O Materialismo Histórico e a Hermenêutica Trabalhista

1. INTRODUÇÃO

As leis trabalhistas brasileiras têm sofrido alterações constantes, que resultaram na proliferação de contratos temporários e métodos de conciliação extrajudicial durante a década de 1990 do século XX. Os anos seguintes, no começo do século XXI, saudaram o Direito do Trabalho com normas que visaram aumentar a flexibilidade.

A análise destas leis que procurasse compreendê-las por meio do próprio sistema normativo brasileiro seria muito restrita. Poderia apenas concluir que seriam necessárias novas leis ou a simples defesa dos princípios jurídicos específicos do Direito do Trabalho para que toda esta questão ganhasse novas matizes.

O objetivo deste estudo é mostrar que as transformações do Direito do Trabalho brasileiro não são simplesmente mudanças legais. Está ocorrendo hoje mais uma etapa de um processo de precarização dos direitos sociais que visa adaptar as relações produtivas brasileiras às condições exigidas pela mundialização do capital. Para este fim, a concepção materialista da história será a base metodológica.

Para compreender os fundamentos destas mudanças legais, é preciso partir dos seus fundamentos. Por isto, será estudada a lógica do capital na construção da relação entre capital e trabalho na sociedade contemporânea. Devido à centralidade do trabalho na constituição destas relações sociais e à relevância de manter a perspectiva do mundo real, o método empregado será o materialismo histórico. Assim, a contribuição de Marx para a compreensão da sociedade capitalista será o fio condutor do presente estudo.

Em seguida, por nos encontrarmos numa sociedade capitalista, será examinada a função que o Direito adquire com esta forma de sociedade. Com estes esclarecimentos, poderão ser observadas as suas conseqüências sobre o sistema jurídico trabalhista no que se refere aos direitos garantidos, seja na Constituição Federal ou em leis ordinárias. Deste modo, será possível contribuir para a compreensão dos limites e das possibilidades que as mudanças legais têm trazido para os trabalhadores brasileiros.

2.  OS FUNDAMENTOS DA SOCIEDADE CAPITALISTA

É possível, a partir da globalização, compreender as formas iniciais da sociedade capitalista, por ser a sociedade global a sua forma mais desenvolvida. Pressupõe, assim,toda a constituição concreta da lógica do capital. Para partir da realidade nesta análise, é preciso ter como norte as relações produtivas concretas em suas distinções históricas.

(…) na produção social da própria vida, os homens contraem relações sociais determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais[1].

Estas “relações sociais determinadas”, sob o capitalismo, resultaram no mercado mundial, cujos fundamentos Marx e Engels puderam constatar quando encontrava-se ainda em desenvolvimento. O período a que se referem corresponde à expansão do mercado no século XIX, derivado dos avanços tecnológicos da II Revolução Industrial, com o crescimento constante da circulação de mercadorias de diferentes países para continentes diversos. Todavia, Marx e Engels examinam a sociedade onde vivem não se restringindo à pesquisa de certos fragmentos sociais, mas em sua totalidade, ou seja, como sociedade real que precisa ser compreendida nas relações sociais fundamentais que a constituem. Em outras palavras, eles explicam a expansão das relações produtivas sob a lógica da contínua reprodução do capital.

Com o rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, com as comunicações imensamente facilitadas, a burguesia arrasta para a civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que derruba todas as muralhas chinesas, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros aos estrangeiros. Obriga todas as nações, sob pena de extinção, a adotarem o modo de produção da burguesia; obriga-as a ingressarem no que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Numa palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança[2].

O que se torna predominante com a globalização é a livre circulação do capital pelo mundo, sob diferentes formas, motivo pelo qual Chesnais prefere denominar esta fase do capitalismo não como globalização, mas mundialização do capital[3]. Não se trata da simples imposição de tradições de um país, numa “aldeia global” cujo cacique seria um colégio de multinacionais. As sociedades anônimas não têm mais pátria, uma vez que a identidade seus acionistas importa menos do que as carteiras de ações disponibilizadas no mercado financeiro, sem qualquer  cidadania específica. Por isto, Marx não apenas se refere aos “meios modernos de produção”, mas “à atividade cosmopolita acelerada e imensamente desenvolvida do capital” abrangendo o mundo inteiro por meio da modalidade financeira do capital[4].

