Resumo: Por meio deste artigo visa-se entender o possível poder legiferante da súmula vinculante. Para tal, aborda-se algumas questões atinentes à súmula vinculante como conceito, natureza jurídica, procedimento de edição, revisão e cancelamento, bem como se contrapõe os sistemas da civil law e commom Law. Analisa-se também, ainda que de forma singela, o pós-positivismo, que possibilitou uma nova maneira de se aplicar o direito, além do princípio da separação dos poderes. Por derradeiro, conclui-se que a súmula vinculante pode ser vista como um instrumento válido e legítimo que busca, além da segurança jurídica, atingir a concretização de princípios basilares o Estado Democrático de Direito brasileiro, tais como legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, publicidade, celeridade processual, devido processo legal, dentre outros, desde que traduza a realidade política, social e econômica contemporânea.
Palavras-chaves: súmula vinculante; pós-positivismo; civil law; commom law; poder judiciário.
Abstract: Through this article aims to understand the potential power of legislating binding precedent. To this end, we discuss some issues relating to binding precedent as a concept, legal, editing procedure, review and cancellation, and opposes the systems of civil law and commom Law. Is analyzed as well, albeit simple, post-positivism, which enabled a new way of applying the law, beyond the principle of separation of powers. For the last, we conclude that binding precedent can be seen as a valid and legitimate instrument that seeks, in addition to legal certainty, to achieve the realization of basic principles of the democratic rule of law in Brazil, such as legality, reasonableness, proportionality, advertising, speed of the procedure, due process, among others, provided that reflects the political, social and economic contemporary.
Keywords: binding precedent, post-positivism, civil law, common law, the judiciary.
Sumário: Introdução. 1 Pós-positivismo, positivismo e a separação de poderes. 1.1 A separação de poderes na Constituição Federal de 1988. 1.2 Civil Law e common Law. 1.3 O pós-positivismo e o positivismo. 2 O poder judiciário e a súmula vinculante. 2.1 Natureza jurídica e funções da jurisprudência. 2.2 O efeito da súmula vinculante. 2.3. O procedimento de edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes. 2.4 A Normatização pelo judiciário. 3. O papel do juiz e a sistematização judiciária. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho trata da averiguação da constitucionalidade da súmula vinculante no tocante à criação de um poder normativo por parte do Judiciário brasileiro, sob a ótica do Princípio da Separação dos Poderes e do sistema de jurídico pátrio. A pretensão do estudo é analisar o pós-positivismo e a aplicação normativa pelo magistrado, tendo como problematização essencial a possível outorga do poder normativo ao Judiciário à luz do Princípio da Separação dos Poderes e a vinculação do magistrado à aplicação de uma norma jurisprudencial.
Pondera-se igualmente sobre a separação dos poderes na Constituição Federal de 1988, a diferenciação entre os sistemas civil e common law e o direito brasileiro. Posteriormente, enfrenta-se algumas questões relativas à súmula vinculante como seus efeitos e o procedimento para edição, revisão e cancelamento, além do papel do juiz e a sistematização judiciária frente à mesma.
Visa-se lembrar de que o sistema adotado em nosso país tem origem romano-germânica, o qual se baseia no direito legislado civil law, diferentemente do sistema que adota o direito de origem jurisprudencial, common law, como nos países anglo-saxônicos.
A súmula vinculante está mais relacionada com o sistema de direito anglo-americano, no qual existe a ideia do binding precedent (precedente vinculante), do que com o sistema da civil law adotado pelo Brasil.
Busca-se demonstrar, por oportuno, conforme Alexandre de Moraes (2010) que a súmula vinculante instituída pela EC nº45/04 é uma tentativa de adaptação do modelo da common law (stare decisis) para nosso sistema romano-germânico (civil law), a partir da ideia de uma única interpretação jurídica para o mesmo texto constitucional ou legal visando garantir a segurança jurídica e assegurar o princípio da igualdade.
Enfim, com o presente estudo objetiva-se por meio de uma análise da Constituição Federal e dos diversos posicionamentos abordados, discutir se o advento da Súmula vinculante afronta o princípio constitucional da separação dos poderes pela possibilidade de aplicação de um enunciado vinculante, bem como estudar o papel do magistrado e a possibilidade de aplicação da Súmula vinculante ao caso concreto com as devidas adaptações e interpretações que se fizerem necessárias, no intuito de se alcançar a mais lídima justiça.
