Resumo: O presente ensaio tem por objetivosdemonstrar a possibilidade de se estabeleceruma classificação para o valor dignidade da pessoa humana diferente do adotado majoritariamente pela doutrina nacional, qual seja a deprincípio jurídico, com filiação à Teoria dos Princípios de Humberto Ávila, no que toca à classificação como postulado normativo aplicativo; e buscar demonstrar a forma pela qual a dignidade da pessoa humana se manifesta nas relações entre o Estado-Administração e os particulares, mormente nas negociais, representadas pelos contratos administrativos.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais – Dignidade da Pessoa Humana – Postulado Normativo – Contrato Administrativo – Boa-Fé Objetiva
Abstract: This paper aims to demonstrate the possibility of establishing a classification for the value of human dignity different from that adopted by the majority national doctrine, what is the legal principle, affiliation with the Theory of Principlesof Humberto Avila regarding the classification as postulated regulatory application; and seek to demonstrate the way in which human dignity is manifested in the relations between the State Administration and individuals, especially those negotiated, represented by the administrative contracts.
Keywords: Fundamental Rights – The Human Dignity – Normative Postulates – Administrative Contract –Objective Good Faith
Sumário: 1. Introdução – 2. Os Direitos Fundamentais – 3. A Dignidade da Pessoa Humana: 3.1. Noções Gerais; 3.2. A dignidade da pessoa humana e seu significado – 4. Um breve panorama da Teoria dos Princípios de Humberto Ávila – 5. A dignidade da pessoa humana como postulado normativo – 6. Breves anotações sobre a Boa-Fé Objetiva: 6.1. Origem histórica; 6.2. Distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva; 6.3. As funções da boa-fé objetiva; 6.4. Boa-fé objetiva no Direito Brasileiro: fundamentos constitucionais e legais – 7. A Boa-Fé Objetiva e o Direito Administrativo Brasileiro – 8. O princípio da boa-fé objetiva como vetor da dignidade da pessoa humana nos contratos administrativos -9. Considerações Finais – Referências
1 INTRODUÇÃO
Deitando-se os olhos por sobre a linha da história da humanidade, certamente poderão ser visualizados inúmeros episódios de profunda crueldade do homem para com o próprio semelhante. A escravidão, as guerras, todos os atos de barbárie já cometidos contra a humanidade causam choquee estarrecimento. Talvez, para guardar uma distância não tão grande na linha do tempo, o Holocausto, durante a Segunda Grande Guerra, tenha sido o ato mais marcante e exemplificativo de quão cruel pode ser o Homem consigo mesmo, considerado como espécie animal, um animal racional. As cenas divulgadas no Julgamento de Nuremberg, até então inéditas para as pessoas daquele tempo de pós-guerra, de cadáveres amontoados e formando pilhas de seres humanos descartáveis, de tratores empurrando corpos para dentro de buracos, como se fossem pura terra, tudo reforçava uma certeza no coração e mente de todas as pessoas humanas: aquilo não poderia acontecer novamente.
Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão procurou exortar o Homem enquanto pessoa humana e tratou de iluminar de forma especial o aspecto dignidade do ser humano. Afinal, aquilo tudo não poderia, nem deveria se repetir. Entretanto, para que seja afrontadoo valor dignidade da pessoa humana, não se faz necessário um Novo Holocausto. No cotidiano da vida em sociedade, talvalor é, por vezes, desrespeitado de forma silenciosa e velada.
Promulgada em 1988, a Constituição Cidadã cuidou de proteger a dignidade da pessoa humana, tratando-a como fundamento da República em seu art.1º, inciso III[1].
Pode-se dizer que, como fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana alavancouenormes avanços no campo dos direitos fundamentais, tanto em termos legislativos, quanto jurisprudenciais: o Estatuto do Idoso,A Lei Maria da Penha, para citar exemplos legislativos, bem como a possibilidade de alteração de nome de pessoas submetidas a cirurgias de transgenitalização e a de adoção por parceiros homossexuais[2], para exemplificar com a jurisprudência. A dignidade da pessoa humana é tida, majoritariamente, como um princípio, ou melhor, um metaprincípio, norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Tal classificação como princípio seria realmente a mais adequada, diante de tanto poder no que concerne ao ordenamento jurídico nacional, e também internacional, ou haveria um outro lugar conceitual no mundo jurídico no qual de classificaria o valor dignidade da pessoa humana?
Em um ramo específico do direito pátrio, faz-se interessante analisar o tratamento dado aovalor dignidade da pessoa humana, notadamente nos contratos celebrados entre o particular e a Administração Pública. Trata-se do Direito Administrativo. No regime jurídico-administrativo, a parte se torna secundaria em relação ao todo. Dito de outra forma, em face da supremacia do interesse público, a pessoa humana individual e concretamente observada, por vezescede lugar ao valor interesse público, moradada dignidade da pessoa humana quando observada de forma coletiva e difusa.Mas, especificamente em face do Contrato Administrativo, como se daria a manifestação do valor dignidade da pessoa humana em um ramo do Direito tão marcado pela legalidade estrita e pelo princípio da impessoalidade?
Com o presente trabalho tem-sepor objetivo apresentar uma possibilidade derespostaàsduas indagações postas neste pequeno introito. Verificar-se-á se existe uma outra classificação possível para o valor dignidade da pessoa humana diferente do adotado majoritariamente pela doutrina brasileira, bem como se procurará demonstrar o modo demanifestação do valor dignidade da pessoa humana nas relações negociais entre Estado-Administração e particulares, ou seja, nos contratos administrativos.
Entretanto, não há como falar de dignidade da pessoa humana sem que se lance um breve olhar panorâmico sobre o tema Direitos Fundamentais.
2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Encontrado no ano de 1901, na região do atual Irã, e hoje sob a guarda do Museu do Louvre, em Paris, o Código de Hamurabi pode ser citado como o primeiro registro escrito de leis que diziam respeito a direitos fundamentais. Escrito por volta de 1780 A.C. em uma pedra negra de diorito, a referida legislação babilônica continha 281 leis (ou mandamentos) baseados na Lei do Talião (olho por olho, dente por dente) e que já tratava de alguns direitos hoje considerados fundamentais, tais como a propriedade e a honra.
