Resumo: O Ministério Público passou por um processo histórico de fases bem distintas e antagônicas até culminar no que representa hodiernamente para a sociedade. As legislações acompanharam esse processo histórico e como resultado dessa evolução foi concebida a Constituição Federal de 1988 que consagrou como um dos seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o Ministério Público desempenha papel de suma importância, pois lhe foi conferido prerrogativas e atribuições com o objetivo de proteger o sistema jurídico e suas prescrições legais e constitucionais. Portanto, após discussões com argumentos consistentes tanto a favor como também contra da possibilidade jurídica da investigação pelo órgão ministerial na fase preliminar que antecede a ação penal, levando-se em conta o sistema acusatório adotado pelo Brasil e as experiências observadas em outros ordenamentos jurídicos, busca-se assentar o melhor posicionamento acerca desse tema que ainda encontra-se controverso na doutrina e na jurisprudência pátria.
Palavras-chaves: Ministério Público. Investigação Criminal. Constituição Federal.
Abstract: The Public Prosecutor’s Office has gone through a historical process of distinct and antagonistic phases which have led to what it represents to our society today. The laws have followed this historical process and evolved, leading to the Federal Constitution of 1988, and which consecrated the dignity of the human being as one of its fundamental principles. In this context, the Public Prosecutor’s Office plays a role of paramount importance, because it was conferred powers and responsibilities with the goal of protecting the legal system and its legal requirements and constitutional rights. Therefore, after discussions with consistent arguments both in favor and against the legal possibility of investigation by the ministerial body at the preliminary stage preceding the criminal action, taking into account the libelous system adopted by Brazil, and the experiences observed in other jurisdictions, we seek to build the best opinion on this topic that remains controversial in the Brazilian doctrine and jurisprudence.
Keywords: The Public Prosecutor’s Office. Criminal Investigation. The Federal Constitution.
Sumário: Introdução. 1. Breve relato histórico do Ministério Público. 2. Princípios norteadores da atividade ministerial. 3. O direito comparado e a atuação do parquet na persecução criminal. 4. Sistemas processuais penais. 5. Sistema processual brasileiro e a investigação criminal. 6. Previsão constitucional e legal do Ministério Público na investigação criminal. 7. Posicionamento contrário à atuação do Ministério Público na investigação criminal. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O trabalho em comento busca fomentar a discussão acerca da investigação criminal ser realizada diretamente pelo Ministério Público e se tal mister está de acordo com a Carta Constitucional de 1988.
Após um breve relato histórico no qual se discute a origem do Ministério Público, analisar-se-ão os princípios norteadores da atividade ministerial, a atuação do parquet em outros ordenamentos jurídicos e, por fim, será tratado da celeuma sobre o poder de investigação do Ministério Público diante do sistema processual penal adotado pelo Brasil.
Existem no cenário brasileiro duas posições bem distintas: uma de orientação restritiva na qual reza que a investigação criminal é exclusiva das polícias judiciárias, civil e federal; e outra, bem mais ampliativa, entende ser tarefa que poderá ser feita por outros órgãos, dentre eles, o Ministério Público.
Para a confecção desse trabalho foram utilizadas pesquisas bibliográficas por meio de livros, estudos jurídicos acerca do assunto para melhor compreensão e explanação do tema em estudo.
1. BREVE RELATO HISTÓRICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Conforme nos ensina Cintra, Grinover e Dinamarco (2010), os primeiros traços caracterizadores da atual instituição conhecida hoje como Ministério Público remontam de 4000 anos a.C no Egito. Ali já existiam funcionários conhecidos como procuradores Caesaris que desempenhavam atribuições públicas. Todavia, atuavam na tutela de interesses do imperador o qual representava naquela época a figura do Estado. Em meados do século XIV, na França, foi onde o Ministério Público surgiu, mas a sua função era diferente da que hoje desempenha, pois naquela época buscava tutelar os interesses do rei.
