Resumo: Pretende o presente trabalho tratar da questão da existência ou inexistência de crime de porte de arma de fogo que não possui munição, analisando os recentes julgados que tem oscilado bastante sobre o assunto.
Sumário: 1 – Introdução. 2 – Controvérsia jurídica. 3 – Da existência de crime. 4 – Da atipicidade da conduta. 5 – Conclusão.
1 – Introdução
A questão do crime de porte de arma de fogo de uso permitido desprovida de munição tem suscitado grandes controvérsias entre os operadores do direito de modo geral. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm travado elevados debates acerca do tema, com argumentos razoáveis quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade do referido crime. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal tem divergido bastante e mudado circunstancialmente seu entendimento.
2 – Controvérsia jurídica
Para os que entendem ser crime o porte de arma de fogo desmuniciada, a análise do tipo penal dispensa qualquer verificação da possibilidade de se causar a lesão direta a bem jurídico, representando a arma em si, um perigo suficiente para caracterizar o crime previsto no artigo 14 da lei do desarmamento. Em verdade, o crime de porte de arma de fogo sem munição seria de perigo abstrato, restando dispensada, assim, a existência de perigo concreto e efetivo a quem quer que seja.
Para os que defendem a tese da atipicidade do porte de arma de fogo sem munição, trazer consigo o referido instrumento ou até mesmo a munição de forma isolada não se estaria criando qualquer ofensa a qualquer bem jurídico, motivo pelo qual não existe crime em razão da atipicidade material da conduta por afronta direta ao princípio da ofensividade que requer sempre uma ofensa concreta a um bem jurídico determinado.
3 – Da existência de crime
Da A primeira concepção parte de uma análise mais formalista e conservadora do direito penal. Para este entendimento, crime seria todo fato típico, antijurídico e culpável, restando menosprezada a análise valorativa da norma penal.
Nesse sentido, entendeu a Primeira Turma do STF no HC 96.922/RS que tem como ementa: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO. ART. 10 DA LEI 9.437/97 E ART. 14 DA LEI 10.826/2003. PERÍCIA PARA A COMPROVAÇÃO DO POTENCIAL LESIVO DA ARMA. DESNECESSIDADE. ORDEM DENEGADA. I – Para a configuração do crime de porte de arma de fogo não importa se a arma está ou não municiada ou, ainda, se apresenta regular funcionamento. II – A norma incriminadora prevista no art. 10 da Lei 9.437/97 não fazia qualquer menção à necessidade de se aferir o potencial lesivo da arma. III – O Estatuto do Desarmamento, em seu art. 14, tipificou criminalmente a simples conduta de portar munição, a qual, isoladamente, ou seja, sem a arma, não possui qualquer potencial ofensivo. IV – A objetividade jurídica dos delitos previstos nas duas Leis transcendem a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e de todo o corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que ele propicia. V – Despicienda a ausência ou nulidade do laudo pericial da arma para a aferição da material; idade do delito. VI – Ordem denegada.[1]
4 – Da atipicidade da conduta
O segundo entendimento parte de uma análise mais valorativa da norma penal, com enfoque, principalmente, na função do direito penal e da necessidade de efetiva preservação de um bem jurídico específico. Para existir crime, seria necessário uma concreta ofensa a um determinado bem jurídico, não podendo existir a previsão de um delito desprendida de qualquer análise daquilo que se quer proteger. Não seria, assim, todas as condutas que poderiam ser previstas como crime, ficando ao livre arbítrio do legislador a opção de eleger uma conduta como criminosa. Por exemplo, não se poderia simplesmente prever como crime a conduta de usar chapéu ou de andar de bicicleta ou ainda qualquer outra ação que não represente uma relevante ofensa a um bem que não resulte numa significativa lesão intolerável pela sociedade.
Seguindo essa linha de raciocínio, entendeu a Segunda Turma do STF no RHC 99.449/MG, dessa forma ementado: AÇÃO PENAL. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Inteligência do art. 10 da Lei n° 9.437/97. Voto vencido. Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha disponibilidade imediata de munição, não configura o tipo previsto no art. 10 da Lei n° 9.437/97.[2]
Interessante, nesse caso, foi a ponderação lançada pela Ministra Ellen Gracie, vencida no referido acórdão. Para a ministra “a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação.”[3]
O melhor entendimento sobre o assunto parece passar mesmo pelo prisma do princípio da ofensividade. Realmente, não há crime sem ofensa a bens jurídicos. Ofensa é uma lesão ou um perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Sempre tem que haver uma lesão ou um perigo que seja concreto, não se admitindo o puramente abstrato. O que não é concreto, para o direito penal, é irrelevante, não havendo espaço para a abstração.
Em que pese os argumentos trazidos pela nobre magistrada, a questão principal trazida pela lei do desarmamento foi a proteção da paz pública, não no sentido do potencial de intimidação de forma individual, mas no de coibir de forma coletiva o trânsito livre de armas, até mesmo para evitar um acesso mais fácil daqueles que a usariam em práticas delitivas. Ainda assim, não se justificaria o crime de porte de arma sem munição por não representar de forma individual qualquer ofensividade no caso concreto. A questão envolve uma política de segurança pública que não deve ser resolvida pelo direito penal, mas que pode ser facilmente regulamentada por normas administrativas próprias.
Luiz Flávio Gomes, de forma apropriada, parece dar a adequada solução jurídica ao caso, sustentando a inexistência do crime de porte de arma de fogo sem munição e a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, nos seguintes termos: “O fato cometido, para se transformar em fato punível, deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma; não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado – ‘nullum crimen sine iniuria’ (Gomes, 2002b). (…) Em virtude do princípio da ofensividade, de outro lado,está proibido no Direito penal o perigo abstrato. Porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada: para quem não considera o princípio da ofensividade, há crime. Essa concepção, entretanto, segundo nosso ponto de vista, é inconstitucional, pois não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais.”[4]
5 – Da conclusão
Nesse contexto, em conclusão, a proibição contida na norma penal em apreço deve ser interpretada restritivamente, afastando-se a tipicidade e, consequentemente, o próprio crime da conduta de portar arma desmuniciada, de forma a adequar-se à nova ordem constitucional e à moderna concepção do direito penal que não se sustenta e não se contenta com a visão retilínea do direito penal que privilegia o legalismo exarcebado.
Informações Sobre o Autor
Fernando da Cunha Cavalcanti
Defensor Público Federal