Como sintetiza Teixeira, a produção capitalista é marcada por uma contradição permanente: enquanto desenvolve as forças produtivas limita este mesmo desenvolvimento à valorização do capital, em vez de agir segundo as necessidades humanas. Portanto, em termos marxianos, o valor de troca é superestimado em relação ao valor de uso das mercadorias[5]. Para produzir para este mercado, os custos da produção poderão ser reduzidos se for possível que os mesmos trabalhadores possam produzir mais. Quando é alcançado o limite desta produtividade, torna-se necessário encontrar meios para produzir mais com menor capital variável (ou seja, usando menor número de trabalhadores) e mantendo o mesmo capital constante (os meios de produção empregados).

Esta consideração predominante nas relações sociais transforma todas as produções sociais em mercadorias. Por ser o trabalho que as produz e as reproduz socialmente, a sua força de trabalho também será expressa como mercadoria. Por isto, Marx e Engels afirmam ainda que o trabalho sob o capital “pressupõe o mercado mundial[6]. Eles referem-se ao trabalho sob a grande indústria, que permite a produção em grande escala e para o mercado mundial e sobre a qual o trabalho não traz para o trabalhador algo além do necessário à sua própria subsistência, pois não receberá o valor pleno do seu trabalho, mas apenas uma fração, o que constitui a mais-valia. A mais-valia será, portanto, a porção da riqueza social (ou seja, da produção social que permite novas formas de sociabilidade mais desenvolvidas) que será devolvida àqueles que a produziram. Ainda sobre a grande indústria, Marx e Engels assim expressam o caráter destrutivo da sua expansão mundial:

A grande indústria (…) estabeleceu os meios de comunicação e o mercado mundial moderno, colocou o comércio sob o seu domínio, transformou todo o capital em capital industrial e deu origem, assim, à circulação (aperfeiçoamento do sistema monetário) e à centralização rápida de capitais. Por meio da concorrência universal, ela forçou todos os indivíduos a uma tensão máxima da sua energia. (…) Foi ela que criou de fato a história mundial, na medida em que fez depender do mundo inteiro cada nação civilizada, e cada indivíduo para satisfazer suas necessidades, e na medida em que aniquilou nas diversas nações a identidade própria que até então lhes era natural (…) E finalmente, enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais particulares, a grande indústria criou uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações e para a qual a nacionalidade já está abolida, uma classe que realmente se desvencilhou do mundo antigo e que ao mesmo tempo a ele se opõe. Não só as relações com o capitalista se tornam insuportáveis para o operário, mas também seu próprio trabalho[7].

É de grande importância o trecho final deste fragmento, no qual os autores afirmam que o trabalho do operário passa a ser, para ele mesmo, insuportável, assim como suas relações com o capitalista. Não se trata apenas da “tensão máxima de sua energia”. Devido a seu trabalho ser considerado como uma mercadoria, sua atividade não visa à satisfação de suas próprias vontades visando a seu aperfeiçoamento humano.

O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria; e justamente na mesma proporção com que produz bens[8].

O trabalhador, segundo Marx, “não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo”[9]. O interesse que é alimentado pelo capitalismo limita-se à produção de novas mercadorias sob os interesses do mercado. Deste modo, quem trabalha encontra-se separado do seu trabalho, que não apenas se torna estranho ao trabalhador, mas retorna contra quem realiza a atividade, ao desumanizá-lo. Este é o processo que Marx chamará de fetichismo da mercadoria sobre o trabalho.

Não importa, portanto, a nacionalidade da burguesia nem a procedência geográfica do capital. Por estas razões, Mello conclui que o capitalismo, nas diversas obras de Marx em que a ele se refere, trata-se de uma totalidade cuja materialidade é crescentemente supranacional. Afirma mesmo que, em Marx, é impossível pensar o capitalismo sem considerá-lo como “um movimento permanente e crescente de articulação das relações econômicas, políticas e culturais em patamares cada vez mais globalizados”[10].

