Introdução
1. A instituição de mecanismos tendentes a garantir o adimplemento de obrigações contratuais é uma característica marcante dos relacionamentos comerciais. Quanto mais rápidas e volumosas as relações de troca que caracterizam o comércio, maior a importância de tais garantias. Além disto, a complexidade crescente das operações comerciais faz com que estes mecanismos de garantia – sejam eles reais ou pessoais – tornem-se cada vez mais complexos, fruto do espírito sempre inventivo da prática jurídica.
O estudo dos mecanismos de garantia – convencionais e legais – é de grande utilidade neste contexto e merece uma atenção especial de nossa doutrina, assim como uma aplicação meticulosa e sistemática por parte da jurisprudência de nossos tribunais.
O presente artigo tratará de uma garantia legalmente prevista que, a despeito de sua grande importância no comércio, continua pouco conhecida de nossa prática jurídica: o penhor legal em matéria locatícia.
2. No que tange às relações locatícias – comerciais ou não –, o novo Código Civil Brasileiro optou pela manutenção em nosso ordenamento jurídico da seguinte regra, já existente em nosso Código de 1916[1]:
“Art. 1.467. São credores pignoratícios, independentemente de convenção: (…)[2]
II – o dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio, pelos aluguéis ou rendas.”
Tal regra, constitutiva de uma garantia real, foi chamada pela doutrina e jurisprudência de penhor legal.[3]
3. De aplicabilidade mais restrita no campo das locações residenciais (n. 36 e ss., infra), a importância do penhor legal em matéria comercial não pode ser negligenciada; basta pensar em hipóteses corriqueiras como a locação de um prédio para a instalação de uma usina ou unidade fabril, ou, ainda, no caso – recorrente em nossa sociedade – de locação de espaços comerciais em shopping centeres. Em todas estas hipóteses, a garantia instituída pela lei apresenta um interesse inequívoco ao locador: garantir, sem a necessidade do consentimento do locatário, o pagamento do aluguel ou encargos devidos com os bens (máquinas e mercadorias) que guarnecem o imóvel locado.
4. Entretanto, a despeito da inegável importância comercial de uma tal garantia, o penhor legal em matéria locatícia não parece constituir o exemplo mais evidente de eficácia de uma regra jurídica, como já ressaltado por nossa melhor doutrina:[4]
“Na prática do mercado, em tantos anos que nele militamos, como advogado, jamais tomamos conhecimento da homologação judicial do penhor legal, requerida pelo locador em face do locatário”.
A esta observação contrastam as palavras de outro eminente jurista, sobre o penhor legal “cuja importância nem precisa ser lembrada, pela diuturna aplicação que poderá ter na prática”.[5]
5. Esta incomum incongruência entre eficácia econômica de uma regra e sua aplicação prática carece ser compreendida. O que levaria, então, nosso ordenamento jurídico a deixar em segundo plano regra de tão grande utilidade para o desenvolvimento das relações comerciais?
Eis a questão que motiva a elaboração do presente artigo e a busca por uma resposta será feita em dois tempos: em uma primeira parte – sob o título “O penhor legal enquanto garantia locatícia real” (n. I, infra) – analisaremos o regime jurídico próprio a este direito real (sua constituição e seu modo de execução); isto permitirá, em uma segunda parte, procedermos à aplicação do “penhor legal enquanto garantia em locações comerciais” (n. II, infra), onde será evidenciada toda a utilidade e os limites de aplicação do instituto.
I. O penhor legal enquanto garantia locatícia real
6. A regra do penhor legal foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Código Civil de 1916,[6] em seu artigo 776:[7]
“Código Civil de 1916, art. 776. São credores pignoratícios, independentemente de convenção: (…)
II – O dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis, que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecido o mesmo prédio, pelos alugueres ou rendas.”
Partindo de sua incorporação legislativa, a opção adotada pelo Direito brasileiro foi, como ressalta Clóvis,[8] a de tratar-se de um direito real de garantia,[9] “mais amplo que o simples direito de retenção, e de eficácia maior do que o privilégio pessoal”[10], segundo formulação incorporada por nossa mais autorizada doutrina[11]/[12] e utilizada por nossos tribunais.[13] Em que pese a opção diversa adotada por outros ordenamentos jurídicos,[14] a posição do penhor legal no plano de nossa legislação civil não deixa dúvidas quanto à natureza da garantia no Direito brasileiro: trata-se de direito real, de natureza portanto distinta do privilégio especial mobiliário estabelecido pelo art. 964, inciso VI do Código Civil,[15] que confere ao seu titular um vínculo entre o direito de crédito garantido e os bens móveis do devedor (art. 1.419 CCb. 2002); deste vínculo decorre a prerrogativa própria aos direitos reais de garantia, consistente no “direito de excutir a coisa hipotecada ou empenhada, e preferir, no pagamento, a outros credores” (cf. art. 1.422, CCb. 2002).[16]
7. Inexistindo maiores dúvidas quanto à natureza jurídica do penhor legal em Direito brasileiro, é preciso evidenciar o seu principal traço distintivo: contrariamente às demais espécies de penhor, o fundamento imediato do penhor legal é a lei, e não a vontade das partes.[17]/[18] Daí a fórmula bem fixada em nossa doutrina, segundo a qual “o penhor legal constitui-se independentemente de convenção”.[19] O seu fundamento mediato (razão pela qual a lei o institui) “reside em que esta garantia facilita admitir o inquilino”[20], o que acaba por favorecer o mercado de locações.
8. Uma vez que a lei estabelece tratar-se de um penhor, é preciso analisá-lo dentro do regime normativo desta garantia real. Neste ponto, a sistemática legal impõe certa dificuldade. No campo da disciplina legislativa do penhor no Código Civil de 1916,[21] o penhor legal encontrava-se sistematizado da seguinte forma: em uma Seção I, encontravam-se estabelecidas as “Disposições Gerais” sobre o penhor; em seguida, uma Seção II tratava do Penhor Legal e as Seções seguintes (III e IV) tratavam respectivamente do Penhor Agrícola e da chamada Caução de Títulos de Crédito.[22] Tem-se, portanto que, segundo a lógica empregada pelo Código Civil de 1916, as Disposições Gerais tinham vocação a serem aplicadas a cada uma das três espécies que eram tratadas nas Seções subseqüentes, sendo afastadas somente em caso de previsão distinta pela regra especial.
Este mecanismo de regra geral versus exceção especial não considerava, todavia, a diferença de fundamento entre o penhor legal e o penhor convencional. Como visto (n. 7, supra), o penhor legal é instituído pela lei e não pela vontade das partes, à diferença do penhor convencional. A sua gênese repousa num fato jurídico.[23] Significa dizer que para a sua constituição não há nenhuma concorrência da vontade das partes.[24] Verificada a situação que lhe serve de base, a lei determina pura e simplesmente a existência da garantia.
Por outro lado, todo o enquadramento jurídico do penhor convencional repousa no fato de que as partes decidiram livremente instituí-lo. Isto que permite impor-lhes o princípio segundo o qual o penhor convencional se constitui, em regra, pela transferência efetiva do bem móvel dado em garantia (cf. art. 1.431 CC 2002 n. 9, infra).
Assim, a diferença de fundamento entre o penhor legal e o penhor convencional impõe-lhes um regime jurídico distinto, tornando imprecisa a classificação do segundo como espécie do primeiro. Tanto assim que a primeira classificação estabelecida pela doutrina separa o penhor em duas espécies: o penhor convencional e o penhor legal.[25]
9. O Código Civil de 2002 abriu novos horizontes no que tange à disciplina jurídica do penhor. Além de criar novas espécies de penhor convencional,[26] suprimiu a Seção relativa às “Disposições Gerais”[27] existente no Código anterior. Ademais, reposicionou a disciplina do penhor legal, para tratar desta espécie somente após as regras relativas a todas as espécies de penhor convencional.[28]
Mas a legislação atual foi além. Eliminou a imposição, existente no sistema anterior, de constituição do penhor exclusivamente pela transferência da posse do bem dado em garantia. Como se sabe, tanto no sistema do Código de 1916 (art. 795), como no atual (art. 1.431, caput), fixou-se o princípio segundo o qual a constituição do penhor é feita, em regra, pela transferência efetiva da posse dos bens empenhados:
“Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva[29] da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação.”