Azevedo (2010) aduz que, no Brasil, o Ministério Público tem seu nascedouro oriundo das legislações portuguesas. Quando Portugal chegou ao Brasil e o colonizou, trouxe consigo suas leis vigentes como as Ordenações Afonsinas de 1446, Manuelinas de 1521 e Filipinas de 1603. Nesse ínterim, a jurisdição ficou a cargo das leis lusitanas. De acordo com Rangel (2005 apud AZEVEDO, 2010, p. 62):
“O primeiro texto legislativo nacional que trouxe a previsão da figura do Promotor de Justiça foi o que disciplinou a composição do Tribunal da Relação do Brasil, sediado na Bahia, de 09 de janeiro de 1609, onde o papel de Procurador da Coroa e de Promotor de Justiça era exercido por um dos 10 Desembargadores que a integravam.”
Paulo e Alexandrino (2012), Dom Pedro I outorgou a primeira constituição brasileira que ficou conhecida oficialmente como Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Santin (2007) menciona que esta carta constitucional não trazia em seu bojo a previsão do Ministério Público. Porém, em 1891, com o advento da primeira constituição republicana brasileira, surge a previsão do Procurador-Geral da República o qual era escolhido e nomeado pelo Presidente da República, dentre os integrantes do Supremo Tribunal Federal.
De acordo com Azevedo (2010), a institucionalização do Ministério Público só veio a acontecer efetivamente com a promulgação da Constituição de 1934. Porém, um ponto negativo foi o fato de a instituição ter ficado atrelada ao Poder Executivo prejudicando de certa forma a sua imparcialidade. Manteve-se a nomeação do Procurador-Geral da República pelo Presidente da República, mas agora necessitaria da aprovação do Senado Federal. Em 1937, foi imposta uma nova Constituição não democrática, período no qual ficou conhecido como Estado Novo. Tal fase representou um regime ditatorial que ensejou para o Ministério Público um forte retrocesso, pois implicou em enfraquecimento da Instituição.
Com o fim desse período, promulgou-se a Constituição de 1946 na qual conferiu outra roupagem para o Ministério Público. Santin (2007) aduz que o ingresso na carreira é por meio de concurso público e foi concedida a estabilidade para o cargo. Além do mais, a escolha do Procurador-Geral da República é feita pelo Presidente da República depois de aprovada pelo Senado Federal. A Instituição ganhou mais independência, tendo em vista não ter ficado atrelada a qualquer dos poderes: executivo, legislativo e judiciário.
A partir de 1964, durante o regime militar, ocorreu mais um período de exceção no qual trouxe consigo o recesso no que tange a alguns direitos, principalmente os relacionados à liberdade. Santin (2007) relata que o Ministério Público, com a Constituição de 1967, foi inserido no capítulo referente ao Poder Judiciário, entretanto, com a Emenda Constitucional de nº 01/1969, a instituição foi realocada dentro do capítulo concernente ao Poder Executivo. Daí, outra vez a instituição do Ministério Público voltou a ser vinculada ao Poder Executivo, desse modo, comprometendo a sua atuação e independência funcional.
Finalmente, Azevedo (2010) menciona que a Constituição de 1988, a qual foi nominada como sendo a Constituição “Cidadã” devido a seu caráter eminentemente democrático, possibilitou um verdadeiro resgate ao Ministério Público. Pois, conferiu-lhe autonomia e independência em relação ao demais poderes da República. Também foram asseguradas, aos seus membros, as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade; além da autonomia administrativa, funcional e financeira. Tudo para lhe proporcionar todas as condições necessárias à consecução do seu mister de maneira imparcial na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Destarte, com a Constituição de 1988, toda lesão ou ameaça de lesão a direito difuso e coletivo passou a ser objeto de tutela do Ministério Público.
2. PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ATIVIDADE MINISTERIAL
A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público alguns princípios institucionais que estão elencados no art. 127, § 1º: a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Lenza (2009, p. 606) ensina tais princípios:
O princípio da unidade significa que o Ministério Público é uno sob a supervisão de um só chefe (Procurador-Geral). A divisão que existe é apenas funcional. A unidade é conferida dentro de cada um isoladamente, portanto, não sendo cabível um Procurador da República pertencente ao Ministério Público da União (MPF) atue dentro da esfera de atribuição de um promotor de justiça estadual e vice-versa.
