Resumo: Este trabalho visa demonstrar, por força das contradições existentes entre os textos da Constituição da República Federativa do Brasil e da Lei no 7.783/89 (Lei de Greve), o bosquejo que deve ser dado e acatado pela Administração Pública a respeito da possibilidade do militar estadual reivindicar seus direitos e melhorias destes por meio de greve. Abordará, também, a ação punitiva a que está sujeito o agente público militar, quando adere a manifestos de forma organizada, sendo ou não pacatos, no que diz respeito à materialização de imposição de sanção administrativo-disciplinar e até mesmo penal na esfera militar. Por fim, objetiva demonstrar que, ao cercear o direito de greve dos policiais militares, a Carta Magna fere o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Sumário: 1.Introdução; 2.Da Justiça Militar; 3.Do crime militar; 4.Das Forças Armadas e das Forças Auxiliares e reservas do exército e o rol de serviços ou atividades essenciais elencado pela lei no 7.783/89; 5.Do direito fundamental de greve e sua proibição aos militares estaduais – uma análise comparativa ao direito militar internacional; 6.A vedação constitucional ao direito de greve dos policiais militares e a violação do princípio da dignidade da pessoa humana; 7.Conclusão; 8.Referências Bibliográficas.
1. Introdução
As polícias militares estaduais e os bombeiros militares são considerados Forças Auxiliares das Forças Armadas Nacionais, segundo o art. 144, § 6º, da Constituição da República. Por disposição do § 5º do referido artigo, a polícia militar e corpo de bombeiros são responsáveis nas cidades e nos Estados-membros da Federação pelo policiamento ostensivo e preventivo.
Os integrantes das Forças Auxiliares, assim como ocorre com os integrantes das Forças Armadas, estão sujeitos ao princípio da hierarquia e da disciplina, sujeitando-se pelo seu descumprimento às penalidades previstas em lei.
E é em função deste princípio que muitos doutrinadores, coadunando com o texto constitucional, defendem o não direito de greve dos militares estaduais. A greve é um direito fundamental assegurado pelo artigo 9º da Constituição Federal e proibido, por essa mesma legislação, a legislação mor do país, aos militares.
Ora, as Forças Auxiliares são preparadas para defender o cidadão, contudo não podem defender o interesse da própria Corporação de maneira mais incisiva, através de greves ou sindicalização. Afinal, de que forma estes servidores públicos podem defender seus direitos, se tolhidos estão desses instrumentos e mecanismos legais? Como defender o interesse alheio sem poder defender o próprio?
Como considerar o militar um cidadão se a ele são negados direitos básicos tais como o de filiação partidária e de defesa de seus interesses trabalhistas por meio da greve ou da sindicalização? Essas vedações constitucionais ferem o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e, por conseqüência, os Direitos Fundamentais dos militares[1].
Considerando esta breve introdução, deixa-se claro aqui que o desígnio deste estudo não é a de defesa em prol de manifestações ilícitas que poderão abalar a hierarquia e a disciplina das Instituições Militares Estaduais, princípios basilares de toda e qualquer Instituição regida por norma militar disciplinar e nem mesmo incitar a desordem pública, mas sim defender a possibilidade dos militares estaduais pugnarem por direitos e melhorias destes através de manifestos pacíficos e temporários com a necessidade de interrupção de seus serviços e atividades.
2. Da Justiça Militar
Inicialmente, convém salientar que, dentre suas várias facetas, o Direito Penal Militar tem uma característica marcante: é aplicado em duas esferas, quais sejam, em âmbito federal, tendo como sujeito ativo os militares federais e cidadãos civis e como bem tutelado a regularidade das Forças Armadas; e em âmbito estadual tem como agente ativo somente os militares estaduais que venham a agir em detrimento dos bens das Instituições militares estaduais.
De tal modo, apesar de as normas penais militares serem aplicadas nas duas esferas militares o Código Penal Militar – CPM (Decreto-Lei 1.001, de 21/10/1969) e o Código de Processo Penal Militar – CPPM (Decreto-Lei 1.002, de 21/10/1969), em muitos casos, têm utilização bastante diferente.