Trata-se de regra tradicional em nosso ordenamento jurídico que se apóia em um duplo fundamento: (i) estabelecer uma forma de publicidade da garantia perante terceiros dada a ausência de registro sobre bens móveis; e (ii) evitar a dilapidação ou diminuição da garantia pelo devedor, que resta proprietário dos bens empenhados.[30] Por estas razões, o sistema do Código de 1916, impunha a transferência da posse como única forma de se constituir o penhor, salvo nas hipótese expressamente mencionadas:
“Código Civil 1916, Art. 769. Só se pode constituir o penhor com a posse da coisa móvel pelo credor, salvo no caso de penhor agrícola ou pecuário, em que os objetos continuam em poder do devedor, por efeito da cláusula constituti.”
Com a evolução da sociedade industrial, verificou-se o aumento da importância econômica dos bens móveis,[31] potencializando a sua utilização como garantia. Por outro lado, a crescente utilidade da propriedade mobiliária aumentou o interesse do proprietário em guardar sua posse ao constituir a garantia. Acresça-se a isto que a instituição de registros sob determinados bens móveis viabilizou um novo regime de publicidade da garantia. Estes fatores fizeram com que o Código atual (art. 1.431, p.ú.) alterasse substancialmente o princípio da constituição do penhor pela transferência da posse:
“Código Civil de 2002, Art. 1.431, parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.”
A nova redação do parágrafo único do art. 1.431 do Código de 2002 exclui do nosso direito positivo a imposição que caracterizava o regime anterior: não é mais imposto que “só se pode constituir o penhor com a posse da coisa móvel pelo credor” (cf. redação do art. 769, CC 1916). Tal imposição foi eliminada pelo novo Código. Este indica apenas que, nas espécies de penhor convencional por ele mencionadas (rol ampliado pelas novas espécies incorporadas em 2002), “as coisas empenhadas continuam em poder do devedor”, sem sequer excluir outras hipóteses de constituição do penhor sem transferência da posse. Ainda neste sentido, o novo Código exclui a referência à “cláusula constituti”, antes feita pelo art. 769 do Código de 1916. A menção a esta cláusula fundamentava a constituição dos penhores especiais na transferência fictícia da posse.[32] Com a exclusão da referida menção, tem simplesmente que tais penhores são constituídos independentemente da transferência de posse, sem recurso a qualquer ficção.
Estas alterações indicam o caminho seguido pelo legislador de 2002 na disciplina jurídica do penhor: o novo Código relativizou a regra que impõe sua constituição exclusivamente pela transferência da posse do bem móvel.[33] Retirou-se do sistema a barreira que impedia que outras espécies de penhor pudessem ser constituídas sem a transferência da posse.[34] Este impedimento causava problema ao correto enquadramento do penhor legal, já que este não se encontrava listado na relação à época taxativa do art. 769 do diploma de 1916.
10. A abertura interpretativa feita pelo Código atual convoca a desvendar o regime jurídico do penhor legal, a fim de garantir-lhe aplicabilidade por nossos tribunais. Nenhuma regra jurídica impede que a constituição do penhor legal seja feita antes da transferência da posse dos bens empenhados. Nesta nova sistemática, a constituição da garantia passa a ser regida única e exclusivamente por sua natureza, conforme estabelece sua regulamentação legal específica (arts. 1.467 a 1.472, CC 2002).
Como, então, estas regras prevêem a constituição do penhor legal? É a questão que passamos a enfrentar (item ‘a’, infra), para, em seguida, tratarmos do modo particular de execução desta garantia (item ‘b’, infra).
a) A Constituição do Penhor Legal:
11. Como visto (n. 9, supra), em matéria de penhor convencional, a garantia é constituída, via de regra, pela “transferência efetiva” da posse do bem empenhado em favor do credor pignoratício: as partes firmam um ato jurídico principal e nele estabelecem um direito real acessório[35] para garantir o adimplemento da obrigação assumida. Esta garantia, que tem por objeto um bem móvel, só se constitui quando a posse do bem é transferida de forma efetiva para o credor.
12. Já o penhor legal, não sendo instituído pela vontade das partes, funciona segundo um mecanismo mais complexo, para o qual concorrem, sucessivamente, diversos eventos: tem-se em primeiro lugar a regra legal a impor a garantia real, “independentemente de convenção” (art. 1.467, CCb., supra); em seguida tem-se a situação fática consistente no nascimento da relação de direito obrigacional evocada pela norma – locação de prédio rústico ou urbano;[36] tem-se, em seguida, outra situação fática consistente no inadimplemento da obrigação pelo locatário, ou seja, o não pagamento dos alugueres ou encargos locatícios; a isto, sucedem duas conseqüências previstas pela lei, que são a tomada da posse dos bens pelo locador (art. 1.469) e a homologação do penhor legal pelo juiz (art. 1.471).
Diante desta pluralidade de eventos, em que momento seria constituído este direito real?
13. Em seus Comentários sobre o Código de 1916, Clóvis enfrenta a questão da constituição do penhor legal da seguinte forma:
“Essa tomada de posse é o modo particular de constituir o penhor legal. (…) A tomada de posse corresponde à tradição, elemento constitutivo do penhor convencional”.[37]/[38]
Como se verifica, na linha do Código de 1916, o autor do seu Projeto assimila o processo de constituição do penhor legal àquele do penhor convencional. Desta forma, para o autor acima citado, a constituição do penhor legal requer a tomada de posse da garantia pelo credor.
14. Se este entendimento, que se incrustou na doutrina nacional,[39] permitia uma interpretação do penhor legal coerente com a extinta regra do art. 769 do Código de 1916, ele trazia, todavia, sérios inconvenientes no que tange à mecanismo de atuação da garantia.
Em primeiro lugar, a regra que institui o penhor legal não impõe a transferência da posse dos bens locados como condição para sua constituição. A leitura do art. 1.476 , II do Código é clara: “o dono do prédio rústico ou urbano” (inciso I, parte inicial), é “credor pignoratício, independentemente de convenção”(caput), “sobre os bens móveis, que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecido o mesmo prédio, pelos alugueis ou rendas” (inciso I, continuação). Nenhuma outra condição é exigida para que a relação locatícia seja reforçada pela garantia instituída pela lei. Firmada a locação, o dono do prédio é credor pignoratício.
Como ressalta Carvalho Santos “(…) quis o legislador deixar claro, de modo evidente, que, se em regra tôda convenção, inclusive as que dizem respeito às seguranças reais, funda-se na vontade das partes contratantes, no caso do penhor legal, mesmo sem convenção, tem ele existência, porque seu fundamento está na lei”.[40] Uma vez verificada a situação fática que a lei quer proteger, a garantia deve ser constituída. Neste sentido, o eminente comentador do Código de 2002 apóia-se na doutrina do fato jurídico para anotar que:[41]/[42]
“O penhor legal, como está no texto legal, não depende de convenção. Não é a vontade das partes que o constitui. Ele existe independentemente dela, fundado que está na lei. É bastante que se desenhe o suporte fático para que se tenha por incidente a regra legal”.
E a solução legal não poderia mesmo ser outra. Para que a garantia possa ser eficaz, é preciso que o penhor – por definição, um direito real acessório (n. 5, supra, esp. nota n. 9) – seja constituído junto com a obrigação principal que é garantida. Ora, de nada adiantaria a previsão legal da garantia, se o credor somente pudesse zelar pelos bens que constituem seu objeto após o inadimplemento do devedor (evento que permite ao credor tomar posse dos bens empenhados; art. 1.469, n. 18, infra). Considerando-se – como faz a lei – que a garantia surge quando da formação da relação locatícia, abre-se ao locador a possibilidade de requerer judicialmente, através da ação de seqüestro ou outra medida cautelar inominada (n. 33, infra), a preservação da garantia, em caso de sua diminuição ou dilapidação pelo devedor.
