Direito Constitucional

O Princípio Constitucional Da Isonomia e a Penhorabilidade do Bem de Família do Fiador no Contrato de Locação

The Constitutional Principle of The Isonomy and the Penalty of the Family of the Guardian in the Lease Agreement

Bruna Maria da Rosa[1]

Orival Correia de Siqueira Junior[2]

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RESUMO: O presente artigo tem como propósito analisar, em termos amplos e gerais, a exceção legal – inciso VII, artigo 3º da Lei 8.009/1990 – que admite a penhorabilidade do único bem imóvel residencial do fiador de um contrato de locação. O objetivo específico é compreender, inicialmente, o contexto histórico em que fora inserido o instituto do Bem de Família, bem assim a finalidade de sua criação, a fim de avaliar os reflexos de sua aplicabilidade no caso concreto, principalmente no que tange a diferença conferida ao locatário em detrimento do fiador, tornando possível entender quanto à possibilidade de inconstitucionalidade da norma, dado a sua divergência com o que prescreve o princípio constitucional da isonomia, bem como o direito social a moradia, constitucionalmente previsto. A base teórica fundamenta-se nos aspectos principais do instituto do bem de família, nos preceitos fundamentais a que as normas infraconstitucionais devem se pautar, destacando aqui a isonomia, a dignidade humana e a moradia, e no contrato de fiança e seus efeitos. A pesquisa foi desenvolvida em bases bibliográficas, demonstrando a real importância da discussão acerca do conflito da diretriz infraconstitucional com a Constituição Federal, para fim de efetivar a aplicabilidade do caráter fundamental desta no caso concreto.

PALAVRAS-CHAVE: Bem de família. Penhorabilidade. Fiador. Isonomia. Inconstitucionalidade.

 

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze, in broad and general terms, the legal exception – clause VII, article 3 of Law 8,009 / 1990 – that admits a penalty of the only residential property of the consumer of a lease.The specific objective is to understand, initially, the historical context in which this institute was inserted, as well as the purpose of its creation, in order to evaluate the reflexes of its legal applicability in the concrete case, mainly as regards the difference granted to the lessee in detriment of the guarantor, making it possible to understand the possibility of unconstitutionality of the norm, given its divergence with what prescribes the constitutional principle of isonomy, as well as the social right to housing, constitutionally foreseen. The theoretical basis is substantiated on the main aspects of the institute of family residence, on the fundamental precepts which infra-constitutional norms should be based, contrasting here isonomy, human dignity and housing, and the bond contract and its effects. The research was developed in bibliographic bases, demonstrating the real importance of the discussion about the conflict of the infraconstitutional directive with the Federal Constitution, in order to effect the applicability of the fundamental character of this in the concrete case.

KEYWORDS: Family residence. Garnishment. Guarantor. Isonomy. Unconstitutionality.

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Contextualização e definição de bem de família. 1.1. Bem de família voluntário e bem de família legal. 1.2. Moradia como direito social. 2. Contrato de Fiança. 2.1. Benefício de ordem e chamamento do devedor principal no processo. 2.2. Sub-rogação do fiador. 3. (IN)Constitucionalidade do inciso VII, artigo 3ª, da Lei 8.009/1.990. 3.1. Princípio constitucional da isonomia. 3.2. A penhorabilidade frente ao princípio da isonomia. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A aplicabilidade do direito, em âmbito formal e material, na realidade concreta, reflete, inevitavelmente, na atuação dos operadores do judiciário, acarretando uma instabilidade e gerando uma possível incoerência com o direito apresentado constitucionalmente e com as normas infraconstitucionais.

Referida inconsonância do complexo jurídico obriga o legislador, bem como aqueles que aplicam a norma, a reedifica-la de modo a mantê-la homogênea com os preceitos e princípios da regra superior.

Diante disso, busca-se compreender a (in)constitucionalidade da exceção legal, que possibilita a penhora do bem de família do fiador, no caso de contrato de locação, em detrimento da impenhorabilidade do mesmo quando refere-se ao locatário, levantando o conflito com a isonomia constitucional e também com o direito social da moradia, constitucionalmente previsto.

