Resumo: Serve o presente trabalho para analisar o princípio da continuidade dos serviços públicos como fundamento da atividade fiscalizatória e, mais especificamente, a possibilidade de a Anatel ter acesso remoto aos sistemas das entidades reguladas, sob pena de caracterização de óbice à atividade fiscalizatória da Agência e consequente aplicação, após procedimento em que se assegure contraditório e ampla defesa, de uma das penalidades descritas no art. 173 da Lei n. 9.472/1997.
Palavras-Chave: Continuidade. Fiscalização. Acesso Remoto. Óbice à atividade fiscalização.
Sumário: Introdução. 1. Do acesso remoto aos sistemas das operadoras pela Anatel. 2. O princípio da continuidade na prestação dos serviços de telecomunicações. 3. Impedimento de acesso aos sistemas e óbice à fiscalização. 4. Conclusão. Referências.
Introdução
O princípio da continuidade, no âmbito da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), encontra-se perfeitamente delineado. O postulado, inclusive, dá fundamento à atividade fiscalizatória da ANATEL, especialmente no tratamento das interrupções na prestação dos serviços de telecomunicações. É com base nesse princípio que se justifica o acesso remoto, pela Anatel, aos sistemas das operadoras.
1. Do acesso remoto aos sistemas das operadoras pela Anatel.
Para melhor exercer sua competência fiscalizatória, a Anatel resolveu criar o Sistema de Monitoração de Redes, com a finalidade precípua de evitar a descontinuidade na prestação do serviço de telecomunicações outorgado. Por meio do sistema em referência, a Agência, por si própria, passaria a ter condições de saber a existência de eventuais falhas na rede das operadoras de telecomunicações no momento exato em que ocorrem, evitando o desconforto de ser informada dos problemas juntamente com os demais cidadãos, através da imprensa.
Além disso, possibilitar-se-ia o conhecimento, por parte da entidade reguladora, da existência de alternativas para o caso de eventualidades ocorridas nas redes das prestadoras, comprometendo a prestação e execução do serviço. Nesse sentido, surge para a Anatel a necessidade de informar-se do mapa da rede da prestadora, de modo a cientificar-se da existência de rotas alternativas, isto é, de mecanismos outros que assegurem a continuidade do serviço em caso de falha sistêmica da rede. Fala-se, então, do conceito de contingência:
“Na linha deste entendimento o administrador elabora “planos de contingência” para desenhar alternativas de ação em caso do surgimento de eventualidades que põem em cheque a execução dos planos empresariais. Assim, o “plano B” é uma resposta aos efeitos não-esperados e a qualquer tipo de emergência de novidades relevantes”[1].
2. O princípio da continuidade na prestação dos serviços de telecomunicações.
Assim, a ideia de contingência foi criada com o fito principal de garantir a continuidade do serviço prestado, evitando, desta feita, que a população se prejudique em decorrência de paralisação da prestação de serviços tidos como essenciais, tal como ocorre com o serviço de telecomunicações, consoante o art. 10, inciso VII, da Lei nº 7783/89[2]. José dos Santos Carvalho Filho, acerca do princípio da continuidade, assevera:
“Esse princípio indica que os serviços públicos não devem sofrer interrupção, ou seja, sua prestação deve ser contínua para evitar que a paralisação provoque, como às vezes ocorre, colapso nas múltiplas atividades particulares. A continuidade deve estimular o Estado ao aperfeiçoamento e à extensão do serviço, recorrendo, quando necessário, às modernas tecnologias, adequadas à adaptação da atividade às novas exigências sociais.”[3] (Grifo Nosso)
Deveras, Celso Ribeiro Bastos, ao dispor sobre o princípio em comento, afirma que o serviço público essencial deve ser prestado de forma contínua:
“O serviço público deve ser prestado de maneira contínua, o que significa dizer que não é passível de interrupção. Isto ocorre pela própria importância de que o serviço público se reveste, o que implica ser colocado à disposição do usuário com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e oportunidade. (…) Essa continuidade afigura-se em alguns casos de maneira absoluta, quer dizer, sem qualquer abrandamento, como ocorre com serviços que atendem necessidades permanentes, como é o caso do fornecimento de água, gás, eletricidade. Diante, pois, da recusa de um serviço público, ou de seu fornecimento, ou mesmo da cessação indevida deste, pode o usuário utilizar-se das ações judiciais cabíveis, até as de rito mais célere, como o mandado de segurança e a própria ação cominatória.”[4]
O dever de continuidade, portanto, reveste-se de grande importância. De fato, em função dele é que se deu a polêmica relativa à possibilidade ou não de greve no serviço público, tendo Odete Medauar afirmado que, durante muito tempo, o princípio da continuidade justificou a proibição de greve dos servidores públicos[5].