Não bastasse isto, a idéia de que o penhor legal se constitui com a tomada de posse, levaria à constatação de que: ou a garantia real seria criada por um ato privado, no mais das vezes de força, do credor, que tomaria a posse dos bens do devedor (art. 1.469, CC. 2002); ou que, em caso de recurso à autoridade judiciária (art. 1.470 CC. 2002, a contrário, cf. n. 21, infra) a via aberta ao poder judiciário seria dotada de um caráter constitutivo, o que levou nossos mais notórios civilistas a defenderem um impertinente caráter constitutivo da ação de homologação do penhor legal, o que representa uma contradição evidente.[43]
Por todas estas razões, não se pode, em matéria de penhor legal, ver na tomada de posse um ato constitutivo da garantia, como faz grande parte de nossa doutrina. Sendo o penhor legal constituído pela simples ocorrência da situação que a lei protege – constituição da relação locatícia –, constata-se que a tomada de posse é tão somente um ato de execução da garantia.
15. É preciso apontar, todavia, que um outro motivo dificultou a dissociação do penhor legal da regra que impunha a constituição pela transferência de posse. Trata-se do regime jurídico dos bens móveis que guarnecem o prédio locado; mais especificamente da possibilidade de sua alienação pelo locatário.
Ora, se o penhor legal se constitui com o nascimento da relação locatícia, como se poderia admitir que o devedor (que continua na posse dos bens que guarnecem o imóvel locado) pudesse dispor de cada um deles individualmente? Esta possibilidade de disposição dos bens que são objeto da garantia não seria incompatível com o regime do penhor legal aqui defendido?
Este questionamento levou uma parcela da doutrina a admitir uma forma sui-generis de constituição da garantia. Neste sentido, Caio Mário, anota que o penhor legal “existe como mera faculdade conferida ao credor de determinadas obrigações, mas que se converte em garantia real uma vez constituído”[44]. Assim, “não pago o débito, o credor fará a apreensão pessoal de um ou mais objetos em garantia e até o valor da dívida”.[45] A constituição da garantia legal operaria em duas etapas: em um primeiro momento, a ocorrência da situação fática legalmente prevista – nascimento de relação locatícia – faria nascer uma faculdade à garantia em favor do credor dos alugueres; posteriormente, com o inadimplemento da obrigação locatícia, o credor tomaria posse dos bens móveis até o valor da dívida (art. 1.469 CC. 2002), constituindo o penhor. Nossa doutrina processualista também parece ter se aproximado desta idéia: “basta a situação jurídica da hospedagem ou da locação, ou demais hipóteses previstas no texto legal para que o direito do credor à garantia surja”.[46] Assim, enquanto não exercido o direito à garantia pela tomada de posse dos bens móveis, não estaria constituído o penhor legal e o locatário estaria autorizado a dispor de seus bens.
Todavia, para atingir esta finalidade, não é necessário lançar mão desta artificialidade, que peca ao remeter a constituição da garantia (legal) à vontade do credor. É fundamental constatar que o penhor legal tem por objeto “os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecido o mesmo prédio” (cf. art. 1.467, II, CC. 2002). A lei não cria uma garantia sobre os bens do devedor individualmente considerados, mas sim sobre uma universalidade, que como tal, deve ser protegida.[47] Recaindo a garantia sobre uma universalidade, justifica-se então a possibilidade que tem o devedor de dispor de seus bens individualmente considerados, pouco importando que a garantia se encontre previamente constituída. E mais: somente este sistema (constituição prévia à tomada de posse e incidência sobre uma universalidade) é que confere ao credor a possibilidade de tutelar a garantia, opondo-se à sua diminuição por parte do devedor, através do exercício da ação apropriada (n. 33, infra), mesmo antes do vencimento da dívida.
16. Por tudo isto, pode-se concluir que a constituição do penhor legal prescinde da tomada da posse dos bens móveis pelo proprietário do bem locado, solução próxima àquela preconizada pelo direito romano.[48] Tal penhor se constitui com o nascimento da relação locatícia, que a lei visa proteger. A garantia legal ganha em coerência e sua aplicação concreta pode ser compreendida. É o que se passa a demonstrar.
b) As Medidas de Execução do Penhor Legal:
17. Como visto, o penhor legal constitui-se no momento em que nasce a situação fática que a lei visa proteger, isto é, a relação locatícia. Uma vez constituída a garantia real, os bens móveis – que continuam em poder do locatário – servem, por um vínculo real, a garantir o pagamento dos alugueres e encargos locatícios em caso de inadimplemento. Como o penhor legal possui um regime jurídico próprio, o Código Civil consagra a forma como esta garantia será exercida.
18. Após prever o penhor legal locatício em seu art. 1.467, II, o Código Civil estabelece a forma pela qual o locador pode fazer valer a garantia:
“Art. 1.469. Em cada um dos casos do art. 1.467, o credor poderá tomar em garantia um ou mais objetos até o valor da dívida.”
Eis, portanto, o ato por essência de execução do penhor legal: a tomada de posse dos bens pelo credor pignoratício.[49] A própria regra estabelece a condição para que a garantia possa ser executada, qual seja, a existência de uma dívida. Inexistindo dívida, não haverá o valor correspondente a limitar a tomada dos bens, de sorte que a lei não autorizará a tomada da posse.
19. De que forma, então, ocorrerá esta de tomada da posse? Como o penhor legal já se encontra constituído, verificado o inadimplemento do locatário, o credor pignoratício pode opor-lhe o não pagamento para requerer a posse dos bens até o valor da dívida. Na remota possibilidade de receber os bens, o credor deverá entrar com a ação de homologação do penhor legal, de que se falará em seguida (n. 22, infra) e que se encontra prevista no art. 1.471 do Código Civil.
20. Provável, todavia, que o devedor inadimplente não entregue ao credor os bens por este requeridos, impossibilitando a execução da garantia. Cabe, então, ao credor o recurso ao Poder Judiciário, a fim de obter a posse dos bens empenhados. A ação própria para tanto é a medida cautelar de seqüestro, prevista pelo art. 822, inciso I do CPC:
“Art. 822. O juiz, a requerimento da parte, pode decretar o seqüestro:
I – de bens móveis, semoventes ou imóveis, quando lhes for disputada a propriedade ou a posse, havendo fundado receio de rixas ou danificações;”
Inadimplida uma das obrigações decorrentes do contrato de locação (alugueres ou encargos locatícios), o locador tem direito a executar o penhor legal, através da tomada de posse e, como anota Humberto Theodoro Jr., “se o devedor resiste, é lícito ao credor obter o seqüestro judicial para entrar na posse efetiva dos bens e em seguida obter a homologação do penhor”.[50]
Visando à concessão do seqüestro, o locador deverá, nos termos do art. 814 CPC (c/c 823 CPC) trazer ao juiz: prova literal da dívida líquida e certa (art. 814, inciso I); e prova documental (art. 814, inciso II) da ocorrência da disputa de posse prevista pelo art. 822, inciso I do CPC, o que será feito através do contrato de locação, da prova da dívida e da recusa do locador na entrega dos bens.[51] A fim de viabilizar a realização do ato, o credor poderá indicar os bens sobre os quais pretende exercer a garantia, respeitados os limites impostos pela legislação (n. 35 e ss., infra).
Em sua defesa o locatário devedor deverá demonstrar, quanto ao mérito, a inexistência das condições para a inversão da posse dos bens empenhados em favor do credor, isto é: inexistência de relação locatícia a justificar o penhor legal e/ou inexistência da dívida. O mérito da defesa alinha-se assim com o que se encontra previsto para a ação de homologação do penhor legal (art. 875, CPC, n. 22, infra). Todavia, a discussão sobre a violação à regra do art. 1.469, parte final (arrecadação dos objetos até o valor da dívida), deverá ser feita na ação de homologação, através de avaliação judicial (n. 22, infra).