Será desenvolvida uma análise da norma legal tendo por base inicialmente, os princípios fundamentais do direito, expressamente previstos na Constituição Federal, e o caráter superior dessa em relação às legislações infraconstitucionais. Assim como, a relação entre a penhorabilidade e o princípio da isonomia, a previsão constitucional do Direito à Moradia e sua primazia em relação à valoração criada entre locatário e fiador, além de breves ponderações a respeito do contrato de fiança e seus efeitos quando acessório do contrato de locação.

O objetivo deste estudo pauta-se em entender a diferença de tratamento entre os sujeitos da relação de um contrato de fiança apresentada por referida norma, abordando a possibilidade de violação da isonomia do fiador, de sua segurança de possuir um teto digno, e consequentemente a incongruência com o dispositivo constitucional.

 

1 CONTEXTUALIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA

A ideia de bem de família surgiu no ano de 1839, na República do Texas, onde teve sua materialização, sendo denominado de Homestead, com o intuito de resolução dos traumas e problemáticas decorrentes da crise econômica vivenciada na época (LÔBO, 2015).

No contexto histórico em que se realizava a edição da Lei de Homestead, a grande e devastadora crise econômica provocou relevante desvalorização da moeda, causando a inadimplência das pessoas que haviam efetuado empréstimos para saldar suas dívidas, e dessa forma acabavam penhorando seus bens, dentre eles, suas residências, ou seja, o local onde a pessoa habita em âmbito definitivo (LÔBO, 2015).

No Brasil, a ideia de bem de família surgiu, inicialmente, com a Lei Imperial, tendo como objetivo inicial a proteção e o resguardo dos instrumentos agrícolas, declarando a impossibilidade de penhora dos mesmos (FERREIRA, 2008).

No entanto, a inserção do bem de família no Direito brasileiro não ocorreu de forma simples e imediata, existiram inúmeros projetos legislativos com o intuito de regular e proteger determinado bem. Pode-se destacar alguns exemplos destes precedentes legislativos como: o Projeto Leovigildo Filgueiras, em 1893, com foco principal na proposta de difundir os efeitos nos móveis que se encontravam dentro da residência; o Projeto de Código Civil de Coelho Rodrigues, do mesmo ano, que não tornava o bem de família impenhorável, descaracterizando o intuito do Homestead; o Projeto Malta, em 1903, que por tratar da extinção do instituto em caso de falecimento dos pais, apresentou posição retrógrada; e por fim o Projeto Esmeraldino Bandeira, em 1910, que não recebeu aprovação do Congresso Nacional (SANTOS, 2003).

Posteriormente, apareceu no Código Civil Brasileiro, em 1916, porém com inúmeras restrições, tornando-o quase que inacessível. Somente após sete décadas, precisamente no ano de 1990, a lei 8.009 foi instituída, a qual passou a considerar impenhorável todo imóvel ocupado por uma família com fins residenciais (LÔBO, 2015).

Quanto à legitimidade de instituir o bem de família, a doutrina majoritária da época, de acordo com o artigo 233, do Código Civil de 1916, entendia que apenas o marido era legítimo para o feito, podendo a mulher realizá-lo, excepcionalmente, nos casos em que estivesse na chefia da família, ou se fosse viúva, ficando notório o estabelecimento de uma desigualdade de gênero (SANTOS, 2003).

Entretanto, com a vinda da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu em seu texto legal, precisamente em seu artigo 5º, a igualdade entre homens e mulheres, a primazia do marido em relação à esposa teve seu fim, fazendo-se necessário uma adequação das leis ordinárias aos novos preceitos, evitando qualquer privilégio no comando da sociedade conjugal, sob pena de serem consideradas inconstitucionais (SANTOS, 2003).

Mais tarde, com o advento do Código Civil de 2002 foi atribuída a condição de administração do bem de família a ambos os cônjuges, conforme dispõe o artigo 1.720, caput, do referido Código:

“Art. 1.720. Salvo disposição em contrário do ato de instituição, a administração do bem de família compete a ambos os cônjuges, resolvendo o juiz em caso de divergência” (BRASIL, Código Civil, 2002).

Tornou-se necessária, então, a outorga uxória para estabelecer o bem de família, ou seja, é necessário o consentimento do outro cônjuge para efetivar a instituição de um determinado bem a bem de família, que será protegido pela impenhorabilidade (SANTOS, 2003).

