O poder normativo no Brasil – retrospectiva histórica

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A História revela que o modo de regulação das relações de trabalho consagrada no Brasil é o intervencionismo estatal, com fundamento na herança do regime ditatorial, implantado pelo Estado Novo, por Getúlio Vargas, que corroborou para a instalação de uma legislação trabalhista de cunho eminentemente corporativo, sob a influência evidente do corporativismo italiano, quando da outorga da Constituição Federal de 1937.


Nesta época de profundo autoritarismo, a regulação estatal das relações de trabalho, tornou-se a regra, e estava baseada em dois pressupostos: o primeiro, estava centrado, na idéia de que as relações de trabalho constituíam manifestação da luta de classes, incompatível, portanto, com o regime político imperante no Brasil, razão pela qual deveriam ser evitadas quaisquer manifestações de antagonismo, mediante o estabelecimento da ideologia da paz social, senão, leia-se a posição evidenciada pelo próprio Getúlio Vargas: “O Estado não quer, não reconhece a luta de classes. As leis trabalhistas são leis de harmonia social”. 1


Note-se que a atividade intervencionista do Estado, é concebida como um meio eficaz para coibir ou tornar desnecessária a ação sindical, sujeitando os trabalhadores a buscar no Estado a solução de seus conflitos trabalhistas, como única forma de se conseguir manter a paz social.


O segundo pressuposto, sobre o qual assentava-se a regulação estatal das relações de trabalho, evidencia-se no desenvolvimento da regulamentação minuciosa das condições de trabalho, por via legislativa, o que provoca a promulgação de abundante legislação, resultando na fragilização da contratação coletiva, unida a uma série de medidas – das quais grande parte ainda pode ser encontrada em nossa legislação atual –, quais sejam: sindicato único imposto por lei; contribuição sindical criada por lei, como instrumento de submissão das entidades de classe ao Estado; competência normativa dos Tribunais do Trabalho, com o objetivo de evitar o entendimento direto entre os interessados; proibição da greve, o que torna-se lógico, dada a existência de uma Justiça do Trabalho com competência normativa; cooptação das lideranças sindicais em órgãos do próprio Estado.


Todas estas medidas eram extremamente importantes para a manutenção do modelo filosófico e político daquele momento histórico no Brasil, e como se percebe tinham como objetivo precípuo desestruturar qualquer tentativa de mobilização sindical, e mais, jungir de forma autoritária as classes operárias a buscarem no Estado a solução de eventuais conflitos ocorrentes.


Este quadro permaneceu inalterado até 1978 – excetuando-se o direito de greve, que foi consignado no texto da Constituição Federal de 1946, sujeito, evidentemente, à severas restrições da lei ordinária, especialmente a partir de 1964, quando se iniciou o regime militarista no Brasil, que durou até 1985 –  quando começou a identificar-se o nascimento de um movimento sindical mais organizado e autêntico, fruto do natural e espontâneo avanço dos fatos sociais no país, tais como, as grandes greves deflagradas pelos metalúrgicos no Estado de São Paulo. Esta época foi marcada também pelo surgimento das Centrais Sindicais, à margem do sistema confederativo, que inicialmente foram apenas toleradas, para ao final serem admitidas como legítimas representantes de interesses profissionais em vários órgãos governamentais paritários.


Estas mudanças no cenário social redundaram no reconhecimento explícito da autonomia coletiva; na tolerância e posterior legitimação da atuação das centrais sindicais, e também na tolerância do direito de greve.


Não obstante, o epíteto conferido à Constituição Federal de 1988, reconhecendo-a como uma constituição profundamente democrática, muito do regime autoritário do Estado Novo ainda pode ser verificado em seu texto, justamente em razão da fragilidade do movimento sindical no país capaz, ao revés, de confirmar o modelo intervencionista do Estado na regulação das relações do trabalho, o que pode ser constatado da simples leitura do artigo 8º da Constituição Federal de 1988, que impõe limitações ao sindicato, quais sejam:


a) previsão do sindicato único;


b) organização sindical à base de categorias;


c) contribuição sindical obrigatória;


d) competência normativa dos Tribunais do Trabalho.


Para validar a assertiva acima, verifique-se a lição do já citado jurista Luiz Carlos Amorim Robortella:


A Constituição de 5 de outubro de 1988, embora profundamente democrática, não conseguiu, (…), afastar todos os anacronismos de nosso modelo sindical trabalhista.


(…)


Embora valorizando a negociação coletiva, cometeu o grave erro de preservar o conceito de categoria, a unicidade sindical obrigatória, a contribuição sindical imposta a todos os componentes do grupo, a proibição do sindicato por empresas (porque a base territorial mínima é o município) e o poder normativo da Justiça do Trabalho (…).2


É bem verdade, que no texto da Constituição Federal de 1988 podem ser verificados alguns avanços no sentido de imprimir um “certo ar” de modernidade no tratamento da regulação das relações de trabalho no Brasil, uma das quais, já evidenciada na lição de Luis Carlos Amorim Robortella, qual seja, ênfase à negociação coletiva, bem como, consagração da autonomia sindical e finalmente regulação mais moderna e adequada ao direito de greve.


Tais avanços dão azo para o surgimento de uma situação híbrida, para utilizar-se de um termo proposto pelo estudioso Aryon Sayão Romita, para quem, o sistema consignado pela Constituição Federal de 1988, embora bem intencionado, ao declarar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, concomitantemente, conserva os institutos básicos da organização do trabalho impostos pelo regime autoritário e corporativista do Estado Novo, legitimando tais instrumentos através de uma visão equivocada e distorcida da busca pela paz social, em nome da qual, anulou-se o contato direto entre as classes de empregadores e empregados, resultando na perpetuação do estado de inferioridade social das classes trabalhadoras.


Faz-se mister relembrar que todas as Constituições Federais no Brasil, desde 1934 – tanto as Constituições outorgadas/autoritárias; quanto as constituições democraticamente elaboradas por constituintes –, consagraram a existência dos Tribunais de Trabalho, dotando-os de competência normativa, e por conseqüência, fortalecendo o modelo estatal intervencionista nas relações do trabalho, assentado, como já anteriormente declinado em três bases: farta legislação; organização sindical de recorte corporativista e solução de conflitos centrado na Justiça do Trabalho.


 


NOTAS

1 VARGAS, Getúlio. As diretrizes da nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 214.


2 ROBORTELLA, Luis Carlos Amorim. Prevalência da Negociação Coletiva sobre a Lei. Revista LTr. São Paulo, v. 64, n. 10, p. 1237, out/2000.


Informações Sobre o Autor

Adriane Lemos Steinke

Acadêmica do 10º período da Faculdade de Direito de Curitiba/PR