O legado racionalista no direito processual civil brasileiro

Resumo: A corrente racionalista, preconizada pelos filósofos e juristas do século XVII, detinha como uma de suas características o apego ao dogmatismo. Tal fator foi o responsável por tonar a autoridade judicial, dentro da sonhada divisão dos poderes, uma mera reprodutora do texto legal, afastando-a da interpretação. Esse posicionamento influenciou significativamente o campo do direito e, principalmente, o direito processual civil. Neste, a filosofia racional em comento foi a responsável pela produção de um rito procedimental fase a fase, através da presença de um método como condição de possibilidade pra se descobrir a “verdade” dentro da lide posta em juízo. Entretanto, questionamos em que medida a nossa atual sociedade, marcada pela evolução das relações de trabalho, da economia, da política, se coaduna com a segurança procedimental trazida pelo movimento racionalista, onde a aplicação da lei era tida sem interpretá-la. Objetivamos alcançar um direito processual civil atrelado à efetividade, onde haja espaços de sumarização procedimental e prolação de decisões em que coloquem a constituição federal como parâmetro. Nessa tentativa de reflexão, abordamos alguns exemplos presentes no Código de Processo Civil Brasileiro a fim de demonstrar a desvinculação do sistema com os anseios emergentes em nossa sociedade, caracterizando a busca ultrapassada pela jurisdição deficitária de realidade do século XVII.[1]

Palavras-chave: Jurisdição; Processo; Rito Ordinário; Racionalismo.

Abstract: The current rationalist, advocated by philosophers and jurists of the seventeenth century, had as one of its characteristics attachment to dogmatism. This factor was responsible for behold the court, within the division of powers envisioned as a mere reproducer of the legal text, away from the interpretation. This position significantly influenced the field of law, and especially the law of civil procedure. In this, the rational philosophy under discussion was responsible for the production of a rite procedural stage by stage, through the presence of a method as a condition of possibility to discover the "truth" put into the deal in court. However, we question the extent to which our current society, marked by the evolution of labor relations, economics, politics, meets the procedural security brought by the rationalist movement, where law enforcement was taken not to interpret it. We aim to achieve a civil procedure tied to effectiveness, there are spaces where summarization and delivery of procedural decisions that put the federal constitution as a parameter. In this attempt of reflection, we discuss some examples present in the Brazilian Civil Procedure Code in order to demonstrate the decoupling of the system with the desires emerging in our society, characterizing the search exceeded the jurisdiction of reality loss of the seventeenth century.

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Keywords: Jurisdiction; Process; Ordinary Rite; Rationalism.

Sumário: Introdução. 1. O legado racionalista e o direito processual civil. 2. Demonstrações exemplificantes com artigos. 2.1. Art. 285-A. 2.2. Art. 515, §3º. 2.3. Art. 557. Conclusão. Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho deriva da fundamental necessidade, em pleno século XXI, de se construir um novo direito processual civil. Isso por que a jurisdição processual está imersa em um déficit de realidade, oriundo principalmente da supervalorização do processo de conhecimento e seu corolário rito ordinário (por natureza, plenário e declaratório), que tradicionalmente vem mantendo o processo no interior da filosofia da consciência e do liberalismo político, sobrelevando a consciência do magistrado e a obsessão pelo encontro de certezas e verdades eternas no trato de direitos subjetivos individuais.

Contudo, para uma melhor compreensão do tema há de se ter em mente, como marco teórico inicial, a condição histórica formadora da chamada Idade Moderna e, também, a tendência que marcou o fim da Idade Média (a substituição do catolicismo medieval pela nova cultura advinda da Reforma Religiosa do século XVI, juntamente com a nova concepção de indivíduo, no campo cultural, trazida pelo Renascimento). Pode-se dizer que tais circunstâncias deram ensejo a um enredo social, político e humano que tinha como pressuposto a utilização da razão, compreendida enquanto operação mental, lógica e discursiva, dando, então, origem ao movimento filosófico posteriormente denominado Racionalismo.

Essa corrente racionalista, preconizada pelos filósofos e juristas do século XVII, além de suas características liberais, baseou-se nos princípios da busca da certeza e da demonstração, fato esse comprovadamente evidenciado pela cognição dos fenômenos enquanto calculáveis, e pela obsessão ao método, jamais acolhendo alguma coisa como verdadeira que não conhecesse evidentemente como tal (utilizando para isso o método). Assim, por concentrar esforços na busca por segurança e perenidade, no campo do direito, tal filosofia racionalista proporcionou a eliminação da retórica e, consequentemente a eclosão do dogmatismo jurídico, sobretudo na elaboração das codificações, passando a história a nos propiciar uma tentativa de transformação do direito em uma ciência "dura", preocupada com as certezas matemáticas.

No plano do direito processual civil, a principal consequência do movimento racionalista foi a herança de um forte substrato ideológico concentrado na ideia do direito como uma ciência demonstrativa, sujeita à metodologia da matemática, de onde surge o cartesianismo dogmático jurídico que aprendemos nas universidades. Ciente dessa influência, a obra “Processo e Ideologia: O paradigma racionalista”, do renomado jurista gaúcho Ovídio Batista da Silva, foi a precursora a trazer essa temática de discussão para o seio da doutrina processual civil, enfrentado de maneira ostensiva a influência racionalista-cartesiana e suas manifestações em nossas instituições processuais vigentes.

Frente a isso, em que se pese a contemporaneidade vivida por nossa sociedade, percebemos a presença imanente de resquícios dessa ideologia liberal, sobretudo no campo do direito e do processo civil, principalmente. Observamos que a ciência processual que se apresenta hoje vigente demonstra-se desvinculada das necessidades de sua época, uma vez que foi concebida em tempos onde a formalidade, o apego ao método, a busca pela segurança jurídica e a exaltação da letra fria da lei, sem interpretá-la, eram os baluartes que guiavam a sociedade. Assim sendo, o processo civil dogmático, derivado da pretensão racionalista em transformar o direito em uma ciência demonstrativa e conceitual, por ser abstrato e formal, revela-se carecedor de historicidade, impedindo, assim, sua compreensão como produto cultural.