Porém, entende-se que não há necessidade de tal ato – consentimento expresso do outro cônjuge – quando tratar-se de bem de família, pois, nesse caso, não se trata de alienação, mas sim, de um benefício em prol da proteção do grupo familiar (SANTOS, 2003).

Mesmo com a reformulação e a aparente melhora legal do bem de família no Código Civil atual, as exigências técnicas e formais continuaram dificultando a utilização de determinado instituto, cita-se como exemplo: a escritura pública lavrada e seus respectivos encargos, destacando a obrigatoriedade de utilizar apenas um terço do patrimônio líquido para estabelecimento da garantia legal, e assim destinando a utilização do instituto unicamente para uma minoria privilegiada. Por outro lado, tais impedimentos não ocorrem com o bem de família denominado de legal, visto que possui aplicação automática (LÔBO, 2015).

Forçoso ressaltar que, a temática desenvolvida refere-se ao instituto do bem de família, precisamente de seu caráter garantista, ao levantar a impenhorabilidade.

O bem de família, conceitua-se, nas palavras de Paulo Lôbo:

“(…) o imóvel destinado à moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem, que não pode ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida (…) O bem ou os bens que integram o bem de família ficam afetados à finalidade de proteção da entidade familiar” (LÔBO, 2015, p.362).

Sendo assim, a residência habitada pelos integrantes da família, e que esteja em propriedade ou domínio de um deles, não poderá ser alcançada com a finalidade de saldar uma dívida (LÔBO, 2015).

 

1.1 BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO E BEM DE FAMÍLIA LEGAL

O bem de família divide-se em duas espécies: voluntário e involuntário ou legal. O bem de família voluntário é aquele que, como o próprio nome já diz, se institui de forma voluntária, de acordo com o que dispõe o Código Civil, ou seja, os cônjuges ou a família podem constituir-se do bem de família por meio de escritura pública ou testamento. Dessa forma, entende-se por bem de família voluntário aquele que o casal ou a entidade familiar, que possui mais de um bem móvel destinado a fins residenciais, possam optar pela impenhorabilidade, por meio de escritura pública, do bem de maior valor (GONÇALVES, 2015).

Ao passo que, o bem de família involuntário, também chamado de legal, é aquele que independe de constituição voluntária, mas sim, resulta de lei. Essa, por sua vez, tornou impenhorável o imóvel residencial, o qual não responderá por qualquer tipo de dívida civil, fiscal, comercial, previdenciária ou de qualquer outra natureza (GONÇALVES, 2015).

Enfatiza-se ainda, que o instituto em questão relaciona-se com o patrimônio mínimo, um estatuto de grande relevância no âmbito civil e constitucional, pois defende que o homem, como centro das relações jurídicas, deve ter o mínimo necessário para sua sobrevivência. Dessa forma, concretiza-se o fim de uma desigualdade, ajustando o Direito em razoabilidade e isonomia, fazendo com que o patrimônio deixe de lado o seu caráter econômico, e passe a ser visto como um bem relacionado ao ser humano, visto que garante a sua dignidade ao assegurar-lhe o direito à moradia (FACHIN, 2006).

 

1.2 MORADIA COMO DIREITO SOCIAL

Além do bem de família, denominado de voluntário, o qual já existia para garantir o mínimo existencial da família, foi instituído também, o legal, regulado por lei especial, visando à proteção da moradia, e essa, por sua vez, está no rol de direitos sociais da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º: (LÔBO, 2015).

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

Referido direito, por seu turno, esta estritamente ligado ao instituto do bem de família, visto que, a impenhorabilidade do mesmo teve como escopo principal a proteção à moradia e à dignidade humana. O Direito à moradia conceitua-se no ato de ocupar determinado lugar para fim residencial em âmbito habitual. Diferente do que parece, não se refere à casa própria, mas sim, a uma garantia de todos em possuir um teto com finalidade de abrigar a família de forma perdurável (SILVA, 2013).

Aduz-se que a proteção à moradia foi favorecida pela Emenda Constitucional 26/2000, a qual a inseriu no rol do artigo 6º da Constituição Federal que prescreve os direitos sociais, ou seja, com a inclusão da referida Emenda estabeleceu-se constitucionalmente que a moradia do indivíduo deve ser resguardada (ALBERTON, 2002).

