode ser passivo de aborto.
Em Julho do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio concedeu uma liminar ao pedido da CNTS, impondo a suspensão dos processos judiciais em curso de pedido de antecipação terapêutica do parto e decisões não transitadas em julgado relacionados ao mesmo tema. Isto posto, assegurou a possibilidade da gestante realizar o procedimento de antecipação terapêutica do parto, contanto que a anencefalia fosse atestada por laudo médico. O argumento utilizado em sua decisão foi a demora da prestação jurisdicional diante dos pedidos para realização do procedimento. Três meses depois, entretanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal cassou a decisão.
Considerando a relevância da matéria, foram realizadas audiências públicas, em 2008, com entidades não governamentais, representantes de entidades governamentais e especialistas de diversas áreas de conhecimento, Foram quatro dias de debate, em que um viés defendia o direito da mulher de decidir ou não acerca do prosseguimento da gravidez e, o outro, sustentava que a vida era um bem intocável, mesmo em se tratando de feto anencéfalo.
O tópico foi ao Plenário da Corte em 2012 e, em seu voto, o Ministro Marco Aurélio citou o caso como um dos mais importantes analisados pelo Tribunal e salientou a importância do pronunciamento do Supremo, com dados fundamentados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Através de uma comparação elencada entre direito do feto e direito da mulher, o relator votou a favor da prática da antecipação do parto em caso de anencefalia. Acompanharam o voto os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. Dias Toffoli não votou, pois se declarou impedido.
O parecer do Supremo vale para todos os casos semelhantes, e os demais órgãos do Poder Público são obrigados a respeitá-lo. Os ministros se preocupam em frisar que o julgamento não autoriza “práticas abortivas” nem obriga a interrupção da gravidez de um feto anencéfalo. Na pronunciação da ministra Carmen Lúcia:
“Faço questão de frisar que este Supremo Tribunal Federal não está decidindo permitir o aborto. […] Não se cuida aqui de obrigar. Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de um médico ajudar uma pessoa que esteja grávida de feto anencéfalo de ter a liberdade de seguir o que achar o melhor caminho.”
- DIREITOS, METODOLOGIA E PRINCÍPIOS EMPREGADOS
O pleito final versa sobre a técnica da interpretação conforme a Constituição, assentada a premissa de que apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto e que somente a mãe para realizar as suas próprias escolhas. É nesse ponto que surge o conflito entre direitos e princípios, o qual foi superado com a tomada de decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
6.1. O DIREITO À VIDA
O direito à vida é um dos mais importantes do ordenamento jurídico, viabilizando o exercício das demais leis e se tornando o maior bem jurídico do ser humano. Esse direito é adquirido desde a concepção, mesmo que na época de formação fetal. Pedro Lenza (2012) explica de que forma a Constituição Federal aborda o direito à vida:
O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna. (…) O segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida digna, garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano e proibindo qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc.
Percebe-se que a Constituição Federal buscou reforçar a ideia da proteção do feto, mesmo não possuindo personalidade jurídica plena. Os ensinamentos de Silvio Venosa (2010) tratam sobre o início da personalidade civil da pessoa natural com autoridade:
A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. (…) Verificamos o nascimento com vida por meio da respiração, Se comprovarmos que a criança respirou, então houve nascimento com vida. Nesse campo, o direito vale-se dos ensinamentos da Medicina.
Quando a questão do aborto em casos de anencéfalos foi exposta, várias entidades religiosas foram ouvidas, o que acarretou em diversos conflitos ideológicos, visto que, para aquelas, a vida é intocável, mesmo se tratando da condição cerebral estabelecida.
O ordenamento brasileiro ainda se mantém duvidoso quanto ao início da vida, mas define quando a vida termina. Na esfera jurídica, considera-se morto aquele que apresenta morte cerebral. Desse modo, a questão dos fetos anencéfalos envolve discutir não a vida, mas a viabilidade de manter em funcionamento os órgãos de um ser que tem ausência de atividade cerebral, e, que se encontra, pois, morto legalmente.
Grande parte dos ministros do STF não interpretou a situação do feto com essa má formação cerebral como um nascituro, mas sim um natimorto, pois se percebe que o feto com anencefalia nunca chegou a estar vivo. Conforme o entendimento, não se trata de um aborto em si, mas sim de uma interrupção de gestação, pois o feto está morto. O ministro Celso de Mello expôs que:
“O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e que o feto esteja vivo. E mais, a morte do feto vivo tem que ser resultado direto e imediato das manobras abortivas. […] A interrupção da gravidez em decorrência da anencefalia não satisfaz esses elementos. […] A interrupção da gravidez é atípica e não pode ser taxada de aborto, criminoso ou não.”