A primeira diversidade no emprego de ambas as legislações para as Forças Armadas e para as Forças Auxiliares é no que alude à competência para o julgamento dos militares quando do cometimento de ilícitos penais militares.
Isso se dá por mandamento do artigo 125, § 4º da Constituição Federal, que prescreve que compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, não havendo, pois, menção ao julgamento a outros tipos de infratores. Em contrapartida, em seu artigo 124 estabelece a competência para a Justiça Militar Federal julgar os crimes militares, pouco importando quem seja o violador.
A egrégia Corte Militar Estadual é um Órgão colegiado de primeiro grau que compõe os Órgãos do Poder Judiciário como preconiza o artigo 96, inciso III da Constituição do Estado de Minas Gerais, tendo sua estrutura e competência descritas entre os artigos 109 e 111 da citada Norma Constitucional Estadual, e que possui uma função essencial no Estado de Direito, uma vez que exerce de forma eficaz o controle das atividades desenvolvidas pelas Forças Militares Estaduais, responsáveis pela preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão previstos no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, e nos tratados internacionais que foram subscritos pela nossa Nação.
A Justiça Castrense Estadual é uma Justiça especializada como a Justiça do Trabalho e a Eleitoral, por isso não deve ser considerada uma maneira de privilegiar os jurisdicionados, mas sim um Órgão com rígido controle dos atos censuráveis que venham a ser praticados pelos servidores militares estaduais, sejam eles policiais militares e/ou bombeiros militares. Hodiernamente, somente os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul possuem Tribunal de Justiça Militar Estadual.
O Superior Tribunal Militar, que também compõe os Órgãos do Poder Judiciário, com sede em Brasília, tem previsão constitucional no artigo 123 e é composto por quinze ministros vitalícios.
Ademais, em todos os estados, inclusive no Distrito Federal, funcionam os Conselhos de Justiça, os quais se fundamentam no artigo 125 § 3º da Constituição da República. Esses Conselhos são Órgãos jurisdicionais colegiados formados por um juiz togado (auditor) e quatro juízes militares, pertencentes à força a que pertencer o acusado[2].
Assim, delineada a competência e forma de atuação da Justiça Especializada em pleito, pode-se discorrer sobre os crimes militares, os quais são de competência da Justiça Militar Estadual para análise e julgamento.
3. Do crime militar
Para o dr. Décio de Carvalho Mitre, “não existe uma definição rigorosa para crime militar, mas pode-se conceituá-lo como a infração dos valores e dos deveres militares e para com as instituições militares”[3]. Já para Assis, “crime militar é toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”[4].
Benevides Fernandes Neto entende que “os crimes militares são aqueles definidos em lei, adotando-se, portanto, o critério ratione legis, conforme se depreende da leitura do inciso LXI do artigo 5º, artigo 124 e § 4º do artigo 125, todos da Carta Magna”[5].
Pode-se definir o crime militar, então, como sendo a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência, e no aspecto particular da disciplina e da hierarquia, a proteção à autoridade militar e aos serviços militares.
Renomados autores dividem o delito militar em crime propriamente militar e impropriamente militar, divisão que encontra eco na própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXI, que excepciona a necessidade de flagrância ou de ordem da autoridade judiciária competente para a execução de prisão com relação aos crimes propriamente militares.
Para Jorge César de Assis,
“crime propriamente militar é aquele que só está previsto no Código Penal Militar, e que só poderá ser cometido por militar, como aqueles contra a autoridade ou disciplina militar ou contra o serviço militar e o dever militar. Já o crime impropriamente militar está previsto ao mesmo tempo, tanto no Código Penal Militar como na legislação penal comum, ainda que de forma um pouco diversa (roubo, homicídio, estelionato, estupro, etc.) e via de regra, poderá ser cometido por civil”[6].