Assim sendo, o fiador é apenas um garantidor da obrigação a que aderiu o devedor principal e, consequentemente, deve ter garantida a impenhorabilidade de seu único bem imóvel residencial, fato que lhe é assegurado nos Direitos Sociais expressos na Lei Maior (ALBERTON, 2002).

Neste plano, orienta Genacéia da Silva Alberton:

“Se o imóvel residencial do devedor principal não pode ser penhorado em face dos termos da Lei 8.009/90, a exceção legislativa quanto ao fiador é inconstitucional porque afronta o princípio da isonomia. A isso se acrescente que manter a moradia ao fiador é garantir-lhe um direito social a ser conferido e protegido.” (ALBERTON, 2002, s/p).

Nesse sentido, entende-se que ocorre a inadmissibilidade da penhora do bem de família do fiador, sem que haja sua expressa indicação, vez que não há possibilidade do mesmo se ver despido de sua própria moradia para garantir o débito do contrato de locação (ALBERTON, 2002).

Frisa-se, que não se trata de afastar a garantia do fiador em contrato de locação, mas sim, preserva-la sem atingir o seu imóvel residencial, sendo ele sua única morada. (ALBERTON, 2002).

Conforme dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 23, inciso IX, é dever do Poder Público prover, dentre outros, o direito à moradia. Assim descreve-se:

“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;” (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

No entanto, o direito à moradia não se restringe ao fato do indivíduo ter um lugar para ocupar, mas sim, de o ter com condições mínimas que preservem a intimidade e a privacidade familiar, assim como sua integridade física, ou seja, ter um teto digno, o qual derive de uma prestação positiva por parte do Estado (SILVA, 2013).

 

2. CONTRATO DE FIANÇA

Findas as discussões acerca da inserção do bem de família na legislação, este ganhou vez, tendo relevância até os dias atuais, impondo como objetivo principal a proteção e o resguardo do imóvel destinado à moradia da família. No entanto, a regra não é a mesma para todos, pois a lei 8.009/1990, em seu texto legal, traz algumas exceções, as quais tornam o imóvel residencial familiar penhorável, sendo elas: veículos de transporte, obras de arte, adornos suntuosos, ou seja, bens desnecessários a sobrevivência do sujeito, e ainda, dívidas especiais como créditos trabalhistas, financiamento com finalidade de construção, impostos e taxas, dívidas derivadas de alimentos devidos, além de bens que possam ter sido adquiridos como produto de crime, e por fim a obrigação do fiador no contrato locatício, que poderá ter seu imóvel penhorado no caso de insolvência do devedor principal (LÔBO, 2015).

Evidente que, ao firmar uma obrigação, entende-se previamente, que ela deverá ser cumprida, devendo o credor ser cauteloso, tomando os cuidados necessários para que a mesma se efetive. Primeiramente é verificado se o devedor tem patrimônio suficiente para saldar a dívida, porém, não é de total segurança, visto que há possibilidade de uma redução patrimonial. E como forma de evitar insolvência por essa eventualidade, existe o contrato de Fiança, instrumento pelo qual se cria uma obrigação acessória, em que existe a presença da responsabilidade, mas não do débito originário, ou seja, o fiador vem a garantir o débito do devedor principal, colocando seu patrimônio para saldar a obrigação (VENOSA, 2005).

Verifica-se, nas palavras de Venosa: “Portanto, pelo contrato de fiança, um sujeito, o fiador, obriga-se a pagar a outro, o credor, o que este deve a um terceiro, o devedor” (VENOSA, 2005, p. 426).

Salienta-se, que o contrato de fiança tem como limite a obrigação principal, de modo que o fiador não pode ser obrigado a dispor além do que foi estipulado, de forma a ter os mesmo limites patrimoniais do devedor principal (VENOSA, 2005).

 

2.1 BENEFÍCIO DE ORDEM E CHAMAMENTO DO DEVEDOR PRINCIPAL NO PROCESSO

Como efeito do contrato de fiança, tem-se o benefício de ordem, o qual, de acordo com o artigo 827, do Código Civil, determina que, em caso de execução, o fiador tem direito de exigir que sejam executados primeiramente os bens do devedor principal, podendo, então, indicá-los. Porém, um fato recorrente, é a renúncia expressa pelo fiador deste benefício, derivada de cláusulas de adesão abusivas determinadas pelo devedor principal (VENOSA, 2005).

