O contrato, fonte da obrigação, tem em seu cerne, como elemento nuclear, indispensável à própria existência, a vontade humana, que sendo livre e soberana, concede a cada um de nós a liberdade de contratar.
A idéia de autonomia da vontade “está estritamente ligada a idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito.”1
Consiste, assim, a autonomia da vontade, no poder de auto-regulamentação dos interesses próprios, ou seja, no poder que os sujeitos de direito possuem de ditar as regras de seus interesses particulares, em suas recíprocas relações.
Instrumento da movimentação de riquezas numa sociedade, o contrato calcou sua base teórica no liberalismo econômico do século XIX, no sentido de que cada indivíduo dispusesse da maior independência possível para se auto-obrigar nos limites que desejasse, ficando apenas vinculado à observância de um princípio inatacável: pacta sunt servanda.
Figuram, pois, dentre os princípios donde se origina o contrato o de sua força obrigatória e da autonomia da vontade. Este, como dito, manifesta-se na liberdade conferida às pessoas de firmar suas avenças livremente e aquele traduz-se na regra de que o contrato faz lei entre as partes, ou seja, uma vez regularmente celebrado, impõe-se o cumprimento de suas cláusulas como se essas fossem preceitos legais imperativos, apresentando, destarte, força vinculante.
O direito, no entanto, não é estanque. As modificações ocorridas na sociedade trouxeram a reboque a necessidade da implementação do equilíbrio contratual. Imposição lógica deste fenômeno foi uma nova teorização dos contratos. Houve, por assim dizer, uma socialização dos mesmos. A lei passou a assumir caráter mitigador da autonomia da vontade, protegendo determinados interesses, valorizados pela confiança e boa-fé.
É o intervencionismo estatal que, embora não tenha aniquilado o conceito tradicional da autonomia da vontade, passou a limitá-lo. A liberdade dos contraentes sofreu considerável redução, no sentido de que se subordinam, hoje, à prevalência e preponderância do interesse social sobre o particular.
Esse dirigismo contratual justifica-se, no dizer do Professor Caio Mário da Silva Pereira, “na convicção de que o Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivo, seja com a adoção de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça.” E arremata o mestre civilista: “O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das idéias dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em benefício do princípio da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado esforço, e tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a “publicação do contrato”. Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade de fazê-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresariais; a regulamentação dos meios de produção e distribuição e sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobres os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela intenção das partes, já que a vontade destas obrigatoriamente tem de submeter-se àquele.” 2
Disto resulta que, aos tradicionais princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, não mais se destina o sentido absoluto que outrora possuíam, sendo manifestamente aceita, em determinadas situações, a intervenção judicial no conteúdo dos contratos e, por conseguinte, a contenção de sua força obrigatória, isto em virtude do dirigismo contratual (interferência do Estado na vida do contrato) e da existência de normas de ordem pública, que não podem ser derrogadas pela vontade das partes, ainda que decorrente de manifestação válida. “O excesso de liberalismo, manifestado pela preeminência do dogma da vontade sobre tudo, cede às exigências da ordem pública, econômica e social, que deve prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade”. 3
Destaque-se que, com isso, não se está a elidir a aplicação do brocardo pacta sunt servanda , mas, tão-somente, a conter abusos e excessos que não raras vezes fazem-se veementemente presentes nas relações contratuais.
O germe desta nova maneira de se interpretar os contratos surgiu com a teoria da imprevisão, consubstanciada na cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual presume-se estarem os contratantes adstritos ao rigoroso cumprimento do pacto desde que as circunstâncias ambientes se conservem inalteradas no momento da execução, idênticas às que vigoravam no da celebração.
Sobre tal instituto leciona Orlando Gomes: “Na justificação moderna da relatividade do poder vinculante do contrato, a idéia da imprevisão predomina. Exige-se que a alteração das circunstâncias seja de tal ordem que a excessiva onerosidade da prestação não possa ser prevista. Por outras palavras, a imprevisão há de decorrer do fato de ser a alteração determinada por circunstâncias extraordinárias. As modificações por assim dizer normais do estado de fato existente ao tempo da formação do contrato devem ser previstas, pois, constituem, na justa observação de RIPERT, uma das razões que movem o indivíduo a contratar, garantindo-se contra as variações que trariam insegurança às suas relações jurídicas. Quando, por conseguinte, ocorre a agravação da responsabilidade econômica, ainda ao ponto de trazer o contratante muito maior onerosidade, mas que podia ser razoavelmente prevista, não há que se pretender a resolução do contrato ou a alteração do seu conteúdo. Nesses casos, o princípio da força obrigatória do contrato conserva-se intacto. Para ser afastado, previsto é que o acontecimento seja extraordinário e imprevisível. Mas não basta. Necessário ainda que a alteração imprevisível do estado de fato determine a dificuldade de o contratante cumprir a obrigação, por se ter tornado excessivamente onerosa a prestação. A modificação quantitativa da prestação há de ser tão vultosa que, para satisfazê-la, o devedor se sacrificaria economicamente. Chega-se a falar em impossibilidade. Pretende-se, até, criar a categoria da impossibilidade econômica, ao lado da física e da jurídica, para justificar a resolução do contrato, mas se a equiparação procedesse, estar-se-ia nos domínios da força maior, não cabendo, em conseqüência, outra construção teórica. A onerosidade excessiva não implica, com efeito, impossibilidade superveniente de cumprir a obrigação, mas apenas dificulta, embora extremamente, o adimplemento. Porque se trata de dificuldade, e não de impossibilidade, decorre importante conseqüência, qual seja a da necessidade de verificação prévia, que se dispensa nos casos de força maior.