Sinteticamente, podem-se conceituar os crimes propriamente militares ou crimes militares próprios como aqueles previstos somente no Código Penal Militar e que exigem do agente a condição de militar. Ou seja, crimes propriamente militares são aqueles cuja prática não seria possível senão por militar, porque essa qualidade do agente é essencial para que o fato delituoso se verifique. É o caso, por exemplo, dos crimes de deserção, motim, revolta, violência contra superior, violência contra inferior, recusa de obediência, abandono de posto, entre outros.
Previamente, deve-se observar que para aplicação do Diploma Militar repressivo quanto aos delitos praticados por militares estaduais e conseqüente subsunção do seu artigo 9º, somente é considerado militar estadual o Policial Militar e o Bombeiro Militar em atividade, ainda que em gozo de licença.
No que tange à conceituação do crime, saliente-se que, material ou substancialmente, crime é definido como lesão, ameaça de lesão ou exposição a perigo a um bem fundamental que mereça tutela penal para coexistência e o desenvolvimento social. Formalmente, o crime é a conduta descrita em lei para o qual se comina uma sanção penal. E, adotando-se a concepção analítica tripartida do delito, tem-se que uma conduta, para ser considerada crime, deve ser típica, antijurídica e culpável[7]. Ademais, para ser considerada como um delito militar, ela tem que se amoldar a uma das situações prescritas pelo artigo 9º do Código Penal Militar.
O referido artigo é subdividido em três incisos, contudo, devido ao tema focado, somente as alíneas do inciso II, que tratam das hipóteses em que o militar estadual pode cometer crime militar, será sopesada.
Em tal inciso, como dito acima, são especificadas várias condições que levam a efeito a consumação de ilícitos militares por militares estaduais, e na edição deste artigo há relevância para análise de todas as alíneas, pois no ilícito penal militar em estudo que é o motim, bem como sua variável de definição que é a revolta, o militar estadual ativo que perpetrar tais condutas delituosas que são definidas no Diploma Castrense, será emoldurado penalmente pelas suas ações lesivas contra pessoas, patrimônio ou administração militar, não importando serem elas comissivas ou omissivas no decorrer do levante, pelo seu motim ou pela sua revolta.
O motim (artigo 149 do Código Penal Militar), crime citado no parágrafo anterior, é a reunião de militares para agirem contra ordem recebida de superior ou quando negam cumpri-la, e a revolta, que é sua variável, configura-se quando esta reunião ocorre com os agentes munidos de armamento. “A revolta é, portanto, o motim armado, sendo a existência de armas o único e essencial ponto de distinção entre os dois crimes”[8].
Tais tipos penais militares em voga serão consumados pelos militares estaduais quando da paralisação voluntária de seus serviços e/ou atividades, em prol de reivindicações de direitos e/ou melhorias dos mesmos, o que, no caso dos demais trabalhadores civis, tal paralisação é assegurada, definindo-se como greve e sendo amparada pela Constituição Federal e pela Lei de Greve.
É fato notório que um empregado submetido a condições de trabalho ruins e/ou a baixos salários é um empregado insatisfeito, com baixa produtividade. Esse mesmo fato muitas vezes ocorre entre os militares, insatisfeitos com determinadas situações que vão desde o descontentamento salarial até ações e condutas de superiores, entretanto, essa classe de trabalhadores não pode manifestar-se, por conta do Diploma Castrense, tendo então que permanecer inerte, submetendo-se a tais condutas lesivas.
A Hierarquia e a Disciplina Militar são valores próprios e inalienáveis de qualquer Instituição Militar, cuja incolumidade do Direito Penal Militar defende contra condutas contraditórias e atentatórias de seus integrantes, sendo por isso de fiscalização obrigatória e não omissiva, informando todas as ações maléficas ao titular da ação penal militar no desenrolar do processo, na forma do artigo 55 do Código de Processo Penal Militar.
Contudo, não pode a rigidez dos princípios de hierarquia e disciplina sobrepujarem os princípios de direitos e garantias fundamentais estabelecidos na própria Carta Magna. Afinal, o policial militar não perde sua cidadania ao tornar-se Militar, consequentemente não pode ter seu direito fundamental relativizado em função do direito fundamental de outrem.