Porém, as transformações sócio-econômicas resultantes da expansão da reprodução do capital precisarão de garantias de que não haverá oposição dos trabalhadores à sua continuidade. Para isto, serão necessários comandos legais que assegurem a legitimidade das mudanças nas relações produtivas Os capitalistas precisarão ajustar a legislação para corresponder às reivindicações das relações mercantis internacionais. Ao se tratar da globalização em termos marxianos, ainda pode-se questionar que papel resta ao Direito sob esta realidade, o que será feito doravante primeiro sob os aspectos constitucionais do problema para lidar, em seguida, com a crise do Direito do Trabalho brasileiro.

3. A CRISE DOS DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONAIS

O Direito do Trabalho brasileiro é garantido constitucionalmente. Nos seus arts. 6º e 7º, a Constituição Federal de 1988 salvaguarda direitos aos trabalhadores que não poderão ser alterados por leis infraconstitucionais. Todavia, esta garantia não é plena. Apesar dos direitos estarem garantidos, a sua abrangência prática, ou a sua eficácia jurídica, não está clara na maioria das normas dos artigos mencionados. A razão para isto não é recente, como esclarece Marx a respeito da Constituição francesa de 1848.

O inevitável estado-maior das liberdades de 1848 (…) recebeu um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada pelos ‘direitos iguais dos outros e pela segurança pública’ ou por ‘leis’ destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública[11].

Estas ressalvas podem ser encontradas na Constituição brasileira. O art. 5º, onde se encontram direitos e deveres individuais e coletivos, prevê, em seu caput, que todos são iguais perante a lei, mas estará garantido o direito à propriedade. Uma vez que todos são iguais desde que se mantenha a separação da sociedade em classes sociais derivadas da propriedade, a igualdade será apenas formal, não se realizando socialmente. Quando a Constituição refere-se a outros direitos, seus termos são vagos, amplos demais para a aplicação no cotidiano, como quando afirma que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I) ou ao proteger a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

A Constituição Federal é breve ao mencionar que a propriedade deverá atender à sua função social, seja o que for que isto signifique em cada caso concreto. Porém, ela é detalhista para mencionar como o Estado pode obter a propriedade particular por desapropriação: “XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.

Este inciso, que aparentemente não teria importância num estudo sobre Direito do Trabalho, torna evidente como a propriedade privada dos meios de produção é resguardada pelo Direito brasileiro. Quando trabalhadores buscam indenizações trabalhistas contra o Estado, a sua indenização será em precatórios, a serem resgatados como dinheiro anos depois (art. 100, caput e § 1º, CF/88). Quando ocorrem desapropriações, cada indenização não apenas deve ser prévia, mas “justa” e “em dinheiro”. É curioso observar que a palavra “justa” não aparece quando a lei se refere aos trabalhadores. Não significa que seja necessariamente injusta, mas deixa claro como o cuidado para legislar sobre a propriedade privada é constante e visa à segurança ao credor. O legislador não poderia ter deixado para uma lei complementar os requisitos para a desapropriação, mas apenas uma lei complementar poderá dizer o que será a “função social” da propriedade.

A Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam nem entre si nem com a segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia, no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais das outras classes[12].

Seria possível defender que o Direito poderia ser voltado ao trabalhador se fossem promulgadas leis voltadas aos seus interesses, gerando um Direito operário. Todavia, esta ingenuidade teria diante de si as relações sociais de produção que sustentam que o Direito seja como o encontramos e não de modo diferente. Em outros termos, alterar simplesmente a legislação em outro sentido significaria que o Estado não estaria mais resguardando a propriedade privada sobre os meios de produção. Se o Estado não resguardá-la, não haverá mais razão para a sua própria existência. Não é uma questão de “falta de vontade política” quais leis são ou não votadas pelo Congresso Nacional brasileiro, mas exatamente a realização da vontade política como expressão da sociedade de classes.