Importante afirmar ainda, que, entre os bens do devedor principal, não é possível que seja indicado para a penhora seu bem de família, mas sim outros bens que estejam situados no mesmo município, livres e desembargados. No entanto, o caso supracitado é permitido ao fiador, enfatizando a divergência de limites entre os sujeitos do contrato de fiança, quais sejam, fiador e afiançado (VENOSA, 2005).

Vale a pena mencionar, ainda, a possibilidade do fiador, no caso de ser demandado, chamar junto ao processo o devedor principal, de maneira a formar litisconsórcio passivo com o objetivo de inclusão de todos na demanda, bem como expandir o seu âmbito de defesa, tornando efetivo o exercício do benefício de ordem. Isso é possível porque no caso em tela, o chamante, ou seja, o fiador tem o direito de reembolso junto ao afiançado (DIDIER JUNIOR, 2016).

Ressai dizer ainda, que o mesmo não é possível, quando o promovido da demanda é o devedor principal, posto que, não cabe ação de regresso desse contra o fiador (DIDIER JUNIOR, 2016).

 

2.2 SUB-ROGAÇÃO DO FIADOR

Outra consequência do contrato de fiança é a possibilidade legal que o fiador possui de se sub-rogar no direito do credor, isto é, cobrando do devedor principal, através de uma ação de regresso, os prejuízos que obteve, abrangendo na ação não só a dívida principal e seus acessórios, mas também as perdas, os danos e os prejuízos que lhe foram causados em razão da fiança (VENOSA, 2005).

No entanto, se para saldar a dívida do devedor principal, o fiador teve seu bem de família penhorado, este não poderá, ao sub-rogar-se, exigir o bem de família do locatário, fato que desperta a possibilidade de inconstitucionalidade da norma, ferindo o princípio da isonomia (SANTOS, 2003).

 

3. (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INCISO VII, ARTIGO 3ª, DA LEI 8.009/1.990

Analisa-se, nesse esteio, as exceções apresentadas pela Lei 8.009/90, hipóteses em que cabem a penhorabilidade do único bem imóvel residencial da família, e de forma indireta, geram a possibilidade de desconstituição do seu mínimo existencial. Segundo Luiz Edson Fachin, o caráter de penhorabilidade da lei, deve ser interpretado de maneira restritiva, visto que a exegese deve atentar-se, primeira e principalmente, ao caráter protetivo da família. As eventualidades apresentadas despertam a possibilidade de infração a norma constitucional, de forma a serem analisadas em casos concretos, com cuidado ao princípio maior, o qual norteia-se pelo interesse social de segurança aos membros da família, garantindo a eles uma sobrevivência digna (FACHIN, 2006).

O ordenamento jurídico atual é estabelecido por uma estrutura hierárquica e ao mesmo tempo harmônica. Nessa toada, a Constituição Federal, por preencher a posição mais alta da pirâmide jurídica, conduz a área de exercício e eficácia das demais normas infraconstitucionais. Enfatiza-se, nesse sentido, o caráter fundamental da Constituição Federativa do Brasil (COZER, 2011).

Diante disso, é legítimo afirmar que a interpretação da Lei 8.009/1990, precisamente de seu artigo 3º, inciso VII, por tratar-se de lei infraconstitucional, deve pautar-se nos parâmetros constitucionais para sua regular e eficaz aplicação, incluindo, consequentemente, o direito a isonomia constitucional e o direito à moradia (COZER, 2011).

Nesse sentido, prescreve Danielle Braun Calavotte Cozer:

“(…) o inc. VII do art. 3.º da Lei 8.009/1990, ao afastar o véu da imunidade da penhora do bem de família do fiador, também estaria violando a Constituição Federal (LGL\1988\3) quanto ao princípio da proibição do retrocesso e quanto a inúmeros valores fundamentais à vida humana, como o do desenvolvimento e da garantia do mínimo existencial.” (COZER apud CARLI, 2011, s/p).

Aludida premissa – da penhorabilidade do bem de família do fiador e o consequente benefício dado ao locatário – diferente das demais exceções apresentadas, as quais possuem fundamento em claras disposições do direito, não encontra respaldo legal ou material (SILVA, 2000).