Logo, através desse estudo científico, procura-se evidenciar algumas mazelas deixadas pelo sistema processual civil vigente na efetivação do direito material, debatendo sobre a real possibilidade da efetivação deste frente ao procedimento que temos hoje na legislação de processo. Somente a compreensão histórica desse sistema formal de aplicação da norma será capaz de desvendar a ideologia consubstanciada na lei, a qual esconde escopos tiranos, mantenedores de poder, antidemocráticos e que não se coadunam com o Estado Democrático de Direito exaltado pela Constituição Federal de 1988.

1. O LEGADO RACIONALISTA E O DIREITO PROCESSUAL CIVIL

No entanto, antes de se procurar compreender as contingências racionalistas em nosso direito processual civil, necessário é o conhecimento sobre dois grandes acontecimentos que marcaram a humanidade na derrocada do mundo medieval anterior ao século XVII, e no surgimento da modernidade: o Renascimento (período marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, sobretudo na economia, na política e na religião, caracterizando a transição do feudalismo para o capitalismo), e a Reforma Religiosa. Ambos os acontecimentos representaram marcos históricos que serviram de releitura e questionamento de tudo aquilo que se produziu anteriormente, além de inaugurarem um novo paradigma cultural para a humanidade.

Na época, o aparato econômico gerado pela sociedade burguesa, aspirante de riqueza no século XVII, não poderia ficar amparando e fomentando o privilégio daqueles que possuíam diversa forma de decisão e condução do Estado (nobreza e clero). Era preciso criar mecanismos que assegurassem um respaldo maior à classe ascendente, dentre eles a normativização de direitos e deveres fundamentais. Ou seja, a imposição de leis, regulamentos, consubstanciados no discurso de igualdade, liberdade e fraternidade eram caminhos que a burguesia detinha para que se regulassem as relações de poder, a organização entre os cidadãos e, mormente, a constituição de uma nova mentalidade de Estado, baseado na lei.

Todavia, embora tida como garantidora de obrigações e pressuposto para segurança jurídica, a normativização buscada pela sociedade emergente na Idade Moderna escondeu escopos tiranos, sobre os quais os detentores de poder, principalmente econômico, perfizeram do direito seu instrumento de dominação. Isso se explica, pois além de aspirar ao poder, a classe burguesa fez do corpo de leis um meio/instrumento para que não mais se perdesse esse império de poder, algo dotado de perenidade, que não permitisse retrocessos que abalassem suas prerrogativas já conquistadas.

Percebe-se, desde logo, que a busca pela segurança jurídica e pela proteção do próprio direito passou-se a ser imperiosa, fator que propiciou a ascensão fulminante do conceitualismo jurídico. Evidentemente que, a partir desse marco histórico, o direito tornou-se servil do raciocínio matemático, criando um grande quebra-cabeça de conceitos, onde a lei era apenas um elemento estático de pacificação. Segundo o jurista Ovídio Batista da Silva: “este foi, de fato, o fator responsável pela eliminação da Hermenêutica e, consequentemente, da Retórica forense, em favor da racionalidade das “verdades claras e distintas” de Descartes, que nosso processo ainda persegue compulsivamente, numa ridícula demonstração de anacronismo epistemológico.[2].

        Havia uma crença ilusória e dogmática que supunha a existência de plenitude no ordenamento jurídico, considerando que esse poderia dispor normativamente para a infinita variedade de casos concretos e, consequentemente, reservar ao juiz a missão de declarar a “vontade da lei”. Note que esse pensamento racionalista, que pretendeu considerar o juiz como um ser inanimado, além de conceber o ordenamento jurídico como capaz de fornecer ao juiz a solução do caso concreto, pressupôs também, na figura do julgador, alguém desligado da tradição, de seus vínculos sociais e valores, um verdadeiro “técnico sem princípios”.

Em outras palavras, a partir desse movimento cultural impregnado pelo raciocínio, em contraposição â filosofia aristotélica que dominava a Idade Média, houve a eliminação da retórica e, com a eclosão do dogmatismo jurídico, a história nos propiciou uma tentativa de transformação do direito em uma ciência preocupada com as certezas matemáticas. O ponto da discórdia está no fato de que as ciências comprometidas com a história, com a cultura e que pressupõem uma compreensão hermenêutica não podem se submeter a métodos puramente dogmáticos, artificiais historicamente e cartesianos como sugere a corrente filosófica em comento.

Ainda, nesse prisma cartesiano e racional de aplicação da norma, o direito de cunho dogmático serviria, ainda que implicitamente, de instrumento dominador, disposto a eliminar qualquer tentativa de questionamento ou que pudesse se contrapor aos ditames já emanados de quem detinha o poder. Assim, perfazia-se o empenho do poder em manter o direito a seu serviço, constituindo uma verdadeira barreira oposta à criação jurisprudencial do direito, e consequentemente, à hermenêutica. Seria, nas palavras de Ovídio Batista da Silva, “o direito do tirano”, conforme se percebe por um trecho extraído de sua obra:

“Torna-se fácil compreender as razões que, no século XIX, fizeram com que os autores dos Códigos procurassem impedir que eles fossem interpretados. Reproduziu-se no século XIX a tentativa de Justiniano. A intenção que sustentou esse propósito foi a mesma que, no início da Era Moderna, procurou eliminar a retórica, enquanto ciência argumentativa, do campo do Direito, basicamente no campo do Processo. A idéia de perfeição do direito criado, que se oculta sob essa conduta, foi denunciada por Agnes Heller, ao mostrar o pathos tirânico, consequentemente antidemocrático, desse modo de compreender o direito. O direito “perfeito” elimina qualquer tentativa de questionamento. É o direito do tirano.”[3]

Conforme já exposto, o conceitualismo jurídico conseguiu tornar-se o princípio dominante a partir do século XVII, afastando o direito de sua interpretação, de sua compreensão hermenêutica e de suas contingências históricas. Ainda, mais precisamente no campo do processo civil, conseguiu separar o julgador das peculiaridades de cada caso concreto, contumaz, gerando um distanciamento de todo rito processual procedimental (metódico e ultrapassado) à tutela efetiva, satisfatória e democrática de direito material.