Desde então, pode-se dizer que a evolução histórica dos direitos fundamentais, considerando-se o Código de Hamurabi como primeiro registro escrito, está intimamente relacionada com a história de angústia e sofrimento da raça humana. Entretanto, a despeito da referida origem remota no tempo, os direitos fundamentais, como são conhecidos nos dias atuais, nascem no final do século XVIII. Conforme as lições de Dirley da Cunha Júnior[3]:
“[…] foi no século XVIII, com a vitória da revolução liberal na França e a independênciadas colônias inglesas na América do Norte, que nasceram definitivamenteos direitos fundamentais, a partir daDeclaração do Bom Povoda Virgínia de 1776, seguida da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Após essas Declarações, quase todas as Constituições do mundo passaram a dispor de uma Declaração de direitos, a começar com a constituição norte–americana de 17 de setembro de 1787, em face das suas primeirasdez emendas, promulgadas em 1791.”
Mas o que seriam os chamados direitos fundamentais? Estabelecer um conceito exato é tarefa extremamente difícil, entretanto, ainda na doutrina de Dirley da Cunha Júnior, os direitos fundamentais poderiam ser conceituados como “[…] aquelas posições jurídicas que investem o ser humano de um conjunto de prerrogativas, faculdades e instituiçõesimprescindíveisa assegurar uma existência digna, livre, igual e fraterna de todas as pessoas.[4]”
Da análise do conceito colacionado, pode-se deduzir que a ideiade direitos fundamentais tem estreita relação com o conceito de Democracia, uma vez que é no regime democrático que os direitos fundamentais se tornam efetivos. Nesse sentido, o pensamento de Paulo Gustavo Gonet Branco[5]:
“Os direitos fundamentais são hoje o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade democrática é condição imprescindível para a eficácia dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais eficazes e democráticos são conceitos indissociáveis, não subsistindo aqueles fora do contexto desse regime político.”
Ainda no que toca ao tema de direitos fundamentais, lugar comum é o aspecto relativo às suas diferentes gerações. Do ideário da Revolução Francesa, especificamente do lema daquele movimento, qual seja,liberdade, igualdade e fraternidade, costumam ser destacadas as diferentes gerações de direitos fundamentais. Referente àsliberdades públicas, estariam ligados os direitos fundamentais de primeira geração: seriam os direitos e garantias individuais e políticos tradicionais inseridos na Carta da República de 1988, notadamente o artigo quinto. Os classificados como de segunda geração seriam os relacionados aos direitos econômicos, sociais e culturais. Já os direitos de terceira geração, de fraternidade ou solidariedade, poderiam se fazerrepresentar pelo o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, à paz, àsegurança, enfim, aos direitos difusos e coletivos.
De tendência mais atual, fala-se, doutrinariamente, em direitos fundamentais de quarta geração, mormente em face do fenômeno da globalização. Tomando de empréstimo as lições de Dirley da Cunha Júnior, “o direito à democracia direta e globalizada é o mais importante dos direitos fundamentais de quarta dimensão, no qual o Homem é a constante axiológica, para o qual convergem todos os interesses do sistema.”[6] Frutos do desenvolvimento tecnológico, podem ser também incluídos no rol de direitos de quarta geração aqueles relacionados com a biotecnologia (experimentos envolvendo genética, pesquisas com células tronco, etc).
Posterior a um período de exceção de duas décadas, em face do golpe militar de 64, a Constituição Federal de 1988 tratou de positivar os referidos direitos fundamentais logo em seu Título II, dando mostras inegáveis da importância que passaria a ser dada ao homem, enquanto ser humano e cidadão. Era uma resposta aos anos de desconsideração àqueles mesmos direitos,sob a justificativa da SegurançaNacional. Ao revés do que se vivera em tempos de ditadura, a partir de 1988 o Estado tornou-separtícipe e motivador da plena realização do homem, do ser humano.
Quando se trata do tema Direitos Fundamentais, o ser humano é elemento central. O Homem enquanto espécie humana é quem detém a titularidade dos direitos fundamentais. E nesse sentido, nada mais fundamental, até porque registrado na Carta Maior como fundamento da República Federativa do Brasil, do que o valor dignidade da pessoa humana. Mas qual seria o significado do termo dignidade da pessoahumana?
3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
3.1 Noções Gerais
Se for considerada a história da humanidade e os principais capítulos em que a dignidade do Homem, enquanto ser humano, foi terrivelmente atacada, verificar-se-á ser o aspecto liberdade o que mais se relaciona com a dignidade. Liberdade que faltava aos escravos da antiguidade e da era moderna, bem como a liberdade que faltou ao povo judeu durante o regime nazista.
A falta de liberdadereduziu o homem à situação de coisa, seja do escravo em relação ao seu proprietário, seja do judeu em relação ao seu opressor. Pode-se dizer, com margem de certeza bastante larga, que há uma íntima relação entre liberdade e dignidade: sem aquela, a pessoa humana encontra-se destituída desta. A possibilidade de escolha de seu próprio destino não se faz possível, caso o Homem não possua liberdade. Nesse contexto, estabelecendo um ponto de partida essencialmente delimitador e para fins estritos deste trabalho acadêmico, poder-se-ia dizer que a história bíblica do pecado original, do livre-arbítrio de Adão em provar ou não dofruto proibido, marca a distinção entre o homem e o animal, a liberdade de escolha consciente como fator principal da dignidade do ser humano.
De Adão e Eva aos dias atuais, a dignidade da pessoa humana passou por diversos estágios. Nelson Rosenvald assim sintetiza a evolução do referido valor[7]:
“Como síntese dessa evolução trifásica do princípio da dignidade da pessoa humana, percebemos que toda a evolução do tema se resume a seguidas alterações de seus pontos de referência. Inicialmente a dignidade se localiza em Deus, era externa ao homem, posto concedidapor um ente superior; em um segundo momento, a dignidade migra para o interiordo ser humano, associando-se à racionalidade e liberdade como atributos exclusivos da pessoa natural; por fim, brutais atentados contra a dignidade demonstram a necessidade de localizar a dignidade como princípio constituinte do Estado Democrático de Direito”.[8]
Percebe-se, assim, que a dignidade da pessoa humana é hoje um valor inerente e inseparável do Estado Democrático de Direito, servindo como base para todo o ordenamento jurídico dos países que adotam o lema do governo do povo e pelo povo.