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. (…) Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los[13].

Quando o Estado brasileiro tem como um de seus fundamentos, segundo a sua Constituição, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, ele possui, ao mesmo tempo, valores contraditórios. A realização dos valores sociais do trabalho é antagônica à livre iniciativa, que é presumivelmente individual. Mesmo assim, o Estado não poderá identificar nos fundamentos da sociedade esta antinomia, pois encontraria a sua impotência para garantir os valores sociais do trabalho contra a prevalência da livre iniciativa econômica.

O Estado, por meio dos juristas que procuram compreendê-lo mas preservam a sua lógica política, poderá, apenas, atribuir a futuras leis ordinárias a função de esclarecer o que considerará omissões e contradições do texto constitucional para que a vontade legal possa ser realizada. Enquanto não for possível realizar alguma das normas que dependem de uma lei complementar, aquelas serão consideradas normas programáticas, que definem as diretrizes do Estado nacional e da interpretação das suas normas infraconstitucionais. Neste sentido, as normas constitucionais preservam a aplicação imediata a que se refere o § 1º do art. 5º do texto constitucional.

Portanto, a limitação de direitos dos trabalhadores por meio da criação de novas formas de contratação, que serão doravante examinadas, não se constitui em inconstitucionalidade nem mesmo a criação de instâncias não judiciais de conciliação trabalhista. A precarização dos direitos trabalhistas, por meio de leis infraconstitucionais, será abordada como expressão da defesa jurídica da sociedade capitalista.

Antes de tratar das leis que intensificam a precarização do Direito do Trabalho brasileiro, será preciso mostrar de que sociedade elas resultaram. Assim, examinaremos a reestruturação produtiva como se realizou durante o século XX. Deste modo, será possível compreender porque o capitalismo necessita da diversidade de modalidades de contratações temporárias de trabalhadores.

4.  A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O DIREITO DO TRABALHO

Para compreender as recentes mudanças na legislação trabalhista brasileira, é preciso explicar as transformações principais que o capitalismo sofreu durante o século XX. Neste sentido, importa ressaltar, mantendo a metodologia marxiana, a perspectiva das relações sociais concretas. A produção material a partir de certas relações produtivas será, para isto, nosso ponto de partida.

A sustentação de níveis crescentes de produtividade, garantindo o caráter crescente da reprodução do capital no mercado mundial, resulta na redução dos custos da produção e no melhor aproveitamento das forças produtivas. A realização destes fatores significa que o capitalista precisa extrair mais-valia do maior número possível de horas, o que Marx denominou de mais-valia absoluta. Todavia, existem limites fisiológicos para esta extração de mais-valia, pois o trabalhador não suportaria jornadas de 24 horas diárias. O surgimento de leis trabalhistas durante a primeira etapa da Revolução Industrial, limitando as jornadas devido a problemas de saúde dos trabalhadores, foi significativa disto[14].

À medida que as conquistas operárias limitavam a jornada de trabalho, o capitalista precisava encontrar meios para aumentar a produtividade durante a mesma jornada de trabalho. Com a constatação de limites diários à produtividade devido a desgaste físico dos trabalhadores, entre outros fatores, intensificar a produção sem aumentar a jornada de trabalho permite a geração do que Marx denominou mais-valia relativa.

O fordismo foi um marco deste aumento de produtividade, com a produção em série para grandes mercados consumidores tendo as atividades padronizadas por linhas de montagem e especializadas entre os trabalhadores. Tornou-se um padrão do que a Sociologia do Trabalho, principalmente a partir da Escola da Regulação[15], denominou de reestruturação produtiva.  Eram os tempos da primeira metade do século XX, período este em que surgiu a Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Contudo, diante de crises de superprodução do capital, era preciso alterar este padrão para que a produção pudesse se ajustar a crises econômicas.

