Com o fortalecimento, nas últimas décadas, do regime democrático de governo, os discursos constitucionais, sobretudo o da hermenêutica constitucional, têm-se voltado para o pluralismo social e sua importância no âmbito das Constituições. As razões para tanto são óbvias, por ser o pluralismo um elemento intrínseco ao Estado Democrático de Direito.
Em um período recente da história, sobretudo, da América Latina e alguns países da Europa, o império do Estado como infalível e detentor das vontades socais condicionava o entendimento de que a sociedade estava relacionada à idéia de homogeneidade, propriamente, nas coletividades “naturais”, feliz expressão de Gisele Cittadino[1].
Contraposto ao entendimento tradicional, a modernidade impõe sua marca. As diversidades culturais, religiosas, sociais e, com maior relevo, econômicas, sobressaltam-se de tal forma que não é mais possível a qualquer um que ouse interpretar uma norma, por mais simplória que seja, afastar-se da concepção que as diferenças conduzem ao consenso.
Por essas conclusões, há de se indagar o papel da Constituição como centro de unidade nas diferenças. Muito embora não seja possível apresentar respostas fáceis, abre-se caminho à proposição de premissas que permitam melhores percepções quanto ao tema.
É possível compreender que a Constituição comporta em seu conteúdo apenas a “justificação das normas”, como ensina o professor Marcelo Gallupo[2], razão pela qual a Lei Fundamental não aponta ao intérprete a adequada concepção de seus dispositivos, por não ser coerente que o legislador constituinte originário em 1988 pudesse definir o que seria constitucional em 2006.
Não há relapso nessa omissão, mas a pretensão de que o intérprete das normas constitucionais possa fazer jus à aplicabilidade concreta, a incidência caso a caso das normas da Magna Carta, para que se evidencie a problemática constitucional.
Com maestria, ao comentar os fundamentos da nova interpretação Constitucional, expõe o professor Luís Roberto Barroso[3] que:
“as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhe pretenda dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido”.
Na verdade, como ensina o insigne professor João Maurício Adeodato,[4] o pensamento problemático evita “pensar por sistemas (…) rejeitando dados observáveis que não se encaixam no sistema adotado e freqüentemente superestimando aspectos que parecem em acordo com ele.”
Destarte, duvidoso que os anseios democráticos possam conviver pacificamente com a concentração de poderes interpretativos em um único órgão, com maior dificuldade, se o mandato dos hermeneutas jurídico-formais possui um grau mínimo de legitimidade republicana.
É o que bem observa o professor André Regis[5], ao comentar que:
“A questão da legitimidade é levantada justamente porque o STF é uma corte de dupla natureza, uma jurídica e outra política. Desse modo, seus ministros são ao mesmo tempo juízes e políticos. Eles participam do jogo político, das disputas entre os poderes, das barganhas pela distribuição do poder. Enfim, não há como comparar a natureza do STF, com a natureza dos juízes singulares, ingressos na magistratura via concurso público. É claro que, quanto não há polêmica, não há grande repercussão social para determinada decisão; assim, o STF vai parecer mais com um tribunal de natureza jurídica e não política. Assim, como quando nos tribunais inferiores alguma questão envolver grande dimensão social, quanto ao impacto sobre a governabilidade, também haverá nesses casos forte inclinação para que as decisões sejam políticas”.
Nesse sentido, traz-se à tona, em face da importância para a discussão sobre a pluraridade interpretativa da Carta Constitucional, a publicação de Peter Häberle que, em 1975, brindou a comunidade jurídica com sua obra “Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição” (Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten Ein Beitrag zur pluralistischen und “prozessualen” Verfassunginterpretations), despertando nos estudiosos do Direito constitucional, em especial da hermenêutica constitucional, o anseio de compreender e determinar a legitimidade e os limites da atuação dos intérpretes jurídico-formais da Carta Política.
Com fundamento em pensamentos do pluralismo social, Häberle, de forma brilhante, questiona o modelo clássico de interpretação constitucional (estruturado em intérpretes “corporativos” ou “autorizados” pelo Estado), por adequarem-se apenas às sociedades fechadas.
Diante de uma realidade político-social enraizada em terrenos pluralistas de uma sociedade aberta, não há como suportar um numerus clausus de intérpretes da Constituição, pois não são estes os únicos a viverem a “realidade constitucional”, o que os impede de avocar o poder de determinar o último e único sentido das normas constitucionais.
Não há como resistir um verdadeiro Estado de Direito, com maior relevo em uma democracia cidadã, quando os partícipes da sociedade não estão inclusos no círculo interpretativo da Lei Maior. Como ensina Häberle, os sujeitos que compõem a sociedade participam, ainda que não diretamente, do processo de interpretação, exercendo, na verdade, influência ímpar, pois são responsáveis pela verdadeira unidade da Constituição.
Destarte, não haveria outro caminho a não ser a passagem da sociedade fechada dos intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta (von der geschlossenen Gessellschaft der Verfassungsinterpreten zur Verfassungsinterpretation durch und für die offene Gesellschaft), em função de que[6]:
“Uma constituição, que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública (Öffentlinchkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos”.
Em razão das questões enfrentadas, conclui o autor, haveria a necessidade de ampliação, através dos meios e métodos mais diversos (sindicatos, associações, partidos políticos e, principalmente, juízes constitucionais), da participação das forças públicas no processo de interpretação constitucional, a fim de que sejam verdadeiramente discutidas e amplas as normas constitucionais.
Diante das palavras de Häberle, imperioso destacar a imprescindibilidade do amicus curiae, com berço no Direito Romano, mas desenvolvido no Direito Inglês e norte-americano, este último responsável pelo maior destaque do instituto.