Segundo o professor Ovídio Baptista, esse pressuposto metodológico (sem compreensão) foi o fator que impeliu nosso pensamento a tratar os conceitos como “coisas”. Diante disso, o direito processual civil que temos atualmente revela-se fielmente compromissado com as ciências exatas, pois sua formalização, conforme pregaram os juristas racionalistas, ao buscar a segurança, impedia que o direito sofresse as “interpéries” das evoluções e modificações sociais, conferindo-o um caráter de imutabilidade.

Com efeito, a forma de como as instituições processuais vigentes foram concebidas, também denota a presença desse legado nascente da Idade Moderna não só na imutabilidade derivada do conceitualismo, mas na medida em que adota o indivíduo como seu protagonista, e não o grupo (a partir da perspectiva renascentista, aliada à nova tendência protestante que exsurgia na época, vislumbramos a substituição da comunidade medieval pelo individualismo, o qual, definitivamente impulsionou todo esse contexto histórico e político de positivação e mudança paradigmática). Logo, o homem, que anteriormente ao século XVII reconhecia-se apenas como membro integrante de alguma organização coletiva (raça, corporação, família), torna-se espiritualmente um indivíduo, pensado como uma entidade abstrata e universal.

Hoje, temos o direito processual civil como uma disciplina de definições, que não depende de experiência, fazendo com que seu ensino nas universidades se limite a “verdades eternas”, puramente conceituais, prescindindo dos fatos. Essa herança no sistema processual torna-o antidemocrático, na medida em que a democracia pressupõe a neutralidade do juiz e sua consequente permeabilidade às ideologias dominantes em que está inserido. Assim, ao tirar a dinâmica/permeabilidade ideológica produzida pela historicidade e pelas contingencias atuantes, o dogmatismo figura-se como um fenômeno estático e responsável pelo aprisionamento à paradigmas e verdades ultrapassadas.

Tal demonstração torna-se ainda mais clara no momento em que refletimos sobre o padrão de ensino que nos é repassado dentro das Universidades. Somos vítimas de um magistério preocupado com definições, aprendemos uma variedade de conceitos em uma ciência processual totalmente distante do mundo fático. Essa conceitualização marcante tem origem, como já referido, no século XVII, período no qual se tinha a ideia de que o direito não dependeria da experiência. Logo, essa imutabilidade, propiciada pela conceitualismo, com a intenção de dominar-nos, constitui verdadeiramente o que chamamos de ideologia (racionalista).

Naquele tempo, havia uma crença de que o direito deveria possuir uma estrutura objetiva, que não pudesse ser mudada pelo arbítrio (da mesma forma que a matemática). Sobre esse assunto, acrescenta Ernest Cassirer: “A filosofia do Iluminismo vinculou-se primeiro, sem reservas, a esse “apriorismo” do direito, à ideia de que devem existir normas jurídicas absolutas e universalmente obrigatórias e imutáveis. A investigação empírica e a doutrina empirista não fazem nenhuma exceção nesse ponto.”[4].

Vale lembrar que como símbolo baluarte do racionalismo está a Teoria da Separação dos Poderes elaborada pelo filósofo, político e escritor francês Charles de Montesquieu, o qual preconizava que a função jurisdicional seria meramente intelectiva/declaratória. O juiz ficaria limitado a verbalizar a “vontade da lei” ou, em outras palavras, “a vontade do legislador”. A consequência desse pensamento liberal era que a lei teria, então, um sentido unívoco. Ao intérprete não haveria a possibilidade da compreensão hermenêutica, da interpretação, restando, portanto, a simples aplicação da vontade legal ao caso trazido a ele, como um simples juízo matemático.

Ao aprisionar o juiz ao sentido unívosso da lei (juiz boca da lei), o movimento racionalista mostrou-se cada vez menos liberal que o próprio sistema político despótico que o antecedeu. Na intenção de zelar e preocupado em preservar os direitos que acabara de conquistar, os novos órgãos instituídos para legislar fizeram de suas prerrogativas um uso excessivo, limitando, desse modo, a liberdade de atuação do juiz.

Isso se explica, pois talvez somente nos tempos de despotismo mais sombrio imperou tanta desconfiança contra o arbítrio judicial como nos Estados Constitucionais liberais do século XIX. Se fossemos tentar compreender o porque de tamanha desconfiança sobre a magistratura, as razões não cairiam propriamente sobre o juiz, mas sobretudo na figura do funcionário do Estado. Era sobre este que a sociedade civil burguesa aspirante do século XIX depositava sua desconfiança, isso se deve aos fatores políticos naturais e inerentes à época.

Retornando ao viés do legado racionalista no Direito Processual Civil, a aceitação do pressuposto de que a lei teria “vontade” de sentido unívoco é o que legitima toda nossa cadeia recursal. Isso se consubstancia porque pensamos através de conceitos, não nos é dado compreender que a lei seja uma categoria histórica, sujeita às transformações ocorridas no contexto cultural. Conceitos são imutáveis, e assim temos a percepção de ser “a vontade da lei”, o que nos faz socorrer da mais ampla possibilidade oferecida pelo sistema recursal, a fim de desvendar essa vontade (magistrados resolvem problemas de forma algébrica).

Essa breve explanação nos mostra que o sistema ficou estagnado no tempo, supondo que a lei resultasse da relação necessária derivada da natureza das coisas, conforme dizia Montesquieu em seu tempo. Assim, o sistema recursal, concebido para dar segurança e coerência às decisões judiciais e considerado a medula do diploma processual, demonstrou-se um caminho burocrático que funcionaria como um instrumento mantenedor de poder, provocando um distanciamento crescente entre a jurisdição estatal e as exigências democráticas de nossa contemporaneidade.

Percebe-se também, dentro de nossos estudos, que há uma busca pulsante pela segurança jurídica e pela proteção do próprio direito, fato que propiciou, conforme já foi abordado acima, a ascensão fulminante do conceitualismo dogmático jurídico. A título de exemplificação, a presença de um sistema processual servo da cognição exauriente, onde o juiz está aprisionado ao procedimento, impossibilitado de efetivar direitos incompatíveis com tal, e do contraditório prévio, que impede uma tutela mais efetiva, rápida e eficaz ao sujeito ativo da relação processual emanam novas soluções de cunho legislativo.