Como conseqüência, surgiram modelos flexíveis de produção, entre os quais o padrão toyotista tem-se destacado pela sistematização da racionalidade flexível da produção e pela sua adaptação, mesmo que em partes de seu sistema, a todo o Ocidente. Segundo os padrões flexíveis de produção, em vez de ser em série, passa a ser de acordo com a demanda. Por ser assim, não são necessários pátios fabris lotados. As montadoras recebem de diferentes partes do mundo as peças para a produção, que por sua vez não será padronizada em grandes linhas de montagem. Deste modo, não é preciso manter grande número de empregados contratados a tempo indeterminado nas fábricas. Uma vez que a produção torna-se flexível, ou seja, passa a ser preciso flexibilizar também o setor de serviços, que distribuirá esta produção, pois se há menor demanda e menor produção, não haverá a necessidade de manter o mesmo número de, por exemplo, vendedores.

Apesar da Consolidação das Leis do Trabalho já ter em seu corpo modalidades de contratação temporária de trabalho, conforme será adiante examinado, não era algo tão diversificado quanto foi possível décadas depois da sua promulgação. Com a abertura do mercado nacional às empresas estrangeiras durante o governo Collor de Mello, tornou-se preciso adaptar a legislação brasileira para as mudanças produtivas resultantes. Durante o governo Cardoso, foi possível surgirem leis diversas que regulamentaram a contratação de cooperativas de trabalho, criaram o contrato a prazo determinado de até dois anos de duração com possibilidade de prorrogação, estimularam a contratação de aprendizes, portadores de deficiências entre outras medidas legais. Por esta razão as mudanças de maior significado na legislação trabalhista referentes a contratos temporários de trabalho foram promulgadas na década de 1990.

Segundo Faria, um dos grandes problemas à efetividade da legislação trabalhista é o grande número de leis que surgem em curto lapso de tempo para atender a determinadas circunstâncias. Surgem, assim, normas em aberto que fragilizam a já tênue expectativa de harmonia do sistema jurídico-laboral. Quando a efetividade dos direitos sociais está subordinada a um instrumental normativo instável, é todo o Direito que passa a estar comprometido por permanente insegurança[16]. Torna-se evidente que o próprio caráter democrático do sistema jurídico precise ser revisto.

O jurista desconsidera que o Direito do Trabalho nacional já está repleto de regras que lhe atribuem flexibilidade desde a lei maior do país. De acordo com o art. 7º, VI, XIII e XV, combinado com o art. 8º, VI, da Constituição Federal, basta que esteja presente na negociação o sindicato da categoria profissional para que possam ser negociados por acordo ou convenção coletiva de trabalho a redução de jornada e a redução de salários.

Além disto, já existem há décadas normas diversas quanto a contratos por prazo determinado, segundo as quais os direitos são reduzidos àqueles submetidos a regimes específicos. A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 443, permite contratos temporários para contratos de experiência, atividades empresariais de caráter transitório e serviços cuja natureza ou transitoriedade justifiquem o prazo pré-determinado. É interessante como cada uma das três categorias de contratos temporários é, por si, abrangente. Maior comenta os contratos temporários ressaltando problemas que trazem à integridade do sistema jurídico trabalhista.

Cabe frisar que a contratação por prazo determinado somente pode ser aceita dentro do ordenamento jurídico pátrio como exceção à regra, e não como uma regra paralela. A exigência de que a possibilidade de tal contratação seja prevista em norma coletiva convencional não anula o vício de inconstitucionalidade, que é semelhante ao já levantado quanto às cooperativas de trabalho e à terceirização. Com a Lei n.º 9601/98 quebra-se o princípio da isonomia, que se extrai do art. 5º, inciso I, da Constituição Federal, principalmente quanto à diferenciação de alíquotas do FGTS[17] (MAIOR, 2000: 327).

Não apenas a isonomia constitucional é ameaçada. Mesmo quando o art. 7º, XXII, da Constituição Federal, impõe às relações de trabalho a redução dos riscos que lhes sejam interentes, permite o pagamento de adicionais pelo trabalho sob condições de insalubridade e periculosidade. Cabe uma reflexão a este respeito: paga-se ao trabalhador um acréscimo ao seu salário em troca de submeter-se a danos à sua saúde e a risco constante de morte. Não se visa eliminar os danos nem os riscos provenientes da relação de trabalho.