Portanto, quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração do estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando conseqüências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada: ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato dependente de futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações.” 4
A inadequação do conceito tradicional de contrato com a realidade dos séculos XX e XXI, exacerbou-se, no entanto, com a explosão e fortalecimento das relações de consumo. Exemplo flagrante deste rompimento com a clássica tradição do direito privado em matéria de contrato é o Código de Defesa do Consumidor.
A velha máxima de que “a parte leu o contrato e concordou com as suas cláusulas, assinando-o de livre e espontânea vontade” não tem mais o condão de torná-lo intangível.
No que pertine às relações de consumo, a normas genéricas dos artigos 1.080 a 1.091 do Código Civil jamais poderão ser lançadas em detrimento da recente lei especial, devendo, em tais casos, quando requerida a revisão judicial do contrato, ser aplicados os preceitos jurídicos que regem as políticas públicas mandatórias da proteção do consumidor, relativizando-se os princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda.
Questiona-se, agora, o que vem a ser o livre consentimento originador do vínculo contratual válido: se apenas a manifestação de vontade ou a manifestação de vontade livre de qualquer espécie de coação ou pressão. Em verdade, a autonomia da vontade, nos dias atuais, só se manifesta de modo válido se o consentimento for realmente autônomo, surgido de uma relação que se demonstre, desde o seu nascedouro, até seu término, paritária a partir da situação fática das partes contratantes. É a chamada teoria da vontade racional.
A todo momento estamos a contratar. Ao sairmos de nossas casas e pararmos o carro no posto para o abastecermos de combustível, estamos contratando. Ocorre, no entanto, que em determinadas circunstâncias, o negócio jurídico querido não surte os efeitos desejados. Acentua o maior de nossos tratadistas, Pontes de Miranda, que: “…freqüentemente, nas relações da vida, a pessoa, ao praticar atos jurídicos, não sabe, precisamente, em que categoria jurídica entram os efeitos que ela tem por fito e se mantém no plano da descrição econômica. Porém isso não basta para se inferir que se querem os efeitos, e não o negócio jurídico. Não só porque os efeitos, que se hão de produzir, dependem das regras jurídicas cogentes, que os deixem incólumes, e só se pode saber quais são essas regras jurídicas depois que se “classifica” o negócio jurídico, como porque há efeitos não-queridos que se produzem conforme seja o negócio jurídico. A denominação, o nome, do negócio jurídico, não importa, – está certo. Mas isso não significa, de modo nenhum, que não importe o negócio jurídico, tal como se delineou o suporte fático. A alusão da vontade aos efeitos somente importa como alusão a conseqüências para se conhecerem as causas: ao querer-se, está-se a encher o suporte fático do negócio jurídico, que será; e não a descreverem-se efeitos. Essas considerações, que são sumamente importantes para a teoria do negócio jurídico, têm escapado aos maiores juristas que trataram da Parte Geral, sempre preocupados com a vontade e os efeitos (= vontade dos efeitos), em vez de atentos – dentro do tempo – a) à vontade, b) ao suporte fático em que ela entre, c) ao negócio jurídico, e d) aos efeitos. A vontade dos efeitos, o querer tais efeitos, é dado fático; passa-se no plano puramente econômico; nem é possível, nesse plano, outra causação que de vontade a efeitos: o que fica entre eles é o jurídico. Daí haver efeitos e não se produzirem efeitos que foram queridos. Se atendemos a isso, os efeitos indicam ou indiciam o negócio jurídico de que se trata; a vontade é a vontade do que, dos efeitos, pode ser produzido, digamos o máximo deles ou o mais importante; portanto, uma vez que só a figura jurídica é que diz o que é que pode produzir-se, a vontade é de negócio jurídico: o que de vontade não se aproveita, porque o efeito querido não se pode produzir, é totalmente estranho ao negócio jurídico, ou agarrado a ele, é marcado, como nulo, ou como anulável, pelas regras jurídicas referentes ao negócio jurídico de que se trata.” 5
Conclui-se, pois, que o juiz, ao interpretar o contrato, não mais deve formar seu convencimento e tirar sua conclusão a partir da simples manifestação de vontade das partes contratualmente declaradas. Deverá, primeiramente, segundo a nova exegese que se impõe, avaliar os efeitos sociais do pacto, e os reais interesses nele existentes.
NOTAS
1Cláudia Lima Marques, 2ª ed., RT, p. 36;
2 em Instituições de Direito Civil, vol. III, 9ª ed., pp 18/20;
3 em Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, 4ª ed., p. 286;
4 em Contratos, Forense, 1989, 12ª ed., pp 41 e 42;
5em Tratado de Direito Privado, Bookseller, Tomo 3, pp 164/165.
BIBLIOGRAFIA
MARQUES, Cláudia Lima contratos no código de defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1995.
PEREIRA, Caio Mário da Silva instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
GOMES, Orlando contratos. Rio de Janeito: Forense, 1989.
MIRANDA, Pontes de tratado de direito privado. São Paulo: Bookseller, 2000.
Nery Jr., Nelson e outros. código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Silva Moreira
Assessor Jurídico do TJ/MA
Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela FGV
Professor do UNICEUMA