Quando se falade dignidade, se está a falar de respeito a aspectos particulares da raça humana, valores que só importam aos seres com capacidade de raciocínio, que saibam diferenciar entre aquilo que os degrada ou não como pessoas. Mas,suponha-se ocaso de um recém-nascido, com capacidade apenas potencial de raciocínio, mas sem possuir, ainda, discernimento para estabelecer tais diferenciações. Estariam tais seres humanos desprovidosdo valor dignidade da pessoa humana? A resposta a tal questionamento passa pela compreensão do adequado significado do valor dignidade da pessoa humana.
3.2 A dignidade da pessoa humana e seu significado
Immanuel Kant[9] traz em um trecho de uma de suas Críticas, um valioso auxílio para o entendimento do significado do valor dignidade da pessoa humana:
“Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja um fim em si mesmo, isto é, não possa nunca ser utilizado por alguém (nem mesmo por Deus) apenas como um meio, sem ao mesmo tempo ser um fim; que, portanto, a humanidade,em nossapessoa, deve ser para nós sagrada, é a consequência disso, pois o homem é o sujeito da lei moral e, por conseguinte, também do que é santo em si, e em razão do qual se permite chamar santo a tudo o que com isso estiver em concordância.’
O que de mais importante pode ser destacado no trecho acima transcrito diz respeito ao homem como um fim em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado por qualquer pessoa, nem mesmo por Deus. Dessa forma, a escravidão, como já referenciada no início deste trabalho, talvez possa ser tomada como o maior e melhor exemplo de ato atentatório à dignidade da pessoa humana, uma vez que representa a subjugação total do Homem pelo próprio Homem, em outras palavras a completa coisificação do ser humano.
A dignidade da pessoa humana é valor a ser respeitado no trato e nas relações entre as pessoas, ou seja, envolve um conceito de reciprocidade. Em suas relações cotidianas, sejam negociais, sejam afetivas, o valor dignidade da pessoa humana deve ser o norte de todas as condutas. O Homem não deve se deixar subjugar por seu semelhante, mas também não pode tratar o seu próximo como instrumento para realização de seus objetivos. Neste ponto, cabe destacar o clássico exemplo colhido da jurisprudência francesa conhecido como o caso do arremesso de anões. Tratava-se de um jogo em que anões eram arremessados por sobre colchonetes e no qual se sagrava vencedor aquele que conseguisse lançar o anão a uma distância maior que a dos concorrentes. Amunicipalidade proibiu o jogo por representar atentado à dignidade da pessoa humana.[10] Nessa mesma linha podem ser encontrados exemplos de atentado à dignidade da pessoa humana no Brasil, como no caso de um programa de televisão que exibia um anão que, vez ou outra, levava tapas na nuca por parte do apresentador, ou o caso das famosas câmeras escondidas, que acabavam por expor transeuntes a situações constrangedoras.
Em todos os exemplos citados no parágrafo anterior, incluindo o francês, o que se pode perguntar é: e se aqueles que foram ou estavam sendo ofendidos em sua dignidade assim o tivessem consentido, normalmente por uma questão de falta de opção laborativa, como realmente se deu no caso na França? A autonomia da vontade não superaria aafronta à dignidade da pessoa humana em tais casos? Entra aquiuma outra característica extremamente importante e essencial da dignidade da pessoa humana – a sua indisponibilidade.
A dignidade não pode ser objeto de contrato, não pode ser cedida ou alienada. Ela não pertence à pessoa individualmente considerada. Daí a importância da expressão pessoa humana, tendo a palavra humana, também,o significado de humanidade. Ditocom outras palavras, a dignidade em questão não pertence a Beltrano ou a Sicrano, é um atributo de toda a humanidade, do ser humano considerado como espécie animal racional. Ainda nas palavras de Nelson Rosenvald: “A dignidade da pessoa humana indica que fazemos parteda Humanidade, de uma grande comunidade global”[11].
Vistos esses dois aspectos/características essenciais da dignidade da pessoa humana, quais sejam aalteridade/reciprocidade e a indisponibilidade, cabe passar os olhos sobre um último ponto: sua não aplicabilidade às pessoas jurídicas. É sabido que no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de uma ficção, duas são as ordens de pessoas que gozam de proteção jurídica: as pessoas naturais e as jurídicas. Entretanto, a dignidade da pessoa humana é um atributo exclusivo das pessoas naturais, ou humanas, já que a legislação civil salvaguarda os direitos do nascituro. Seria impensável a situação de uma pessoa jurídica se sentir humilhada ou constrangida por um ato qualquer de outrem, até mesmo porque os sentimentos, como os da humilhação e constrangimento, são exclusivos do ser humano.
Na tentativa de traduzir o significado do valor dignidade da pessoa humana em poucas palavras, poder-se-ia dizer que é um atributo inerente ao ser humano, vivo ou com condições de nascer com vida (no caso do nascituro), que vincula e limita o comportamento e atitudes entre as pessoas (alteridade), sendo indisponível e inalienável por pertencer a toda a humanidade e que não se faz presente nas pessoas criadas por ficção legal (pessoas jurídicas). Pode-se inferir que toda vez que o ser humano é tratado como objeto ou instrumento para algo, ou que é colocado em patamar inferior ao de seu semelhante, estará presente uma afronta ao valor dignidade da pessoa humana.
Até aqui se analisou a dignidade da pessoa humana como um valor, um fundamento do Estado Democrático de Direito. No entanto, e com a devida vênia, busca-se neste trabalho um tratamento para a dignidade da pessoa diverso do majoritário, qual seja a classificaçãocomo princípio, por se acreditar na existência de uma outra possível categoria jurídica.