1 Pós-positivismo, positivismo e a separação de poderes
Para que se possa, ao final, opinar acerca da proposta do trabalho, necessário percorrer, neste momento, os caminhos que norteiam o pós-positivismo, o positivismo e a separação de poderes.
1.1 A separação de poderes na Constituição Federal de 1988
Não há Estado sem poder. Mas o qual seria a definição de poder? Conforme Ayres Britto, “[…] há vários significados para a mesma palavra: 1) poder enquanto revelação da soberania (art. 1º, parágrafo único, CF); 2) poder enquanto órgão do Estado (art. 2º, CF); poder enquanto função (arts. 44, 76 e 92 da CF)” (BRITTO apud TEMER, 2010, p. 120).
Montesquieu, no seu O Espírito das Leis, propôs um sistema em que cada órgão desempenhasse função distinta e, ao mesmo tempo, que a atividade de cada qual caracterizasse forma de contenção da atividade de outro órgão do poder. Porém, há a possibilidade de cada órgão desempenhar suas funções típicas, de modo preponderante e, secundariamente, funções atípicas.
Na Constituição do Brasil, (MENDES, 2009) o princípio da separação dos poderes, estampado no art. 2º, onde se declara que são Poderes da União independentes e harmônicos o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, é de tamanha importância e possui o status de cláusula pétrea.
Conforme Gilmar Mendes (2009) no quadro de divisão de funções entre os Poderes da República tocam ao Legislativo as tarefas precípuas de legislar e de fiscalizar. O Poder Legislativo, porém, de modo não típico, também exerce funções de administrar (ao prover cargos de sua estrutura ou atuar o poder de polícia, por exemplo) e de julgar (o Senado processa e julga, por crimes de responsabilidade, o Presidente da República e o Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes das três Forças Armadas, nos crimes de mesma natureza conexos com os praticados pelo Chefe do Executivo, por exemplo).
“a referência ao Poder Executivo contempla atividades diversas e variadas, que envolvem atos típicos da Chefia do Estado (relações com Estados estrangeiros, celebração de tratados), e atos concernentes à Chefia do governo e da administração em geral, como a fixação das diretrizes políticas da administração e a disciplina das atividades administrativas (direção superior da Administração Federal), a iniciativa de projetos de lei e edição de medidas provisórias, a expedição de regulamentos para execução das leis etc. (CF, art.84), a iniciativa quanto ao planejamento e controle orçamentários, bem como sobre o controle de despesas (CF, art. 163/169) e a direção das Forças Armadas” (MENDES, 2009, p. 947).
Segundo, Konrad Hesse, a expressão Poder Executivo acabou por transformar-se numa referência geral daquilo que não está compreendido nas atividades do Poder Legislativo e do Poder Judiciário (HESSE apud MENDES, p. 947).
É função típica do Poder Judiciário o exercício da jurisdição, que consiste no poder de dizer o direito (juris dicere) aplicável ao caso concreto, visando dirimir litígios, produzindo, em caráter definitivo, decisões que serão cumpridas coercitivamente, através da força institucional do Estado.
Konrad Hesse (2009) observa que não é o fato de o Judiciário aplicar o Direito que o distingue, uma vez que se cuida de afazer que, de forma mais ou menos intensa, é levado a efeito pelos demais órgãos estatais, especialmente pelos da Administração. O que caracterizaria a atividade jurisdicional “é a prolação de decisão autônoma, de forma autorizada e, por isso, vinculante, em casos de direitos contestados ou lesados” (HESSE apud MENDES, 2009, p. 974).
A Constituição da República de 1988, mais especificamente em seus artigos 102, 105, 108, 109 e 125 traz a competência dos Tribunais superiores e inferiores. Dentre elas, encontra-se a possibilidade do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça de recurso especial quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal ou der a lei federal interpretação diversa da que lhe haja atribuído outro tribunal (CF, art.105, III, a, b, c).
Ao Poder Judiciário incumbe exercer o último controle da atividade estatal, sendo imprescindível a clara relação de independência do Poder Judiciário e do próprio juiz em relação aos demais Poderes ou influências externas.
1.2 Civil Law e common Law
Segundo Côrtes (2008) dá-se o nome de common law ao sistema jurídico que foi elaborado na Inglaterra a partir do século XII pelas decisões das jurisdições reais.