Assim, “a norma prevista no art. 3.º, VII, da Lei 8.009/90, nitidamente infringe o disposto no art. 5.º, da CF/1988 (LGL\1988\3) (princípio da isonomia), uma vez que estabelece uma distinção entre o devedor da obrigação principal e o fiador.” (SILVA, 2000, s/p).

Tal fato é possível de se afirmar, uma vez que, posto em análise as cláusulas obrigatórias do locatário e do fiador, nota-se que ambos têm seus deveres firmados no contrato de locação, haja vista que o contrato de fiança é meramente acessório, deixando as partes, portanto, na mesma situação, fato que desmantela qualquer forma desigual de tratamento entre os sujeitos da relação contratual – locatário e fiador (SILVA, 2000).

Neste sentido, o dispositivo em questão – inciso VII, do artigo 3º da Lei 8.009/1.990 – declara-se inconstitucional, infringindo o princípio da isonomia, ao admitir a penhora do bem de família no compromisso firmado pelo fiador, enquanto tal ato não é permitido para o locatário, tratando de maneira diversa duas obrigações pautadas no mesmo propósito, qual seja, solver a dívida locatícia (SILVA, 2000).

Prescreve assim, Sérgio André Rocha Gomes da Silva:

“Em uma situação concreta, o locatário executado para pagar os aluguéis devidos, poderia defender-se utilizando a regra do art. 1.º, da Lei 8.009/90, enquanto o seu fiador, por força do art. 3.º, VII, da Lei 8.009/90, teria o imóvel residencial de sua família penhorado. Em face dessa situação, resta clara a inconstitucionalidade do último dispositivo citado.” (SILVA, 2000, s/p)

Isto posto, ao estabelecer uma relação entre a fundamentabilidade da Constituição e a exceção ostentada no inciso VII, do artigo 3º, da Lei 8.009/1990, fica permissível concluir, que a norma infraconstitucional que permite a usurpação do direito à moradia, em face de dívida de afiançado, de modo a afastar do fiador – que não manifestou expressamente quanto à disponibilidade de sua residência como garantia – o direito e a segurança de um teto para morar, não merece prosperar, dado a discrepância com o que dispõe a Constituição Federal (COZER apud ALBERTON, 2011).

Neste sentido posicionou-se o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, alegando como fundamento, a inclusão do direito à moradia – com o advento da Emenda Constitucional 26/2000 – ao rol de Direito Sociais da Constituição atual. É o que dispõe:

“APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS À EXECUÇÃO – NOVO REGRAMENTO LEGAL – APLICAÇÃO IMEDIATA – RECURSO CABÍVEL – FUNGIBILIDADE – CERCEAMENTO DE DEFESA – PROVA DOCUMENTAL – ÔNUS – FIADOR – BEM DE FAMÍLIA – PENHORABILIDADE – EXCEÇÃO – VOTO VENCIDO PARCIALMENTE. A partir da vigência da Lei 11.232, de 2005, a decisão que resolve a impugnação à execução é recorrível mediante agravo de instrumento, salvo quando importar extinção da execução. Aplica-se o princípio da fungibilidade quando o recurso impróprio for interposto no prazo do recurso próprio. A prova da condição de bem de família do imóvel compete a quem alega, conforme disciplina a legislação de regência do instituto. Segundo precedentes do STJ e do STF, é válida a penhora do imóvel do fiador em razão da dívida locatícia, afastada a impenhorabilidade do bem de família. v.v.p.: Com o advento da Emenda Constitucional 26/2000, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais, previstos no artigo 6º da Constituição da República, não pode mais ser considerado por ela recepcionado o inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, haja vista constituir, desde então, um direito fundamental de segunda geração, assegurando a residência do fiador a impenhorabilidade como bem de família, por força da observação criteriosa do princípio da isonomia, que o iguala ao reconhecido direito do afiançado, na observância restrita ao princípio da hermenêutica e no resguardo ao princípio de proteção da dignidade da pessoa humana. (grifo nosso). (TJ- MG 1.0223.06.195599-1/003(1), Relator: Marcelo Rodrigues).” (MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça, 2009).