4UM BREVE PANORAMA DA TEORIA DOS PRINCÍPIOS DE HUMBERTO ÁVILA
Preocupado e interessado no tema regras e princípios, Humberto Ávila, chega a afirmar que “[…] a doutrinaconstitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico”[12]. O jurista brasileiro desenvolveu uma teoria própria sobre princípios em sua obra Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Entretanto, não se pode falar da Teoria de Ávila sem um pequeno pincelar sobre a teoria proposta pelo jurista alemão Robert Alexy, da qual o jurista brasileiro discorda em alguns pontos fundamentais.
Alexy constrói sua teoriacom base em uma distinção entre as definições deregras e princípios, mas apontando que ambas estariam compreendidas no conceito geral de norma. Segundo o jurista alemão, princípios seriam mandamentos de otimização, que poderiam ser ou não satisfeitos, a depender de possibilidades fáticas e jurídicas. Já as regras seriam normas que seriam sempre satisfeitas ou não, sendo, portanto, determinações dentro do âmbito daquilo que é possível em termos fáticos e jurídicos. Para o referido jurista, o conflito entre regras seria solucionado em termos de validade (uma regra seria considerada válida ea outra inválida), já o conflito entre princípios seria solucionado por meio de ponderação em face dos pesos atribuídos a cada princípio diante de uma situação concreta. De forma extremamente resumida é o que apontouRobert Alexy.[13]Considerando-se tal doutrina, o valor dignidade da pessoa humana se enquadraria perfeitamente no categoria de princípio.
Em relação a Alexy, odoutrinador brasileiro inovou estabelecendo uma divisão hierárquica entre as normas. Para Ávila existiriam as normas de primeiro grau e as de segundo grau. Normas de primeiro grau seriam os princípios e as regras, enquanto as de segundo grau seriam os postulados normativos.
No tocante à distinção entre princípios regras, Humberto Ávila estabeleceu diversos critérios de diferenciação: critério do caráter hipotético-condicional, critério do modo final de aplicação e o critério do conflito normativo.[14]Contudo, a despeito de várias inovações e diferenciações entre as teorias de Alexy e Ávila, destaque-se que, para o brasileiro, não só o conflito entre princípios se solucionaria por meio da ponderação, mas também o conflito entre regras.[15]
Retomando o já ditoquanto à novidade trazida por Ávila no tocante a uma hierarquização dos tipos de normas, pode-se, de forma bastante sintética e objetiva, dizer que, para o jurista, existiriam normas de primeiro e de segundo graus, sendo queestas últimas situar-se-iam num patamar superior ao das primeiras. As normas de primeiro grau seriam os princípios e as regras, já aclassificação como normas de segundo grau estaria reservada aos postulados normativos. Mas o que seriam taispostulados? É Ávila quem responde:
“Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como meta normas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. Nesse sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas. Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas.” [16]
Considerando-se a transcrição acima, maior relevo será dado, neste ensaio, aos postulados aplicativos, uma vez que irão conduzir e estruturar a correta aplicação das normas de primeiro grau, quais sejam as regras e os princípios. E é o que acontece justamente com a dignidade da pessoa humana: trata-se de um valor maior a guiar todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que a doutrina majoritária chama de metaprincípio e que, na visão de Ávila, poderia passar a ser chamado demetanorma. Mas tal questão será retomada adiante. Na intenção de esclarecera distinção entre postulados e regras de primeiro grau (regras e princípios), Ávila continua:
“Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas”.[17]
Da leitura do trecho da obra deHumberto Ávila, conforme reproduzido alhures, pode-se concluir que não há que se falar em conflito entre postulados, diferentemente com o que acontece em relação aos princípios e regras que, por vezes, podem entrar em uma situação de colisão entre si e consigo mesmos.
Neste ponto dopresente ensaio, é possívelantecipar que, por suas características e força de condução e estruturação do ordenamento jurídico,o valor dignidade da pessoa humana pode perfeitamente se enquadrar na categoria de postulado normativo aplicativo.
5A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO POSTULADO NORMATIVO
Como já registrado, a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Isto quer significar que todo o ordenamento jurídicopátrio é orientado e tem de estar em consonância com o respeito ao valor dignidade da pessoa humana, sob pena de grave vício de inconstitucionalidade. Repetindo o já transcrito anteriormente, para Humberto Ávila os postulados normativos aplicativos “[…] qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas”[18]. E não seria justamente essa uma definição para o valor da dignidade da pessoa humana, ou seja, uma metanorma?
Em sua obra sobre a Teoria Geral do Direito Civil, a despeito de tratar a dignidade da pessoa humana como princípio, Cristiano Chaves de Farias, de forma isolada no texto, mas de bastante coerência, qualifica a dignidade da pessoa humana como postulado fundamental da ordem jurídica brasileira:
“Enfim, o postulado fundamental da ordem jurídica brasileira é a dignidade da pessoa humana, enfeixando todos os valores e direitos que podemser reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirmação de sua integridade física, psíquica e intelectual, além de garantir a sua autonomia e livre desenvolvimento da personalidade.”[19]
A título de reforço do posicionamento defendido neste trabalho, qual seja o de classificação da dignidade da pessoa humana em uma categoria diversa da de princípio, pode-sedizer, de forma bastante simples, que o referido valor funciona como postulado, pois dentrodo ordenamento jurídico brasileiro é o único caminho a seguir, é o norte daquele que faz, daquele que interpreta e daquele que aplica o Direito. Neste ponto salutar se faz a criação de uma pequena metáfora: imagine-se uma autopista com duas ou mais faixas e que, após determinada distância, se afunila em uma ponte com uma só pista (para a passagem de um único automóvel). Imagine-se, ainda, que tal ponte separa um estado A de um outro estado B. Suponha-se que o estado A seja denominado estado da situação concreta e que o estado B seja o Estado Democrático de Direito. Os veículos em movimento e em direção à ponteseriam os princípios e/ouas regras. Consequentemente, só haveria um nome possível para essa ponte imaginária: postulado da dignidade da pessoa humana. Somente um veículo (princípio ou regra), após a corrida (conflito) travada em direção à ponte, poderia seguir pelo único caminho e norte (postulado da dignidade da pessoa humana) que conduz ao estado B (à realização do Estado Democrático de Direito).