Apesar da apresentação das provas acima mencionadas, “quando ao juiz parecer indispensável”, nos termos do art. 815 do CPC (c/c 823, CPC), será realizada “em segredo e de plano” audiência de justificação prévia. Entendendo estarem presentes os requisitos para a tomada de posse do penhor legal, o juiz determinará o seqüestro dos bens. Ocorrendo a tomada de posse, o credor deve promover a ação de homologação do penhor legal.
21. Mas o Código Civil vai além na busca pela efetividade do penhor legal, mostrando toda a importância que consagra à garantia. Pode ocorrer que o devedor – que tem a posse dos bens – aproveite o tempo necessário à propositura da ação judicial e ao deferimento do seqüestro para inviabilizar a execução da garantia, notadamente através da retirada dos bens do imóvel locado. Para remediar este sério problema e conferir máxima efetividade à garantia real, a lei estabeleceu a seguinte regra:
“Art. 1.470. Os credores, compreendidos no art. 1.467, podem fazer efetivo o penhor, antes de recorrerem à autoridade judiciária, sempre que haja perigo na demora, dando aos devedores comprovante dos bens de que se apossarem”.
Assim, nos casos em que se verifique o periculum in mora (consistente notadamente na possibilidade de diminuição da garantia quando do inadimplemento da obrigação), a lei confere ao credor pignoratício uma “providência de caráter privado”[52]. “A justiça se faz, assim, pelas próprias mãos do credor, na impossibilidade de recorrer, a tempo, à autoridade judiciária”.[53]
Entretanto, mesmo autorizado pela lei a realizar a tomada de posse, o credor poderá encontrar resistência por parte do devedor para arrecadar os bens necessários à garantia da dívida, até seu valor. Os princípios humanos que regem o nosso ordenamento jurídico e o respeito ao princípio da proporcionalidade, impõem limites à atuação do credor na execução do penhor legal por sua própria força. Cabe, então, ao Poder Judiciário, quando acionado, assegurar ao locador o seu direito à tomada dos bens que integram sua garantia, conferindo-lhe a posse o mais rápido possível. Neste caso, a ação cabível é também a medida cautelar de seqüestro (n. 20, supra), mas o periculum in mora a que faz menção o art. 1.470 do Código Civil atrai a incidência do art. 804 do Código de Processo Civil, que possibilita a concessão liminar da medida, que deverá ser utilizada pelo juiz a fim de garantir a efetividade do penhor legal. Como a medida liminar visa garantir um ato que o credor poderia praticar por força própria, o juiz pode dispensar o credor de prestar a caução prevista no art. 816, II do CPC (c/c CPC, art. 823), visando dar a maior efetividade possível ao procedimento de urgência. Nada impede, no entanto, que a caução seja determinada caso as circunstâncias deixem alguma dúvida quanto à necessidade e o cabimento da medida liminar.
22. Qualquer que seja o fundamento da tomada de posse – entrega voluntária, ação de seqüestro ou ato privado do credor – é absolutamente necessário que o locador proceda à homologação do penhor que acabou de ser executado. O penhor legal, inicialmente constituído sem a transferência da posse dos bens móveis, sofre uma importante modificação material com a tomada da posse pelo credor,[54] o que atrai a atuação do Poder Judiciário para garantir a legalidade do ato e a sua justa medida. Esta tutela será feita através da ação de homologação do penhor legal prevista pelo art. 1.471 do Código Civil e com rito disciplinado pelos arts. 874 e ss. do CPC. Assim, dispõe a lei civil:
“Art. 1.471. Tomado o penhor, requererá o credor, ato contínuo, a sua homologação judicial.”
Nem a lei material (art. 1.471 CC) e tampouco a lei processual (art. 874 CPC) estabelecem um prazo para a propositura da ação de homologação, limitando-se a determinar que a ação seja intentada pelo credor “ato contínuo” à tomada de posse. Tratando-se, no entanto, de medida de urgência destinada a estabilizar a posse nas mãos do credor, o não ajuizamento da ação imediatamente após a efetiva tomada da posse confere ao devedor a possibilidade de ajuizamento de ação de reintegração de posse, uma vez que a inércia do credor impedirá que sua posse seja legitimada.[55]
No mais, o procedimento é bem definido pela lei processual, muito embora, o art. 874 CPC, ao definir os requisitos da petição inicial, mencione somente os elementos relativos ao penhor legal em favor do hospedeiro (art. 1.467, I, CC). Em matéria de penhor legal locatício, a petição inicial deverá ser acompanhada do contrato de locação, da planilha indicativa do débito, e se possível a sua comprovação, além da relação dos objetos retidos.[56]
O devedor que perdeu a posse dos bens em favor do credor será citado para, em 24 horas, pagar ou apresentar defesa, o que evidencia a celeridade objetivada com o procedimento (art. 874, in fine, CPC).
A lei (art. 874, p.ú., CPC) estabelece que, estando suficientemente provado o pedido, a homologação poderá ser feita de plano pelo juiz , o que, segundo Humberto Theodoro e Pontes de Miranda, é a regra na ação de homologação do penhor legal.[57] Todavia, em razão da garantia constitucional do contraditório, esta disposição legal não pode ser entendida como possibilidade de homologação do penhor legal sem citação do réu para apresentar defesa.[58] A regra apenas enfatiza a celeridade que este processo requer, autorizando expressamente a prolação da sentença sem a realização de provas, se o juiz entender que elas já se encontram constituídas; hipótese plenamente viável em razão da defesa restrita que a lei atribui ao réu.
Esta restrição da matéria de defesa é expressamente instituída pelo art. 875, CPC: o devedor somente poderá alegar a nulidade do processo, a extinção da obrigação,[59] não estar a dívida compreendida entre as hipóteses de penhor legal previstas em lei ou não estarem os bens sujeitos ao penhor legal.
Embora a lei processual não mencione expressamente, a ação homologatória deve possibilitar ao devedor/locatário a prova de que o valor dos bens arrecadados excede o valor da dívida, limite imposto pelo art. 1.469 do Código Civil. É certo, todavia, que a simples alegação de excesso pelo devedor em sede de contestação não faz os bens retornarem para a sua posse. O credor está exercendo uma garantia que a lei lhe confere e há que se provar o excesso através da avaliação judicial dos bens arrecadados, que deve ser feita da forma mais rápida possível, tendo em vista o caráter de urgência do procedimento de homologação. Enquanto a prova não é produzida, o credor guarda os bens como forma de preservar sua garantia.
Se o credor pagar a dívida, extingue-se o processo homologatório e a posse dos bens retorna às mão dos devedor, o que não significa extinção da garantia, tendo em vista a continuação da relação locatícia.
Em caso de não pagamento, o juiz proferirá sentença, contra a qual cabe recurso de apelação. Sendo homologatória, a posse do credor estará estabilizada e os autos lhe serão remetidos (art. 876, que fixa o prazo de 48 horas). Este deverá, então, ajuizar a ação pertinente a fim de ver excutido os bens empenhados (art. 1.422 CC).[60]
Esta conseqüência da ação homologatória demonstra o seu caráter satisfativo.[61] No entanto, a sua incorreta inclusão no rol das medidas cautelares impõe-lhe a incidência da regra do art. 806 do CPC, devendo a medida tendente ao pagamento da dívida ser proposta no prazo de 30 dias da efetivação da medida cautelar (ou seja da homologação do penhor legal, que pode ser liminarmente deferida, nos termos do art. 875, p.ú., CPC);[62] a não propositura da ação tendente ao pagamento da dívida sujeita o credor às conseqüências previstas pelo art. 808, II, CPC (fim dos efeitos da homologação) e 811, III, CPC (responsabilização pelos prejuízos sofridos).
Sendo o contrato de locação um título executivo extrajudicial (cumpridos os requisitos do art. 585, V, do CPC), abre-se esta via ao credor e, neste caso, os bens empenhados constituirão preferencialmente o objeto da penhora do processo de execução, nos termos do art. 655, par.1o do CPC. Nada impede que, de posse dos autos, o locador prefira ajuizar ação de despejo cumulada com cobrança de alugueres. Em todo caso o pagamento da dívida libera os bens, mas não extingue a garantia (que perdura enquanto existir a locação), a não ser em caso de extinção da relação locatícia.