As possibilidades de precarização por meio da extensão dos contratos temporários de trabalho são diversas. A Lei n.º 6019/74 mostra que este não é um fenômeno tão recente, pois já permitia que fossem celebrados contratos temporários sob certas situações transitórias. Porém, a Lei n.º 9601/98 permite a ampliação das hipóteses para atingir prazos de dois anos, sob atividades de caráter permanente, reduzindo encargos trabalhistas e não mais sendo automática a conversão em contrato permanente de trabalho em caso de continuidade após o biênio.

Além destas medidas, a precarização teve outro incentivo ainda com a mesma Lei n.º 9601/98. Foi instituído o Banco de Horas, para compensação de horas extraordinárias. O trabalhador não deverá mais, quando existir o acordo de compensação de jornada, ser pago com acréscimo de, no mínimo, 50 por cento do valor da hora normal sobre a hora trabalhada após a sua jornada legal. Por outro lado, ele receberá, no prazo máximo de 120 dias, redução na duração da sua jornada de trabalho proporcional às horas extraordinárias que tenha trabalhado.

A sutileza com que são desconstruídas as normas de proteção ao trabalhador é ainda maior do que aquelas regras que o legislador contemporâneo tem promulgado. As Comissões de Conciliação Prévia (CCPs), incorporadas pela mesma lei ao texto da Consolidação das Leis do Trabalho, permitem reduzir por acordo extrajudicial indenizações por demissão sem justa causa. O objetivo, pagar verbas rescisórias inferiores nos períodos de maiores demissões, torna-se realizável pois a existência destas comissões depende de autorização sindical. Não há no país representações sindicais com força própria em número suficiente para evitar prejuízos ao trabalhador.

Portanto, a flexibilização das leis trabalhistas tem procurado cumprir as necessidades da acumulação flexível do capital por meio das relações produtivas da atual fase do capitalismo. O surgimento de diversas espécies de contratos temporários permite que trabalhadores sob diferentes regimes de admissão ao trabalho compartilhem do mesmo ambiente profissional. Deste modo, tornam-se mais difíceis as uniões de trabalhadores em torno das mesmas reivindicações, pois seus direitos e suas condições de trabalho serão distintas. Assim, fica ainda mais difícil qualquer combate à precarização do trabalho. Deste modo, restariam os dissídios individuais e coletivos, perante a Justiça do Trabalho, para resguardar direitos.

Todavia, como indicam os arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, esta lei, e como conseqüência suas leis complementares, trata das relações de emprego, não da diversidade de relações de trabalho sem vinculo empregatício que têm surgido desde os anos 1990. Além disto, é um limite ao acesso à tutela jurisdicional pregada pela Constituição Federal que antes tente-se conciliar por meio de Comissões de Conciliação Prévia, podendo ainda haver mediação, arbitragem, afastando o trabalhador do acesso às varas trabalhistas.

O trabalhador encontra-se, assim, não apenas estranhado do seu próprio desenvolvimento a partir do trabalho. Ele também não poderá defender os direitos que a ordem jurídica afirma assegurar, tendo mesmo sua igualdade perante a lei reduzida pelas leis “orgânicas” que regulamentam seus direitos. Os direitos sociais serão, assim, reduzidos quando for conveniente à reprodução do capital.

5. CONCLUSÃO

É inerente ao capitalismo que transforme continuamente suas forças produtivas visando à máxima reprodução do capital. O capitalismo pode ser entendido como o sistema social no qual as relações sociais derivadas deste pressuposto podem-se sustentar estruturalmente. Esta estrutura social é resguardada pela ordem jurídico-política vigente. O Direito, como expressão normativa do Estado, visa dirimir conflitos sociais mantendo a propriedade privada dos meios de produção.