Afinal, conforme ressalta Rosa,
“o servidor militar, assim como o civil, é sujeito de direitos e obrigações, sendo regido por estatuto próprio, o qual deve obedecer à CF, sob pena de inconstitucionalidade. (…) Aos servidores militares aplicam-se os preceitos constitucionais, sob pena de abuso de poder ou arbitrariedade”[9].
O que se quer dizer é que uma Corporação bem equipada, com policiais devidamente remunerados e trabalhando em condições dignas, reflete a busca da eficiência na atuação administrativa, conforme preconiza o caput do artigo 37 da Constituição da República.
3. Das Forças Armadas e das Forças Auxiliares e reservas do exército e o rol de serviços ou atividades essenciais elencado pela lei no 7.783/89
As Forças Armadas, conforme previsão constitucional, são organizadas com base na hierarquia e disciplina militares, destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Já as Forças Auxiliares e Reservas do Exército, incluindo aqui as polícias militares e corpos de bombeiros militares, são instituições destinadas à preservação da salubridade pública e da integridade física e patrimonial do cidadão, não sendo responsáveis pelas questões de segurança nacional, que é uma atividade de exclusividade das Forças Armadas.
Os militares federais são preparados para a defesa da Pátria e a preservação da soberania, já os militares estaduais são preparados para a execução do policiamento urbano e a preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Apesar da diferença de finalidade entre as Forças Armadas e as Forças Auxiliares, a Constituição Federal, por ordem do parágrafo primeiro do artigo 42, aplicou às Forças Auxiliares certos dispositivos relativos às Forças Armadas, dentre eles está, no artigo 142, X, a proibição ao exercício de greve.
Ora, a Constituição de 1988 insere o direito de greve no elenco dos direitos fundamentais, nos seguintes termos:
“Art. 9º – É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º – A lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º – Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
Conforme expresso no próprio texto da Constituição, o direito de greve é um direito fundamental e as Forças Auxiliares são as responsáveis pela preservação dos mesmos ao cidadão, contudo, pergunta-se: como pode a polícia defender o direito alheio se a ela própria é proibida a defesa dos seus?
Ademais, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo supra citado, a lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; esta lei já existe no ordenamento jurídico pátrio, qual seja, é a Lei no 7.783/89, conhecida como Lei de Greve.
Referida lei, mais especificamente em seu artigo 10, traz o rol de serviços ou atividades essenciais que tem resguardado seu direito de aderir à paralisação de seus serviços e atividades, momento em que se questiona o motivo que foi imêmore a citação naquele rol das Forças Auxiliares.
Tal indagação se faz necessária para que se possa afirmar, então, com mais propriedade, que, se os militares estaduais, em destaque neste artigo, não são considerados como serviços ou atividades essenciais, deveriam então ser considerados como serviços comuns, ou seja, a eles não teria cabimento a vedação constitucional do direito de greve, pois, afinal, não constam do referido rol, daí, então, por que restringir suas paralisações temporárias para reivindicações de direitos e melhorias dos mesmos?
Justifica-se, também, que se derrube a citada vedação constitucional ao realizar a leitura do artigo 11 da Lei de Greve, o qual demonstra a fragilidade da lei federal, quando, em seu parágrafo único diz que “são necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. No caput do artigo em voga determina-se que nos serviços de atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade os trabalhadores obrigam-se a garantir a prestação dos mesmos. Ressalte-se que, em momento algum a lei determina que aos prestadores desses serviços é vedado o direito de greve e, além de não proibir a esses trabalhadores esse direito, ainda inclui em seu parágrafo único a segurança da população como serviço inadiável.
Em outras palavras, se o serviço de segurança da população enquadra-se nas necessidades inadiáveis da comunidade, não há mais lugar, portanto, para a proibição de greve nesses serviços. O que se constata, desta forma, é que a própria Lei de Greve demonstra claramente que a greve dos policiais militares estaduais é possível, dentro dos limites previstos, ou seja, garantindo a prestação do serviço à comunidade no decorrer da paralisação.