Como postulado normativo, a dignidade da pessoa humana, conforme dito, se espraia por sob toda a estrutura normativa do Estado Brasileiro, como verdadeira argamassa amanter coesas as bases do Estado Democrático de Direito. À vista disso, todos os ramos do Direito são irrigados pelo postulado da dignidade da pessoa humana, até mesmo um ramo tradicionalmente marcado por um princípio quase absoluto, oda supremacia do interesse público sobre o particular. A referência, aqui, é ao Direito Administrativo. E se há, em tal ramo jurídico, um local em que o Estado atua com supremacia de poder, em patamar de superioridade em relação ao particular, haja vista a existência das cláusulas exorbitantes (rescisão unilateral, fiscalização pela Administração, aplicação de sanções administrativaspor parte da Administração), esse local é o Contrato Administrativo. Mas, diante de tamanha superioridade do Estado frente ao particular em sede de contratos administrativos, como se dá a manifestação do postulado da dignidade da pessoa humana em tal relação jurídica negocial de direito público? A resposta repousa na boa-fé objetiva, a qual merece ser melhor estudada, mesmo que de maneira sintética.
6 – BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A BOA-FÉ OBJETIVA
6.1 Origem histórica
Uma brevíssima exposição acerca da origem histórica da boa-fé passa necessariamente por uma sucinta descrição sobre os modelos romano, francês e alemão, conforme o que se verá a seguir, com base na pesquisa de Nelson Rosenvald[20].
A origem remota da boa-fé pode ser encontrada no direito romano. A palavra dada em uma relação obrigacional entre os romanos era garantida pelabona fides, que servia de base para as decisões do juiznas situações em que não havia texto expresso de lei. Nessa fase, a boa-fé era interpretada em face do aspecto honestidade, que devia permear as relações obrigacionais.
A boa-fé, já com sua feição objetiva, ressurge no direito francês, em 1804,com o Código de Napoleão. Semeando o viés objetivo da boa-fé como entendido hoje, oCódigo Civil Francês trazia em seu art. 1.134 que as convenções formadas com base na lei eram tidas como lei entre as partes e que deveriam ser executadas de acordo com a boa-fé. Ora, era a fase histórica de plena ascensão da burguesia após a Revolução Francesa e interessava àquela classe que os contratos continuassem sendo cumpridos de forma rigorosa e sem intervenção interpretativa do magistrado. Permanecia o positivismo e a exegese com base na literalidade do texto legal. A segunda parte do artigo, que mencionava a boa-fé,desafiava os interesses da classe economicamente dominante e que tinha nos negócios celebrados, sem discussão quanto a aspectos éticos e morais, a fonte de seu poder[21]. Malogravam, assim, os efeitos objetivos do princípio da boa-fé.
Foi no direito alemão, mais precisamente no BGB de 1900, que a boa-fé objetiva ganhou força e se espalhou pela codificação européia em sua quase-totalidade. Trazia o § 242 do BGB que o devedor deveria cumprir a obrigação considerando a boa-fé e os costumes do tráfego.[22]
Neste ponto faz-se mister tecer breves considerações acerca do princípio da boa-fé, mormente a distinção entre sua feição subjetiva e objetiva.
6.2Distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva
Quando se fala em boa-fé, imprescindível que se separe aquela que é interna ao indivíduo daquela que se apresenta externa às pessoas.
No primeiro caso, fala-se de um sentimento das pessoas de estar agindo de forma correta, de acordo com o Direito, quando , na verdade, tal correção só existe de forma aparente. É a boa-fé subjetiva. Nelson Rosenvald leciona: “A boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico, em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direitoque em verdade só existe na aparência”[23].
A segunda espécie de boa-fé se traduz na boa-fé objetiva. Tratando especificamente do princípio da boa-fé objetiva, Rosenvald continua seu magistério:
“Ele compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”.[24]
Com escólio nas lições do civilista brasileiro, pode-se dizer que subjetivamente alguém age de boa-fé e objetivamente alguém age segundo ou conforme a boa-fé.
No que interessa ao presente trabalho, vale destacar que a boa-fé objetiva encontra sua razão de ser na necessidade de retidão, cooperação e solidariedade entre as pessoas, na busca da justiça social e na repressão aos comportamentos deficientes em lisura e honestidade.[25]
A atuação da boa-fé objetiva, notadamente na seara do direito obrigacional, se dá de diversas formas: seja auxiliando na interpretação de negócios jurídicos, seja integrando os acordos de vontade celebrados no seio social, seja estabelecendo limites à atuação das partes quando da execução dos negócios jurídicos. São as diversas funções da boa-fé objetiva.
6.3As funções da boa-fé objetiva
No que concerne à manifestação do princípio da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais, três funções básicas podem ser destacadas: a interpretativa, a integrativa e a limitativa.
A função interpretativa diz respeito ao próprio mandamento legal, conforme o art. 422, do Código Civil de 2002, de que as pessoas, ao firmarem acordos de vontade, deverão se pautar conforme o princípio da boa-fé.[26] Um contrato que venha a ser interpretado por um magistrado, em uma eventual lide judicial, o será com base na boa-fé objetiva e não somente considerando a vontade interna dos contraentes (teoria da vontade – Savigny/Windscheid) ou a vontade externa representada pela literalidade das cláusulas contratuais (teoria da declaração – von Bulow).[27]
No que diz respeito à função integrativa da boa-fé objetiva, diz-se, consoante a doutrina majoritária sobre o tema, que, antes, durante e depois da execução de um contrato, devem ser observados alguns deveres de conduta entre os contratantes. Tais deveres passam a integrar o acordo de vontade, ainda que não previstos expressamente no instrumento de avença. São deveres de lealdade, informação, cooperação e proteção. Lealdade está intimamente relacionado com a ética e a honestidade no trato entre as pessoas. A informação trata do dever de levar ao conhecimento da parte contratante todas as informações relevantes inerentes ao objeto do contrato, a exemplo das bulas de medicamentos, composição de produtos alimentícios, alerta quanto à nocividade de produtos de limpeza, dentre inúmeros outros exemplos. Em cumprimento ao dever de cooperação, as partes devem se prestar ajuda mútua com o fito de alcançar o objetivo do contrato. Nesse sentido não basta ao adquirente de um imóvel em construção exigir do construtora entrega do objeto contratado, terá ele também de pagar as prestações em dia. Por fim, a proteção relaciona-se com o dever mútuo dos contraentes de manter a integridade do outro. Exemplificando, o dever de proteção obriga as companhias aéreas a disponibilizar equipamentos salva-vidas aos passageiros como forma de proteção e preservação da integridade física dos mesmos.