O princípio da indivisibilidade é corolário do princípio da unidade. Quem atua na verdade é o órgão e não a pessoa. Um membro do Ministério Público pode ser substituído por outro, tendo em vista o membro do parquet não se vincular ao processo no qual atua. Porém, tem que fazer parte do mesmo ramo até porque a indivisibilidade só ocorre dentro de cada Ministério Público especificamente.
O princípio da independência funcional estabelece que os membros do Ministério Público não podem sofrer nenhum tipo de ingerência no exercício de suas funções, não estão subordinados a nenhum dos Poderes da República (Legislativo, Executivo ou Judiciário) possuem total autonomia em relação as suas convicções estando subordinados apenas ao que dispõe o ordenamento jurídico: às leis e à Constituição. Dentro de cada órgão existe uma hierarquia meramente administrativa, jamais funcional, nem mesmo o Chefe da instituição (Procurador-Geral) pode impor que um membro haja de determinada forma, pois estes são livres para agir de acordo com suas consciências.
Existe uma celeuma em torno do art. 28 do Código de Processo Penal
Conforme Capez e Colnago (2015, p. 57 – 58), o art. 28 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece que caso o Ministério Público represente pelo arquivamento dos autos de inquérito policial ou quaisquer peças de informação, ao invés de oferecer denúncia, se o juiz que atua como fiscal do princípio da obrigatoriedade considerar improcedentes as razões invocadas remeterá os autos ou as peças ao Procurador-Geral e este poderá adotar três medidas: concordar com o arquivamento (nesse caso o juiz estará obrigado a atender), oferecer denúncia ele próprio ou designar outro membro do Ministério Público para oferecê-la.
Quando outro membro do parquet oferece denúncia por determinação do Procurador-Geral, não pode recusar, até porque ele não está agindo em nome próprio, mas sim, por delegação do Procurador-Geral. Desse modo, o art. 28 do CPP, não desrespeita a independência funcional e, portanto, não fere a Constituição Federal, pois o promotor que representou pelo arquivamento não estará obrigado a oferecer denúncia, dessa forma, respeitado a sua convicção jurídica e independência funcional, visto que, quem fará a denúncia será outro membro do Ministério Público.
O princípio do promotor natural é extraído do art. 5º, inciso LIII, da CF/88[1]. Paulo e Alexandrino (2012, p. 724) asseveram que este princípio proíbe a ocorrência de designações casuísticas em relação a determinados processos. A pessoa do acusado só pode ser processada por um membro do Ministério Público previamente fixado por normas objetivas, abstratas e gerais, evitando-se a figura do “promotor de exceção”, indiscutivelmente, vetada pela Carta Constitucional de 1988. Obedecendo a esse princípio, resguarda-se o interesse público e do próprio membro do Ministério Público que tem assegurado a garantia de sua atuação de forma imparcial e livre de pressões externas.
3. O DIREITO COMPARADO E A ATUAÇÃO DO PARQUET NA PERSECUÇÃO CRIMINAL.
Uma análise por outros ordenamentos jurídicos é necessária para entender a atuação do Ministério Público em outras culturas e civilizações.
A Alemanha, de acordo com Lopes Jr. e Gloeckner (2013), a investigação preliminar e a titularidade da ação penal ficam a cargo do Ministério Público. Assim, é ele quem coordena toda a fase pré-processual e conta com o apoio e a estrutura da polícia judiciária para a consecução das diligências investigatórias. Todavia, alguns atos que restringem direitos e garantias individuais devem passar antes pelo crivo do judiciário. Ao final das investigações, o promotor deverá oferecer denúncia ou não, conforme o caso. Portanto, a sua atuação não se consubstancia apenas em trazer a baila elementos incriminadores, mas também, aqueles que favoreçam a defesa se porventura sejam colhidos durante a investigação preliminar.