Sem dúvida alguma, no caso dos policiais militares há de existir uma norma regulamentando os meios a serem utilizados para o exercício do direito de greve, considerando a particularidade de ser um serviço público em que os servidores estão armados, o que sugere que a utilização de armas no movimento implicaria o abuso do direito de greve, com a imposição de sanções hoje já existentes. Contudo, há de se grifar que não existe diferença quanto à essencialidade em serviços públicos como saúde, educação ou segurança pública, não se justificando o tratamento distinto a seus prestadores. Portanto, há que se submeter o direito de greve do militar a um ato de ponderação, buscando seus limites ante outros valores constitucionais.
Afinal, saliente-se novamente, como garantir os direitos alheios se à própria classe militar é negado lutar pelos seus?
4. Do direito fundamental de greve e sua proibição aos militares estaduais – uma análise comparativa ao direito militar internacional
Conforme pontuado na introdução do presente estudo, a greve é, pois, um direito fundamental assegurado pelo artigo 9º da Constituição Federal e proibido, por essa mesma legislação, ao militares estaduais.
Os direitos fundamentais, como nos esclarece o douto professor Joaquim Carlos Salgado,
“são aquelas prerrogativas das pessoas, necessárias para uma vida satisfatória e digna, garantidas nas Constituições. Como direitos, têm de compor o quadro das faculdades outorgadas na ordem jurídica, cuja lei básica chamamos constituição, embora, como valores, surjam independente de estarem ou não consagrados numa constituição; quer dizer, são reivindicáveis, ainda que a Constituição seja avessa aos princípios incorporados à cultura e à consciência dos povos civilizados”[10].
Deste modo, os direitos fundamentais podem ser considerados como basilares de um Estado Democrático de Direito, devendo ser os mesmos respeitados e protegidos, conforme nos demonstra Marmelstein,
“os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à idéia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico”[11].
Assim, é possível afirmar que os direitos fundamentais são aqueles direitos que os indivíduos têm resguardados e que atuam como fundamento de todo o ordenamento jurídico-político positivados em cartas constitucionais e nas declarações ou pactos internacionais. Os mesmos, por se referirem à esfera de proteção da dignidade humana, são divididos, de acordo com cada ordenamento jurídico, em individuais, políticos, sociais entre outros.
No estudo em tela, invoca-se um direito fundamental social para resguardar aos militares o direito de reivindicação pacífica de melhoria nas condições de trabalho e de salários, qual seja, o direito de greve.
Analisando os direitos fundamentais sob a perspectiva social, tem-se que “os direitos fundamentais possuem um inegável conteúdo ético (aspecto material). Eles são os valores básicos para uma vida digna em sociedade”[12].
Nesse sentido, parece-nos adequado afirmar que o direito de greve, a rigor, constitui uma forma de proteção do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na medida em que resguarda os interesses de uma classe trabalhadora e, consequentemente, contribui para melhoria da qualidade de vida em sociedade.
Pode-se, portanto, concluir que os direitos sociais são direitos que efetivamente visam, se não a eliminar, pelos menos a diminuir as desigualdades sócio-econômicas e culturais. São, portanto, qualquer que seja o ângulo que os visualizemos, direitos de liberdade e de igualdade que objetivam proporcionar uma existência digna. Por conseguinte, direitos intimamente ligados à dignidade humana[13].
No Brasil, a justiça social encontra-se fulcrada constitucionalmente no art. 6º do Texto Supremo, segundo o qual “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desempregados”, o qual é complementado pelo art. 170, que estabelece que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social”.
Assim sendo, a concretização dos direitos sociais é um dever jurídico, na medida em que tem fundamento nos pactos internacionais de proteção dos direitos humanos e em nas próprias Constituições dos Estados.