O desenvolvimento do commom law se preocupou, principalmente, com o ajuste do processo para que pudesse ser resolvido pelo juiz, de forma efetiva, a partir de um sistema de precedentes.
Como faltava (CÔRTES, 2008) um código escrito, a evidência escrita da common law deveria
ser achada nos registros de casos previamente decididos.
A decisão judicial na tradição inglesa tem basicamente duas funções. A primeira função é a que conhecemos como típica, de dirimir a controvérsia pondo fim a lide. A segunda função, incomum para o nosso direito, estabelece o precedente que servirá de base para os próximos julgamentos.
Segundo E. Allan Farnsworth:
“Essa doutrina é frequentemente designada pelo seu nome latino, stare decisis, da frase satare decisis et non quieta movere, apoiar as decisões e não perturbar os pontos pacíficos. A justificação normalmente dada a essa doutrina pode ser resumida em quatro palavras: igualdade, previsibilidade, economia e respeito. O primeiro argumento é que a aplicação da mesma regra em casos análogos sucessivos resulta em igualdade de tratamento para todos que se apresentem à justiça. O segundo é que uma sucessão consistente de precedentes contribui para tornar previsível a solução de futuros litígios. O terceiro é que o uso de um critério estabelecido para solução de futuros litígios. O terceiro é que o uso de um critério estabelecido paraa solução de novos casos poupa tempo e energia. O quarto é que a adesão a decisões anteriores mostra o devido respeito à sabedoria e experiência das gerações passadas de juízes” (CÔRTES, 2008, p. 113).
O precedente, como fonte primária da common law, busca trazer continuidade, previsibilidade, segurança e certeza ao sistema.
A decisão proferida (CÔRTES, 2008) possui alguns aspectos relevantes, dentre eles, o obter dictum (fundamentação do precedente, os casos citados, os princípios suscitados, as explicações ou ilustrações adotadas pela decisão), o obiter (conjunto de divergência de julgamento) e a ratio decidendi (razão da decisão – vincula o precedente).
Deve-se, portanto, extrair da decisão anterior qual a ratio (ou rationes) daquele caso para avaliar a aplicação ao caso presente.
A aplicação do precedente poderá ocorrer desde que haja identificação entre o fato e a pretensão do caso em análise com o fato e a pretensão do caso precedente, independentemente da identidade de partes. Sérgio Gilberto Porto assim discorre sobre o tema:
“Stare decisis aplica-se a todos os casos que apresentam a mesma questão legal, sem demonstrar preocupação com a ideia de identidade de partes, mas sim quando revele preocupação com a identidade de demanda, a partir do primado que causas iguais merecem soluções idênticas. O que importa, adotando-se linguagem própria do sistema romano-germânico, especialmente na senda brasileira de família jurídica, é a identidade de suporte fático e pretensão. Havendo, pois, identidade de causas, há vínculo a ser seguido e respeitado, como garantia de isonomia de tratamento jurisdicional” (CÔRTES, 2008, p. 11).
Lado outro, o sistema civil law, como é conhecido hoje, teve início nos séculos XVII e XVIII, segundo Osmar Côrtes, com a chamada Escola do Direito Natural, reconhecendo ao soberano o direito de legislar segunda a vontade do homem e a sua razão, afastando a vontade divina. A regra de direito pretende perdurar no tempo sem a necessidade de resolução de um caso concreto imediato; a fonte primária é o direito positivado, interpretado e influenciado pelos juristas.
Dessa forma, nota-se a diversidade de caráter entre o sistema de direito na Inglaterra e nos países que seguem a sua tradição e o sistema romano-germânico. Neste, a regra é geral e abstrata, objetivando ordenar o convívio social. Naquele, deve-se solucionar de forma imediata o litígio, podendo ser utilizadas decisões pretéritas como precedentes desde que haja identidade entre as demandas.
1.3 O pós-positivismo e o positivismo
O positivismo (BARROSO, 2003) tornou-se, nas primeiras décadas do século XX, a filosofia dos juristas. Buscava-se a objetividade científica, com ênfase na realidade observável, apartando o Direito da moral e dos valores transcendentes.
Segundo o Barroso (2009) a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido.
Nas últimas décadas do século XX o positivismo jurídico deu lugar ao pós-positivismo, objetivando a reaproximação entre direito e moral com o reconhecimento do caráter normativo dos princípios constitucionais.