Em Portugal, Santin (2007, p. 117) dispõe que “o Ministério Público é encarregado da fase de investigação prévia e da dedução da ação penal. A polícia é sua auxiliar na fase preliminar”. Sendo que, ao final, é o próprio Ministério Público que apurou o fato, em tese criminoso, quem decidirá sobre a propositura ou não da ação penal. Com essa sistemática o processo penal português superou o juizado de instrução adotando-se eminentemente o sistema processual acusatório.
Lopes Jr. e Gloeckner (2013), a Itália, seguindo o modelo europeu, desistiu dos juizados de instrução e deu espaço para o Ministério Público assumir a titularidade da investigação preliminar. Mais uma vez, a polícia judiciária passaria a agir sob a direção do órgão ministerial. O judiciário, em especial o juiz competente da instrução preliminar, ficou responsável por averiguar a legalidade das investigações, assim como proceder em relação a decisões jurisdicionais que tenham por base a restrição de direitos fundamentais.
Segundo Choukr (2006) nos Estados Unidos da América devido ao pacto federalista existe uma grande variedade legislativa, pois cada Estado da federação goza de autonomia na elaboração de suas leis. A promotoria e a polícia são órgãos que atuam autônoma e independentemente entre si. Desse modo, a polícia trabalha na obtenção de provas que deverão ser endereçadas ao titular da ação penal, no caso, o Ministério Público. Nesse ponto, há uma divergência do modelo europeu no qual lá o Ministério Público é quem comanda a investigação e a polícia atua como coadjuvante nas investigações.
4 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
O sistema processual penal pode ser de três tipos: inquisitivo, acusatório ou misto. O que vão defini-los são características peculiares de cada um que se traduzem na maneira de perseguir a responsabilização criminal.
Lima (2016), o sistema inquisitivo foi acolhido pelo Direito canônico em meados do século XIII, depois difundiu-se por toda a Europa, sendo também utilizado, naquela época, pelos tribunais civis. Sintetizando, tal sistema é a junção das funções de acusar, defender e julgar concentradas em uma só pessoa. Segundo Lopes Jr., (2007, p. 68 apud Távora e Alencar, 2012, p. 40) “foi desacreditado – principalmente por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar”.
Assim, essa ideia utópica de acúmulo de funções parte da premissa errônea da qual o homem seria capaz de absorvê-las e, mesmo assim, teria a capacidade de separá-las, sem que se comprometesse a priori a favor de um ou de outro encargo. Vale lembrar, as principais características desse sistema inquisitorial: a ausência do contraditório e da ampla defesa, a mitigação de direitos e garantias individuais e o tratamento conferido ao investigado como sendo mero objeto da investigação, ao invés de ser considerado sujeito de direitos.
Távora e Alencar (2012, p. 41- 42) ensinam que o sistema acusatório tem suas origens fincadas na Grécia e este sistema tem como principais características o desmembramento das funções exercidas no processo, quais sejam: acusar, defender e julgar que são nesse momento desempenhadas por pessoas distintas. Desse modo, configura-se a principal diferença que há em relação ao sistema inquisitivo, pois, traz em sua essência princípios próprios como: o contraditório e a ampla defesa, o livre convencimento motivado, a publicidade, entre outros, que regem toda a atividade processual.
Reis e Gonçalves (2012), o Brasil, como se pode verificar pela atual conjectura, adotou o sistema acusatório, todavia de forma mitigada. Nesse contexto, o papel da acusação recai em órgão diverso daquele que julga, haja vista o juiz estar equidistante das partes como preceitua tal sistema acusatório. Contudo, o juiz assume um papel não apenas de mero espectador do processo, pois lhe foi outorgado pelo ordenamento jurídico a possibilidade de realizar diligências que assegurem o esclarecimento da verdade. Tudo isso para dar uma maior efetividade à busca da verdade real que é princípio basilar do processo penal.
Távora e Alencar (2012, p. 42) o fato de o inquérito policial ser essencialmente inquisitivo não traz nenhum prejuízo para o sistema acusatório, pois até mesmo durante a confecção desse procedimento administrativo devem ser assegurados direitos fundamentais para que haja a adaptação ao novo paradigma constitucional. Visto que, já nessa fase pré-processual ocorre a produção de provas que pela sua natureza não podem ser repetidas num momento posterior.