Nesse viés, não é despiciendo dizer que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e que ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), cujos textos asseguram direitos de associação sindical e de greve aos servidores públicos militares das forças armadas e das forças auxiliares e/ou, pelo menos, que tais direitos sejam exercidos com as restrições definidas na forma da lei. Além disso, apesar de a Organização Internacional do Trabalho – OIT não possuir convenção específica sobre greve, o País aderiu à convenção 98 que dispõe sobre liberdade sindical e negociação coletiva[14], que contempla, implicitamente, a greve como um direito fundamental dos trabalhadores, tanto do setor público quanto do setor privado, sendo certo que apenas os funcionários das forças armadas podem ter, segundo aquele organismo internacional, algumas restrições ao exercício do direito de greve, restrições, mas não proibição desse direito.
Por força da noção introduzida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, os direitos humanos são caracterizados pela universalidade e indivisibilidade. Por conseguinte, quando um deles é violado, os demais também o são, já que compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, de forma que têm a capacidade de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais[15].
Desta maneira, se aos militares é vedado o direito de greve, a eles é vedada a fruição de um direito internacionalmente pactuado pelo Brasil e constitucionalmente assegurado dentro dos direitos sociais fundamentais aos trabalhadores civis, impossibilitando aos mesmos o exercício da reivindicação por melhorias sociais, o que, inclusive, é um risco para a sociedade, pois uma polícia mal equipada, com baixos salários, é uma polícia insatisfeita, despreparada e, sem julgar a corporação militar ou incorrer em possíveis levantamentos errôneos, é também uma polícia que poderá ser facilmente corrompida e desvirtuada de seu propósito.
Contudo, apesar da existência de pactos internacionais assegurando aos servidores públicos o direito de greve, ainda
“são comuns as limitações ao direito de greve dos servidores públicos em outros países. Nos Estados Unidos da América, a Lei Taft-Hartley, de 1947, alterada pela Lei Landrum Griffin, de 1959, proíbe a greve dos funcionários públicos federais, sob pena de demissão e impedimento para retornar ao serviço público por três anos, sendo que a legislação de 40 Estados e a do Distrito de Colúmbia veda a greve dos seus funcionários públicos. Nos Estados restantes a greve só é proibida nos serviços públicos de saúde e de segurança. Na França, a greve é proibida a seis grupos de funcionários públicos em leis de 1947 a 1972, adotadas para conter os abusos verificados com o amplo direito antes assegurado aos servidores do Estado. Na Espanha, o novo art. 222 do Código Penal considera delituosa a greve dos funcionários que tenham a seu cargo “a prestação de qualquer tipo de serviço público de reconhecida e inadiável necessidade”[16].
Por outro lado, ao ler o texto de Gouveia, vê-se que o autor citando Arion Sayão Romita, ressalta que,
“a despeito da proibição geral, há países que reconhecem aos membros das forças armadas o direito de organizar-se para defender seus interesses profissionais, em alguns casos com restrições específicas, tais como a Alemanha, a Áustria, a Dinamarca, a Finlândia, Luxemburgo, Noruega, O Reino Unido e a Suécia. Em relação aos policiais, certos países asseguram o direito de sindicalização igual ao reconhecimento para as demais categorias de servidores públicos ou por força de uma legislação especial, tal como sucede na Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Costa do Marfim, Dinamarca, Finlândia, França, Guiné, Islândia, Luxemburgo, Malawi, Nigéria, Noruega, Nova Zelândia, Holanda, Reino Unido, Senegal, Suécia e Tunísia”[17].
Assim, fazendo uma leitura comparativa ao texto suso transcrito e considerando-se
“correta a premissa de que os direito fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável- explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”[18].
Tem-se que é completamente imoral essa vedação constitucional aos militares, posto que “sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade”[19].
Por isso, é necessário refletir sobre essa situação num contexto coletivo, procurando conceber esse direito sob a ótica da sociedade trabalhadora além de pensar a situação dos militares sob a ótica do homem em sociedade, daquele que convive no meio dela e realiza-se dentro de seu seio[20].