Na concepção pós-positivista as normas são consideradas como gênero do qual são espécies os princípios e as regras.
Regras são normas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada, ou seja, se o fato nela previsto ocorrer, a regra deverá incidir de modo direto e automático, produzindo seus efeitos.
Os princípios indicam uma direção a seguir. Não podem ser aplicados em termos de validade ou invalidade, mas deve-se reconhecer uma dimensão de peso e importância. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, pela ponderação.
A ponderação de valores ou ponderação de interesses (BARROSO, 2003) é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. À vista do caso concreto, deve-se fazer concessões recíprocas, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios em oposição para alcançar um resultado socialmente desejável. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo.
Não há hierarquia entre regras e princípios, mas estes têm supremacia funcional em relação àquelas, no sentido de que os princípios são responsáveis pela gênese de grande parte das regras cuja hermenêutica estará a eles vinculadas, na tentativa de aproximação dos valores que o direito visa realizar.
Luís Roberto Barroso bem sintetizou as principais ideias do pós-positivismo:
“O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não como recurso a ideias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico. Os princípios expressam os valores fundamentais do sistema, dando-lhe unidade e condicionando a atividade do intérprete. Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral. Além dos princípios tradicionais como Estado de direito democrático, igualdade e liberdade, a quadra atual vive a consolidação do princípio da razoabilidade e o desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana” (BARROSO, 2003, p. 41).
2 O poder judiciário e a súmula vinculante
Neste ponto, visa-se analisar o poder judiciário e a realização de sua função tendo como norte o estudo da súmula vinculante.
2.1 Natureza jurídica e funções da jurisprudência
Conforme Gomes (1983) jurisprudência pode ser conceituada como o conjunto ordenado e sistematizado de precedentes judiciais uniformes, reiterados e pacíficos de um Tribunal sobre um mesmo tema jurídico. Conforme Orlando Gomes, jurisprudência é o conjunto de decisões dos tribunais sobre as matérias de sua competência ou uma série de julgados similares sobre a mesma matéria: forma-se a jurisprudência mediante labor interpretativo dos tribunais, no exercício de sua função específica.
Carlos Maximiliano (2002) relaciona quatro funções para a jurisprudência, quais sejam, aplicar a lei, adaptá-la à realidade contemporânea e às necessidades moderna; preencher as lacunas legais e dar embasamento e impulso às reformas legislativas.
Além delas, Rodolfo de Camargo Mancuso (2001) aponta outras duas funções: a de criar alternativas para melhor decidir as chamadas demandas múltiplas e, a de servir como parâmetro para julgamento de controvérsias afins.
Há que se aproximar o direito da realidade social, o que só é possível através da interpretação das normas. É a jurisprudência que promove tal integração, por meio da interpretação das leis, fazendo com que a aplicabilidade destas seja eficaz.
2.2 O efeito da súmula vinculante
O enunciado de súmula com efeito vinculante surgiu com a Emenda Constitucional 45 de 2004, com o objetivo de conferir eficácia, validade ou interpretação a determinadas normas que acarretem insegurança jurídica ou relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica em decorrência da controvérsia das decisões em processos judiciais[1].
Conforme Marcelo Novelino (2010) o enunciado da súmula corporifica as razões determinantes (ratio decidendi) que conduziram o Tribunal a formular o entendimento adotado.
O enunciado da súmula vincula os demais órgãos do Poder Judiciário e a administração pública, direta e indireta, de todas as unidades da federação (art.103-A, CF). Tal efeito abrange não só o texto do enunciado, mas também, os motivos determinantes das reiteradas decisões que o originaram (transcendência dos motivos) e tem eficácia imediata (ex nunc) a menos que seja outro momento para o início da eficácia do enunciado (modulação dos efeitos temporais) (art. 4º da Lei n.º 11.417 de 2006).
A súmula vinculante tem o condão de vincular diretamente os órgãos judiciais e os órgãos da Administração Pública, abrindo a possibilidade de que qualquer interessado faça valer a orientação do Supremo Tribunal Federal por meio de apresentação de uma reclamação por descumprimento de decisão judicial. (Mendes, 2009:1009)
A inobservância ou aplicação indevida de uma súmula vinculante acarreta a anulabilidade do ato administrativo ou a cassação da decisão judicial pelo STF mediante reclamação, nos termos do art. 103-A, § 3º da Constituição Federal.