Reis e Gonçalves (2012, p.33), o sistema misto é o adotado ainda em diversos países europeus. Esse sistema híbrido é caracterizado por mesclar o sistema inquisitivo e o acusatório. Portanto, nele existem duas fases: uma conceituada como o juizado de instrução que apresenta como característica intrínseca ser um procedimento secreto e escrito no qual o juiz age na investigação preliminar e outra fase que é marcada pelo contraditório judicial no qual se tem assegurados os direitos e garantias individuais, além da divisão das funções de acusar, defender e julgar.
5 SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.
A persecutio criminis, no Brasil, se perfaz basicamente em dois momentos. Sendo um investigativo que é levado a cabo, em regra, pela polícia judiciária através de um procedimento administrativo denominado inquérito policial e outro denominado de instrução criminal ou ação penal que é patrocinado pelo órgão de acusação, Ministério Público. Reis e Gonçalves (2011) aduz que nos crimes de ação penal privada o parquet atua como custos legis, isto é, fiscal da lei.
A Constituição Federal de 1988, ao conceder ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública, conforme art.129, inciso I, delineou de forma explícita a separação das funções de acusar e de julgar. Portanto, pode-se concluir que o Brasil adotou o sistema acusatório no bojo do seu processo penal, no entanto, o fez de forma mitigada, tendo em vista o juiz, de forma excepcional, durante a fase judicial, agir de ofício na produção de provas para sanar alguma dúvida antes do seu julgamento. (LIMA, 2016)
No processo penal brasileiro, Choukr (2006, p. 183) afirma que o juiz se mantém equidistante das partes: “O modelo acusatório estabelecido constitucionalmente impõe a repartição de funções entre as agências públicas ligadas a persecução, tem no juiz um ponto de equilíbrio equidistante das partes […]”, desse modo, busca-se a imparcialidade do órgão julgador. Todavia, ainda guardando resquícios do sistema inquisitivo, Reis e Gonçalves (2012) aduzem que o magistrado pode intervir no processo agindo de ofício, tendo em vista o juiz pautar-se pela busca da verdade real.
Nessa conjectura, pode-se deduzir que a autoridade policial desempenha um papel de suma importância na investigação criminal porque os elementos colhidos servirão de substrato para o processo penal. Desta feita, o delegado também deve se posicionar como figura equidistante da acusação e da defesa, tendo em vista que seu mister é buscar a autoria, materialidade e as circunstâncias do delito e, sobretudo, a verdade dos fatos. Neste sentido corrobora Silva (2013, p. 63): “Bom frisar que a polícia judiciária não é personagem do processo penal isso dá a ela um maior grau de isenção, vez que mais adiante não terá que defender no feito o resultado de sua investigação, como parte.”
Na exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941 foi exposta a importância do inquérito policial para o processo penal brasileiro, entendimento esse confirmado atualmente pela Lei nº 12.830/2013[2]:
“[…], há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime, ou antes, que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas.”
A Constituição Federal de 1988 redesenhou o papel do Ministério Público com a fixação de garantias e atribuições institucionais aos seus membros, com isso trouxe inúmeras consequências na sociedade e desdobramentos dentro da atual sistemática jurídica brasileira, mormente, pela maior participação do parquet em fatos relacionados a crimes do “colarinho branco” que até então eram pouco ou mesmo não investigados, pois dizem respeito a pessoas de grande poder político e/ou econômico. A partir desse novo contexto no qual o Ministério Público protagonizou a investigação de pessoas consideradas inalcançáveis, que culminaram em ações penais e muitas das vezes, em uma condenação; levantaram-se questionamentos nos tribunais acerca da possibilidade do órgão ministerial poder, per se, levar à frente investigações criminais (GRECO, 2014).