Quando se examinam historicamente as transformações produtivas sob o capitalismo, constata-se uma crescente flexibilização das relações de produção. À medida que o capital passava a ter maior liberdade de circulação entre mercados do mundo, a produtividade precisava transformar-se para atender a uma demanda cada vez menos centralizada em termos territoriais. Deste modo, a mundialização do capital exigia normas que permitissem aos capitalistas adquirirem mão de obra temporária e sob contratos diversificados. Assim, poderiam reduzir direitos sociais aos trabalhadores e fechar montadoras sem preocupação com verbas rescisórias de grandes contingentes profissionais. Lida-se mais com trabalhadores do que com empregados.

As leis trabalhistas brasileiras passaram a admitir, com plena autorização constitucional desde 1988, formas de contratação que inserem o Brasil, de modo tardio, nos padrões flexíveis e mundiais do capitalismo do fim do século XX. Assim, sob padrões de produção que não necessitavam dos mesmos exércitos industriais do padrão fordista da primeira metade do século XX, modelos flexíveis permitiam reduzir contingentes operários. Não apenas eram reduzidos contingentes operários, mas aqueles que restassem trabalhando podiam não ser empregados e, ainda, não terem sido contratados do mesmo modo que seus colegas de trabalho.

Portanto, o debate jurídico nacional sobre a flexibilização das leis trabalhistas realizada na década de 1990 no Brasil não insere uma questão fundamental. Em vez de se falar em uma flexibilização das leis trabalhistas devida a algumas leis que tenham surgido recentemente, faz mais sentido ressaltar que exista uma flexibilidade produtiva resultante da mundialização do capital. Novas leis não podem reduzir o estranhamento ao trabalhador resultante destas transformações produtivas, mas apenas assegurarão a manutenção da propriedade privada dos meios de produção.

Notas

[1] MARX, Karl. “Prefácio a ‘Para a crítica da economia política’”. In: Marx (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 52.

[2] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 71.

[3] CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

[4] MELLO, A. F. de. Capitalismo e mundialização em Marx. São Paulo: Perspectiva; Belém: Secretaria Executiva de Ciência Tecnologia e Meio Ambiente, 2000, p. 56.

[5] TEIXEIRA, Francisco José Soares. “O capital e suas formas de produção de mercadorias: rumo ao fim da economia política”. In: BOITO JR., Armando et al. (org.). A obra teórica de Marx: atualidade, problemas e interpretações. 2ª ed. São Paulo: Xamã, 2000, p. 07.

[6] MARX e ENGELS, op. cit., p. 33.

[7] MARX e  ENGELS, op. cit., p. 70-72.

[8] __________. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: 70, 1964, p. 159.

[9] Idem, p. 162.

[10] MELLO, op. cit., p. 180-181.

[11] MARX, Karl. “O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte”. In: Marx (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 344.

[12] Idem, p. 344.

[13] __________. “Glosas críticas marginais ao artigo ‘o rei da Prússia e a reforma social’, de um Prussiano“. In: Revista Praxis, nº 5. Belo Horizonte: Projeto Joaquim de Oliveira, outubro – dezembro de 1995, p. 80.

[14] A Constituição Federal brasileira limita a jornada de trabalho a oito horas diárias com a possibilidade de duas horas extraordinárias, além de ser admissível o acréscimo de outras duas horas, perfazendo doze horas de jornada, quando se tratar de jornadas em turnos de revezamento entre os trabalhadores.

[15] Para mais informações sobre a Escola da Regulação: AGLIETTA, Michel. Regulacion y crisis del capitalismo: la experiencia de los Estados Unidos. Tradução de Juan Bueno. México: Siglo Veintiuno, 1988; CARVALHO, Cícero Péricles de Oliveira. Análise regulacionista da economia. Maceió: Edufal, 1998.

[16] FARIA, José Eduardo. Os novos desafios da justiça do trabalho. São Paulo: LTr, 1995, p. 94; p. 111.

[17] MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000, p. 327.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Sergio Coutinho

 

Advogado em Maceió. Especialista em Direito do Trabalho pela UNICE/CE e CEFAL/AL. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito da Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste (SEUNE) e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Maceió (FAMA). Presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-AL. Coordenador do Programa de Monitoria da SEUNE

 


 

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