A última função, mas não menos importante, é a função limitativa. A limitação, in casu, refere-se ao estabelecimento de limites no que tange ao comportamento das pessoas com o objetivo de afastar o abuso de direito, tratado pelo Código Civil Brasileiro como ato ilícito.[28] Mas como a boa-fé objetiva pode funcionar como um limitador à ação das pessoas, evitando-se, assim, o cometimento do abuso de direito? A resposta está em alguns coroláriosda boa-fé objetiva: a proibição do venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio e o tu quoque.
O venire contra factum proprium é a vedação de comportamento contraditório, assim definido por Cristiano Chaves de Farias:
“[…] a vedação de comportamento contraditório obsta que alguémpossa contradizer o seu próprio comportamento, após ter produzido, em outra pessoa, uma determinada expectativa. É, pois, a proibição da inesperada mudança decomportamento (vedação da incoerência), contradizendo uma condutaanterioradotada pela mesmapessoa, frustrando as expectativas de terceiros. Enfim, é a consagração de queninguém pode se opor afato que ele próprio deu causa.”[29]
Quanto às figuras da supressio e da surrectio, ambas são faces de uma mesma moeda, significando a perda de uma vantagem(supressio) por alguém que deixa de exercer seu direito e a aquisição de um direito (surrectio) pela outra parte beneficiada pela omissão do primeiro. Ainda com as lições de Cristiano Chaves:
“[…] é possível dizer que supressio é o fenômeno da perda, supressão, de determinada faculdade jurídica pelodecurso do tempo, ao revés asurrectioque se refere ao fenômenoinverso, isto é, o surgimento de uma situação de vantagem para alguémem razão do não exercíciopor outrem de um determinado direito, cerceada a possibilidade de vir a exercê-lo posteriormente”.[30]
Finalmente, o tu quoque tem sua origem na expressão “Tu quoque, Brutus, tu quoque, fili mili?”. Foi oque indagou Júlio César (44 a.C.), quando identificou, entre aqueles que o assassinavam, a pessoa de Marco Júnio Bruto, a quem considerava como um filho. A expressão tu quoque significa “até tu”, “também tu” e se verifica na hipótesede alguém adotar um comportamento violador de uma norma jurídica e posteriormente tentar tirar vantagem ou proveito da situação com o objetivo de se beneficiar.[31]
Após traçado esse breve e conciso panorama acerca das funções da boa-fé objetiva, mister se faz conhecer quais os fundamentos constitucionais e legais do princípio da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
6.4Boa-fé objetiva no Direito brasileiro: fundamentos constitucionais e legais
Inicialmente, faz-se importante entender os fundamentos do princípio da boa-fé objetiva com base na Constituição Federal de 1988. Em sede do máximo diploma legislativo do país, podem ser destacados dois pilares que dão suporte à existência da boa-fé objetiva como padrão de conduta entre as pessoas: o postulado da dignidade da pessoa humana e o princípio do solidarismo.
O postulado da dignidade da pessoa humana, como já exposto, serve de norte e arcabouço estrutural de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Deve-se entender tal ordenamento como um verdadeiro bloco de legalidade, mormenterepresentado pelo princípio dajuridicidade, e que engloba não só as leis escritas, como também os costumes, os princípios, as praxes administrativas e a jurisprudência. Em outras palavras, tudo que diga respeito ao agir de um ser humano para com outro ser humano (englobando aí também o agir em relação ao meio-ambiente) deve ser pautado por um comportamento de respeito, sem dolo de prejudicar o outro, sem egoísmo e individualismo, enfim, nada deve ser feito ao outro que, se feito àquele que age, viesse a ofendê-lo ou atentar contra sua dignidade.
Dentro do postulado maior do nosso ordenamento, tratar o outro com dignidade é não frustrar suas legítimas expectativas, não submeter o outro a surpresas que possamvir a causar prejuízos ou constrangimento, em suma, não frustrar a confiança legítimaque deve permear as relações entre as pessoas. Imagine-se uma situação muito corriqueira e que talvez seja um dos melhores exemplos de manifestação do postulado da dignidade da pessoa humana via princípio da boa-fé objetiva: os contratos que envolvem os planos de saúde ou os seguros-saúde.
Imaginemos que uma pessoa contrate um determinado plano de saúde e passe a quitarmensalmente seu débito obrigacional, pagando em dia as mensalidades. Ocorre que, em face de determinado problema de saúde, o contratante se vê frente à necessidade de realização de um exame que já esteja disponível no país, mas que ainda não tenha sido catalogado pela Associação Médica Brasileira e, consequentemente, não seja reconhecido pelas operadoras de planos de saúde (como ocorria até pouco tempo atrás com o exame de Pet Scan Oncológico, utilizado no diagnóstico de estágios iniciais de diversos tipos de câncer). Administrativamente, o exame pode ser negado pela operadora, entretanto, com base na boa-fé objetiva, notadamente em razão do dever anexo de cooperação, o judiciário, na quase totalidade dos casos, poderá determinar à operadora a liberação do exame se imprescindível para o tratamento do paciente. Afinal, quem contrata um plano de saúde tem por objetivo a manutenção de sua saúde e, nesse sentido, a operadora deve cooperar para que o objetivo do contrato seja alcançado. Respeitando-se o direito à saúde do contratado, com amparo no dever anexo de cooperação inerente à função integrativa da boa-fé objetiva, estar-se-ia, em um primeiro momento,respeitando o postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, mormente no tocante ao exemplo suposto, haja vista envolver questão ligada à saúde.
O princípio do solidarismo, estampado no art. 3º, inciso I, da Constituição de 1988[32], como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, diz respeito a um sentimento que deve permear a vida em sociedade e que se traduz na compaixão, no amor ao próximo, no dever de prestar auxílio ao outro em momentos de dificuldade, de cooperação para o alcance de objetivos que são de todos, enfim, num sentimento de união deforças para a construção de uma sociedade e de um mundo melhor para as atuais e futuras gerações.