Trata-se de mecanismo fundamental no processo de participação da sociedade, através de órgãos, pessoas técnicas e entidades, na formação do juízo de constitucionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal.
Decerto, ao exercer o papel de auxiliar do juízo – trazido ao processo por provocação do órgão julgador – o “amigo do tribunal” apresenta à Corte os reflexos diretos e indiretos da matéria sobre a comunidade, seja de ordem técnica, econômica, social, política e até mesmo filosófica, oportunizando, assim, o amadurecimento e influência na formação do sentimento constitucional.
Revela-se, assim, nas palavras de Dirley da Cunha Jr.[7], a importância desta figura auxiliar do Poder Judiciário no processo de pluralidade interpretativa da Carta Maior:
“A intervenção do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade pluraliza o debate dos principais temas de direito constitucional e propicia uma maior abertura no seu procedimento de interpretação constitucional, nos moldes sugeridos por PETER HÄBERLE em sua sociedade aberta dos intérpretes da constituição”.
Não obstante a disposição para uma nova interpretação constitucional – edificada sobre o pluralismo e em um método indutivo fortalecido – a ordem jurídica brasileira, após a redemocratização em 1988 e, definitivamente, com a promulgação das Emendas Constitucionais nº. 3/1993 e 45/2004, caminha a passos largos contrários ao entendimento exposto, embasado sobre dogmas questionáveis do ponto de vista instrumental[8], como os são a uniformização da interpretação constitucional e a celeridade processual.
É que, ao vincular a fundamentação jurídica ou sumular a interpretação constitucional, a Suprema Corte priva os juízes de base do poder, constitucionalmente garantido, de apreciar a Lei Maior caso a caso e, assim, decidir segundo a Lei e a sua consciência, retirando, desta forma, a própria força normativa da Constituição e contribuindo para, infelizmente, reconhecer as palavras de Ferdinand Lassale quanto à soma dos fatores reais de poder.
Mais uma vez há que ressaltar as palavras do douto Gallupo, que com clareza e simplicidade, a qualquer obra empresta maestria:
“É preciso levar em conta, então, que cumprir ou aplicar o direito, no Estado Democrático de Direito, não é cumprir ou aplicar todas as normas jurídicas contemporaneamente, mas apenas aquelas que são adequadas ao contorno fático de uma situação”.[9]
Na verdade, de forma alguma, estar-se a defender posturas extremistas, mas por qual razão impedir que os juízes, em contato com a realidade constitucional, possam apreciar o modo em que a Carta Cidadã reflete em seu contorno?
Felizes e imprescindíveis as palavras de Dieter Simon[10], para quem “o juiz é dentro do processo de criação do direito um julgador predominantemente não vinculado e, portanto, altamente independente, ao passo que institucional e interiormente depende por diversos motivos de seus entorno e de si mesmo”.
É certo que o papel dos juízes de base vai além de pôr fim às lides, pois são eles os responsáveis pela “normatividade materialmente determinada”, expressão de Friedrich Müller[11] que representa a importância e a influência da realidade na formação interpretativa das normas jurídicas.
Ademais, deve-se deixar estampado que a Corte Maior não está imune a equívocos ou contradições, assim como, a interpretações plúrimas dos preceitos jurídicos, vez que o erro é inerente ao homem e não poderia ser diferente na atividade judicante. Nesse contexto, o ex-Ministro da Justiça, Saulo Ramos, aponta caso emblemático decidido no Supremo Tribunal Federal, cuja relevância pugna a transcrição[12]:
“Exemplo mais eloqüente está na decisão que proferiu, por sete a quatro votos, na questão dos juízes dos Tribunais de Alçada, investidos pelo quinto constitucional, quando da promoção para os Tribunais de Justiça. Vencidos quatro ministros, houve embargos infringentes. No julgamento desse recurso, modificada a competência da Corte, nova decisão preferiu-se, no mesmo sentido, mas desta vez por seis a cinco votos. Finalmente, ocorreu novo julgamento da mesma matéria, em processo sucessivo, após outra alteração na composição de seus membros; o Supremo acabou decidindo de forma diametralmente oposta ao entendimento anterior, e igualmente por sete votos a quatro”.
Deveras, como bem destaca Regis[13], a prévia opção por determinada forma de compreender a norma constitucional, não é garantia de uma estabilidade e segurança jurídica, uma vez que não é capaz de constatar o impacto da Carta Magna sobre a realidade social.
Nesse contexto, é que a diversidade interpretativa não pode ser considerada sinônimo de instabilidade jurídica, porquanto, é possível que uma concepção conservadora traga a instabilidade, bem como, que a reformista atribua equilíbrio ao sistema.
De qualquer forma, o que resta consolidado é que o caminho para a segurança jurídica, por certo, não passa pela adoção de conceitos e interpretações prévias sobre o sentimento constitucional, sejam estas conservadoras, reformistas, ou revolucionárias.
Diversamente ao rumo que segue a ordem jurídica pátria, alguns ordenamentos, que outrora serviam de modelo perfeito para o direito constitucional brasileiro, dirigem-se a uma tendência pluralista e flexível, como ocorre com os stare decisis nos Estados Unidos da América, que há muito reconhece a necessidade de valorização das diferenças regionais.
Diante dessas considerações há a necessidade de se refletir sobre o caminho inoportuno em que está sendo conduzido o direito processual constitucional pátrio, que, em pouco tempo, será instrumento jurídico de interferência na condução da sociedade, quando, na verdade, o processo deveria ser inverso.
Referências bibliográficas:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Pedro Paulo Ribeiro de Moura
Advogado e Pós-Graduando em Direito Público