Se a sentença for de improcedência do pleito homologatório, os bens tomados serão devolvidos ao devedor, mas a improcedência da ação homologatória não impedirá o recurso a outras vias para a satisfação do crédito inadimplido (CPC, art. 876, in fine).
II. O penhor legal como garantia em locações não residenciais
23. Na primeira parte deste artigo demonstramos que o penhor legal é uma garantia real instituída pela lei, que nasce junto com a relação locatícia; em seguida, analisamos as formas pelas quais esta garantia é executada (supra, parte I, letras ‘a’ e ‘b’, respectivamente).
Estabelecidas estas premissas, cumpre passar à análise da incidência concreta desta garantia real. Quais seriam, então, as relações e obrigações locatícias sobre as quais incide o penhor legal e, ainda, quais seriam os limites materiais para a incidência da garantia?
Este duplo questionamento chama uma resposta em dois tempos. Em primeiro lugar, a fim de delimitar com precisão as relações obrigacionais garantidas pelo penhor legal, será necessário determinar qual o verdadeiro “Campo de aplicação do penhor legal” (letra ‘a’, infra). Em seguida, o enquadramento jurídico da garantia deve ser feito pelo prisma de seu objeto, quando procederemos à análise dos “Bens que constituem o objeto do penhor legal” (letra ‘b’, infra).
Esta dupla abordagem, que se passa a fazer, demonstrará a vocação do penhor legal anunciada no título do presente artigo: um verdadeiro mecanismo de garantia das locações comerciais.
a) O campo de aplicação do penhor legal:
24. O gênero das relações jurídicas protegidas do penhor legal vem estabelecido de forma expressa pelo Código Civil em seu artigo 1.467, inciso II. Em virtude desta regra, beneficiam-se do penhor legal “o dono do prédio rústico ou urbano (…) pelos alugueres ou rendas”.[63] Analisada isoladamente, a regra é clara e não levanta maiores dúvidas: o penhor legal tem por escopo as locações rústicas e urbanas.
No entanto, a determinação do campo de aplicação de um instituto jurídico deve ser feita no bojo do sistema no qual a regra se situa. E assim deve ser analisado o penhor legal, cujo campo de aplicação não poderia, por evidente, deixar de ser confrontado com a Lei n. 8.245/91, que trata justamente das locações urbanas em nosso ordenamento jurídico.
25. Ao analisar o penhor legal face à sistemática da Lei de Locações, o mestre Sylvio Capanema levanta questão pertinente e que deve ser enfrentada:
“Temos mesmo sérias dúvidas quanto a possibilidade de se lançar mão dele [penhor legal], em sede de locação de imóvel urbano, submetida à disciplina exclusiva da Lei do Inquilinato, que, em seu art. 37, não inclui o penhor legal, entre as garantias locatícias, embora aluda, genericamente, à caução, permitindo que recaia sobre bens móveis”.[64]
Imbuído da prudência de apenas levantar este importante questionamento, sem todavia fechar posição, Sylvio Capanema toca o cerne da questão: o penhor legal que o Código Civil diz incidir em locações rurais e urbanas (art. 1.467, II) seria compatível com o rol de garantias locatícias estabelecido pelo art. 37 da Lei do Inquilinato, a reger as locações urbanas?[65]
26. A análise cronológica da legislação mostra que o legislador do novo Código não pretendeu excluir a incidência do penhor legal nas locações urbanas, mantendo a menção ao proprietário de imóvel urbano no inciso II do art. 1.467 acima transcrito.
Analisando-se, por outro lado, a questão pelo prisma da especialidade, impõe-se que, em caso de antinomia entre duas regras em vigor no ordenamento jurídico, a lei especial – isto é, a que trata especificamente das locações urbanas – seja aplicada em detrimento da regra genérica – na hipótese, o Código Civil. Mas para isto é necessário, enfatize-se, que se constate uma antinomia entre as regras, ou seja, a existência no ordenamento de uma colisão de normas antagônicas.
É necessário, portanto, verificar se há incompatibilidade entre as normas. Atente-se, então, à letra do artigo 37 da Lei de Locações, que inaugura a seção legal que trata das garantias locatícias:
“Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:
I – caução;
II – fiança;
III – seguro de fiança locatícia;
IV – cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.[66]
Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação.”
A análise da regra legal deixa claro, à toda evidência, que a limitação por ela feita refere-se exclusivamente às garantias convencionais estabelecidas pelas partes: em primeiro lugar por tratar das modalidades de garantias previstas no “contrato de locação”; a isto acresça-se que o dispositivo legal fala em garantias que pode “o locador exigir do locatário”; por fim, a sanção prevista no parágrafo único da regra em comento – a impor a nulidade de uma das garantias – não poderia jamais ser aplicada a uma garantia que emana da lei.
Pelo que já se viu na primeira parte deste trabalho (ns. 7 e 12, supra), o penhor legal, nem é instituído no contrato – ele nasce em razão do contrato, apreendido como fato jurídico –, e tampouco é exigido por uma das partes – ele deriva exclusivamente da lei. Vê-se aqui, em toda a sua amplitude, a necessidade de se compreender corretamente o penhor legal: a Lei do Inquilinato, preocupada com a eventual posição de fraqueza do locatário, institui uma limitação das garantias convencionais que podem ser exigidas pelo locador; todavia, não exclui outras garantias que são previstas pela lei, como é o caso do penhor legal. Assim, inexiste antinomia entre a regra do Código Civil que institui o penhor legal e o art. 37 da Lei do Inquilinato. Não há, portanto, razões para se afastar a aplicação do penhor legal em matéria de locação urbana.[67] / [68] Se o novo Código Civil manteve a garantia legal, a lei de locações não a afasta.[69]
Tem-se, portanto, que o penhor legal se aplica tanto às locações rurais, quanto às locações urbanas, estas regidas pela Lei do Inquilinato; sejam elas residenciais, por temporada ou não residenciais, destinadas à atividade comercial. E, em todos estes casos, o penhor legal existe, ainda que se tenha convencionado no contrato de locação uma das garantias convencionais previstas no artigo 37 acima transcrito. Há que se aprovar esta possibilidade de co-existência da garantia legal, uma vez que a solução vincula os bens do locatário ao pagamento de suas obrigações, em igualdade de condições com outras garantias convencionais criadas, ai compreendida evidentemente a fiança. A solução legal faz pesar a responsabilidade do locador na execução do contrato.
Se existem, como veremos (letra ‘b’, infra) restrições – de grande importância – para o exercício da garantia em determinadas relações locatícias urbanas, estas limitações derivam do regime jurídico imposto ao objeto da garantia. É, como se verá (idem), através do controle do objeto da garantia (de sua penhorabilidade) que equidade e segurança jurídica encontram a justa medida.
27. Visto que o penhor legal serve a garantir as relações locatícias urbanas e rurais, a análise do campo de aplicação da garantia deve prosseguir com a verificação de dois outros elementos da relação locatícia, a saber: o titular da garantia e a natureza das dívidas garantidas.
28. No que tange ao titular da garantia real, o Código Civil, em seu artigo 1.467, inciso II, refere-se apenas ao “dono do prédio rústico ou urbano”. A literalidade da lei – que se refere apenas do “dono” do imóvel – significaria então a exclusão da garantia em favor daquele que sub-loca o imóvel ou que, possuindo-o a outro título (vg. usufruto), venha a legitimamente locá-lo a terceiros?