Associar o princípio do solidarismo à boa-fé objetiva é reconhecer nela um padrão de conduta coerente, honesto e que substitui o individualismo pela referida noção de cooperação entre as pessoas em prol de um objetivo comum. Afinal, no exemplo citado no parágrafo anterior, a manutenção da saúde não é só um objetivo do contratante, mas também da empresa operadora do plano de saúde, bem como de toda a sociedade. E é no seio dessa sociedade que a cooperação e auxílio entre as pessoas vão contribuir para a construção e manutenção de um Estado Democrático de Direito, suporte, como já dito no início deste ensaio, à efetivação do postulado da dignidade da pessoa humana. Vem daí a relação entre o solidarismo e a boa-fé objetiva.
A legislação infraconstitucional tem no Código Civil de 2002 o grande diploma que, espelhado nos ditames da Constituição Cidadã, trouxe em seu bojo o princípio da boa-fé como cláusula geral ou aberta. Inicialmente, em seu art. 113,definiu aboa-fé como parâmetro interpretativo dos negócios jurídicos[33]. Mais adiante, no art. 422, já referido anteriormente, no título Dos Contratos em Geral, o legislador infraconstitucional tratou de conceder ao princípio da boa-fé o papel de bússola a guiar a conduta dos contratantes, seja na execução, seja na conclusão das avenças firmadas.[34]
A nova codificação civil, diferentemente da de 1916, tratou de mitigar o tradicional pacta sunt servanda,ou seja, o contrato passou a ser interpretado conforme a boa-fé objetiva e não somente por meio de uma obediência à literalidade das claúsulas avençadas. À vista disso o Judiciário passou a rever instrumentos de contrato em que cláusulas abusivas atentavam contra a boa-fé objetiva, a exemplo dos contratos referentes a planos de saúde, conforme já mencionado, contratos relativos à aquisição de imóveis residenciais, dentre outros. Tudo com o fito de preservar a pessoa humana enquanto sujeito, e não objeto de direito.
Até este ponto tratou-se da boa-fé objetiva relacionada a negócios jurídicos na seara do Direito Privado. Mister que secompreenda como fazerumaleitura de alguns institutos do Direito Administrativo à luz doprincípio da boa-fé objetiva, especificamente em sede de Contratos Administrativos.
7 A BOA-FÉ OBJETIVA E O DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu art. 37, caput, os princípios da Administração Pública[35], dentre eles, a moralidade. Tal princípio possui duas facetas, uma subjetiva e outra objetiva.
A faceta subjetiva representa o dever de interno ao agente público de atuar com honestidade e probidade, sem a intenção de tirar proveito de sua posição funcional para obter vantagens ilícitas.
Já a face objetiva está relacionada à boa-fé, com o estabelecimento de um padrão de conduta ético e que se mostra externo aos agentes públicos. Será a boa-fé objetiva que irá negar legitimidade a um ato administrativo estritamente legal, mas que ofenda o padrão de coerência esperado pelasociedade. Imagine-se que uma empresa contratada pela Administração, sem a verificação de sua regularidade fiscal, execute determinado serviço e que, no momento do pagamento por parte do Poder Público, sejam constatadosdébitosfiscais impeditivos do pagamento. A Administração, à vista de tal irregularidade não paga pelo serviço prestado, estando amparada por legislação específica. Entretanto, a despeito da legalidade do não pagamento, incorre a Administração em uma afronta à faceta objetiva da moralidade, em razão da vedação ao enriquecimento sem causa, no caso, o da Administração, além de se tratar de um caso típico de tu quoque, conforme já tratado anteriormente.
Reforçando o exposto no parágrafoanterior, José Guilherme Giacomuzziensina que:
“A boa-fé objetiva terá, na tentativa de encontrar o conteúdo dogmático do princípio da moralidade (art. 37 da CF de 1988), a maior relevância. É ela, em suma, que preencherá o espaço – objetivo – do princípio, o qual tem por função veiculá-la”.[36]
Deixando o terreno constitucional, a Lei 9.784/99, conhecida comoLei do Processo Administrativo, no âmbito federal, traz em seu art. 2º, parágrafo único, inciso IV, que nos processos administrativos serão observados critérios de atuação conforme padrões de ética, decoro e boa-fé.[37]
No que concerne aos contratos administrativos, oque interessa neste ponto do trabalho, o art. 54 da Lei 8.666/93, tida como Estatuto das Licitações e Contratos, traz a possibilidade de aplicação supletiva dos princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado aos contratos administrativos.[38]Cabe relembrar o art. 422 do Código Civil, que traz como princípio geral da teoria dos contratos a atuaçãodos contratantes conforme a boa-fé. E dessa regra geral, ademais em um Estado Democrático de Direito, a Administração não pode se furtar, quando atuando em um dos pólos do contrato administrativo.
Como já exposto, o postulado da dignidade da pessoa humana, como fator legitimador de todo o ordenamento jurídico nacional, há de se manifestar até mesmo em um ambiente repleto de regras particulares e que privilegiam uma exorbitância de poderes no que toca à Administração Pública. Especificamente com relação aos contratos administrativos, o postulado da dignidade da pessoa humana se manifesta através do princípio da boa-fé objetiva.
8. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO VETOR DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Como visto, o postulado da dignidade da pessoa humana se manifesta e serve de norte e fundamento de todo o ordenamento jurídico pátrio. Em alguns ramos do Direito o referido postulado se manifesta de forma mais expressiva,tal como no Direito Civil, até por se tratar de uma divisão da ciência jurídica que se encontra presente sobremaneira no cotidiano das pessoas.
Lançando-se um olhar de soslaio por sobre o campo de atuação do Direito Administrativo, pode-sepensar que o postulado da dignidade da pessoa humana chega a ser mitigado em face do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. No entanto, um olhar mais atento tem o condão de desfazer tal impressão, até mesmo porque, como postulado, a dignidade da pessoa humana não há de ser sopesada com nenhum princípio, nem tampouco como da supremacia do interesse público.