Juntamente com esse pensamento, tem-se a exposição do relator do caso Marco Aurélio:
“Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal. […] O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida.”
6.2. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA E O DIREITO DE ESCOLHA
Corroborando com o direito à vida constitucionalmente estabelecido, o Princípio da Autonomia possui como principal objetivo garantir aos indivíduos a devida compreensão as suas opiniões e escolhas relacionadas a atividades particulares, a fim de evitar que suas atitudes sejam reprovadas pelas demais pessoas e pelo Estado. Concluiu o ministro do STF Marco Aurélio:
“Está em jogo o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher, de agir de acordo com a própria vontade num caso de absoluta inviabilidade de vida extrauterina. Estão em jogo, em última análise, a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres. Hão de ser respeitadas tanto as que optem por prosseguir com a gravidez – por sentirem-se mais felizes assim ou por qualquer outro motivo que não nos cumpre perquirir – quanto as que prefiram interromper a gravidez, para por fim ou, ao menos, minimizar um estado de sofrimento.”
O Ministro Ayres Britto, em sua pronunciação, explanou acerca do direito de escolha da mulher, através de uma metáfora:
“O feto anencéfalo é um crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estágio de borboleta porque não alçará voo jamais. […] Não se pode tipificar esse direito de escolha [da mulher] como caracterizador do aborto proibido pelo Código Penal. […] Levar esse martírio às últimas conseqüências contra a vontade da mulher equivale à tortura, a martírio cruel. […] É preferível arrancar essa plantinha ainda tenra do chão do útero do que vê-la precipitar no abismo da sepultura.”
6.3. O DIREITO À SAÚDE
É válido frisar, primeiramente, que a má formação por defeito do tubo neural durante a gestação impede o desenvolvimento dos hemisférios e do córtex cerebral do feto, acarretando a duas possibilidades: ou morte intrauterina, ou sobrevida de no máximo, algumas horas após o parto, o que raramente acontece. A permanência do feto no útero da mãe pode trazer prejuízos à saúde da gestante, tanto físicas, quanto psicológicos.
Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que, posteriormente, é certo que não irá sobreviver gera danos à integridade moral e psicológicos, além de riscos físicos trazidos pela Medicina. Obrigar a mãe a conviver com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, o qual não passará de horas de vida, é uma tortura psicológica. É nesse sentido que o Ministro Gilmar Mendes votou a favor da liberação do aborto de feto anencéfalo
“O aborto de fetos anencéfalos está compreendido entre as duas causas excludentes já previstas no Código Penal [estupro e risco de morte para mãe], não citada pelo legislador de 1940 até pelas limitações tecnológicas, imagino. […] Não parece tolerável que se imponha à mulher esse tamanho ônus à falta de um modelo institucional adequado para resolver esta questão. […] A falta de modelo adequado contribui para essa verdadeira tortura psíquica e física causando danos talvez indeléveis na alma dessas pessoas.”
Na mesma linha de raciocínio, segue o Ministro Luiz Fux em sua decisão:
“Um bebê anencéfalo é geralmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de que alguns indivíduos com anencefalia possam viver por minutos, a falta de um cérebro descarta completamente qualquer possibilidade de haver consciência. […] Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal equivale à tortura.”
6.4. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana é um direito inerente a todo e qualquer humano, sendo considerado um princípio supremo e base para os fundamentos da República Federativa do Brasil, como previsto no Art. 1º, II, da Constituição Federal:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana” (CF, 1988, art. 1º, inc. III).
Ninguém terá sua dignidade alterada, independentemente de sua origem, raça, idade, sexo, condição social e econômica, e foi com essa premissa que o Supremo se demonstrou a favor do aborto em caso de anencefalia. A gestante, além de ter o direito à saúde, não pode deixar que sua vida digna seja alterada por um fator que pode ser reparado. O STF tomou tal decisão tendo em vista a impossibilidade de uma meia proteção à mulher, pois o Estado não poderia abrir mão de tutelar um titular de direito fundamental.