Para responder a tal questionamento, é necessário atentar à função da garantia, que é, como já se mencionou (n. 7, supra) a de favorecer o mercado locatício, conferindo ao locador maior segurança em alugar seu imóvel. Neste sentido, se o objetivo da regra é o de conferir maior segurança ao mercado de locações, para estimulá-lo, não parece haver fundamento restringir a garantia ao proprietário do imóvel locado, excluindo a locação feita por aqueles que detenham a sua posse legítima. Assim, a despeito da literalidade da lei, a melhor solução parece-nos considerar que a garantia beneficia não só o proprietário do imóvel, mas também aquele que, não tendo a propriedade, o aluga, desde que legitimado a fazê-lo; seja em razão de um direito real constituído, como o usufruto, ou de um direito pessoal que lhe permita a locação, como nas hipóteses em que o locatário pode sub-locar o imóvel.[70]
A solução encontra apoio em direito comparado, onde se constata que ordenamentos jurídicos estrangeiros estendem a garantia do penhor legal aos possuidores com poder de alugar o imóvel.[71]
29. Visto que o penhor legal garante as locações urbanas e rurais e que beneficia não só o proprietário do imóvel locado, mas também o não proprietário que tem o direito de alugá-lo, cumpre verificar quais as obrigações locatícias que são cobertas por esta garantia real. O dispositivo do Código Civil (art. 1.467, inciso II) é expresso em mencionar que o dono do imóvel urbano ou rural é credor pignoratício independentemente de convenção “pelos aluguéis ou rendas”.
Cumpre, assim, saber se as demais obrigações pecuniárias decorrentes do contrato de locação também são garantidas pelo penhor legal, ou se o silêncio do Código significa não incidência da garantia para além da obrigação de pagamento do aluguel. Mais uma vez, o recurso à uma interpretação teleológica leva ao entendimento de que o penhor legal garante não só o pagamento dos alugueres, mas também as demais obrigações pecuniárias a cargo do locatário. A finalidade de favorecer o mercado locatício com a instituição de uma garantia em favor do locador teria seu alcance limitado por tal restrição, que não encontraria justificativa. Ademais, a inclusão dos encargos locatícios no escopo da garantia encontra respaldo no próprio texto legal, uma vez que o art. 23, I da Lei de Locações estabelece que “o locatário é obrigado a pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis”.
Esta extensão da garantia visando a cobertura de outras obrigações locatícias encontra respaldo em nossa doutrina.[72] Ademais, trata-se de solução encontrada em outros ordenamentos jurídicos, como é o caso do direito francês, onde o atual art. 2.332, al. 1a do Code Civil,[73] impõe um privilégio mobiliário em garantia dos aluguéis, admitindo, todavia, a incidência do privilégio relativamente aos encargos locatícios, eventuais indenizações de ocupação e decorrentes da má utilização do imóvel.[74]/[75]
30. Finalmente, cumpre ressaltar que a análise comparada mostra que alguns ordenamentos jurídicos instituíram limites temporais para a incidência da garantia: estabelecem, por um lado, uma limitação temporal pretérita, relativas às dívidas já vencidas e não pagas; instituem, por outro lado, a possibilidade de a garantia incidir sobre obrigações posteriores ao inadimplemento, mas ainda não vencidas. Estas soluções são encontradas, com limites distintos, em direito italiano[76] e em direito francês.[77]
Em nosso ordenamento jurídico, em razão da natureza jurídica do penhor legal (garantia real, portanto acessória em relação ao crédito garantido), temos que a projeção da garantia para atingir créditos ainda não vencidos – embora seja uma solução extremamente satisfatória quando se pensa em termos de economia processual –[78] somente poderia derivar de uma menção expressa da lei. Note-se, neste sentido, que os limites temporais estabelecidos para o privilégio especial mobiliário previsto pelo art. 964, inciso VI do Código Civil,[79] não podem afetar a regra relativa à garantia real, instituto de natureza e função próprias, sujeito ao limite estabelecido pelo art. 1.469 : arrecadação dos bens móveis até o valor da dívida (n. 18, supra).
Assim, com relação aos créditos vencidos e não pagos, a única limitação temporal para o exercício do penhor legal refere-se ao prazo prescricional para a cobrança dos alugueres.
31. Tem-se portanto, que, quanto ao campo de aplicação do penhor legal, esta garantia real incide sobre locações urbanas e rurais, sem prejuízo da existência de outra garantia, em favor do proprietário ou de outro locador a justo título (usufrutuário ou sub-locador, por exemplo); o penhor legal garante o pagamento dos alugueres e também dos encargos locatícios vencidos e não pagos que não estejam cobertos pela prescrição.
Cabe, portanto, finalizar o presente artigo com a análise dos bens que constituem a base da presente garantia. Com efeito, é, como passamos a ver, pela análise do objeto da garantia que fica evidente o seu campo de aplicação principal, que é o das locações não residenciais.
b) Bens que constituem o objeto do penhor legal
32. Ao tratar do penhor legal, o artigo 1.467, inciso II, do Código Civil delimita os bens que constituem o seu objeto. Assim, o penhor legal incide sobre “os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio”.
O que vêm, então, a ser estes bens móveis que guarnecem o imóvel locado? É preciso analisar a questão sob dois prismas: quanto à natureza jurídica do conceito legal e quanto ao seu conteúdo.
33. Quanto à natureza do conceito utilizado pela lei, verifica-se que o Código Civil faz incidir a garantia sobre um conjunto de bens que constitui uma universalidade de fato. Com efeito, ao determinar como objeto do penhor legal os bens móveis que guarnecem o imóvel locado, o Código estabelece uma destinação unitária – para fins de garantia – a um conjunto de bens individuais, mas que são considerados em sua integralidade. O conceito corresponde com precisão à definição legal de universalidade de fato, estabelecida pelo artigo 90 de nosso Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 90. Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária.”
Tem-se portanto que o objeto do penhor legal é uma universalidade de fato. É, com efeito, somente através desta acertada arquitetura legal que se pode explicar o funcionamento da garantia real. Isto porque, recaindo a garantia sobre uma universalidade, nada impedirá que os bens individualmente considerados sejam objeto de relações jurídicas próprias, estando assim – individualmente considerados – no livre poder de disposição do locatário, que é (e continua) proprietário dos móveis.[80] É o que dispõe o parágrafo único do artigo 90 do Código Civil.
“Art. 90…
parágrafo único. Os bens que formam esta universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias”.
Assim, o penhor legal, embora constituído no momento em que a relação locatícia nasce, não impede que, ao longo da locação, o locatário disponha de determinados bens de sua propriedade que guarnecem o imóvel locado. Não poderá, no entanto, dilapidar a universalidade, privando o locador de sua garantia.
A dilapidação da garantia consiste na diminuição da universalidade dos bens móveis que permitem que a locação feita atinja a sua finalidade: assim, em locação para a instalação de uma unidade fabril, a venda de máquinas sem reposição, diminuindo a garantia, pode indicar sua dilapidação; de igual modo, em uma locação em shopping center, a não reposição do estoque é passível de caracterizar diminuição da garantia. Caso hipóteses como estas ocorram, o locador poderá recorrer ao Poder Judiciário através da propositura de ação de seqüestro ou de outra medida cautelar inominada a fim de preservar a garantia.
Embora o penhor legal constitua direito real, conferindo ao seu titular o direito de seqüela (art. 1.228, caput, in fine, C.C.),[81] o caráter mobiliário dos bens que integram a garantia dificulta a sua execução quando o bem é transferido a terceiro (como em caso de venda). Neste caso, o terceiro encontra-se coberto por uma presunção de boa-fé que decorre da possibilidade que é dada ao locador de vender individualmente os bens que integram a garantia.[82] Nada impede, no entanto, que, caracterizada a diminuição da universalidade pelo ato de disposição e a má-fé do terceiro adquirente, o locador possa opor-lhe o penhor legal e buscar tutela jurisdicional a fim reintegrar o bem à universalidade que constitui a garantia. As dificuldades inerentes a este tipo de prova levam o credor pignoratício a ter interesse nas medidas processuais preventivas, para a tomada de posse em razão da dilapidação da garantia, de onde ressalta a importância da pronta intervenção judicial.