Todavia, o direito processual civil vigente não pode ficar preso aos ditames racionalistas do séc. XVII, em que a cognição exauriente e o contraditório prévio eram requisitos elementares (e nessa influencia ao nosso sistema ainda são) para se desvendar a verdade sobre cada caso concreto. O rito procedimental civil, particularmente o processo de conhecimento, já se demonstra escancaradamente ultrapassado frente às novas formas de organização social, à expansão tecnológica, às mutações do sistema produtivo, enfim, ficando distante da real tutela jurisdicional efetiva e adequada.

Em outras palavras, o que se percebe hoje no campo do processo civil brasileiro, através da sistemática de métodos de racionalização é que este campo do direito vem cumprindo um papel pseudodemocrático, mantenedor de poder e autoritário, da mesma forma como se propunha o movimento de cunho racionalista do século XVII. Uma vez que, ao proclamar que a vontade da lei seria a vontade do legislador (detentor de poder) e, ainda, afirmar que o juiz seria a “boca da lei”, sem permiti-lo uma interpretação coerente da norma, o tal movimento tornou-se claro instrumento do conservadorismo e responsável pelo assentamento de paradigmas vigentes na época, fulminando com qualquer tentativa de discordância e insubordinação ao sistema.

2. DEMONSTRAÇÕES EXEMPLIFICANTES COM ARTIGOS

Através do presente estudo, constatou-se que no Brasil a racionalização do processo civil é uma realidade. A compreensão dos dispositivos legais vigentes (vide art. 120, parágrafo único, art. 285-A, art.469, II, art. 515, §3º, art. 527, I, art. 557, caput e § 1º-A), juntamente com a filtragem ideológica das últimas reformas ocorridas nesse campo, revela o comprometimento medular do direito processual civil com a filosofia metodológica e mantenedora de poder do século XIX. Ademais, tal comprometimento ressalta que o direito processual civil tornou-se servil do raciocínio matemático.

O crescente apego à uniformização das decisões judiciais, ocasionando efeito cascata em todas as lides menores em tramitação na justiça de primeiro grau, aliada à busca pela celeridade processual e, em contradição, à exaltação do rito procedimental-processual ordinário, nos remetem à escolha clara do sistema por uma prestação jurisdicional quantitativa, a qual relega o caso concreto a um segundo plano, exaltando a forma subjetiva de aplicação do direito.

Vejamos alguns exemplos ocultados dentro da legislação processual civil: a observância do direito subjetivo de ação (derivada do nascimento de uma pretensão), as “condições da ação”; a análise preliminar de questões prejudiciais de mérito dentro do processo; a existência do processo de execução independente do processo de conhecimento, antes da entrada em vigor do “cumprimento de sentença”; a ordinarização de todo um procedimento para que a “verdade” trazida no processo seja julgada somente após o cumprimento desse encadeamento de atos formais; além dos procedimentos especiais trazidos pelo livro IV do CPC, todos privilegiando a parte credora e detentora de riqueza.

 Apenas pelos ínfimos exemplos acima lembrados, a “evolução” sofrida desde o século XVII pela mutação de complexidades da sociedade percebeu que o processo civil ainda não conseguiu se libertar desses ideais matemático-cartesianos, mas pelo contrário, definitivamente consagrou-os de forma expressa e ainda mais pontuais. Essa infeliz tentativa de “racionalizar”, ou melhor, manter a racionalização já existente em todo o direito processual civil é acobertada por argumentos de celeridade e economia processual. Uma vez normatizados sob o agasalho de tais escopos, esses institutos processuais “simplificadores”, que propõem uma duração razoável do processo, escondem a real intenção legislativa em manter o paradigma vigente, utilizando o direito como mecanismo de dominação (por consequência, não democrática) e conservação.

São exemplos, dentre vários outros, da suposta “evolução” que o direito processual civil vem enfrentando: a súmula vinculante (art. 103-A da CF), a exigência de demonstração de repercussão geral do Recurso Extraordinário (art.102, §3º da CF), a inadmissibilidade de recurso até mesmo contrário à jurisprudência dominante (art. 557 do CPC), a súmula impeditiva de recurso (art. 518, §1º do CPC), e a emblemática sentença de improcedência prima facie (art. 285-A do CPC).

2.1. Art. 285-A

Partindo para o desenvolvido de discussões pontuais, sobretudo sobre a legislação vigente, assume notória importância a reforma trazida pela lei nº 11.277, de 07.02.2006, a qual introduziu no Código de Processo Civil Brasileiro o artigo 285-A, um dispositivo revolucionário que faculta ao magistrado o julgamento prima facie do feito, sem ao menos realizar a citação do eventual réu da demanda. Assim vem expresso no caput: “Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.”.

Por oportuno, vale ressalvar, embora não seja o ponto pertinente aqui, que foi proposta uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADIn nº 3.695/DF) no Supremo Tribunal Federal, distribuída na data de 29/03/2006, menos de dois meses após a promulgação dessa lei, visando à declaração da incompatibilidade constitucional de tal dispositivo. Em sua petição inicial, tal demanda abstrata diz o seguinte:

“Institui entre nós uma sentença vinculante, impeditiva do curso do processo em primeiro grau. (…)

Atenta, noutra vertente, contra o princípio da segurança jurídica, no que concerne ao procedimento judicial, posto que o processo terá normal ou abreviado segundo sentença antes proferida, cuja publicidade para os jurisdicionados que não foram partes daquele feito não existe.”

O que se torna claro, nesse viés, não é apenas a simples inconstitucionalidade pleiteada pelo Conselho Federal da OAB, mas também, no campo histórico e acadêmico, a clara opção legislativa pelo cartesianismo em processo civil. Há um compromisso medular expresso do sistema processual civil brasileiro com a corrente racionalista, que prevê a “racionalização” do processo, desvinculando totalmente o direito processual de suas contingencias históricas, da hermenêutica, e o reduzindo ao simples enredo matemático de dividir, multiplicar, diminuir, e subtrair a prestação da tutela do direito material.