2.3 O procedimento de edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes
A edição do enunciado da súmula ser feita de ofício, pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ou mediante provocação (art. 103-A, CF). Os legitimados são os mesmos que podem propor a ADI[2], além do Defensor Público-Geral da União e todos os Tribunais, e são necessárias duas circunstâncias para a sua criação: 1) a existência de decisões reiteradas sobre matéria constitucional e, 2) a existência de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre estes e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
Conforme a Ministra Ellen Gracie (2007) a súmula nada mais é do que a cristalização da jurisprudência, das decisões já adotadas por esta Corte. Assim, deve haver, além do aspecto quantitativo, uma uniformidade entre as decisões reiteradas que levaram à súmula.
Os mesmos legitimados para dar início à edição da súmula poderão provocar a revisão ou cancelamento do enunciado (art. 103-A, §2º da CF e art.3º da Lei 11.417/2006). O art. 5º da mesma lei prevê que revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição do enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.
A aprovação deverá se dar por dois terços dos membros do STF e os efeitos do enunciado da súmula vinculante somente começam a ser produzidos a partir da publicação na imprensa oficial.
2.4 A Normatização pelo judiciário
O magistrado é o intérprete das leis. Tal interpretação deve levar em conta o caso concreto e a vontade da própria lei, relacionada aos princípios atuais, através não só dos métodos lógico e gramatical, mas através da correspondência da norma com a realidade social.
Embora não haja tradição de vinculação às decisões judiciais no Brasil, há aqui a preocupação com a uniformização jurisprudencial, tanto que uma das funções do Superior Tribunal de Justiça é a de admitir recurso no caso de interpretações diversas de uma mesma lei federal infraconstitucional por dois ou mais tribunais locais, visando a manutenção do princípio da unidade jurídica, buscando atribuir um sentido dentre os vários possíveis, sempre se relacionando com a realidade social[3].
Segundo José Afonso da Silva, “permitir prosperasse uma jurisprudência divergente, o mesmo seria que destruir o princípio da unidade jurídica do país e possibilitar a incerteza do direito […]” (SILVA, 1963, p. 35).
Em que pese o efeito da jurisprudência seja meramente persuasivo, a preocupação com a sua observação fica clara quando o confronto ou a consonância com jurisprudência dominante nega ou dá provimento aos recursos monocraticamente nos Tribunais[4].
A edição de uma súmula vinculante não fere a normatização constitucional, uma vez que não cria uma nova lei burlando os preceitos constitucionais, o que seria uma discrepância. Da mesma forma, o Judiciário não se insere em um processo de normatização, mas de interpretação das leis já postas.
Conforme Osmar Cortês:
“As súmulas são, na verdade, a fixação de determinado sentido interpretativo a dada norma, vinculado à hipótese fática que deu origem a esse sentido interpretativo. Vincula-se não a atividade jurisdicional pela criação de uma norma, mas, a partir do estabelecimento de um sentido interpretativo, vinculam-se as decisões futuras a esse sentido. Apenas isso. Trata-se mais de problema de política judiciária do que do estabelecimento de normatização nova pelo Poder Judiciário” (CÔRTES, 2008, p. 199).
O processo interpretativo não ocorre uma única vez. No sentido de diminuir a demanda, buscando uma prestação jurisdicional mais célere, evitando o reexame desnecessário de uma mesma questão repetidas vezes e visando garantir a segurança jurídica, minimizando julgamentos discrepantes ocasionados pela falta de uniformização nos julgados, foi criada a súmula vinculante.
“ainda que admitida certa flexibilização na teoria tradicional da separação dos Poderes com os precedentes judiciais tornando-se obrigatórios, não se deve atribuir caráter de norma geral e abstrata (e de fonte formal) às súmulas, pois elas sempre devem parir da interpretação de alguma norma. Mesmo que vinculativas e com caráter “normativo”, as súmulas sempre terão sua origem em normas de casos concretos, individuais, em interpretações pontuais e concretas das normas. Havendo certa “generalização”, com a edição da súmula, esse caráter não se perde, pois a origem do entendimento consolidado foi uma norma preexistente e um caso específico.” (CÔRTES, 2008, p. 160).
