1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente estudo é avaliar, apenas na superfície, os termos da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (que doravante chamaremos de ISS) e seus impactos no plano municipal. Não está ao nosso alcance fazer grandes digressões no campo do Direito Tributário, no entanto, faremos alguns comentários, artigo por artigo, comparando-os, inclusive, com os dispositivos revogados do conhecido Decreto-Lei 406/68.
A Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, vigente desde sua publicação em 01/08/2003, trouxe algumas modificações para o imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza estabelecido no art. 156, II da CR/88. O §3º do art. 156 do CR/88 ordena que uma lei complementar iria dispor sobre três questões relevantes que são: (1) a fixação de alíquotas máximas e mínimas, (2) a exclusão das exportações de serviços da incidência do imposto e (3) a forma e condições em que isenções, incentivos e benefícios fiscais seriam concedidos.
Lamentavelmente a LC 116/03 não cumpre o mandamento constitucional, pois a lei é omissa quanto à fixação de alíquotas mínimas e quanto às formas e condições em que isenções, incentivos e benefícios fiscais seriam concedidos. A imposição de alíquotas mínimas e a regulamentação dos benefícios fiscais envolvendo o ISS eram medidas indispensáveis ao controle da guerra fiscal que se estabelece, principalmente, nas regiões metropolitanas brasileiras, onde grandes bancos, seguradoras e empresas de vigilância prestam serviços na capital e se estabelecem, juridicamente, em cidades satélites, onde a alíquota é, em alguns casos, até 10 vezes menor.
O silêncio eloqüente do Legislador nos remete a intenção velada de não acabar com a guerra fiscal, pois dela beneficiam-se, certamente, inúmeros grandes prestadores de serviços, entre eles grandes bancos e empreiteiras.
Além desta omissão lamentável, a LC 116/03 mostra-se tímida e destinada a não mudar muita coisa no cenário deste imposto municipal que, aliás, é o único imposto do município que incide sobre a atividade econômica propriamente dita.
2. DESENVOLVIMENTO
Vejamos algumas modificações:
Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
O caput do art. 1º repete o caput do art. 8º do Decreto-Lei 406/68[1], ora revogado, acrescendo, no entanto, (1) a competência ao Distrito Federal para instituição e cobrança do ISS em seu território e a (2) prescindência da atividade de serviços preponderante para fins de incidência tributária do ISS. Quanto à primeira diferenciação, apenas repete o contido no art. 147 da CR/88. Quanto a segunda diferenciação, é salutar na medida que orienta o destinatário principal da norma, o sujeito passivo, no sentido de que o imposto é devido mesmo que este não preste serviços regularmente.
§ 1º O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País.
Segundo o §1º do art. 1º, nos casos em que o imposto é devido no local da prestação do serviço (art. 3º, I a XXII) e o estabelecimento do prestador se localiza no exterior, haverá a incidência tributária, sendo que o imposto só será cobrado, obviamente, nos casos de substituição tributária (art. 6º).
§ 2º Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
O §2º repete a soma dos §§ 1º e 2º do art. 8º do DL 406/68, no entanto, não há mais a menção quanto a tributação das mercadorias fornecidas com serviços não constantes da lista, até porque este não é assunto afeto à legislação específica do ISS, sendo assunto próprio das normas tributárias do ICMS.
§ 3º O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.
A disposição quanto à incidência do imposto nos casos de serviços da lista prestados mediante a utilização de bens públicos é bastante clara, no entanto, a disposição seguinte, referente aos serviços públicos, está mal redigida. Entendemos que o sentido é que mesmo que os serviços da lista sejam serviços públicos stricto sensu, uma vez prestados indiretamente pelo particular, será hipótese de incidência tributária, mediante a condição, ainda, de que os serviços sejam explorados economicamente por meio de tarifa ou pedágio.
§ 4º A incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado.
O dispositivo orienta a interpretação da lista de serviços admoestando o intérprete de que a identificação de uma atividade como constante da lista se dá pela investigação de sua natureza e não pela sua denominação.
Art. 2º O imposto não incide sobre:
I – as exportações de serviços para o exterior do País;
O inciso I vem em cumprimento ao inciso II do §3º do art. 156 da CR/88, com redação pela EC nº 03/93. Como já foi dito acima, dos três incisos do §3º do art. 156 da CR/88, somente o inciso II foi cumprido na LC 116/03. A ironia é que este era o único dispositivo que dispensava cumprimento formal, pois o simples fato de a Constituição dizer que a lei complementar deverá excluir da incidência do ISS, as exportações de serviços, já impediria, por si só, a cobrança do ISS nestes casos. Ou seja, teria sido mais producente se a própria EC nº 03/93 tivesse excluído a incidência do ISS nas exportações de serviços, já que a não-incidência já tem assento constitucional, como se vê no art. 150, VI.
II – a prestação de serviços em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, dos diretores e membros de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados;
O inciso II tem o mesmo conteúdo axiológico do parágrafo único do art. 10 do DL 406/68[2]. No entanto, o critério de exclusão foi modificado: o DL 406/68 excluía o contribuinte que prestasse serviços em relações de emprego e relações institucionais, do rol dos sujeitos passivos do ISS, enquanto que a LC 116/03 exclui a hipótese do rol de incidência do imposto.
III – o valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras.
Os incisos I e II tratavam das hipóteses de não incidência do ISS, listando duas atividades sobre as quais o imposto não poderia ser cobrado. O inciso III, no entanto, procura impedir que determinados valores relacionados a serviços tributados com o ISS sirvam de base de cálculo do imposto. É só o que se pode deduzir da expressão “o imposto não incide sobre valores…”. Os impostos não incidem sobre valores, incidem sobre hipóteses fáticas tipificadas em lei como bastantes para fazer surgir o foco tributante. Parece ser que alguém ficou temeroso de que os valores intermediados nos mercados de títulos, os valores de depósitos bancários e os valores das operações de créditos fossem utilizados como base de cálculo, e resolveu inserir aí no art. 2º o impedimento para tanto. Se foi este o intento, melhor teria sido inserir a proibição no art. 7º, que trata da base de cálculo do ISS.
Parágrafo único. Não se enquadram no disposto no inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.
Não fosse este dispositivo e o contribuinte poderia faturar o serviço contra uma filial do tomador no exterior, mesmo beneficiando-se aqui do serviço prestado, deixando assim de pagar o tributo.
Art. 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1º do art. 1º desta Lei Complementar;
II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa;
III – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e 7.19 da lista anexa;
IV – da demolição, no caso dos serviços descritos no subitem 7.04 da lista anexa;
V – das edificações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.05 da lista anexa;
VI – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, no caso dos serviços descritos no subitem 7.09 da lista anexa;
VII – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, parques, jardins e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.10 da lista anexa;
VIII – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores, no caso dos serviços descritos no subitem 7.11 da lista anexa;
IX – do controle e tratamento do efluente de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos, no caso dos serviços descritos no subitem 7.12 da lista anexa;
X – (VETADO)
XI – (VETADO)
XII – do florestamento, reflorestamento, semeadura, adubação e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.16 da lista anexa;
XIII – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.17 da lista anexa;
XIV – da limpeza e dragagem, no caso dos serviços descritos no subitem 7.18 da lista anexa;
XV – onde o bem estiver guardado ou estacionado, no caso dos serviços descritos no subitem 11.01 da lista anexa;
XVI – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados ou monitorados, no caso dos serviços descritos no subitem 11.02 da lista anexa;
XVII – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda do bem, no caso dos serviços descritos no subitem 11.04 da lista anexa;
XVIII – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e congêneres, no caso dos serviços descritos nos subitens do item 12, exceto o 12.13, da lista anexa;
XIX – do Município onde está sendo executado o transporte, no caso dos serviços descritos pelo subitem 16.01 da lista anexa;
XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista anexa;
XXI – da feira, exposição, congresso ou congênere a que se referir o planejamento, organização e administração, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.10 da lista anexa;
XXII – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou metroviário, no caso dos serviços descritos pelo item 20 da lista anexa.
O art. 3º acaba com a discussão quanto ao local de prestação do serviço e o local onde é devido o imposto. Na sistemática anterior a lei dizia (art. 12)[3] onde se considerava o local da prestação do serviço, mas não dizia que no local da prestação do serviço o imposto seria devido, dando margem ao argumento de que o imposto não seria devido no local da prestação do serviço, mas no local onde foi concretizado o fato gerador, posição polêmica defendida por alguns renomados tributaristas e que acabou pacificada no STJ[4]. Agora a disposição é expressa: o imposto é devido no local do estabelecimento prestador do serviço, ou, na falta, no domicílio do prestador, com exceção feita aos incisos I a XXII do art. 3º, em que o imposto será devido nos locais lá indicados. Segundo o inciso I, os serviços provenientes do exterior serão tributados no município onde está o estabelecimento do tomador dos serviços ou, não havendo, o município onde é o domicílio do próprio tomador. O imposto será devido no local da prestação do serviço nos casos dos incisos II a XIX, XXI e XXII. No caso de cessão de mão-de-obra do item 17.05 da lista, o serviço será devido no município onde se localizar o estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, não havendo, no município onde é o domicílio do próprio tomador, segundo dicção do inciso XX.
§ 1º No caso dos serviços a que se refere o subitem 3.04 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza, objetos de locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não.
§ 2º No caso dos serviços a que se refere o subitem 22.01 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de rodovia explorada.
§ 3º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no local do estabelecimento prestador nos serviços executados em águas marítimas, excetuados os serviços descritos no subitem 20.01.
Os §§ 1º e 2º tratam de serviços cuja prestação ocorre em relação a estradas, dutos, condutos e outros elementos que ultrapassam os limites municipais. Em se tratando do §1º, no caso, por exemplo, da locação de uma rede de dutos de uma companhia de telefonia para uma companhia de tevê por cabo, rede esta que passe em vários municípios, considerar-se-á ocorrido o fato gerador em todos os municípios em cujos territórios passar a rede de dutos. Como o fato gerador ocorrerá, ex lege, em todos os municípios, o sujeito passivo deverá recolher o tributo em todos eles, no entanto, não poderá ser submetido a bi-tributação. Para se identificar qual a cota-parte de cada sujeito ativo desta relação tributária múltipla é mister aplicar o contido no §1º do art. 7º.
A hipótese do §2º já não é tão truncada quanto a hipótese do §1º, uma vez que para os serviços de exploração de rodovia mediante cobrança de preço ou pedágio, ainda está em vigor os §§ 4º a 6º do art. 9º do DL 406/68[5]. Assim, o imposto será calculado sobre a parcela do preço correspondente à proporção direta da parcela da extensão da rodovia explorada, no território do Município, ou da metade da extensão de ponte que una dois Municípios.
O §3º prevê que o ISS incidente sobre serviços prestados em águas marítimas será devido no município onde estiver o estabelecimento do prestador. A utilização da expressão “águas marítimas” não nos parece um bom critério, pois os serviços prestados em baías, canais e foz de rios (que sofrem a afluência das águas do mar) podem ser entendidos como prestados em águas marítimas ou não. Isto permitirá que municípios estabelecidos fora da zona terrestre da linha costeira venham disputar a instalação do estabelecimento de grandes prestadores de serviços de reboque de embarcações, atracação, desatracação, praticagem, capatazia, armazenagem, movimentação de mercadorias, apoio marítimo, armadores, estiva, conferência, logística e congêneres (Item 20.1), em evidente prejuízo aos municípios litorâneos.
Art. 4º Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.
Para evitar a prática tão comum até os dias de hoje, de empresas se instalarem juridicamente em “paraísos fiscais de ISS” e efetivamente estarem estabelecidas numa grande centro, o art. 4º procurou firmar um critério para interpretar o que seja “estabelecimento prestador”. Segundo o dispositivo, será estabelecimento prestador aquele em que o contribuinte desenvolve a atividade, independente de que denominação tenha dado ao estabelecimento.
Na sistemática anterior o art. 12 do DL 406/68[6] definia o local prestador pelo estabelecimento do prestador. Havia, no entanto, controvérsia quanto ao que seria o estabelecimento do prestador. Na nova sistemática é o inverso, ou seja, define-se o estabelecimento do prestador segundo o local onde se desenvolve efetivamente a atividade.
Art. 5º Contribuinte é o prestador do serviço.
Art. 6º Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais.
§ 1º Os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte.
§ 2º Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são responsáveis:
I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País;
II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12, 7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa.
O caput art. 5º repete o caput art. 10 do DL 406/68. O art. 6º também não é novo na sistemática legal do ISS, uma vez que o art. 128 do CTN já permitia a instituição da responsabilidade tributária. A novidade fica por conta da responsabilidade tributária direta instituída no §2º. Ali fica instituída a responsabilidade tributária do tomador ou intermediário nos serviços provenientes do exterior e numa série de serviços previamente listados. Caso o município queira dispensar, por lei, os serviços referidos do instituto da responsabilidade tributária, não poderá, o que se constitui num impedimento de duvidosa constitucionalidade.
Art. 7º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.
O caput deste artigo repete o caput do art. 9º do DL 406/68 que, aliás, não foi expressamente revogado pela LC 116/03. Os §§ 1º a 3º do art. 9º tratam da possibilidade de diferenciação de alíquotas, que poderão ser fixas ou variáveis, nos casos de serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte. Tratam, ainda, da possibilidade de tal benefício ser estendido a sociedades dos profissionais referidos no parágrafo anterior (profissionais liberais). A LC 116/03 poderia ter disciplinado esta que é uma das questões mais polêmicas envolvendo o ISS. Justamente por ser polêmica é provável que alguns pusilânimes parlamentares tenham resolvido passar ao largo e acabaram por manter incólume o art. 9º do DL 406/68.
Ocorre que a não revogação expressa do art. 9º não assegura, per si, que o mesmo continue vigente no sistema jurídico. É que o §1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4/09/1942) prevê que a lei posterior revoga a anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Diz o dispositivo mencionado:
Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Como se vê, a lei posterior irá revogar a anterior em três hipóteses:
(1) Quando expressamente o declare: é o caso dos dos arts. 8º, 10, 11 e 12 do Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968; os incisos III, IV, V e VII do art. 3º do Decreto-Lei nº 834, de 8 de setembro de 1969; a Lei Complementar nº 22, de 9 de dezembro de 1974; a Lei nº 7.192, de 5 de junho de 1984; a Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987; e a Lei Complementar nº 100, de 22 de dezembro de 1999, todos citados no art. 10 da LC 116/03.
(2) Quando seja com ela incompatível: não podemos dizer que a LC 116/03 é, em algum de seus dispositivos, incompatível com o disposto no art. 9º do DL 406/68, portanto, não há, a priori, revogação por incompatibilidade.
(3) Quando a lei posterior regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior: é justamente o caso em tela, pois a LC 116/03 vem Dispor sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dar outras providências, como anunciado em sua ementa. Analisando o texto da LC 116/03 vimos que o legislador não pretendeu alterar o ISS de que tratava o DL 406/68, antes, quis trazer à baila uma nova lei complementar sobre o tema do ISS. Mais mal do que bem o legislador tratou, na LC 116/03, de fato gerador, não-incidência, competência tributária, sujeito passivo e ativo, substituição tributária, base de cálculo e alíquota, ou seja, o legislador regulou inteiramente a matéria relativa ao ISS na LC 116/03, configurando a hipótese descrita na terceira parte do §1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, e dando ensejo à revogação a toda a matéria sobre ISS no DL 406/68, sem que se possa alegar a preservação do art. 9º pela falta de sua revogação expressa.
É evidente que o intento legis foi o de preservar o art. 9º do DL 406/68, no entanto, também é evidente que o intento dos legisladores, à luz do disposto no §1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, não poderá prosperar, por expressa menção de uma norma que faz muito mais do que introduzir o Código Civil, sendo verdadeiro diploma sobre a aplicação da lei pátria no tempo e no espaço.
Entendemos, portanto, que em relação ao art. 9º do DL 406/68 ocorreu a revogação por atração, pela LC 116/03, de toda a matéria dispondo sobre ISS, na forma do §1º do art. 2º do DL nº 4.657/42.
Com esta revogação fica extirpada de nosso sistema jurídico a possibilidade de diferenciação de alíquotas nos casos de serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte e a extensão deste benefício às sociedades de profissionais liberais.
§ 1º Quando os serviços descritos pelo subitem 3.04 da lista anexa forem prestados no território de mais de um Município, a base de cálculo será proporcional, conforme o caso, à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada Município.
O §1º do art. 7º é complemento obrigatório do contido no §1º do art. 3º. Quanto a este último fazemos remissão ao comentário daquele outro.
§ 2º Não se incluem na base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza:
I – o valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços previstos nos itens 7.02 e 7.05 da lista de serviços anexa a esta Lei Complementar;
O dispositivo visa excluir da base de cálculo os materiais fornecidos na prestação de serviços de execução de obras de construção civil e reformas, conforme alguns acórdãos já vinham reconhecendo[7].
Art. 8º As alíquotas máximas do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza são as seguintes:
I – (VETADO)
II – demais serviços, 5% (cinco por cento).
A CR/88, no §3º, I, do art. 156, obriga que a lei complementar que venha tratar do ISS estabeleça a alíquota mínima do ISS. O Congresso Nacional ignorou solenemente a advertência constitucional e, certamente dobrando-se aos lobbys dos grandes prestadores de serviços (estabelecidos nas capitais e beneficiados com a guerra fiscal nas regiões metropolitanas), resolveu estabelecer apenas as alíquotas máximas.
A fixação da alíquota mínima tem função de preservar o Erário Público Nacional dos maus gestores públicos que diminuem abusivamente as alíquotas do ISS para atrair aqueles que estão localizados nos grandes centros. Esta atitude deixa frágil o fisco dos grandes centros e acaba por produzir vantagens indevidas ao setor de serviços, em detrimento da captação de tributos pela Federação como um todo. Já a fixação de alíquotas máximas tem por objetivo preservar o contribuinte dos abusos quanto ao poder de tributar. Como se vê, o Congresso Nacional primou pela defesa do contribuinte do ISS, cujos maiores expoentes são bancos e empreiteiras, e deixou à mingua o interesse do Erário Público, do qual dependem aqueles que tem na assistência do Estado o seu único meio de sobrevivência. Portanto, a LC 116/03 é de forte índole liberal e marcada pelo descaso com relação ao interesse geral.
3. CONCLUSÃO
O que faz espécie ao operador do direito, quando se debruça sobre a LC 116/03, é o descumprimento de comandos preceptivos constitucionais, tanto os de fazer como de deixar de fazer. Que o legislador nacional descumpra os princípios da Constituição na atividade legislativa, até aí já estávamos acostumados, ainda que isto seja um mal gravíssimo, pior do que descumprir comando constitucional de conteúdo objetivo. No entanto, ver o Poder Legislativo descumprir disposições categóricas e que saltam aos olhos, aí realmente é de por medo em qualquer cidadão. Medo que a Constituição passe a ser mera peça decorativa e que grupos econômicos passem a ditar os rumos do Estado através de sua promíscua atuação junto a um número (majoritário) de parlamentares.
A LC 116/03 já nasce sem legitimidade. A inclinação de seus termos aos interesses dos grandes grupos prestadores de serviços é evidente e, neste caso, ou é provocada de forma indevida e repugnante ou é mera coincidência, para aqueles que nela acreditam. Não é o nosso caso.
Informações Sobre o Autor
Manolo Del Olmo
Advogado, Especialista em Direito Administrativo pela FURB/SC e em Administração Pública Municipal pela FEAD/MG, Professor da Graduação e da Pós-Graduação da UNIVILLE (Direito Administrativo). Ex-Procurador Jurídico Municipal.