Aduz-se, portanto, que referida norma se encontra incompatível com a norma superior, dado a violação a seus preceitos, quais sejam, a isonomia constitucional e o direito social à moradia. Sendo assim, importante expor, que, só seria possível admitir conformidade com o texto da Constituição Federal, para o caso em que o fiador possui mais de um bem destinado a residência, o que não se descute no caso em tela (COZER apud CARLI 2011).

 

3.1 PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA

Entre os preceitos fundamentais a que devem se submeter às leis infraconstitucionais, destaca-se, neste plano, o Princípio Constitucional da Isonomia, ou Igualdade Constitucional. O conceito de isonomia desenvolveu-se através do posicionamento de três esferas que se ampliaram no decorrer da história, quais sejam: dos nominalistas, dos idealistas e dos realistas (HERTEL, 2006).

Salienta-se, que a Constituição Federal brasileira, prevê, em seu artigo 5º, caput, o princípio da isonomia como regra, e a sua aparição em outros textos legais, a exemplo: artigos 3º, inciso III, 5º, inciso I, 150, inciso II e 226, parágrafo 5º ambos da Constituição, apenas atestam a importância dada pelo legislador a aludido princípio (HERTEL, 2006).

A classificação de igualdade divide-se em formal, ou seja, aquela voltada a impedir privilégios dos cidadãos perante a lei; e material, a qual afirma que é necessário tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de modo desigual, conforme a medida de suas desigualdades (HERTEL, 2006).

Nas palavras de Daniel Roberto Hertel:

“A igualdade formal é aquela meramente prevista no texto legal. É uma igualdade puramente negativa, que tem por escopo abolir privilégios, isenções pessoais e regalias de certas classes. Consiste no fato de a lei não estabelecer qualquer diferença entre os indivíduos. Situa-se, pois, num plano puramente normativo e formal, pretendendo conceder tratamento isonômico em todas as situações. Pode ser resumida na regra de tratar os iguais e os desiguais de forma sempre igual (…) A igualdade, com efeito, deve ser avaliada sob o seu aspecto substancial ou material. É necessário tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na exata medida de suas desigualdades.” (HERTEL, 2006, s/p).

Conclui-se, que a divergência sobre o Princípio da Isonomia, no momento da aplicabilidade da norma infraconstitucional, pode ocasionar a sua inconstitucionalidade, uma vez que é possível verificar a ocorrência da igualdade, no momento do uso da norma no caso concreto, o que torna notória a ausência desta ao permitir a penhorabilidade do bem de família do fiador locatício (HERTEL, 2006).

 

3.2 A PENHORABILIDADE FRENTE AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Nota-se, no momento da execução do contrato de fiança, uma situação desvantajosa para o fiador, visto que tem a penhora recaindo sobre seus bens. E quando isso acontece com seu único bem residencial surge o impasse: o bem imóvel residencial do devedor principal é impenhorável, enquanto que o do fiador não é (ALBERTON, 2002).

Na medida em que existe uma desigualdade de tratamento entre os sujeitos do contrato de fiança, visando favorecer o locatário, a não aplicação da exceção legal não configura negar a sua vigência, mas sim, afirmar a sua invalidade, dado o descumprimento do princípio constitucional da isonomia, o qual deve caracterizar-se por equilíbrio e tratamento paritário material e processual (ALBERTON, 2002).

Torna-se importante enfatizar, que a isonomia se dá tanto na aplicação do direito, quanto no momento de sua criação, portanto, quando usa-se a expressão que “todos são iguais perante a lei”, reafirma-se a exigência de uma isonomia na aplicação do direito (ALBERTON, 2002).

Ressalta-se, ainda, o critério material de igualdade, o qual defende que o igual deve ser tratado igualmente e o desigual, desigualmente na medida de suas desigualdades, não obstante, essa relação de (des)igualdade não pauta-se em um juízo de valor, mas sim, em qualificação, a qual acarreta uma valoração entre os sujeitos (ALBERTON, 2002).

Assim, para que fosse possível admitir o tratamento divergente entre o devedor principal e o fiador, seria necessário considerar como ponto predominante, a natureza do garante, ou fiador, porém não seria suficiente para justificar aludida desigualdade, dado que o direito a moradia tem caráter preponderante (ALBERTON, 2002).