Aliás, no que concerne ao princípio da supremacia do interesse público, vozes autorizadas da doutrina nacional o vem questionando sob o fundamento de que “[…] as pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direitos humanos”.[39] Como uma dessas vozes, Daniel Sarmento continua seu magistério:
“E para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional, a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um autêntico interesse público.
Portanto, o quadro que se delineia diante dos olhos é muito mais o de convergência entre interesses públicos e particulares do que o de colisão”.[40]
Percebe-se, pois, que no Estado de Direito, que há de sempre vigorar no país, o Poder Público deve primar pelo respeito aos direitos fundamentais, dentre eles o postulado da dignidade da pessoa humana. Dentro do que se propõe o presente trabalho, faz-se mister destacar a manifestação da dignidade da pessoa humana em sede do Contrato Administrativo.
Em outros tempos, anteriores à Carta Magna de 1988, a posição de superioridade do Estado-Administração em um dospólos do Contrato Administrativo, por vezes, colocava a pessoa humana não como sujeito de direitos, mas como instrumento para a realização dos fins do Estado. Não raro se verificava alguma atuação estatal em detrimento de direitos individuais dos cidadãos, sempre em função da prevalência do interesse do Estado, travestido em interesse público. Não que nos dias atuais o Estado-Administração não atue com supremacia de poder, pelo contrário, formalmente as cláusulas exorbitantes ainda continuam lá, previstas na Lei 8.666/93. Entretanto, hoje, materialmente falando, a supremacia do interesse público não é mais absoluta eprincípios como o da boa-fé objetiva vêm temperando as relações negociais entre particulares e o Estado-Administração. Mas e a dignidade da pessoa humana, onde se encaixa nesse contexto?
Como já demonstrado, no atual estágio de desenvolvimento do ordenamento jurídico pátrio, a irradiação das diretrizes presentes na Carta Maior em todos os ramos do direito é algo inquestionável. Nesse cenário de extrema e justa valorização do ser humano, a despratrimonialização é de importância capital. As pessoas, hoje e sempre, valem e deverão valermais do que as coisas. As relações jurídicas, sejam afetivas, sejam negociais, devem servir de instrumento para o desenvolvimento de todos como pessoas humanas. Afinal, conforme já dito por Kant e transcrito no corpo deste ensaio, o homem deve ser considerado um fim em si mesmo, não podendo ser instrumentalizado, nem mesmo por Deus.
Nos negócios entre particulares e a Administração Pública, o risco de sujeição da pessoa humana à vontade do Estado é bastante significativo, ademais considerando-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Sob o pretexto de defesa do interesse coletivo, cláusulas exorbitantes em um Contrato Administrativopodem vir a privilegiar o Estado-Administração em detrimento de valores relacionados com a dignidade da pessoa humana: a confiança legítima depositada pelos administrados no Estado e a segurança jurídica. Ser tratado de forma digna pelo Estado é não estar sujeito a surpresas, é acreditar que o Estado, maisdo que qualquer outro, não pode voltar sobre seus próprios passos (vedação do venire contra factum proprium). Eis um dos grandes corolários da boa-fé objetiva.
A esta altura um questionamento pode surgir: em sede de contrato administrativo, fica fácil compreender a relação entre a boa-fé objetiva e a dignidade da pessoa humana quando o contratado for pessoa física, entretanto, o que dizer quandoo contratado for pessoa jurídica, já que a dignidade da pessoa humana não alcança tais entes fictícios?
A resposta é simples. O desrespeito aos parâmetros da boa-fé objetiva, frise-se, na análise de cada caso concreto, que cause prejuízo a uma sociedade empresária contratada pela Administração, indiretamente poderá alcançar os funcionários da referida entidade, cujos empregos dependem da boa saúde financeira do ente empregador. O eventual comprometimento do salário ou emprego do trabalhador, pessoa natural, afetará sobremaneira sua condição de vida, enfim sua dignidade como pessoa humana em sede de um aspecto básico: sua sobrevivência.
Enfim, atuando de forma limitativa aos superpoderes do Estado-Administração, a boa-fé objetiva acaba por funcionar como vetor da dignidade da pessoa humana nas relações entre a Administração e os particulares, notadamente as negociais.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho guiou-se por dois objetivos básicos. A um, procurou-se estabeleceruma classificação para o valor dignidade da pessoa humana diferente da de princípio, adotadamajoritariamente pela doutrina pátria. A dois, buscou-se demonstrar a forma pela qual a dignidade da pessoa humana se manifesta nas relações entre o Estado-Administração e os particulares, mormente as negociais, representadas pelos contratos administrativos.
Com amparo na teoria dos princípios de Humberto Ávila, demonstrou-se que a dignidade da pessoa humana se reveste das características de um postulado normativo aplicativo (norma de segundo grau), não só por estabelecer as diretrizes e todo o arcabouço estrutural do ordenamento jurídico brasileiro, como também por se situar em patamar superior ao das regras e princípios (normas de primeiro grau), não se podendo admitir a possibilidade de colisão destes com aquele.
No que se refere à boa-fé objetiva, após um breve histórico acerca do princípio e uma exposição bastante objetiva sobre seu significadoe funções, restou demonstrada sua importância, tanto na seara privada, quanto na pública. Destacou-se, como propugnado no introito, a manifestação do postulado da dignidade da pessoa humana no Contrato Administrativo, que, conforme visto, dá-sepor meio do princípio da boa-fé objetiva. Com suas funções interpretativa, integradora e limitativa, a boa-fé objetiva atribui ao Contrato Administrativo (e aos contratos em geral) o papel de instrumento para que o ser humano alcance seu pleno desenvolvimento.
Por fim, pode-se dizer que o bem-estar, conforme previsto no Preâmbulo da Constituição de 1988[41], só poderá ser alcançado em um Estado Democrático de Direito no qual o postulado da dignidade da pessoa humana sirva de verdadeiro farol a iluminar os caminhos do criador, do intérprete e do aplicador do Direito, a começar pelo Estado-Administração, cujo respeito à boa-fé objetiva marca apresença da referida luz no Direito Administrativo.
Notas:
[1]Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Informações Sobre o Autor
Caio Lucio Monteiro Sales
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia