Resumo: O homem, a masculinidade e o poder compõem uma trilogia muito contemporânea e complexa. E a decadência evidente dos moldes tradicionais fez da violência um meio de expressão e de reivindicação social. O texto analisa pelo viés psicológico, social e antropológico o homem da atualidade (Tarzan ou Homer?).
Palavras-Chave: Antropologia. Sociologia. Psicologia. Psicanálise. Masculinidade. Contemporâneo.
Abstract: The man, masculinity and power make up a trilogy very contemporary and complex. And the evident decline of traditional molds, made violence a means of expression and social demands. The paper analyzes the bias psychological, social and anthropological man of today (Tarzan or Homer?).
Keywords: Anthropology. Sociology. Psychology. Psychoanalysis. Masculinity. Contemporary.
Segundo o psicoterapeuta Sócrates Nolasco a figura de Tarzan[1] foi necessária em seu tempo, pelos idos de 1930, e atualmente é a figura de Homer Simpson[2] que precisa existir para que as ideologias de emancipação possam existir.
As estatísticas comprovam que existe maior percentual de homens envolvidos em situações de violência, que vão das mais cotidianas e banais até a morte por patologias cardiovasculares, alcoolismo e suicídio.
Também a presença masculina é predominante na população carcerária, e sendo significante registrar que há também certa predominância de crimes contra o patrimônio.
As sociedades sempre tiveram dificuldades em lidar com a violência assim como contê-la, há certa inquietação envolvendo o perfil masculino e a incidência da violência seja dentro das paixões, da moral, seja quanto à problemática referente à identidade.
O que implica em pensar no conceito de masculinidade e o quanto este está comprometido com um suporte de coletivização. Portanto, em cada época existiu um determinado tipo de homem e, ipso facto, certo cariz de masculinidade.
Se pesquisarmos os textos clássicos e míticos encontraremos personagens como Hércules, Teseu, Aquiles e Ulisses. E, em cada herói havia uma constituição, vejamos o exemplo de Ulisses que deixa a cidade de Ítaca e vai com Menelau em direção à Tróia para resgatar Helena.
Helena que para alguns representa essencialmente o feminino[3], o que há de mais essencialmente feminino em uma mulher. Portanto, é a paixão (com Páris) que move Ulisses, e o faz então resgatar Helena, revelando o seu comprometimento com Menelau.
Já pelo perfil de Ulisses pode-se reparar que a construção masculina está articulada a uma coletividade. Ser homem é ser inserido num contexto, num mundo esculpido pelos valores que nos fazem acreditar que estes heróis sejam necessários para entendermos a perspectiva grega do mundo.
E, o mesmo se deu na Idade Média, com Parsifal[4] que era um guerreiro. Assim ao comparamos as narrativas literárias e fazer a composição de certo tipo de herói percebemos a referência a ideia de honra dos Cavaleiros da Távola Redonda.
E concluímos que não existe um herói desvinculado do outro, e, portanto, não se concebe o herói sem o mundo. Pois é um mundo, a partir da coletivização que o sujeito é inventado e, para que este faça uma composição de si com o mundo.
Na verdade, é o mundo a partir da invenção do sujeito que passa a existir. E, hoje na complexa sociedade contemporânea notamos que precisamos de sujeitos úteis economicamente e dóceis politicamente.
A transição da Idade Média para Idade Moderna produziu outra forma de pensar, pois saímos do teocentrismo para o antropocentrismo e o racionalismo de Descartes que quando enunciou “penso, logo existo” trouxe a unção do homem que antes era matéria e espírito, ou seja, corpo e alma, unificados em um só.
Com Descartes descobrimos afinal os dois parâmetros que compõem a natureza humana. Principalmente porque esses dois elementos estão em oposição.
Daí justifica-se o individualismo que traz diferente prerrogativa de compreensão de mundo, em franca oposição ao mundo medieval tradicional.
A ideia de oposição e paradoxo bem presente na transição vivida dos séculos XVI e XVII e que desponta na literatura. Como exemplo, temos Dom Quixote de La Mancha[5] (que avesso a Parsifal) é um herói coxo, manco, esquálido que conversa com os moinhos, e os enxerga como fossem dragões, e que tem como fiel escudeiro, o obeso, baixo e engraçado Sancho Pança.
Dom Quixote é o herói que só olha para dentro de si, um mundo novo e inédito que se opõe ao mundo tradicional. A ideia de identidade que pode ser inventada, construída é primorosa concepção moderna. E quando o saber técnico ganha força e valor, quando o discurso da eficiência faz alusão a figuras como Robson Crusoé um náufrago que sobrevive mesmo perante adversidades, que sabe apropriar-se da natureza.
Já traduzindo a noção de que a natureza tem que ser domada, bem como a violência, onde também deve existir alguma coisa que deva ser apropriada.
De qual forma devo tutelar a violência ao ponto de realmente controlá-la? Muitas ciências e técnicas se preocupam com tal indagação, porém, vivenciamos dolorosamente o descontrole e seus efeitos.
Bertrand Russel dizia a que a qualidade do pensamento está exatamente na capacidade de produzir vertigem. De sorte que quando o pensamento não gera vertigem há de se duvidar se este está efetivamente se prestando para alguma coisa. Se as vertigens fossem sucessivamente desaparecendo faz desaparecer também a imaginação das cenas sociais do mundo.
Entender o homem implicado na situação de violência significa entender a dificuldade de fazer com que sua imaginação possa agenciar aquilo que o constitui. Diante da incapacidade de imaginar, surge a violência representando uma forma de reiterar uma identidade que já não se sustenta.
De qualquer forma, Freud chegou a anunciar que o sujeito não é mais o sujeito da consciência, tal como Descartes já havia imaginado. E, mais radical foi o genial Nietzsche[6] que chegou a dizer: “olha, essa história de que Deus, ou que a verdade existe está totalmente desgastada.”
A respeito da masculinidade e a mulher, ainda esclareceu Nietzsche: “O que na mulher inspira respeito e com frequência temor é sua natureza, que é ‘mais natural’ que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes…” (Além do bem e do mal § 239).
Ao considerar a mulher mais selvagem e inapreensível, Nietzsche pretende aproximá-la de Dionísio. Estas características indicam sua flexibilidade moral no sentido de não se moldar facilmente, de não ser facilmente domesticada.
Talvez neste sentido a mulher esteja mais apta para o amor que os homens, uma vez que o amor, enquanto expressão da natureza é “imoral”. “É que homem e mulher entendem por amor coisas diferentes (…). Pois o amor, concebido de modo inteiro, grande, pleno, é natureza e, enquanto natureza, algo eternamente ‘imoral’” (A gaia ciência § 363).
Este aspecto natural da mulher[7] é exaltado por Nietzsche. Para o filósofo, quando a mulher permanece na sua natureza é perfeita. Mas quando pretende mudar se espelhando no homem[8], ela se perde[9].
A demanda de sujeitos, das pessoas tenta se vincular e se sentir integrada ao mundo, no qual vivem, e então a violência significa essa tentativa de implicação, de fazer parte, de se sentir vinculado e reconhecido por alguma coisa. De se sentir respeitado, temido e notado.
Andar armado como faz o traficante faz com que o poder se mantenha e hostilize o possível opositor, então confere ao sujeito inexpugnidade fazendo ser capaz de responder muitas perguntas e dar conta do que é exigido, sucesso, fama, prestígio, poder e, etc.
Mas a ideia de representação de Estado representado faz com que a gente reflita sobre outra possibilidade, é a vantagem das sociedades cartesianas. Se posso representar o Estado, também posso me fazer representar.
Desse modo, com a sociedade do Direito[10] superou a sociedade das linhagens, das nobrezas, onde nasceu assim, imutavelmente irá morrem assim. Entram em cena, os diferentes graus de liberdade que acentuou os acidentes e o compromisso das sociedades, e auxiliou na construção das identidades dos sujeitos, ajudou a fazerem parte de seus grupos.
Com a sociedade do Direito passamos a ser regulados pelo mercado, pela igualdade formal, superamos gradativamente os heróis míticos, cavaleiros que estavam voltados para si mesmos, e passamos a olhar para o mundo e, ao final do século XIX e XX passamos a ser aquilo que bem desejo.
Após muitas lutas, e sob influxos iluministas veio a emancipação, a ideia de que tenho autonomia sobre mim mesmo, a ideia de pertencimento da vida.
Então no lugar de Deus fazer o homem a sua imagem e semelhança (num discurso totalizador), passamos a ter o homem a construir sua imagem e dessemelhanças.
Chegamos ao final do século XIX e início do século XX com três referências de sujeitos: um sujeito da inconsciência, um sujeito da história[11] e um sujeito da “não-verdade” – o homem sendo colocado no lugar de deus.
E tal discurso cientificista e tecnológico avança por todo século XX, daí o poder de realizar clonagem, de descobrir outros planetas, outras formas de vida e de tempo.
É a ideia do “homem inventar o homem”, de clonar, repetir, duplicar, o que os torna sobreviventes melhores e seletos. A ética é substituída pela excelência de espécie. Quase que numa batalha edílica na busca da melhor estética e da melhor inteligência[12].