6 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E LEGAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
A grande celeuma sobre a possibilidade jurídica do Ministério Público poder realizar a investigação criminal gira em torno do art. 144, inciso IV e § 4º, da Constituição Federal de 1988. Tucci (2004, p. 12) dispõe que de um lado existe a interpretação restritiva na qual estabelece que a investigação criminal seja atribuição exclusiva da polícia judiciária. De outro modo, há a interpretação extensiva a esse mesmo dispositivo constitucional, pois, entende-se que tal mister é cabível não apenas a polícia judiciária, mas também a outros órgãos, inclusive ao Ministério Público.
A corrente a qual defende que o Ministério Público poderá levar à frente a investigação criminal menciona que tal prerrogativa está prevista nos arts. 127, caput e 129, ambos da Constituição Federal de 1988. No plano infraconstitucional encontra guarida no art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal[3].
Reis e Gonçalves (2012) dispõem que, o art. 144, da CF/88, que trata da segurança pública e especifica quais órgãos são responsáveis por ela, a intenção do constituinte originário não foi conceder monopólio para a consecução da investigação criminal as policias Civil e Federal. Na verdade, o que houve foi apenas a delimitação das funções de polícia judiciária, pois a polícia federal ficou a cargo das infrações penais que envolvem interesse da União, de forma residual, as demais infrações ficaram sob a responsabilidade das polícias civis dos Estados e do Distrito Federal.
Conforme Capez e Colnago (2015) outras autoridades administrativas têm respaldo legal para desempenhar a investigação. A título de exemplo, pode-se citar: a Receita Federal atrelada ao Poder Executivo, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Poder Legislativo, bem como, as investigações realizadas pelo Poder Judiciário quando estão apurando infrações de seus próprios membros, desse modo, a atividade investigativa não fica atrelada apenas à polícia. Portanto, não seria condizente com a Carta Constitucional retirar do Ministério Público a possibilidade de investigar infrações penais, tendo em vista o que está disposto no art. 129, da Lei Maior, especialmente no tocante ao inciso IX que prevê que o parquet poderá exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, ou seja, esse dispositivo elenca um rol meramente exemplificativo. Lenza (2009, p. 613) aduz que:
“A possibilidade de investigação pelo MP decorreria de sua atribuição de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (art. 129, I), assim como das atribuições estabelecidas nos incisos VI e VIII do art. 129, CF/88, apresentando-se como atividade totalmente compatível com as sua finalidades institucionais.”
Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p. 230) ensinam que:
“O Ministério Público é, na sociedade moderna, a instituição destinada à preservação dos valores fundamentais do Estado enquanto comunidade. Define-o a Constituição como “instituição” permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’ (art. 127).”
Portanto, extrai-se do art. 127, CF/88, a finalidade institucional do Ministério Público que se consubstancia na proteção do sistema jurídico. Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p. 230) arrematam que: “Esses valores recebem a atenção dos membros do Parquet, seja quando estes se encarregam da persecução penal, deduzindo em juízo a pretensão punitiva do Estado e postulando a repressão ao crime (pois este é um atentado aos valores fundamentais da sociedade), […]”
O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) foi inserido no cenário jurídico por meio da emenda constitucional 45/2004 (reforma do judiciário) que acrescentou o art. 130-A na CF/88. Dentre várias atribuições, foi conferida ao CNMP a prerrogativa de editar atos regulamentares a fim de zelar pelas atribuições conferidas ao Ministério Público. Desse modo, foi expedida a resolução de nº 13, de 02 de outubro de 2006, que regulamenta o art. 8º da Lei Complementar 75/93 e o art. 26 da Lei n.º 8.625/93, disciplinando no âmbito do Ministério Público a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal. Portanto, existe uma regulamentação disposta a dar legitimidade ao Ministério Público para proceder à investigação criminal, conforme dicção do art. 1º[4] da referida resolução.
Assim expõe Santin (2007, p. 246):
“Se as investigações criminais forem insuficientes para embasar a denúncia penal, o encargo constitucional será inócuo. É um grande contra-senso garantir privativamente o exercício da ação penal e impedir o desempenho de atos investigatórios. A investigação prévia é acessória; a ação penal, principal. Quem pode o mais (promover a ação penal), pode o menos (fazer investigação criminal). (grifo nosso)”
Ressalte-se que o inquérito policial é um procedimento administrativo no qual é dispensável, portanto, a ação penal poderá ser proposta pelo órgão de acusação com base em outros elementos informativos. A Carta Magna, em seu art. 129, autoriza ao Ministério Público a realizar o inquérito civil que servirá para subsidiar a ação civil pública; bem como, a proceder na expedição de notificações, requisição de informações e documentos. Lima (2016), caso o parquet durante uma investigação em sede de inquérito civil se depare com alguma infração de natureza penal em que já possua elementos suficientes para a propositura de uma ação penal de natureza pública, poderá oferecer denúncia com base no procedimento administrativo preliminar elaborado em sede ministerial.
7 POSICIONAMENTO CONTRÁRIO À ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.
Noutro giro, Tucci (2004) ensina que há entendimento no qual o Ministério Público não pode fazer a investigação criminal, tendo em vista ser prerrogativa da polícia judiciária insculpida pelo constituinte originário no art. 144, inciso IV e § 4º, da CF/1988. A Constituição Federal outorgou ao órgão de acusação, apenas, a possibilidade de requisitar a instauração de inquérito policial e a consecução de diligências, cabendo-lhe também, fiscalizar a atividade policial por meio do controle externo.
Nesse diapasão, Silva (2013) aduz que a figura do promotor investigador sofre severas críticas, entre as quais, a falta de estrutura e de pessoal especializado para conduzir a investigação, além do mais, ele poderá escolher o que investigar delegando a polícia judiciária somente o que melhor lhe aprouver.
Asseveram Lopes Jr. e Jacobsen G. (2013, p. 164): “A prática demonstra que o promotor não é mais que um órgão acusador e, como tal, uma parte parcial que não vê mais que uma direção. Por sua própria índole, está inclinado a acumular exclusivamente provas contrárias ao imputado”. O Ministério Público, ao contrário da autoridade policial, é vocacionado a ser parte em um processo, devido às atribuições que lhe foram conferidas pela própria Constituição Federal como defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Desse modo, conceder-lhe superposição em relação à outra parte do processo, sem dúvida, traria prejuízo e desequilíbrio para a atividade da defesa. A fase pré-processual conduzida pela polícia judiciária reveste-se de inquisitoriedade, destarte, disponibilizá-la a cargo do parquet o colocaria em posição de vantagem desequilibrando a paridade de armas que deve ser observada no processo penal.
A falácia que o promotor é imparcial é totalmente desconexa com o atual sistema acusatório, pois este sistema requer do órgão ministerial a sua parcialidade, que ele atue como defensor da sociedade, até para que venha a ocorrer à dialética endoprocessual. Portanto, a dita imparcialidade fica a cargo do juiz ao proferir uma sentença.
Vale ressaltar, que durante todo o procedimento administrativo realizado pela polícia judiciária existe o controle ministerial seja na qualidade de titular da ação penal pública ou atuando como fiscal da lei. Assim, na atual sistemática jurídica ocorre a fiscalização por meio do controle externo (art. 129, VII, CF/88); além do mais, pode requisitar diligências que julgar necessárias (art. 129, VIII, CF/88). Destarte, caso fosse ele mesmo a proceder às investigações diretamente restaria prejudicado esse controle.
Continua a explicação Lopes Jr. e Jacobsen G. (2013, p. 167):
“Atribuir ao MP à direção da investigação preliminar significa dizer que a fase pré-processual não servirá para preparar o processo, informando à acusação, à defesa e também ao juiz, mas que será uma via de mão única: serve somente para a acusação. A defesa deverá diligenciar por si mesma, buscando e recolhendo elementos para convencer o juiz da improcedência da acusação. Se no plano teórico isso seria concebível, no prático é absolutamente impossível, ainda mais se levarmos em consideração que, no Brasil, a maioria dos imputados é pobre, sem condições de contratar os serviços de um advogado e muito menos uma equipe capaz de diligenciar de forma independente.”