Note que, ao julgar liminarmente improcedente o pleito judicial, o próprio código de processo civil retira a faculdade de silenciar do réu, a qual, de regra, beneficiaria a versão fática dada pelo autor. Por consequência, quebra a isonomia entre as partes na medida em que fulmina a confissão dos fatos e o reconhecimento do pedido pela parte ré. Assim, segundo a lição doutrinária de Elpídio Donizetti, “Se a causa versar sobre direito disponível, a norma viola o princípio do dispositivo, ou seja, em nome de uma celeridade a qualquer custo, o Estado-juízo se interpõe entre o autor e réu, obstaculizando o exercício do direito daquele e as prerrogativas deste.”.

Pelo exposto nas palavras do desembargador mineiro, se percebe a insegurança que o referido dispositivo processual gerou em parte da doutrina. Trata-se de um subterfúgio do sistema, admitindo as consequências de suas próprias mazelas, uma vez que o rito processual/procedimental já se encontra ultrapassado, distante das contingências do mundo moderno e alienado em ordinarizar seus atos atrás de uma suposta e racional verdade em processo.

À lentidão propiciada por essa forma de procedimento de cognição exauriente e de contraditório prévio, se exige que haja caminhos mais céleres de efetivação do direito material, capazes de solucionar o grande número de demandas trazidas ao Poder Judiciário, desamarrotando cartórios e gabinetes. Todavia, o legislador se posicionou em sentido contrário, proclamou e exaltou o paradigma racionalista já instalado no Código Processual Civil Brasileiro, na medida em que instituiu um dispositivo cartesiano, impeditivo do desenvolvimento regular do processo, ou salvo melhor juízo, mecanismo redutor do número de lides repetitivas, buscando julgar um número maior de demandas com uma menor disposição de tempo empregado.

 Não podemos esquecer que o argumento de fundo, motivador-mor de toda essa mudança trazida pela lei 11.277/2006 se deteve na busca incessante pela celeridade. Porém, vem a cabo ressaltar que, a celeridade processual almejada por essa sociedade contemporânea não coaduna com a celeridade tentada da norma legal supracitada.

Habitamos uma sociedade em que a celeridade tão sonhada, aprisiona-se em costumes e comportamentos consumeristas, em que a sede pela prestação jurisdicional, ou seja, a angústia para receber do Poder Judiciário uma tutela que não de fato solucione, mas decida a lide posta em juízo torna-se mais interessante que a própria qualidade, ou característica solucionadora/pacificadora que essa prestação possa ter. Um comportamento que espera uma manifestação imediata do Poder Judiciário, como se este estivesse de prontidão (e devidamente está), para solucionar um caso como se fosse uma empresa atendendo seu consumidor final, unicamente assim.

Entretanto, a celeridade a ser buscada do âmbito do direito processual civil não é necessariamente esta. Trata-se de uma sumarização procedimental, um local no qual as partes possam vir a juízo não como consumidoras desvairadas, mas sim como litigantes em prol de uma decisão democrática, abrindo espaços de participação, de oralidade e de simplicidade, não esquecendo que o direito processual preza-se só, e tão somente, para a efetivação dos direitos assegurados pela normatização material.

Ainda, retornando à discussão do art. 285-A, a fim de continuar o embasamento da discussão, apresentamos jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento ocorrido em 16.06.2011, do Recuso Especial nº 1.109.389-MS, pela Quarta Turma do respectivo tribunal. Tal precedente supõe que a sentença de improcedência prima facie esteja alinhada ao entendimento cristalizado nas instâncias superiores, especialmente no STJ e no STF. Entendeu o tribunal que o mecanismo estaria voltado para a celeridade e racionalidade das decisões processuais, o que não seria alcançado caso fossem permitidas decisões contrárias aos posicionamentos já consolidados nas Cortes Superiores.

Observe no teor da decisão, que o ministro Luis Felipe Salomão admitiu que o sistema processual trazido com o art. 285-A do CPC obedece a um método de trabalho voltado para a celeridade e racionalidade processuais, permitindo que o juiz, ainda na primeira instância, ponha um fim a demandas repetitivas. Salientou ainda o mesmo ministro que “permitir que se profiram decisões contrárias a entendimentos consolidados, ao invés de racionalizar o processo, seguramente acaba por fomentar o inconformismo da parte vencida e contribui com o patológico estado de litigiosidade verificado atualmente.”.

Todavia, não se questiona aqui o estado perene de conflituosidade na sociedade brasileira, fato notório e comprovado. O que está em discussão é o papel desempenhado pelo direito processual civil dentro dessa sociedade conflituosa. Interroga-se o motivo de optar-se por um sistema de racionalização de cima para baixo, o qual é responsável pela manutenção do poder, fazendo do direito apenas um instrumento a seu favor e, consequentemente distanciando-se do caso concreto. A conflituosidade liga-se diretamente à inefetividade do sistema processual, carente de canais de sumarização e solução de conflitos rápida de problemas com uma preocupação maior no caso concreto.

Logo, é evidente que a uniformização presente no art. 285-A esconde escopos tiranos, e possui sua origem lá na historicidade do movimento racionalista cartesiano, o qual transformou o juiz em mero aplicador da lei, incapaz de distinguir o justo do injusto (essa distinção ficaria a cargo do poder legislativo). Ademais, o continuado exercício dessa forma de aplicação da lei revelar-nos-á a centralização expressiva dos tribunais (detentores de poder), a criação estandartes de sustentação para outras decisões futuras, além no enfraquecimento natural dos juízos de primeiro grau, os quais apenas assumiram o lugar de locutores das verdades do tribunal.

A grande problemática, contudo, advém em esclarecer qual o nível, ou melhor, até que medida o sentido da decisão ou do posicionamento do tribunal é capaz de “alinhar” o entendimento daquele juiz singular, que julga a causa com todas as suas complexidades de fato e de direito. O grande poder de estandardização do direito e a preocupação da uniformidade do direito acabam sendo resolvidos a partir de julgamentos construídos distantes das peculiaridades e riquezas dos mais diversificados casos concretos, ocasionando o risco de inviabilizar o exercício pleno do contraditório como direito de influência e proibição de decisões surpresas, na medida em que, estabelecido o entendimento "cristalizado" pela Corte Superior, restaria inviabilizada, eternamente, a sua discussão.