Por fim, quanto à constituição da universalidade que é objeto do penhor legal, afirme-se que os bens não precisam se encontrar no imóvel no momento em que se forma a relação locatícia. Se é certo que o penhor legal se constitui com o nascimento da locação, não há que se condicionar a presença da universalidade de fato no imóvel locado à existência da garantia. A relação de dependência da garantia real vis-à-vis da relação locatícia faz com que a finalidade da locação delimite os contornos da universalidade de fato que constitui o objeto da garantia. Assim, em uma locação de um imóvel para a instalação de uma unidade fabril, o penhor legal recairá sobre o conjunto de bens móveis que serão instalados no imóvel locado para a consecução daquela atividade. A relação de interdependencia entre a garantia legal e o contrato de locação é evidente e deriva da noção de acessoriedade da garantia real. Inexistindo os bens em seu conjunto, seja por não terem sido instalados no imóvel, seja por terem sido dele retirados, pode ocorrer que a garantia não possa ser executada, caducando por falta de objeto. Isto não significa, contudo, dependência da garantia à presença física dos bens no imóvel locado.
34. Partindo-se da natureza jurídica do objeto do penhor legal, pode-se passar à analise do conteúdo da garantia, ou seja, identificar os bens que integram seu objeto. E o princípio que rege esta identificação deriva do que foi visto no item anterior: o conteúdo da universalidade (e, por conseqüência, o objeto da garantia) é definido pelo contrato de locação. É a relação de dependência da garantia real vis-à-vis da relação locatícia que faz com que a finalidade da locação delimite os contornos da universalidade de fato que constitui o objeto do penhor legal.
Assim, o objeto do penhor legal será definido em razão da causa do contrato de locação. Abrem-se então uma infinidade de possibilidades para que se possa encontrar o significado do verbo “guarnecer” empregado pela norma legal (C.C., art. 1.467, II, acima transcrito).
É neste sentido que a doutrina sempre foi expressa em emprestar uma ampla interpretação ao termo utilizado pela lei, a despeito de uma hesitação inicial da jurisprudência que não chegou a fazer corrente.[83]
Assim, desde as origens de nosso direito codificado, nosso ordenamento jurídico, buscando a eficácia máxima da garantia real, tratou de conferir uma interpretação ampla ao objeto do penhor legal:
“O art. 776, n. II [do Código Civil de 1916], não se refere a mobília ou a móveis, mas a bens móveis, os quaes [sic], na exacta [sic]definição do art. 47 do Código Civil, “são todos os bens susceptíveis [sic] de movimento próprio, ou de remoção por fôrça alheia”. Assim, todos os bens móveis, e não simplesmente a mobília e alfaias, garantem, em penhor, as rendas do prédio rústico ou urbano”.[84]
O mestre civilista é acompanhado por Carvalho Santos, que traça toda uma casuística para estabelecer o objeto do penhor legal da forma mais ampla possível;[85] citam expressamente como objeto da garantia, além dos móveis colocados no imóvel locado: os animais, sementes e máquinas nas locações rústicas;[86] os automóveis[87] e bens penhoráveis do devedor nas locações residenciais; e, nas locações comerciais, os bens destinados à atividade da empresa.[88]
Com o decorrer do tempo, esta concepção ampla do termo “guarnecer” foi consolidada em nosso ordenamento, vindo se assentar na égide do novo Código Civil, como assevera renomado comentador:
“O penhor [legal] incide sobre os bens móveis, e não apenas sobre as mobílias. Todo e qualquer bem móvel é passível do penhor. Como fizemos ver anteriormente é bastante que o objeto seja coisa móvel, alienável e penhorável, e de propriedade do devedor. Basta que ele esteja guarnecendo o imóvel, ou seja, esteja colocado na habitação, seja para comodidade, conforto, atender aos domésticos ou para exercício profissional.”[89]
Tem-se, portanto, que o penhor legal tem por objeto um conjunto de bens modelado pelo contrato de locação; o seu exercício pressupõe apenas a propriedade deste conjunto de bens pelo locatário. Somente esta concepção ampla é capaz de garantir a plena efetividade da garantia em relação à locação feita.
35. A esta concepção ampla do objeto do penhor legal devem ser contrapostos os seus limites, que são dois: para que possam ser objeto do penhor legal, os bens que guarnecem o imóvel locado devem ser (i) alienáveis e penhoráveis e (ii) pertencer ao locatário.
36. A limitação do objeto do penhor legal pela regra da penhorabilidade é responsável por definir o parâmetro de justiça da garantia sob o prisma do locatário, excluindo do penhor legal determinados bens de sua propriedade. A restrição imposta pela penhorabilidade é relevante e define o campo de incidência por excelência do penhor legal, que é composto, como veremos, pelas locações para exercício de atividades comerciais.
Já Clóvis, ao comentar o regime do Código de 1916 levantava a seguinte ressalva: “estão excluídas do penhor legal as coisas inalienáveis (artigo 756) e as que, segundo as leis determinam, não podem ser penhoradas”.[90] Tal exclusão, justifica-se, no sistema do Código atual pela regra do art. 1420.
“Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca.”
Além de só poder recair sobre os bens que se encontram no comércio e que, por isto, podem ser alienados, o penhor legal não pode ter por objeto bens que não são passíveis de penhora, uma vez que, como lembra Caio Mário, em todo penhor “o que lhe oferece segurança de pagamento é a excussão da coisa e sua venda”.[91] Se o bem supostamente empenhado é impenhorável, não há excussão possível, não podendo exercer, portanto, função de garantia.
Daí justificar-se a afirmativa de Sylvio Capanema, de que “o penhor legal, em favor do locador, teria de recair sobre bens móveis disponíveis, ou seja, que possam ser penhorados, e em se tratando dos que guarnecem a residência do devedor, estariam quase todos, sob o pálio protetor da impenhorabilidade prevista na Lei n. 8.009/90”.[92]
Tem-se aí uma importante limitação imposta ao penhor legal que reduz significativamente seu campo de aplicação nos casos das locações residenciais. No estado atual de nosso direito positivo, o Código de Processo Civil, em seu art. 694, inciso II,[93] traz de forma expressa os limites desta exclusão, ao afirmar que:
“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (…)
II – os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;”
Assim, pela regra legal os móveis que guarnecem o imóvel locado a título de residência encontram-se excluídos do penhor legal; mas aqueles de elevado valor, ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida – critérios que serão avaliados pelo juiz e consolidados pela jurisprudência – fazem objeto do penhor legal e constituem verdadeira garantia para o pagamento dos alugueres e demais obrigações locatícias. Neste sentido, o art. 2o da Lei n. 8009/90 estabelece uma exclusão objetiva, apontando os bens móveis que não estão sob a proteção da impenhorabilidade; os bens lá citados, ao guarnecerem o imóvel residencial locado, constituirão objeto do penhor legal (além daqueles a que faz menção o art. 649, II do CPC). Assim:
“Art. 2º, Lei n. 8009/90. Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.”
37. Como se verifica, a aplicação do penhor legal às locações residenciais é significativamente reduzida em razão das limitações de penhorabilidade legalmente impostas. O mesmo se diga com relação às locações por temporada.[94]
Esta redução do campo de aplicação do penhor legal muito antes de atestar uma eventual inutilidade do instituto, evidencia de forma clara os tipos de locação aos quais a garantia real se destina, quais sejam: as locações rústicas regidas pelo Código Civil e as locações comerciais de que trata a Lei de Locações;[95] estas últimas constituem, em razão da sua recorrência em nossa sociedade, o campo por excelência onde a garantia deve ser aplicada.
No caso das locações rústicas (mencionadas de modo expresso pelo art. 1.467, II do C.C., que trata do penhor legal), tem-se que a garantia imposta pela lei recairá sobre uma universalidade constituída pelos bem móveis que se destinam à produção rural, tais como os animais e máquinas para emprego na cultura.[96]
Em se tratando, finalmente, de locação urbana comercial, tem-se que o penhor legal incidirá, de uma forma geral, sobre todos os móveis que são utilizados para a atividade comercial ou industrial a ser realizada pelo locatário no imóvel locado. Tratando-se do verdadeiro campo de aplicação da garantia, a concepção do seu objeto é a mais ampla possível, como atestava nossa melhor doutrina civilista já no regime do Código Civil de 1916. Assim, Carvalho dos Santos afirma que:[97]
“(…) recai sôbre tôdas as coisas que, não compreendidas nas categorias anteriores, servem ao exercício do comércio, arte ou profissão do locatário. Por isso que tais coisas servem ao uso da loja, oficina ou edifício, e mesmo a cultivá-la, tomada esta expressão no seu sentido mais amplo”.