Silva (2013), não há uma lei regulamentando a investigação direta pelo Ministério Público eles poderão escolher a seu alvitre quais situações investigar. Ao contrário, a polícia judiciária, por imposição legal do art. 5º, do CPP, deve investigar qualquer crime de natureza pública e até os crimes de ação penal privada desde que haja requerimento do ofendido. O CPP impõe que a polícia judiciária investigue as infrações penais sem da margem de escolha, apenas exigindo-se a observância dos pressupostos legais.
Conforme explanação de Tucci, R. L. (2004, p. 86):
“Tendo-se, necessariamente, presente que as autoridades policiais, assim como os membros do Ministério Público, atuam, normalmente, com zelo e diligência, bem é de ver que a repartição das atribuições estabelecidas para os agentes da persecução penal, presta-se à determinação dos lindes das respectivas atuações, ambas igualmente importantes e necessariamente conjugadas, em prol do resultado visado pelo legislador constituinte, ao diversificá-las. (grifo nosso)”
É apregoada a seguinte máxima “quem pode o mais, pode o menos” (teoria dos poderes implícitos), se o Ministério Público pode o mais que é promover a ação penal, consequentemente, poderá o menos que é fazer a investigação criminal. Segundo Silva (2013) esse raciocínio dissemina a ideia que investigar é menos que acusar, mas tal entendimento não procede na medida em que são funções igualmente importantes que se somam. O constituinte originário separou, para órgãos distintos, as funções de investigar e de acusar para que de certo modo não houvesse a concentração de poderes. O Ministério Público através do controle externo atua fiscalizando o trabalho da polícia, assim, evita-se abusos na atividade investigativa; e a acusação não cumula poderes equilibrando-a com a defesa.
O gerenciamento dos elementos de convicção colhidos no inquérito policial é feito, em regra, pela polícia judiciária, na figura do Delegado de Polícia, que apesar de ter o art. 6º, do CPP disciplinando algumas diligências, conforme Alves (2015) trata-se de rol exemplificativo. Portanto, a autoridade policial, diferentemente do que acontece no processo, pode atuar de forma livre, não existindo na apuração do fato criminoso um procedimento rígido nas diligências a ser observado, basta não violar direitos e garantias asseguradas ao sujeito da investigação, pois este, com a nova filosofia constitucional, deve ser tratado como sujeito de direitos e não como mero objeto da investigação.
Daí surge à necessidade de ter um órgão que desempenhe a investigação, mas de forma desapaixonada, ou seja, vislumbra apenas a apuração do fato e a busca pela verdade real. A contrário senso, o Ministério Público possui essência de órgão acusador, isto é, foi delineado na Constituição Federal de 1988 para atuar como parte do processo, ou seja, órgão eminentemente de acusação.
CONCLUSÃO
O Ministério Público foi elevado na Constituição Federal de 1988, a condição de guardião dos interesses sociais e individuais indisponíveis e titular da ação penal pública. Não existe no ordenamento jurídico brasileiro impedimento legal que proíba a procedência da investigação criminal de forma direta por este órgão. A Carta Magna é favorável ao princípio da universalização das investigações, destarte, não conferiu exclusividade da investigação criminal à polícia judiciária, se assim o fosse, teria mencionado de forma expressa, portanto não foi essa a intenção do constituinte.
Além do mais, ao longo da história, o órgão ministerial tem evoluído no que tange ao cumprimento do seu mister e com a Constituição de 1988 a qual foi apelidada de “Constituição Cidadã” percebe-se através de uma interpretação sistemática a importância que foi conferida ao parquet, pois este é quem foi concebido com intuito de lutar para que haja o respeito do ordenamento jurídico como um todo.
As argumentações que mencionam a irrealizabilidade da investigação criminal por esta instituição são fracas e sem respaldo legal, pois, como já dito, o Ministério Público tutela os interesses da sociedade, portanto deverá prevalecer o interesse público acima de qualquer interesse classista.
Informações Sobre o Autor
Adriano Laurentino da Silva
Policial Civil. Graduado em Direito pela Faculdade Católica Rainha do Sertão. Pós-Graduado em Direito Penal e Processual Penal