Afinal, por questão de lógica procedimental, se parece improvável que a parte prejudicada pela aplicação do art. 285-A conseguirá reverter uma "tese" que sequer poderá ser alvo de discussão no primeiro e segundo graus de jurisdição, imagine perante o próprio STJ ou STF, então. Ao fim e ao cabo, o que vem se percebendo, no atual panorama do sistema recursal do direito processual civil, é uma vinculação artificial, não essencial, originada apenas pelo receio da alteração e da divergência de entendimentos, pregada pela imposição cartesiana de remédios apaziguadores de decisões divergentes, derivada da necessidade explícita e cogente pela celeridade no processo civil brasileiro. Nessa sistemática, o enfraquecimento do juízo de primeiro grau é a consequência imperiosa e certa, tornando-se este, mero difusor das “verdades superiores”.

Outro grande entrave à aceitação democrática à existência do art. 285-A está no consagrado princípio da isonomia, pois a aplicação prática do dispositivo processual, considerando-se a extensão territorial de nosso país e suas respectivas diferenças, é capaz de proporcionar, inegavelmente, interpretações e juízos valorativos dos mais diversos possíveis sobre o mesmo caso concreto, seja ele envolvendo apenas matéria de direito ou não. Logo, diante da possibilidade de obterem-se divergências consideráveis entre o posicionamento de magistrados sobre uma mesma matéria de direito, ocorre a perda da isonomia constitucionalmente prevista, ficando apenas e exclusivamente a critério do juiz a decisão sobre o caso, com alto grau de subjetividade.

A interpretação ou, a compreensão do direito de cada caso concreto pelo magistrado é ato inafastável no seu exercício jurisdicional. Assim, não há meios eficazes de garantir que os milhares de julgadores espalhados por esse país afora compactuem de forma semelhantes com as mesmas opiniões e a mesma interpretação dada ao direito em si mesmo. Assim sendo, como instituto impeditivo do trâmite processual regular e, nas palavras supracitadas de Elpídio Donizetti, inibitivo ao poder da parte de influir no convencimento do juiz, o art. 285-A no Código de Processo Civil figura-se como uma espécie de barreira ao “Direito de Ação” propriamente dito, apta a fulminar com preceitos elementares da teoria processual já conhecida em prol da celeridade matematizada.

Portanto, ante as ideias perfiladas acima, denota-se que o art. 285-A no Código de Processo Civil Brasileiro é diretamente fruto da filosofia racional-iluminista, na qual o direito e o processo, além de se manterem reféns do solipsismo jurisdicional, sofreram pela pressão positivista jurídica na ficcionalização do texto legal como algo dissociado do sentido a lhe ser atribuído pelo interprete (juiz). Claramente, essa visão ressalta que o processo civil atual mantém-se adstrito ao espírito dogmático, longe da historicidade, renunciando à compreensão e à própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva). Além do mais, representa os ideais de uma sociedade liberal excludente e conservadora de poder, focada na satisfação do binômio certeza-segurança.

2.2. Art. 515, §3º

Conforme já abordado acima, a preocupação do legislador em estabelecer efetividade e celeridade ao sistema processual civil, fez com que fossem elaboradas recentes modificações legislativas no intuito de atingir esse desiderato. Todavia, tais reformulações estão ocorrendo na contramão do que realmente se faz necessário, pois ao priorizar uma jurisdição quantitativa, dando ênfase ao número de processos julgados, as alterações relegam a qualidade da prestação jurisdicional (e consequentemente, a melhor solução constitucionalmente adequada) a um segundo plano.

Observe o texto do § 3º do artigo 515 atualmente vigente no diploma formal civil brasileiro[5], o qual prevê a permissão para que o tribunal (segunda instância de jurisdição), mesmo quando o mérito da lide não tiver sido apreciado pelo juiz de primeiro grau, possa julgar imediatamente a questão de fundo, desde que a matéria verse sobre “questão de direito”. Através de uma simples análise do que dispõe tal dispositivo legal, constata-se de plano a violação expressa, severa e direta ao princípio da dupla apreciação meritória da lide, a qual mesmo sem previsão expressa na Constituição Federal, é princípio basilar previsto implicitamente na composição e estrutura do poder judiciário.

Atentamos que a garantia constitucional da dupla análise de mérito, criada para dar segurança e coerência às decisões judiciais e símbolo do Estado Democrático de Direito, foi simplesmente vilipendiada pela busca da celeridade. Ou melhor, na ânsia por uma prestação jurisdicional mais ágil e efetiva, o legislador expressamente fixou um artigo no código de processo civil totalmente equivocado com a parametricidade constitucional, tentando encontrar caminhos para contornar as mazelas deixadas, ao longo dos anos, pelo sistema.

Assim sendo, o duplo (e essencial) juízo de apreciação de mérito dentro de um processo judicial é a garantia que se impõe. Não é do mais adequado fazer com que influências cartesianas, matemáticas, apenas preocupadas com números, façam do processo civil uma equação algébrica, transformando lide em procedimentos calculáveis, em desrespeito, ainda, às normas de competência já conhecidas. Na ausência de resolução de mérito, ao chegar os autos no tribunal, o mais adequado seria a devolução ao juízo de origem, para que este profira sua decisão, e agora sim adentrando no mérito, a respeito da lide.

Logo, esse é apenas mais um exemplo do legado racionalista que ainda vive atrelado ao nosso sistema processual civil. O fato de tribunais avocarem para si a decisão meritória da demanda, aglutinando as duas instâncias judiciais, com a supressão do primeiro grau, tende a ressaltar o anseio pelo cartesianismo. Há uma busca geométrica constante pela uniformização, pela criação de estandartes e assentamento de posicionamentos, condutas as quais se distanciam cada vez mais da análise acurada do caso concreto, provocando, inevitavelmente, uma jurisdição quantitativa em prol de qualitativa.

Ainda, de fácil percepção é a tomada de lugar pela instrumentalidade, deixando de lado a boa técnica processual, pois ao permitir tal mecanismo trazido pelo artigo 515, §3º do CPC, amplia-se de forma nada branda o efeito devolutivo dado ao recurso de apelação. Em tal situação, o dispositivo supramencionado permite que o tribunal extravase o âmbito do dispositivo da sentença de primeiro grau, por lógica, o objeto de impugnação. Ademais, nas palavras de José Rogério Tucci, a alteração introduzida faz com que o recurso de apelação perca a sua função substitutiva, uma vez que, agora, nem sempre o novo julgamento se identificará com o objeto da sentença recorrida[6].

Ressalte-se que, da mesma forma dos efeitos gerados pela aplicação do artigo 285-A, o §3º do artigo 515 também demonstra o desprestígio do juízo de primeiro grau como órgão jurisdicional. Isso se explica, pois ao abrir a possibilidade para o tribunal julgar de plano as “questões somente de direito”, decididas com sentença terminativa, o legislador desmotiva o juízo a quo de (re)discutir e (re)interpretar a controvérsia. Ademais, tal fato torna-se mais sedimentado quando o juiz de primeiro grau tem conhecimento do entendimento jurisprudencial do tribunal sobre determinada matéria, sabendo ele que pouco adiantará seu pronunciamento.

Ao juiz de primeiro grau, portanto, que desejar prolatar decisão que respeite e se coadune com o duplo grau de jurisdição, naquelas questões exclusivamente de direito, emitirá sentença obrigatoriamente com fundamento dentro dos incisos do artigo 269 (com resolução de mérito), tendo em vista que, no caso contrário, a lide posta em juízo carregará consigo a real possibilidade de ser fulminada pelo tribunal em única instância ordinária. Com efeito, é mais um reflexo, agora sobre o prisma do magistrado/intérprete, da eficácia ocorrida com a previsão do dispositivo em comento.

Outra circunstância que pode ser proporcionada através do emprego do artigo 515, §3º do CPC, é a possibilidade do reformatio in pejus, ou seja, a situação que é produzida quando a posição jurídica da parte que interpôs o recurso resulta desfavoravelmente em decorrência única de seu próprio recurso, sem impugnação da parte adversa. Imagine, por exemplo, um processo em que traga em seu bojo uma questão iminentemente de direito, e o juiz de primeiro grau julgue extinto o feito sem resolução de mérito ante a falta de pressupostos processuais. Irresignada, a parte autora recorre ao juízo ad quem, oportunidade em que o tribunal decide pela aplicação do artigo 515, §3º e julga improcedente a demanda.

Frente a isto, com base na melhor técnica, ao receber uma decisão de primeiro grau extinguindo o processo sem resolução de mérito, o próprio sistema processual – permissivo pela eventual supressão de instância –, persuade a parte autora para que esta, ao invés de recorrer mediante apelação (oportunizando uma sentença de improcedência em única instância), ingresse com outra demanda. Isso é mais um ponto a ser analisado, uma vez que o dispositivo, concebido com a finalidade de dar instrumentalidade e celeridade, acaba provocando uma potencial multiplicação de demandas ante a não resolução de mérito em primeira instância.

Por fim, chamamos a atenção de que ao remeter a decisão meritória da lide ao tribunal, o transformando em única e última instância na via ordinária, o dispositivo em foco afasta o princípio do juiz natural na medida em que atribui a decisão diretamente ao juízo ad quem, sem ao menos passar pela análise do juízo ordinariamente competente. Logo, ante ao que já foi exposto, evidencia-se a severa e inautêntica busca pela celeridade processual, prescindindo de princípios e valores já consagrados pela processualística tradicional. É a tentativa cartesiana de transformar o processo em operação algébrica, preocupada somente com a quantidade.

2.3. Art. 557

Na mesma linha de raciocínio que possibilitou as reflexões despendidas anteriormente a respeito dos artigos 285-A e 515,§3º do CPC, outro dispositivo presente no mesmo diploma merece uma referência detalhada. Trata-se do art. 557, um escancarado subterfúgio do sistema na constante senda de manutenção de poder. O corpo de tal dispositivo traz a seguinte redação: ”O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”.

Tal dispositivo legal pressupõe a equiparação da “jurisprudência dominante” com a lei, argumento este capaz de provocar uma releitura gravosa no que tange o acesso à justiça. Reflita, e perceba no grau de subjetividade e estandartização capaz de ser proporcionada por tal dispositivo. Com certeza, perfaz-se um verdadeiro mecanismo de controle, sobretudo no âmbito recursal do direito processual civil, o qual se rege pelo conservadorismo e pela dificuldade em aceitar a mudança.

Como bem exaltou o professor Lênio Streck[7] sobre o tema, todos os recursos contrários à “jurisprudência dominante” estarão, de plano, condenados ao arquivamento, provocando o “congelamento” da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e, em especial, do Supremo Tribunal Federal, destinatário do recurso extraordinário-constitucional, bem como dos demais tribunais, a partir do fato de que também eles podem negar seguimento a recursos que contrariem suas próprias “jurisprudências dominantes”.

No mesmo sentido, para Adalberto Hommerding[8], é preciso que se denunciem as reformas legislativas ad hoc, que têm levado, sistematicamente, à concentração do poder nos tribunais superiores. É nesse aspecto que se faz presente um dos problemas do acesso à justiça, sonegando a partir de mecanismos como os constantes no art. 557 do CPC, “monocratizando” as decisões de segundo grau, que impedem o acesso aos tribunais superiores. Note que o referido artigo transfere a competência originariamente dada ao colegiado para um relator, ímpar, a fim de fulminar a demanda com alto grau de subjetividade.

