O lado obscuro da Lei 11.689/08 no rito do júri. Afrontas à plenitude de defesa do réu, à coletividade e à administração da Justiça

Penso que o intento do legislador ao editar o novo procedimento do júri está assentado em todas as premissas de um processo penal mais ágil e com distribuição de justiça mais equânime e sem tantos recursos contra nulidades na quesitação.


Sabe-se que os quesitos se tornaram um dos tópicos de maior vulnerabilidade da sessão de julgamento, porquanto os decretos de nulidade por sua má formulação eram freqüentes. Na busca de um formato com questionamentos mais singelos e de maior assimilação para os jurados, na redação do art. 483 do Código de Processo Penal, afastam-se maiores dificuldades para sua aplicabilidade. Neste contexto, de se parabenizar o legislador pela modificação em tela.


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De outro bordo, guardo sérias dúvidas quanto à viabilidade prática da audiência una e do interrogatório como último ato da instrução.


Na medida em que o interrogatório se insere na audiência, levanto algumas reflexões para que se avalie a pertinência ou não das mesmas.


I – Interrogatório. A partir de 2003, passou a ser meio de defesa, não só meio de prova. Na esteira dos Juizados Criminais, muitos doutrinadores passaram a defender que sua colocação como último ato da instrução seria valioso para o melhor exercício da ampla defesa. Até porquhttp://webmessenger.msn.com/?mkt=pt-br e, ciente de todas as vertentes trilhadas pelo órgão acusatório, possui todas as condições de se contrapor a cada uma delas.


Penso que embora sedutora a idéia que vem sendo defendida por luminares do processo penal brasileiro, com a devida vênia, penso não ser o melhor para a ampla defesa do réu e para o melhor desempenho da justiça criminal em face da comunidade, pelas ponderações que ora se faz:


a) Primeiro ato e não último. O interrogatório há de ser o primeiro ato da instrução, justamente para que o acusado contraste o que a acusação lançou contra si, indicando ao magistrado quais testemunhas desmerecem credibilidade ou sobre quais deva o juiz ficar atento, porquanto lhe são de confiança duvidosa; bem como esclarecer os fatos indicando se existiu abuso de poder ou excesso contra a sua pessoa ou coisas.


No formato da lei, estando o interrogatório ao final da instrução e ultimada esta, ficará o magistrado de mãos atadas, salvo queira promover acareações, por exemplo, com policiais que, porventura, tenham agredido o acusado. Se o fizer, procrastinará, desnecessariamente, a instrução processual, que é um dos fundamentos maiores da alteração legislativa.


Mantendo o statu quo ante, ou seja, ficando o interrogatório como primeiro ato da instrução, o magistrado terá a tese acusatória e a antítese do réu – sua autodefesa – que somada à defesa técnica já apresentada – permitirão conduzir a instrução com maior domínio da dialética processual.


Pode-se dizer que a indicação das testemunhas de duvidosa credibilidade será feita na defesa preliminar, contudo mais de 90% dos réus são defendidos por defensores públicos e estes somente têm contato com os patrocinados no dia da audiência, inviabilizando tal assertiva.


b) Reperguntas. Diz a lei em seu artigo 474, § 1º, que “O Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado”. Ora, se o interrogatório é meio de defesa deve ser considerado um ato de defesa, uma prova da defesa, tanto que pode ser pleiteado o reinterrogatório para se buscar melhoria no quadro defensivo, e como tal, as reperguntas hão de ser iniciadas pelo defensor e não pelo acusador. Tecnicamente, penso que a previsão legal ofende a igualdade das partes, porquanto se o Ministério Público é o que primeiro repergunta nas testemunhas de acusação, outra não poderia ser a imposição legal quando se tratasse de prova defensiva, como o interrogatório.


c) Preso em outra comarca. Causa maior de adiamento de audiências. No caso de réu preso em outra circunscrição e não trazido para a audiência, o juiz tendo convocado todas as testemunhas para a audiência una, será obrigado a redesignar o ato, provocando enorme constrangimento na vida das pessoas, mormente civis que atenderam ao chamado. Sabe-se quão comum é – especialmente testemunhas de defesa – serem ameaçadas de perder o emprego pelos patrões em face de sua ida aos fóruns. Note-se que a referência é a um réu somente; não raro, dado o crescimento da criminalidade, são comuns vários réus presos pelo mesmo processo, sendo rotineiro não serem conduzidos à audiência sob alegações as mais diversas – falta de funcionário, de combustível, de viatura etc. –. Pensar diferente é desconhecer a realidade carcerária, em especial a paulista.


d) Confissão. O interrogatório como primeiro ato facilita a instrução quando o réu decide confessar – embora raro em crimes dolosos contra a vida – os fatos imputados, porquanto a acusação pode desistir de parte das suas testemunhas e a defesa idem, alcançando-se a prestação jurisdicional com maior celeridade. Sendo o último ato, ao contrário, desconhecendo-se que a pretensão do acusado é admitir a acusação, o magistrado é obrigado a ouvir todas as testemunhas arroladas por todos para, só então, ouvir o réu e se dar conta do tempo perdido na produção de provas desnecessárias.