A Lei Geral de Telecomunicações (LGT), por sua vez, define o postulado da seguinte forma:
“Art. 79. A Agência regulará as obrigações de universalização e de continuidade atribuídas às prestadoras de serviço no regime público.
§ 1º Omissis.
§ 2° Obrigações de continuidade são as que objetivam possibilitar aos usuários dos serviços sua fruição de forma ininterrupta, sem paralisações injustificadas, devendo os serviços estar à disposição dos usuários, em condições adequadas de uso.”
Também o Regulamento dos Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução nº 73, de 25 de novembro de 1998, preocupou-se com o tema, ao repetir, em seu art. 44, § 2º[6], o conceito trazido pela LGT.
A obrigação de continuidade foi imposta às concessionárias do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC, consoante disposições dos artigos 63, parágrafo único, 79, caput e 131, caput, todos da Lei n. 9.472/1997 (LGT). Disso se infere que a interrupção do serviço pode até ocorrer, mas de forma excepcional. Nesse passo, aduzem os art. 28 e 45 do Regulamento dos Serviços de Telecomunicações:
“Art. 28. A Prestadora pode tornar indisponível o STFC, quando as instalações ou a Rede Interna do Assinante não forem compatíveis com as especificações técnicas estabelecidas no contrato de prestação de serviço ou ainda, quando ocorrer o previsto nos incisos IX e X do art. 11 deste Regulamento.
Parágrafo único. A interrupção neste caso dar-se-á após decorrido o prazo constante de notificação prévia ao Assinante, para que corrija suas instalações, dispensada a notificação prévia no caso de iminente dano à Rede Externa, de graves proporções, devidamente comprovado pela Prestadora.
Art. 45. A interrupção circunstancial do serviço decorrente de situação de emergência, motivada por situações de ordem técnica ou de segurança das instalações, não será considerada violação da continuidade.
§1º. Nos casos a que se refere o caput, a interrupção previsível deve ser comunicada antecipadamente aos usuários afetados, bem como, nas situações de maior relevância, à Agência.
§2º. A prestadora não poderá interromper a execução do serviço alegando o inadimplemento de qualquer obrigação por parte da Agência ou da União.”
Finalmente, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 22, assegura que os serviços essenciais devem ser contínuos, sob pena de responsabilidade dos responsáveis[7].
A interrupção à prestação do serviço de telecomunicações, portanto, possui caráter excepcional, e, mesmo nessa hipótese, cabe às prestadoras do setor o cumprimento de determinadas exigências regulamentares, como a comunicação ao público em geral, ao assinante e aos prestadores interconectados, bem como à Agência, caso a interrupção afete número superior a 10% (dez por cento) dos acessos da localidade, setor ou região. Vejamos:
Regulamento do STFC
“Art. 26. Efetivada a interrupção, por qualquer razão, a Prestadora notificará ao público em geral e ao Assinante, comunicando-lhe a interrupção, seus motivos, as providências adotadas para o restabelecimento dos serviços, e a existência de meios alternativos para minimizar as conseqüências advindas da interrupção.
§ 1º Salvo resolução expressa da Agência, as interrupções que afetem número superior a 10% (dez por cento) do total de acessos de localidade, setor ou região, devem ser a ela comunicadas.
§ 2º Nos casos previsíveis, a interrupção deve ser comunicada aos Assinantes afetados, com antecedência mínima de 15 (quinze) dias, sob pena de configuração de violação dos direitos dos Usuários previstos no art. 3º da Lei 9.472, de 1997, e neste Regulamento.”
Regulamento Geral de Interconexão, aprovado pela Resolução nº 410, de 11/07/2005:
“Art. 18. A interrupção do serviço de uma prestadora por falhas de sua rede, de qualquer tipo, que venham a afetar mais de 10% (dez por cento) do total de acessos ou mais de 50.000 (cinqüenta mil) acessos da localidade, o que for menor, deve ser informada, em tempo real, a todos as demais prestadoras que possuam redes interconectadas à rede em falha, à Anatel e imediatamente ao público em geral, por meio dos principais veículos de comunicação disponíveis na região afetada.
Parágrafo único. Após a recuperação do serviço, devem ser informados à Anatel, no mínimo, a descrição objetiva da falha, a localização, a quantidade de acessos afetados, os detalhes da interrupção, o diagnóstico e as ações corretivas adotadas.”