A longevidade atingida pelas ciências biológicas e médicas nos aproxima da eternidade, da juventude eterna, de escapar das doenças incuráveis, dos atavismos genéticos, e ficar numa representação hegemônica. Glorificando uma identidade humana acima dos conceitos de masculinidade e feminilidade.
Então com o progresso científico posso nascer originalmente homem e, mais tarde, vir a morrer como mulher, assim como posso nascer originalmente negro e morrer branco e, essa possibilidade de mutações não tem mais o sexo como principal foco, assim torna-se um dado acidental. Podemos fazer qualquer negócio para bem atender o desejo e, isso pode se dar em razão da representação.
Vejamos o personagem Tarzan que surgiu nos quadrinhos nos EUA num momento em que se saía de trágica recessão, essa estória proporcionou a possibilidade de reinventar a civilidade, pois exibia o personagem intenso vigor, força e destreza apesar de todas as adversidades.
Então essa imaginada superação se apropria da estória de Tarzan, alcunhado de “homem-macaco”, da imaginação se extraem os sonhos. E precisamos dos sonhos para elaborar o ciclo vital composto de tese, antítese e síntese[13].
A antítese não precisa ser necessariamente um conflito, um briga, ou que deva ter destruição. Mas foram as antíteses que nos alavancaram da caverna e nos trouxeram até onde chegamos hoje. Nesse mar de paradoxos onde lutamos para termos diferenças e igualdades.
Os paradoxos ressaltam as diferenças mas reforçam as identidades e a construção de papéis e significados sociais. A função filosófica do paradoxo é esmiuçar as possibilidades existenciais.
Eliminar a antítese, assim como eliminar os sonhos significa extinguir a capacidade de evolução. São as antíteses que dão qualidade ao pensar, ao refletir, que o faz produzir vertigem[14].
No caso dos homens, o que há nos rituais de iniciação que se constituem a partir do significado ser homem, ser assertivo no trabalho produtivo, proferir a última palavra sobre as coisas, ser forte e reativo, não levar desaforo para casa, ter uma performance sexual digna de atletas, como numa maratona, o que contrasta com o mero encontro amoroso sob a luz do romantismo.
A imaginação é crucial pois se o sujeito deixa de imaginar de se colocar sobre sua própria experiência, um modo de se sentir homem. A necessária articulação da vivência e experiência sobre o projeto de vida e do mundo é cada vez mais incumbência do próprio sujeito e a escola não pode ajudar e nem o Estado.
Essa ideia de Estado mínimo que não interfere em determinadas ações, negligencia todo o aparato que nos constitui como seres humanos.
Com a vida contemporânea afinal experimentamos uma despersonalização, e não conhecemos absolutamente ninguém, e nesse contexto comparece a violência como um dado, como um fenômeno humano dentro de uma dimensão temporal.
A partir do Tarzan, em representação de sujeito que todo mundo naturalmente conhece, gradualmente ao longo do século XX assistimos a desmistificação de Tarzan e chegamos até Homer Simpson onde no discurso da emancipação vivencia a mulher autônoma e que marca seu locus na família e na sociedade.
A oposição entre homem e mulher veio marcar a transição na literatura do século XVI e XVII e a matriz foi o homem branco e heterossexual. E as mulheres em seu discurso de emancipação vieram a reivindicar um projeto em relação aos homens pela paridade de direitos em relação aos homens.
Além de financiar a emancipação das minorias, hoje os movimentos homossexuais estão reivindicando também a possibilidade de adoção de filhos, de serem enfim reconhecidos como entidade familiar.
A multiplicidade de vínculos afetivos e de conjugalidades trazem cada vez mais situações de violência e perplexidade. É mais a desestrutura familiar a nos informar que onde o pai é ausente, o filho jaz fatalmente carente. E, nesse sentido o Estado para nós foi uma representação paterna durante muito tempo.
Também a lei é uma representação, tal como a grande mãe dos direitos. Daí, enquanto os órgãos do Estado e da lei, restamos marginalizados e desfuncionalizados como pais, filhos, irmãos e vizinhos.
A pluralidade de identidades[15] provoca a banalização e desgaste, repare que todos os heróis dos quadrinhos são broncos, toscos, idiotas, boçais e, sobretudo violentos.