II – Audiência de instrução una. Sensível prejuízo à organização da pauta de audiências. Os dados acima externados conduzem à preocupação quanto à audiência única. Pelo número de testemunhas – 8 de cada parte – por certo as Varas do Júri somente poderão realizar duas audiências por dia. Este viés resultará em profunda oneração da pauta, pela baixa produção do número de audiências.


Lembre-se que a simples ausência do réu ou de uma testemunha – um policial, por exemplo – que tenha conhecimento acurado do fato, imporá o adiamento que repercutirá negativamente na prestação jurisdicional. Tanto o réu preso pelo processo como as testemunhas defensivas deverão comparecer na nova data.


Admitindo-se a manutenção do statu quo ante – com interrogatório como primeiro ato – se o réu já tivesse sido ouvido, especialmente através de videoconferência, nas hipóteses mencionadas no art. 217 do CPP (com a redação nada inteligível do dispositivo constante da Lei 11.690/08[1]), as partes poderiam avaliar com maior clareza o contexto probante e, se fosse o caso, desistir de oitivas e, quiçá, das testemunhas faltantes. Tenho convicção de que o interrogatório como último ato instrutório dificultará sobremaneira a avaliação da estratégia defensiva e adoção de medidas que facilitem uma melhor prestação jurisdicional.


III – Conclusão e sugestão. Como operador do direito, juiz criminal que sou, decidi externar minha visão sobre os aspectos mais negativos que senti no novel diploma processual penal, mormente no que tange à instrução processual. Estou certo que o procedimento do júri sofrerá profundamente com a adoção dos ditames da Lei 11.689/08. Por certo, do mesmo modo, as despesas do Poder Executivo com a condução de presos serão oneradas sensivelmente diante do quadro que ora se espelha.


Tenho esperança que o legislador reflita e não adote o mesmo com o procedimento ordinário, sob pena de se ter um caos forense com conseqüências imprevisíveis.


Anote-se que pela nova redação do art. 212 da Lei 11.689/08, as perguntas são formuladas diretamente pelas partes e o juiz completará a inquirição sobre pontos não esclarecidos[2]. Paradoxalmente, o legislador no rito do Júri define que, em plenário, o juiz inquirirá e as partes reperguntarão as testemunhas de acusação, enquanto nas de defesa, o defensor perguntará diretamente à testemunha[3].


Ora o juiz conduz – no rito do júri – e ora a parte o faz – no rito do CPP –. Esta alteração exige maior reflexão, haja vista sua interferência intrínseca na condução de uma audiência de instrução nos ritos previstos no CPP e do júri.


A título de sugestão e com o devido respeito aos integrantes do legislativo, basta que se adote o rito da Lei 11.343/06 – Lei de Drogas – com audiência una, para termos um processo penal exemplar com atendimento a todos os princípios constitucionais. O diferencial fundamental reside na posição geográfica do réu ser ouvido por primeiro. Caso não possa ser trazido, porque preso em outra comarca ou pelo número excessivo de presos, o juiz, justificando, realiza o interrogatório ouvindo-o por precatória (ou quiçá por videoconferência) e designa mais adiante a audiência de instrução e julgamento. O fracionamento da audiência de instrução – pelo interrogatório antecipado – não provoca qualquer prejuízo ao acusado, ao contrário permite que receba a prestação jurisdicional com maior rapidez e permite que o juiz administre com serenidade a pauta de audiências.


 


Notas:

[1] Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram.

[2] Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

[3] Art. 473.  Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.

§ 1º Para a inquirição das testemunhas arroladas pela defesa, o defensor do acusado formulará as perguntas antes do Ministério Público e do assistente, mantidos no mais a ordem e os critérios estabelecidos neste artigo.


Informações Sobre o Autor

Jayme Walmer de Freitas

juiz criminal, mestre em Processo Penal pela PUC/SP. Professor de Leis Especiais, Penal Especial e Processo Penal. Autor de artigos jurídicos e dos livros Prisão Temporária e OAB – 2ª Fase – Área Penal, ambos pela Editora Saraiva. Coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Foi coordenador pedagógico do Curso Triumphus – preparatório para Carreiras Jurídicas e Exame de Ordem, por 14 anos. Professor de Leis Especiais na Rede LFG


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