Ante o exposto, verifica-se que a atividade de fiscalização encontra-se intrinsecamente conectada à ideia de continuidade do serviço outorgado. Nos dizeres de Marçal Justen Filho:
“A fiscalização constitui-se em acessório. A concessão não foi outorgada para permitir ao poder concedente exercitar a fiscalização sobre o concessionário. A atividade de fiscalização é instrumental, no sentido de destinar-se a assegurar a continuidade e eficiência da prestação do serviço pelo concessionário.”[8] (Grifo Nosso)
Ocorre que, na prática, para verificação das interrupções do serviço e da existência de falhas nas redes das operadoras, a Anatel depende dos registros feitos em um sistema da Agência pela própria prestadora. Assim, com base nessa situação, referida entidade reguladora iniciou os estudos para implantação do Sistema de Monitoração de Redes e Serviços, posteriormente denominado Sistema de Acesso Remoto de Dados e Informações, com o objetivo de delinear procedimentos de fiscalização que racionalizem os recursos existentes e maximizem as ações de fiscalização a partir de dados e informações coletadas em tempo real, possibilitando à entidade reguladora verificar confiabilidade de informações e dados brutos sobre desempenho, alarme, falhas, tráfego, bilhetagem, faturamento, cobrança, atendimento e relacionamento com o usuário[9] sem depender da entidade outorgada. É de se concluir, assim, que o projeto em comento configura-se em iniciativa direcionada à modernização e celeridade da atividade fiscalizatória exercida pela Agência, em um setor marcado pelo dinamismo, como o setor das telecomunicações.
3. Impedimento de acesso aos sistemas e óbice à fiscalização.
Impedir que a Anatel tenha acesso aos sistemas das prestadoras pode consistir em óbice à fiscalização da Agência e ensejar a abertura de processo sancionador com vistas à aplicação de uma das penalidades elencadas no art. 173 da LGT. Com efeito, vislumbra-se a atribuição da Anatel no sentido de fiscalizar a exploração de serviços de telecomunicações nos regimes público e privado, conforme rezam os incisos VI, X e XI do artigo 19 da Lei 9.472/97, a seguir transcritos:
“Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:(…)
VI – celebrar e gerenciar contratos de concessão e fiscalizar a prestação do serviço no regime público, aplicando sanções e realizando intervenções;(…)
X – expedir normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado;
XI – expedir e extinguir autorização para prestação de serviço no regime privado, fiscalizando e aplicando sanções; (…)”
À luz da mencionada previsão legal, a ANATEL celebra com as empresas do setor contratos de concessão ou termos de autorização (a depender do regime de prestação do serviço, se público ou privado). Com base nos referidos instrumentos, assumem a obrigação de em momento algum praticar qualquer tipo de conduta que ocasione embaraço à atividade fiscalizatória da Agência.
Ora, para que a Anatel possa exercer seu mister institucional, as prestadoras de serviços de telecomunicações devem dar acesso irrestrito ao Agente de Fiscalização às instalações, equipamentos, sistemas, dados, informações, inclusive os em poder de terceiros ou de terceiros em seu poder e a tudo mais que produza insumos de natureza técnica, operacional, econômico-financeira, contábil ou qualquer outro requerido para apuração da realidade sobre o ato ou fato fiscalizado.
Nesse cenário, tem-se que obstar significa causar embaraços ou impedimento e dificultar significa tornar difícil ou custoso de fazer, recusar. Além disso, o art. 3º, inciso XVII, da Resolução nº 596/2012, define a expressão, nos seguintes termos:
“Art. 3º. Para os fins deste Regulamento são adotadas as seguintes definições:(…)
XVII – Óbice à Ação de Fiscalização: ato, comissivo ou omissivo, direto ou indireto, da fiscalizada ou de seus prepostos, que impeça, dificulte ou embarace a atividade de fiscalização exercida pela Anatel mediante oferecimento de entrave à situação dos agentes e recusa no atendimento, não envio ou envio intempestivo de quaisquer dados e informações pertinentes à obrigação da fiscalizada.”
Observa-se que a negativa em dar à Anatel o acesso aos seus sistemas, por parte das operadoras, não encontra amparo legal ou regulamentar, podendo, inclusive, se falar em óbice à fiscalização, com possibilidade de aplicação de sanção administrativa à prestadora.
4. Conclusão
O princípio da continuidade é um dos pilares que justifica o poder de polícia da Anatel, inclusive dando azo a que a Agência solicite acesso remoto aos sistemas das prestadoras. Deve a Anatel informar-se do mapa da rede da prestadora, para que ela cientifique-se da possibilidade de falhas e, assim, de interrupções no serviço regulado. Impedir tal acesso pode configurar óbice à atividade de fiscalização, com a abertura de processo sancionador com vistas ao sancionamento da prestadora com uma das penalidades dispostas no art. 173 da LGT.
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