Adverte Genacéia da Silva Alberton:

“Ora, se o imóvel residencial do locatário não pode ser penhorado, visto que ele está amparado pela Lei 8.009/90, afronta a isonomia constitucional a inserção da penhorabilidade do imóvel residencial do fiador que é garante e que, somente por imposição de cláusula contratual por adesão, renuncia ao benefício de ordem, respondendo pelo débito do afiançado como principal pagador.” (ALBERTON, 2002, s/p).

Nesse sentido, cabível a afirmação de que, a disposição expressa da Lei 8.009/1990, seu inciso VII, do artigo 3º, não merece prosperar, pois afronta a isonomia constitucional, e a penhorabilidade do único bem imóvel residencial do fiador deverá ser afastada, desde que referido imóvel, considerado bem de família, não tenha sido dado expressamente em garantia por meio de cláusula contratual.  Conclui-se, então, que aludida norma violou o princípio constitucional da isonomia, uma vez que estabeleceu desigualdade de tratamento entre as partes (ALBERTON, 2002).

Nessa acepção, conclui Genacéia da Silva Alberton:

“É impenhorável o bem imóvel do fiador quando comprovada a circunstância de servir de residência para si ou para a entidade familiar (…) com base na manutenção da moradia do garante em atenção à preservação da dignidade da pessoa humana do fiador (art. 1.º, III, da CF (LGL\1988\3)); pela ausência de validade da lei infraconstitucional que trata de forma diferenciada o locatário e o fiador por não observar o princípio da isonomia (art. 5.º, caput, da CF (LGL\1988\3)) e, se tudo isso não convencer, temos ainda a possibilidade de indicar o art. 6.º da CF (LGL\1988\3) que colocou a moradia como direito social.” (ALBERTON, 2002, s/p)

Nesse liame, afirma-se que existe a necessidade dos operadores de Direito, tomarem a Constituição Federal como base de suas decisões, e reconhecerem a sua capacidade vinculativa, a fim de afastarem aquilo que com ela conflitar (ALBERTON, 2002).

 

CONCLUSÃO

A presente pesquisa teve como objetivo principal, analisar a exceção abordada pela Lei 8.009/1990, artigo 3º, inciso VII, bem assim, avaliar os resultados de sua aplicabilidade no caso concreto, de modo a compreender a possibilidade de violação dos princípios constitucionais, dentre eles destaca-se o da Isonomia.

Assim, assevera-se, através das informações obtidas por meios bibliográficos, a divergência de conteúdo, bem como da forma de aplicabilidade da norma infraconstitucional com o que dispõe a Constituição Federal.

Aludida diretriz, ao tornar possível a penhora do único bem imóvel residencial do fiador do contrato de locação, sem manifestação expressa desse, quanto à disponibilidade de referido bem, preocupando-se unicamente com o mercado locatício e estabelecendo uma desigualdade gritante de tratamento entre os sujeitos da relação do contrato de fiança, viola o princípio constitucional da isonomia, além do Direito Social a moradia, o qual é constitucionalmente previsto.

Contudo, é legítimo afirmar ainda, que a norma que admite a fraude ao direito à moradia, e que viola a isonomia formal e material do sujeito, retirando deste sua segurança de um teto digno para morar, a fim de garantir um terceiro, não merece prosperar, dado a discrepância com o que dispõe preceitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Para alcançar supradito resultado, foram desenvolvidas pesquisas em obras de teóricos que explanam sobre o tema, mais precisamente sobre a relação da norma com os preceitos da isonomia, moradia e dignidade humana. Desta forma, referido trabalho contribuiu, além de conhecimentos específicos por parte da autora, possibilitando relação a trabalhos futuros, o despertar dos operadores do direito, de modo a terem como parâmetros para agir, o reconhecimento do caráter vinculativo da constituição, rejeitando tudo aquilo que com ela não condiz, bem como o efetivo cumprimento do direito a moradia e da isonomia perante a lei, no momento de sua aplicabilidade.

 

REFERÊNCIAS

ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de bem imóvel residencial do fiador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Contratos em Espécie. São Paulo: Atlas, 5ª ed., 2005.

 

[1] Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Univel. Advogada inscrita na OAB/PR sob o n.º 97.382. Pós Graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. E-mail: brunarosa.adv@outlook.com.

[2] Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Univel. E-mail: orivaljr@gmail.com.

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