Os comentadores do novo Código Civil, com o objetivo de conferir efetividade à garantia real mantida pelo legislador de 2002, seguiram este entendimento, ressaltando a possibilidade de, em se tratando de locação comercial, o penhor legal incidir sobre “aquilo que serve para exercício de profissão[98] ou comércio”.[99]
Tem-se, portanto, que, nas locações para o exercício de atividade comercial, o conjunto dos bens móveis utilizados pelo locatário para o exercício de sua atividade comercial integra o penhor legal estabelecido pela lei e garante assim o pagamento dos alugueres e encargos locatícios. Assim, em matéria de locação comercial, o penhor legal incide sobre os bens móveis destinados à produção, como maquinário e matérias primas; ao transporte; sobre os bens móveis destinados à comercialização, como é o caso típico do estoque de mercadorias de um locatário que realiza uma atividade comercial no imóvel locado; assim como sobre a mobília empregada no imóvel comercial locado.[100] / [101]
Ressalte-se, ainda, que a solução do direito brasileiro encontra respaldo em ordenamentos jurídicos estrangeiros que utilizam a mesma expressão para definir o objeto do penhor legal, como é o caso do Code Civil francês que emprega a fórmula “tout ce qui garnit la maison louée”.[102] A busca é sempre pela máxima efetividade de uma garantia que, relembre-se, o legislador pátrio reputou tão importante ao ponto de conferir ao locador/credor a possibilidade de, em determinadas hipóteses, executá-la por iniciativa própria, por meios privados, previamente a qualquer recurso ao Poder Judiciário (supra, n. 21).
38. A segunda limitação que pesa sobre o objeto do penhor legal (além da penhorabilidade acima analisada) diz respeito à propriedade dos bens que guarnecem o imóvel locado. A regra legal (art. 1.467, II do C.C.) estabelece apenas que o penhor legal incide “sobre os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecido” o prédio locado, sem mencionar que os bens devem ser de propriedade do locatário. Todavia, Clóvis já asseverava que “podem ser objeto de penhor legal tôdas as coisas móveis alienáveis e penhoráveis, que se encontrarem em poder do hóspede, freguês ou inquilino, sendo próprias”.[103] Esta conclusão decorre da letra do artigo 1.420 do Código Civil, pelo qual “só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese”; embora o penhor legal não decorra da vontade das partes, a lei não poderia quebrar este preceito, que, em última análise, deriva o art. 1.228 do Código Civil, a conferir ao proprietário, dentre outras faculdades, aquela de dispor do bem de sua propriedade. Como conseqüência, os bens que constituem objeto do penhor legal devem pertencer ao devedor.[104] Neste sentido, Marco Aurelio Viana anota:[105]
“Por derradeiro, o penhor só incide sobre bem de propriedade do devedor, porque somente se admite garantia real incidente sobre bem de domínio do instituidor, porque é da essência do instituto a disposição sobre o objeto da garantia”.
Assim, o penhor legal não incidirá em regra sobre bens que, mesmo guarnecendo o imóvel, não pertençam ao locatário. A doutrina tradicional ressalta, todavia, hipóteses em que o bem de terceiro pode ser considerado como integrante da universalidade que constitui o objeto do penhor legal, a fim de preservar a boa-fé do locador.[106] A questão deve ser analisada com prudência. Pela inexistência em nosso direito da regra expressa segundo a qual en fait de meubles, la possession vaut titre,[107] não se pode criar uma presunção, ainda que relativa, de que todo bem móvel que guarnece o imóvel locado integraria o objeto da garantia. Se esta presunção fosse possível em nosso direito, caberia ao locatário provar que o móvel é de terceiro e que o locador tinha conhecimento deste fato (a fim de caracterizar sua má-fé e afastar a regra dos efeitos da posse em matéria mobiliária), como ocorre em direito francês.[108]
Por outro lado, se é certo que esta presunção não se sustenta em direito brasileiro, há mister em se tutelar a boa-fé do locador, quando este for induzido a crer que determinado bem no seio da universalidade seria pertencente ao locatário. Trata-se de situação mais recorrente no campo das locações comerciais, onde o locador desconhece o relacionamento comercial (muitas vezes complexo) travado entre o locatário e seus fornecedores ou demais parceiros comerciais. A finalidade aqui é a de impedir a fraude à lei por parte do locatário em conluio com o proprietário dos bens móveis de valor representativo como máquinas e estoque, a fim de retirá-los do escopo da garantia que a lei cria em favor do locador.
39. Como visto ao longo deste trabalho, o penhor legal foi instituído pela lei com a finalidade de garantir o pagamento dos alugueres e encargos da locação, protegendo assim a relação locatícia. Esta garantia real legalmente instituída apresenta as seguintes características principais:
– Constitui-se com o nascimento da relação locatícia (independentemente de convenção), seja ela rural ou urbana, residencial ou não, ainda que outra garantia tenha sido convencionada entre as partes;
– Tem como titular o locador do imóvel, seja ele proprietário ou se encontre no legítimo poder de fruição (como o usufrutuário ou o sub-locador);
– Garante o pagamento dos alugueres e demais encargos locatícios, vencidos e não pagos;
– Tem por objeto uma universalidade de fato, constituída pelos bens móveis que guarnecem o imóvel locado, o que abrange não somente as mobílias, mas todo o conjunto de bens móveis destinados à finalidade da locação, desde que penhoráveis (semoventes, veículos, maquinário, estoques, matéria prima etc.) e de propriedade do locatário;
– Não impede a disposição dos bens móveis individualmente considerados, conferindo, todavia, ao titular da garantia o direito de resguardá-la (judicialmente) em caso de sua dilapidação;
– Executa-se, em caso de inadimplemento do locatário, pela tomada da posse dos bens móveis que constituem seu objeto, até o valor da dívida;
– A aquisição da posse pelo locador pode ser obtida de três formas: pela entrega voluntária dos bens pelo devedor inadimplente; pela propositura da ação judicial cabível (medida cautelar de seqüestro); ou pela tomada dos bens por ato privado do credor nos casos de periculum in mora;
– Em todas estas hipóteses, a tomada de posse deve ser sucedida da ação homologatória do penhor legal, que, julgada procedente, abre as vias para a satisfação do crédito locatício inadimplido, com a penhora e a posterior venda dos bens empenhados.
Estas são – considerados todos os desenvolvimentos feitos ao longo deste trabalho – as características básicas de uma garantia muito importante, porém pouco conhecida e utilizada em nosso direito. As limitações de penhorabilidade dos bens que guarnecem os imóveis residenciais, atreladas à possibilidade de disposição dos bens individualmente considerados, evidencia o verdadeiro campo de aplicação do penhor legal: as locações não residenciais.
Embora muitos não se dêem conta, os locadores de imóveis nos quais se realizam atividades comerciais são titulares de uma importante garantia sobre os bens móveis com os quais os locatários realizam seu comercio: quer se tratem de bens de produção, como matéria-prima e maquinário, quer se tratem de bens de comercialização, como o estoque. Em caso de inadimplemento dos aluguéis ou encargos, estes bens legalmente empenhados servem prioritariamente à penhora e à excussão judiciais. E a lei confere aos locadores importantes mecanismos para a efetividade desta garantia, através da tomada de posse destes bens. E o mais importante de tudo é que toda esta garantia independe do consentimento do co-contratante; é a lei que a estabelece para garantir e fomentar o mercado locatício, notadamente em matéria comercial.
Esperamos, com estas considerações, ter atingido o objetivo almejado com este trabalho que é o de encorajar os aplicadores do direito – magistrados e advogados – a utilizar tão importante instrumento, que, apesar de revigorado pelo Código Civil de 2002, ainda se encontra adormecido em nosso ordenamento jurídico.
Informações Sobre os Autores
João Augusto Basilio
Advogado
Gustavo Espírito Santo