Afinal, a segurança pública é um direito de todos, bem como o bem estar social, e esse “todos” refere-se a todos os cidadãos indistintamente, incluindo-se os militares. E por isso deve-se ressaltar que “O homem realizar-se-á individualmente, tanto mais quanto ele se integre numa vida social organizada segundo a razão, de modo que o interesse de cada um seja o interesse de todos e o de todos seja o interesse de cada um”. Pois,
“uma polícia para ser eficiente e garantir a paz social, não pode demonstrar falha de ordem material ou de valores éticos, e nem prescindir de um treinamento e formação voltado ao respeito e a promoção dos direitos humanos. Poucas profissões exigem recursos humanos tão especializados como os envolvidos na segurança pública”[21].
Tal citação coloca em xeque, mais uma vez, a tão comentada vedação constitucional e deixa um gancho para a reflexão sobre os riscos de se manter uma corporação impedida de lutar por seus direitos, o que acarreta uma fragilidade psicológica e monetária a seus integrantes.
Lembrando-se que “o Estado só existe e só se justifica se respeitar, promover e garantir os direitos fundamentais do homem. O Estado nasce exatamente pela necessidade de dar proteção aos direitos fundamentais”[22]. E que “a moderna sociedade democrática não pode excluir nenhum grupo organizado de pleitear coletivamente os direitos de seus membros”[23], tem-se que tal proibição constitucional fere o Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais dos cidadãos que se enquadram como militares.
5. A vedação constitucional ao direito de greve dos policiais militares e a violação do princípio da dignidade da pessoa humana
Conforme nos explica Nascimento em sua obra Manual do poder diretivo do empregador, a Constituição Federal de 1988,
“no inciso III do art.1º, erigiu a dignidade da pessoa humana a um dos pilares de sustentação da ordem econômica e social ao incluí-la nos princípios fundamentais do estado democrático de direito do Brasil. O art. 170 da Carta Constitucional revigora o princípio fundamental previsto no inciso III do art. 1º para consagrar que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”[24].
Ora, como nos pontua o referido autor, a própria Carta Magna assegura a dignidade da pessoa humana como fundamento basilar da república e garante, por meio da valorização do trabalho humano, uma existência digna, o que significa que os direitos decorrentes do trabalho devem também ser assegurados objetivando, outrossim, uma existência digna; desta maneira, direitos como remuneração justa, férias, greve, repouso semanal incorrem no rol de garantias fundamentais para verificação desse princípio.
Assim, novamente citando Nascimento,
“a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitucional, coloca em evidência o ser humano, intrinsecamente considerado, para o qual deve convergir todo o esforço de proteção do Estado, através do seu ordenamento jurídico. O trabalho, indiscutivelmente, figura como um dos componentes da condição da dignidade da pessoa humana. É para o bem-estar do ser humano que o trabalho se direciona”[25].
Ou seja, se é o trabalho meio de busca do bem-estar[26] do homem e componente imprescindível para obtenção de uma existência condigna, ao proibir a certas classes o gozo de certos direitos fundamentais relativos ao trabalho está a própria Constituição infringindo um fundamento da República, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Afinal, “a dignidade da pessoa humana assume relevo como valor supremo de toda sociedade para o qual se reconduzem todos os direitos fundamentais da pessoa humana”[27].
Consequentemente, ao negar aos militares o direito de greve o texto constitucional veda um direito fundamental estabelecido no rol de direitos sociais, negando a esta classe o direito geral de igualdade[28] e infringindo o destacado princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Ressaltando o entendimento de Pessanha, “a consolidação da dignidade da pessoa humana no primeiro artigo do texto constitucional (CRFB, art.1º, 111) evidencia a grande preocupação do Constituinte com a promoção dos direitos fundamentais e da justiça social no país”[29].
O que se quer dizer é que, ao debater sobre a disparidade de previsão e restrição de direitos fundamentais a brasileiros que estão regidos pela mesma Norma Constitucional, questiona-se, então, se a Constituição Federal não se contradiz em querer pronunciar que todos são iguais, mas só alguns gozam de determinados direitos, afinal “a regra é a observância dos direitos fundamentais e não sua restrição”[30]. Ademais, a dignidade não é privilégio de apenas alguns indivíduos escolhidos por razões étnicas, culturais ou econômicas, mas sim um atributo de todo e qualquer ser humano, pelo simples fato de ser humano.