Nesse viés, a Ministra Carmen Lúcia pronuncia que:
“Não é escolha fácil. É escolha trágica. Sempre é escolha do possível dentro de uma situação extremamente difícil. Por isso, acho que todas as opções são de dor. Exatamente fundado na dignidade da vida neste caso acho que esta interrupção não é criminalizável.”
6.5. OS MÉTODOS HERMENÊUTICOS CLÁSSICOS
É importante interpelar, em um primeiro momento, à luz da hermenêutica, conceituar alguns métodos para que melhor seja compreendido o uso deles pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. O jurista alemão do século XIX, Friedrich Carl Von Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, deixou aos estudiosos do Direito os métodos clássicos de interpretação, essenciais para que ocorra o estabelecimento de limites do significado e alcance das normas constitucionais.
O primeiro deles é Método Gramatical, que se fundamenta na interpretação literal ou textual dos enunciados linguísticos da norma constitucional, não podendo fugir do sentido geral. A segunda metodologia é a Sistemática, cuja interpretação visa estabelecer relação entre as normas presentes em um mesmo dispositivo, e destas com outros âmbitos, para que possa haver uma harmonização no ordenamento jurídico brasileiro. Luis Roberto Barroso alega que essa interpretação:
“É fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico […] o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas” (BARROSO, 2001, p.135).
O terceiro mecanismo de interpretação é o Histórico, em que se procura o sentido da lei através dos precedentes que intervieram na interpretação constitucional. Busca revelar a vontade histórica do legislador. A quarta técnica, chamada de sociológica, surgiu com o aparecimento da Sociologia e adequa a Constituição à realidade social, buscando a efetiva eficácia social para não haver um distanciamento entre a norma e os fatos sociais. Por fim, o Método Teleológico, que ocorre quando uma norma é aplicada de acordo com a sua finalidade, o seu objetivo.
Ao realizar uma análise particular do caso, pode-se perceber que o método gramatical é apenas a base para que as outras vertentes de interpretação sejam incididas. Estabelecendo uma conexão de diversos princípios constitucionais acerca de um cenário ligado ao Direito Penal, compatibiliza-se o ordenamento como um todo, no qual se faz presente a metodologia sistemática. Além disso, uma abordagem histórica e social do caso é de grande importância, à vista que se explorou a condição da mulher em sua realidade social e como o pensamento no que concerne a sua autonomia vem evoluindo. Em desfecho, apenas por uma questão de ordem de metodologia, a finalidade com a qual a prática de antecipação do parto em caso de anencefalia foi estudada e discutida de maneira evidente, fato este comprovado pela longa duração do processo.
É válido destacar que cada mecanismo assentou de base para outro, de forma que nenhum foi avaliado de forma individual. A complementação de metodologias permite que o estudo seja mais profundo e a abordagem para a decisão final esteja bem fundamentada, evitando qualquer arbitrariedade e desordem gerada por uma verificação fechada em si mesma.
CONCLUSÃO
- SOBRE O CASO NARRADO
Ante ao caso supramencionado, torna-se vital, no presente trabalho, a realização de um juízo de valor acerca do tema. Dessa forma, destaca-se que a temática desenvolvida é alvo de muita polêmica, no âmbito jurídico e social, devido à presença de conflito entre bens jurídicos de máxima relevância no ordenamento jurídico.
Contudo, uma análise livre de valores morais e religiosos permite uma percepção mais razoável acerca do caso concreto em discussão, uma vez que, embora haja – de ambos os lados – direitos dignos de proteção no ordenamento jurídico, quando se realiza um juízo de ponderação, nota-se que não há como comparar o direito à vida digna de um feto anencefálico, comumente denominado de natimorto, por não possuir perspectiva de vida extrauterina com os direitos à liberdade, à autonomia da vontade, à saúde e à vida digna da gestante, que, além do sofrimento proveniente da má-formação do tubo neural do seu feto, terá que carregá-lo, por nove meses, com a certeza que de que ele não sobreviverá, o que lhe causará dor, angústia e frustração, resultando em violação à dignidade da pessoa humana, além de colocar em risco a sua saúde e cessar a sua liberdade.
