Já comentava o escritor Mark Twain que “(…) a história da nossa raça e a experiência de cada um estão cheias de provas de que é fácil matar uma verdade e que uma mentira bem contada é imortal” (2005, p. 146).
Demonstrar-se-á como em nossa literatura e ensino jurídico tem-se espraiado um erro quanto ao denominado “Princípio da Insignificância ou da Bagatela”, mediante a afirmação corrente e praticamente unânime (e já dizia Nelson Rodrigues que “toda unanimidade é burra”) (2013), de que este se estabelece como princípio do Direito, albergado pela doutrina e jurisprudência, mas que não conta com previsão legal alguma em nosso ordenamento jurídico.
Em sua origem mais longínqua o Princípio da Insignificância costuma ser relacionado à máxima de natureza civilista do Direito Romano que afirma “minima non curat praetor”, ou seja, que o juiz não deve ocupar-se com coisas de pequena monta (BITENCOURT, 2012, p. 58). Mas, foi pela pena de Welzel, em meio ao estudo da “adequação social”, que se levantou modernamente pela primeira vez a hipótese de que lesões insignificantes a bens jurídicos poderiam ser excluídas do interesse penal (2001, p. 59). No entanto, coube a Roxin introduzir no cenário da ciência penal o “Princípio da Insignificância” nos idos de 1964 (1972, p. 53). Por seu turno, coube a Klaus Tiedemann burilar a denominação sinônima de “Princípio da Bagatela” (ROXIN, 2003, p. 89).
Fato é que sob a terminologia de insignificância ou bagatela, aponta dito princípio para a possibilidade de exclusão, na maioria dos tipos penais, da ilicitude, considerando a ocorrência de danos de “pouca importância” aos bens jurídicos tutelados. De acordo com o Princípio da Insignificância, “o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas” (TOLEDO, 1994, p. 133).
Em geral essa orientação tem sido acatada na doutrina, na jurisprudência e no dia a dia forense. Não obstante, há uma falsa informação que dá conta de que esse princípio não apresenta previsão legal no Brasil, conforme acontece, por exemplo, “no Código Penal da antiga República Soviética da Rússia, no Código Penal da Tche-coslováquia, no Código Penal Português, no Código Penal Austríaco, no Código Penal Cubano, no Código Penal da República da China e no Código Penal Alemão (art. 3º – não subsiste o crime, se, não obstante a conformidade da conduta à descrição legal de um tipo, as conseqüências do fato sobre direitos e os interesses dos cidadãos e da sociedade e a culpabilidade do réu são insignificantes). Prevêem também disposições semelhantes: o Código Penal Polonês, o Código Penal da Bulgária e o Código Penal da Romênia” (QUEIROZ,1998,p.125).
É exemplo de manifestação doutrinária nesse sentido equivocado a afirmação de Silva Júnior de que o Princípio da Insignificância “é um princípio que não existe na legislação penal brasileira, mas que vem sendo admitido, ainda que de maneira tímida pela nossa jurisprudência” (2002, p. 118).
No mesmo diapasão vem à baila o escólio de Mirabete e Fabbrini:
“A excludente de tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem” (2013, p. 102).
Na jurisprudência também tem sido comum a invocação dessa suposta imprevisão do Princípio da Insignificância de modo geral na legislação pátria, inclusive para denegar sua aplicabilidade:
“Por sua vez, também não há que se falar em absolvição por crime de bagatela, posto que no direito brasileiro o princípio da insignificância ainda não adquiriu foros de cidadania, de forma a excluir tal evento da tipicidade penal, sendo irrelevante o fato do bem subtraído ser considerado, para os fins penais, como sendo ínfimo ou desprezível.” (TJSP: 14ª Câmara Criminal, Rel. Des. Fernando Torres Garcia. Apelação Criminal no. 990.08.089790-0, j. 05.03.2009, v.u.)”.
Conforme se vê está disseminada a afirmação de que na legislação brasileira não há previsão legal do Princípio da Insignificância, cuja aplicação se dá apenas por reconhecimento doutrinário – jurisprudencial.
A verdade dessa assertiva é parcial. Se for considerado somente o Código Penal Brasileiro, bem como praticamente todas as legislações penais esparsas, realmente não há um exemplo sequer de previsão do Princípio da Insignificância, o que empresta foros de credibilidade à afirmação genérica acima mencionada muito comumente repetida como numa “Síndrome Jurídica de Papagaio”.
Ocorre que, na realidade, há duas previsões legais expressas do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico – penal brasileiro. Essas duas previsões são encontráveis no Código Penal Militar ao tratar dos crimes de lesões corporais e de furto.
O artigo 209, § 6º., do CPM estabelece que:
“No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração somente como disciplinar”.
Já o artigo 240, § 1º., do CPM assim determina:
“Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar” (grifo nosso, porque é nessa última figura que se encontra a expressão da insignificância, sendo as anteriores descritivas do chamado furto privilegiado).
É visível que nesses dois casos o legislador considerou a insignificância para afastar o caso do Direito Penal e remetê-lo ao Direito Administrativo Disciplinar.
Esse fato não passou incólume pela observação dos estudiosos especializados no Direito Castrense:
Loureiro Neto identifica nos casos acima a presença do Princípio da Insignificância legislado, asseverando ser inequívoca “a sua incidência” para os crimes militares, “por disposição expressa no Código Penal Militar” (2010, p. 190 – 191).
Pela mesma senda caminham Neves e Streifinger afirmando que na lesão corporal “houve pela lei penal militar a positivação do princípio da insignificância” (2012, p. 1008), assim como também há sua manifestação no caso do § 1º., “in fine”, do artigo 240 do CPM (furto) (2012, p. 1157).
Igualmente, em estudo específico sobre o Princípio em destaque, chega à mesma conclusão Ivan Luiz Silva (2009, p. 136).
Dessa forma comprova-se, infelizmente, que o erro é fecundo e quando é disseminado acaba se transformando em hábito e norma (TELLES JÚNIOR, 2004, p. 109). Não por outro motivo é que tem sido repetida a lição de que não existe previsão legal alguma do Princípio da Insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, quando, na verdade, há duas previsões legais claras no bojo do Código Penal Militar, conforme acima demonstrado.
A lição correta é, portanto, que na legislação comum realmente até o momento não há qualquer previsão expressa do Princípio da Insignificância, embora este seja doutrinária e jurisprudencialmente reconhecido e aplicado. No entanto, há que lembrar a existência de duas exceções positivadas no Código Penal Militar, conforme acima mencionado.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 1. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.