Enfim, ao trazer em seu artigo primeiro a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da república, a Constituição Federal imprimiu que o trabalhador, seja ele de qual classe for, não deve submeter-se a um trabalho com condições indignas e salários miseráveis. Por conseguinte, se existem condições que ofendam a dignidade da pessoa humana no exercício da atividade policial, o ato de se colocar contra tal condição jamais deveria ser tido como ato de indisciplina.
Por fim, a busca por melhores salários e condições de trabalho não implica ato de insubordinação, mas, sim, de restituição da dignidade que deve haver no exercício de qualquer trabalho e do exercício de um princípio garantido constitucionalmente. Situando-se, portanto, dentro dos parâmetros constitucionais.
6. Conclusão
A greve constitui a um só tempo um direito de liberdade e um direito de igualdade, na medida em que seu objetivo maior consiste na reação pacífica contra os atos que impliquem direta ou indiretamente desrespeito à dignidade da pessoa humana do cidadão laborante, tendo por escopo básico a melhoria das condições sociais do homem trabalhador.
Trata-se, pois, de um direito fundamental da pessoa humana que se insere no ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do art. 9º da Constituição Federal na moldura dos chamados direitos sociais fundamentais. E é justamente por se tratar de direito fundamental que não deve haver distinção entre o trabalhador do setor privado e o do setor público. A própria OIT somente admite restrições ao exercício do direito de greve nos serviços essenciais cuja interrupção possa pôr em perigo a vida, a segurança ou a saúde da população.
Afinal, o Direito deve ser utilizado com a finalidade do bem comum, mas para atingi-lo é necessário mirar no bem de cada indivíduo e conduzir esse intuito à ilação daquilo que é menos prejudicial à sociedade.
Ao demonstrar neste estudo a fragilidade da Lei 7783/89 e a incompatibilidade entre a vedação constitucional do referido direito fundamental e a garantia efetiva do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana não se está pretendendo afetar os princípios basilares de toda e qualquer Instituição Militar, quais sejam, a hierarquia e a disciplina, mas, sim, advogar aqui em prol dos trabalhadores militares estaduais, como uma classe de trabalhadores como qualquer outra detentora de direitos, dentre eles o da igualdade, tão tratado nos documentos normativos e doutrinários.
Considerando, então, que o reconhecimento e a incorporação dos direitos sociais nas Constituições de diversos Estados, bem como em pactos internacionais, confirmam a relevância que esses direitos têm alcançado no cenário de cada estado e no âmbito internacional, sua concretização torna-se obrigatória, ou seja, é preciso levar a sério os direitos fundamentais sociais, o que implica um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade material.
Sendo a greve um direito fundamental social e o instrumento apto a buscar uma melhora social dos trabalhadores, deve-se considerar sua possibilidade entre os militares estaduais, ponderando-se, inclusive que, ao se proibir que os militares reivindiquem por melhores condições de trabalho está a se obrigar que a polícia seja uma instituição fraca com equipamentos e armas obsoletas e ineficazes, o que pode, sim, desrespeitar os direitos humanos, pela simples ineficácia da mesma diante do crime organizado.
Desta feita, greve dos militares não pode ser considerada crime de motim, o qual configura-se com a reunião contra autoridade constituída, pois greve não é contra autoridade superiormente hierárquica é, porém, reivindicação de direitos.
Por isso, defende-se que o Estado deve regular o exercício do direito de greve, não no sentido de restringi-lo, mas de garanti-lo a todos, garantindo, consequentemente, o bem-estar comum e a existência de igualdade real entre os cidadãos, assegurando, assim, que todos tenham direito de ascender a melhores condições de vida e de trabalho.
Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho, Mestranda em Filosofia do Direito, Advogada.
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