Além disso, para fundamentar esse entendimento, é oportuno salientar que a anencefalia consiste em uma patologia letal, que torna a vida extrauterina, na totalidade dos casos, fatal, visto que não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável. Acerca do tema, o Prof. Dr. Thomaz Gollop assevera que a interrupção da gestação de um feto com anencefalia não deveria ser considerada um aborto, propondo como termo adequado “antecipação do parto”, já que não há perspectiva de sobrevida para o bebê, uma vez que aproximadamente 75% dos fetos anencéfalos morrem ainda dentro do útero e que, dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que cessa, na maioria dos casos, em 24 horas, e os demais nas primeiras semanas de sobrevida.
Ademais, no que concerne à gestante, faz-se pertinente sublinhar que os riscos para a sua saúde aumentam à medida que a gravidez é levada adiante, conforme Rute Andrade, secretária-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), afirma que geralmente a gestação de feto diagnosticado com anencefalia provoca complicações e, consequentemente, riscos para a mulher, porquanto que o feto com má formação normalmente não consegue deglutir o líquido amniótico, gerando acúmulo da substância e aumentando os riscos de uma distensão do útero e de hemorragias.
Outrossim, acerca do direito à autonomia da vontade, que prevê que o Estado deve assegurar aos indivíduos as mínimas condições para que a possibilidade de fazer suas escolhas livremente, pode-se dizer, a partir de outra vertente, que a atuação intervencionista do Estado de proibir o aborto nessas circunstâncias, viola, também, a liberdade da mulher, a quem será imposta a obrigação de manter uma gravidez que traz riscos à sua saúde.
Para elucidar esse pensamento, é salutar apresentar a afirmação feita pelo ministro Luís Roberto Barroso:
Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um. (BARROSO, 2016)
Ante aos argumentos expostos, é pertinente, por fim, destacar a relevância da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que demonstra uma verdadeira evolução social, posto que não é razoável impor à mulher a gravidez de um feto natimorto, que lhe causaria inúmeros malefícios, físicos e emocionais, os quais já foram exemplificados anteriormente.
- SOBRE A METODOLOGIA ADOTADA
Ao analisar o pedido da CTNS – ADPF 54 –, os ministros do Supremo se depararam com um caso bastante complexo, cuja análise não se esgota neste primeiro momento. A despeito de haver métodos específicos a cada caso, na realidade dos fatos, ao fazer a interpretação das leis, os estudiosos dos dispositivos da Constituição podem e fazem uso de vários métodos para o mesmo caso, principalmente para analisar aqueles em que surge uma colisão entre os direitos fundamentais, como pôde ser notado na análise dos votos da ADPF em questão, pois houve uma colisão entre o direito à vida do feto anencéfalo e o direito à vida, à saúde e à liberdade da mulher/mãe. Assim, diante de uma concorrência de princípios, o esforço hermenêutico deve se voltar para a realização máxima de um para justificar que o outro não seja aplicado.
Com relação à separação entre direito e moral, entende-se que era impossível no caso analisado, visto que se trata de uma questão em que se deve levar em consideração também as atribuições morais da sociedade vigente, analisando o campo ético de maneira geral. Além disso, o direito não deve ser tido de maneira isolada das outras áreas, mas com elas se comunicando conjuntamente. Cada ministro do Supremo Tribunal Federal, no momento de proferir a decisão, levou em conta aspectos morais que regem a comunidade, analisando de maneira histórica, sociológica e teleológica cada viés apontado em questão.
A análise da decisão do Supremo Tribunal Federal referente ao aborto de fetos anencéfalos tomando por base os princípios e métodos utilizados permite concluir pelo acerto da supracitada Corte. A mulher tem direito à autonomia e, consequentemente, à autodeterminação, tal como entende. Cabe apenas a ela decidir pela manutenção ou não de uma gravidez que gerará um indivíduo sem potencialidade de vida. Sua dignidade, bem como seus direitos individuais, devem ser protegidos e preservados, conforme garante a Constituição.
Esse é o limite jurídico, que, de acordo com o modelo teórico da ponderação, deve ser resolvido pelo chamado princípio da proporcionalidade em sentido estrito. É a técnica de aplicação deste terceiro subprincípio que demanda a ponderação de valores. Apesar da denominação, diante de tudo o que foi dito acima sobre regras e princípios, estes devem ser concebidos com regras de otimização de condutas para a máxima realização dos valores que os sustentam.
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GLOBO. Veja como votaram os ministros do STF sobre aborto de feto sem cérebro. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/04/veja-como-votaram-os-ministros-do-stf-sobre-aborto-de-feto-sem-cerebro.html Acesso em: 30 de Novembro de 2018.