No magistério de Adalberto Hommerding: “Admitir, pois, a aplicabilidade das hipóteses previstas nos artigos 515, §3º, e 557, ambos do Código de Processo Civil, significa admitir a tentativa dos legisladores de manterem o sistema numa espécie de “unidade de tratamento intensivo”. É medida pragmática, mas anti-hermenêutica.”. É preciso inovar a concepção dada ao sistema, aduzindo o mesmo autor que “compreender o juiz de primeiro grau, não como mero “caminho de passagem” para o segundo, mas como o principal órgão decisor no processo de “reconhecimento” (aplicação) do direito.”.[9]

Ao final de tudo o que foi dito nos últimos parágrafos, constatamos que, embora haja esforços por parte do legislador, estamos longe de alcançar uma saída eficaz e célere ao sistema processual civil, sobretudo no âmbito de seus recursos. Neste enredo, o poder legislativo se vê diante de dois caminhos a serem buscados: a instrumentalidade processual quantitativa, e a jurisdição constitucionalizada qualitativa, optando, infelizmente, e baseando-se no que já foi exposto, pela primeira opção. Sobre o tema, evidentemente salutar é transcrever trecho da obra do Ovídio Baptista da Silva:

Encontra-se, justamente, no tratamento que o legislador e a própria doutrina dão aos recursos, um dos sintomas mais claros da submissão do sistema à ideologia racionalista. Embora seja um dado de nossa experiência o fato de que os recursos constituem um dos pontos que mais contribuem para a morosidade da justiça em nosso país, ninguém está disposto a revisá-los, com o objetivo de reduzir-lhes o número ou dar-lhes disciplina que faça minimamente declinar o peso extraordinário de sua significação. Ao contrário, as modificações introduzidas no Código de Processo Civil visam a fortalecê-los, ainda mais, pela transferência para os tribunais da modesta parcela de poder de que ainda desfrutavam, há alguns anos, os magistrados de primeira instância.[10]

Assim sendo, embora pouco denunciada[11], a forte influência racionalista no campo do direito processual torna-se cada vez mais expressiva. A obstacularização da mudança, a matematização dos recursos segundo entendimento de órgãos hierarquicamente superiores e a criação de estandartes para decisões futuras no âmbito recursal demonstram o quão impregnado pelo ideário cartesiano está o nosso sistema processual, uma vez que o racionalismo, conforme já explanado no inicio desta obra, busca a manutenção/conservação, não permitindo uma alteração nas linhas vigentes, as quais estão criadas com o único fim de sustentar aquilo que existe e da forma que existe.

CONCLUSÃO

A evolução histórica nos mostra que as ciências comprometidas com a história, com a cultura e que pressupõem uma compreensão hermenêutica não podem se submeter a métodos puramente dogmáticos, artificiais historicamente e cartesianos como sugere a corrente filosófica em comento. Assim, o direito, como ciência humana que é, mormente seu âmbito processual civil, na medida em que submetem a métodos matemáticos e calculáveis revelam-se inseridos em um contexto de artificialidade histórica.

A obstacularização da mudança, a matematização dos recursos segundo entendimento de órgãos hierarquicamente superiores e a criação de estandartes para decisões futuras, por exemplo, demonstram o quão impregnado pelo ideário cartesiano está o nosso sistema processual. Isso porque o racionalismo, conforme já explanado acima, busca a manutenção/conservação, não permitindo uma alteração nas linhas vigentes, as quais estão criadas com o único fim de sustentar aquilo que existe e da forma que existe. Nesse mesmo viés, o processo civil mostra-se adstrito ao espírito dogmático, longe da historicidade, renunciando à compreensão e à própria hermenêutica (enquanto atividade compreensiva), representando os ideais de uma sociedade liberal excludente e conservadora de poder, focada na satisfação do binômio certeza-segurança.

Assim sendo, levantamos um questionamento tendente a mexer com essa pacificação, no sentido de que entre o surgimento das influencias racionalistas dos séculos XVII e o que se espera hoje no seio da sociedade, marcada pelo surgimento de novos direitos e vestida pela roupagem de nova organização social, urge-se a necessidade de um sistema processual mais democrático, menos matematizado, em que os tribunais não percam tempo com modo de aplicação de recursos ou decisionismos em massa, mas com a garantia de uma prestação jurisdicional de qualidade, escorada na Constituição Federal, sem deixar de lado as especificidades de cada caso concreto.

Pugnamos, por fim, um direito processual civil menos “ordinário”, com seu foco principal no cidadão e que seja eficiente na real efetivação do direito material. Hoje, esse sistema processual civil está muito longe de ser um procedimento efetivo e satisfatório. Não podemos deixar que, em pleno século XXI, a democracia perca espaço para solipsismos racionalistas que se utilizam de instrumentos processuais para a manutenção de estandartes, impossibilitando, desse modo, a tão sonhada mudança paradigmática. Pois, nas palavras de Ovídio Batista da Silva, nós próprios, viventes do paradigma é que seremos legitimados e capazes pra promover tal mudança.

 

Referências bibliográficas:
BRASIL. Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 2011.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. In: José Eduardo Faria. (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Editora Malheiros, 1994;
CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Original de 1932, Editora Unicamp 1992.
DONIZETTI, Elpídio; Curso Didático de Direito Processual Civil; 14ª ed. Editora Atlas, 2010.
HOMMERDING, Adalberto N. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo civil. Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2007.
ISAIA, Cristiano Becker. Processo Civil, atuação judicial e hermenêutica filosófica. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2011.
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SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução na Tradição Romano-Canônica. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
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___________. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da nova reforma do CPC: Lei 10.352, de 26.12.2001; Lei 10.358, de 27.12.2001; Lei 10.444, de 07.05.2002. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Cristiano Becker Isaia, Doutor em Direito Público pela UNISINOS. Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Graduado em Direito pela UFSM. Professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria e do Curso de Direito do Centro Universitário Franciscano.
[2] Silva, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pg. 69.
[3] Silva, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pg. 93.
[4] Cassirer, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Original de 1932, Editora Unicamp 1992, pg. 327.
[5]Assim expressa o artigo: “Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento”.
[6] TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da nova reforma do CPC: Lei 10.352, de 26.12.2001; Lei 10.358, de 27.12.2001; Lei 10.444, de 07.05.2002. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 98-100.
[7] Streck, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pg. 398.
[8] Hommerding, Adalberto. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2007. pg. 277.
[9] A mesma de cima só na pg. 279.
[10] Silva, Ovídio A. Baptista. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Pg. 242.
[11] Ler mais sobre o assunto na obra: Processo e Ideologia: O paradigma Racionalista, 2006. 2ª Ed. –Ovídio Baptista de Silva.

 


Informações Sobre o Autor

Thiago Feiten Nunes

Advogado. Especialista em direito tributário pela Escola Superior da Magistratura Federal no RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria/RS


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Equipe Âmbito Jurídico

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