Homer Simpson retrata bem um sujeito que ninguém tem o menor interesse, é equivocado, e há uma identificação muito popular com ele, recentemente, há oito anos, os produtos associados a Bart Simpson vendeu mais que os produtos de Mickey Mouse,
É bom frisar que existe uma discriminação entre os próprios homens, quem é mais qualificado, mais letrado ou menos letrado. Desde os anos 20 e 30 há um empalidecimento do masculino[16] e tudo que significava dentro da sociedade ocidental, o valor de ser homem.
Desta forma, o homem vigoroso, forte, destemido, provedor e em busca de certo caminho vai desaparecendo e, se transformando em algo que não vale a pena se identificar.
O desemprego e a pobreza constroem uma indústria alimentada pela violência que faz essa apropriação do vigor, da tutela, de submeter à vítima, de humilhar a vítima, de se constituir enquanto herói, de estar no pódio, na cena pública, mesmo que seja pelo avesso.
Restou uma instabilidade na modelagem dessas identidades, por falta de vínculos pois o sujeito está sozinho, abandonado em meio a um contexto mutante e vorazmente dinâmico. E, esse sujeito contemporâneo, de intoxicante autossuficiência, de isolamento é recorrente.
Portanto, a ideia de que os homens são mais frágeis que as mulheres, refere-se a polêmica que veio com a crise do século XXI que não é uma nova concepção, mas desloca-se em ser uma crise de identidade sexual mais do que uma capacitação de produção de vínculos afetivos.
Ganha-se na diversidade, mas não há certezas quanto à identidade. Agora não há o discurso exato e nunca vai haver.
Quanto à ideia de que os homens (padrão) brancos e heterossexuais não são mais necessários, são importantes enquanto representação para existirem os discursos de emancipação.
Se for possível colocar a identidade do masculino e do heterossexual em xeque, posso fazer o mesmo com as demais identidades. A violência onde se instaura, impediu ou deixou de nascer identificação e identidades, deixou de se controlar a tensão emocional, porque a vida é tensão.
Nietzsche quando alude à imagem do homem é um sujeito em cima de um leão – em que ele circula, fazendo uma associação ao mundo emocional – dá uma tarefa sobre isso, da apropriação de sua própria vida.
A liberdade para ser amado, de se implicar numa vida produtiva está ligada a nossa capacidade de produção de vínculo, seja homens ou mulheres.
Então, a violência veio de algum modo restituir ou reparar esse vigor perdido, esse enfraquecimento, de positividade, de se sentir uma pessoa de valor.
As identidades são construídas para homens e mulheres dentro da perspectiva da imaginação. O homem pode se reinventar através de uma política de amizade e de solidariedade.
Observamos que hoje a mulher vem assumindo o lado ativo e o homem vem se apassivando. Assim, o homem se torna mais agressivo devido à perda de seu papel social, e a agressividade é uma forma de afirmar. É uma questão polêmica, pois quando as singularidades vão desaparecendo, esta violência vai crescendo proporcionalmente.
Não se reinventaram os parâmetros de masculinidade e feminilidade, assim como não se reinventou o que significa ser homem ou ser mulher. Tem lugar para todos no mundo, por vezes a maneira de se encontrar esse lugar é, através da vitimização, e por vezes através do diálogo.
O que devemos combater é a substituição do diálogo pela força da violência, pela truculência, a limar toda racionalidade e humanidade.
O ocidente contemporâneo conseguiu a consolidação das democracias através da perpetuação das guerras e mesmo diante do grande esforço pacifista cada vez mais nos deparamos com um cotidiano militarizado, hostil e eivado de alta competitividade e elevado índices de exclusão social.
É evidente que a decadência da representação social[17] masculina e as provas de que o mundo do homem sucumbiu são inúmeras e não só a ascensão das mulheres nas variadas formas de poder é percebida, mas também o maior espaço e respeito das minorias, reeditam novas lutas que se travam na busca de paridade, igualdade e fraternidade (homossexuais, portadores de necessidades especiais, religiosos e outros grupos).
O esquema da construção da masculinidade é diferente do que se produz na feminilidade[18]. Comprova-se tanto na literatura como na mitologia que não se nasce homem, e sim, torna-se homem. E monta-se cuidadosa vigilância sobre a masculinidade dos meninos.
Sócrates Nolasco ao apontar aos ícones de Tarzan a Homer Simpson buscou enfim ilustrar a banalização e decadência da representação social da masculinidade. Enquanto Tarzan é o homem que vence os desafios da natureza, Homer é expressão da decadência, da inadequação e busca uma função social diferente do homem-macaco.
De qualquer forma, o homem contemporâneo molda-se e sofre a influência de ambos os ícones, e faz da violência uma forma de expressão frequente como forma de resolução de conflitos e na busca de reconhecimento e visibilidade social.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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