As súmulas vinculantes são fruto de reiteradas decisões dos Tribunais em um mesmo sentido, que por sua vez, partiram da interpretação das normas jurídicas. Não há criação de normas, eis que se trata apenas de uma fixação de diretrizes de interpretação lançada pelo Supremo Tribunal Federal aos Tribunais inferiores.
3 O papel do juiz e a sistematização judiciária
Na aplicação do Direito, deve-se saber qual o conteúdo que se há de dar à norma quando da análise de um caso concreto. A determinação dada por uma norma superior a um escalão inferior deve, por mais pormenorizada que seja deixar àquele que cumpre ou executa uma margem de livre apreciação, vez que se torna impossível prever todas as circunstâncias, sob pena de inaplicabilidade da norma.
A interpretação da norma no positivismo somente admitia uma única solução correta, como um ato perfeito de intelecção e compreensão. No entanto, o pós-positivismo leva em consideração fatores que transcendem a regra jurídica, como princípios (que são normas) e costumes, que figurarem na resolução do caso concreto, fazendo com que a interpretação não menospreze o direito positivo, mas o conecte-se à moral e a ética, na busca pelo justo.
O pós-positivismo caracteriza-se pela aceitação dos princípios constitucionais, tratando-os como normas jurídicas. Em contrapartida, tal adequação demanda um tempo muito maior para a resolução do caso concreto do que a simples subsunção às regras positivadas.
Nesse sentido, as súmulas vinculantes, no intuito de diminuir o tempo de julgamento, observadas todas as regras determinantes para sua aplicação, agrupam as questões levadas ao Judiciário e repetidamente decididas em um mesmo sentido, para uniformemente solucionar tais questões de forma célere.
A instituição das súmulas vinculantes não atenta, desde que sua produção seja condizente aos anseios políticos, econômicos e sociais, contra os valores da magistratura, vez que derivam de decisões tomadas repetidas vezes por eles, visando, unicamente, uma prestação jurisdicional mais célere sem, no entanto, retirar-lhes o poder de decisão.
A independência e a liberdade do juiz não são absolutas. O magistrado é intérprete qualificado que, no entanto, não pode fugir das fontes do direito. A liberdade da decisão judicial deve coexistir com a observância do princípio da racionalidade, que decorre do Estado de Direito e do princípio da legalidade.
Segundo Eros Roberto Grau:“Resta-me tocar na questão da discricionariedade judicial, cuja existência nego. O juiz, mesmo ao se deparar com hipóteses de lacunas normativas, toma decisões vinculado aos princípios gerais de direito; não produz normas livremente” (GRAU apud CÔRTES, 2008, p. 158).
Em uma visão moderna, o juiz deve estar subordinado não só a lei, mas ao direito ou à ciência jurídica, com suas múltiplas fontes de conhecimento, da qual fazem parte a jurisprudência e as súmulas vinculantes.
Conclusão
O advento da súmula vinculante não criou uma forma de normatização pelo Judiciário e, portanto, não houve ofensa à separação dos poderes. O Poder Judiciário não estará inovando a ordem jurídica, mas interpretando uma lei já existente, função que lhe compete por excelência. Ademais, a inserção da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro seguiu o processo legislativo das emendas constitucionais, sendo instituída, em última análise, pelo próprio poder Legislativo.
Trata-se tão somente de uniformização da jurisprudência pelo Supremo Tribunal Federal que buscou, através do efeito vinculativo, tornar mais célere e uniforme o julgamento de questões repetitivas já pacificadas. Com isso, intenciona-se dar efetividade aos princípios da razoável duração do processo e da universalidade, que impõem um tratamento isonômico em situações iguais em tempo adequado.
O juiz, por sua vez, não perdeu a liberdade interpretativa em função da instituição da súmula vinculante, vez que esta contém um comando geral e abstrato, a exemplo da lei, devendo, de igual forma, ser interpretada pelo magistrado. Ademais, a aplicação da súmula vinculante não dispensa a motivação das decisões judiciais, devendo estas ser fundamentadas.
Conclui-se, assim, que a súmula vinculante é um instrumento válido e legítimo que busca, além da segurança jurídica, atingir a concretização de princípios basilares o Estado Democrático de Direito brasileiro, tais como, legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, publicidade, celeridade processual, devido processo legal, dentre outros, desde que traduza a realidade política, social e econômica contemporânea.
Informações Sobre os Autores
Hugo Garcez Duarte
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
Alessandra Gonçalves Bartholo Silva
Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – FADILESTE