Resumo: Em 25 de outubro de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral, com base nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos mandados de segurança números 26.602, 26.603 e 26.604, editou resolução disciplinando a perda do mandato eletivo para os casos de infidelidade partidária. A partir de então, considerou-se vigente, no ordenamento jurídico brasileiro o Princípio da Fidelidade Partidária, requerendo-se, como pressuposto para o exercício do mandato, a permanência dos detentores dos cargos eletivos nos partidos aos quais eram filiados quando da sua eleição. Nesse contexto, objetivando a análise da constitucionalidade da adoção desse princípio pela Justiça Eleitoral Brasileira e, sobretudo, da constância desse preceito no ordenamento jurídico brasileiro, pretende-se desenvolver uma reflexão teórica em torno do assunto. Tal reflexão iniciar-se-á pelo esclarecimento do conceito de constitucionalidade e pela delimitação dos requisitos técnicos necessários para que as normas infraconstitucionais sejam admitidas pela nossa Carta Magna. Em seguida, proceder-se-á a análise dos dispositivos da Constituição aos quais se subordinam as Resoluções que aplicam o princípio da fidelidade partidária ao sistema eleitoral brasileiro, concluindo-se pela constitucionalidade, ou não, das mesmas. Por fim, pretende-se tecer considerações acerca da legitimidade da aplicação do princípio da fidelidade partidária no ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica da democracia constitucional e a necessidade de atenção aos anseios dos cidadãos, detentores do poder a ser outorgado aos representantes eleitos.
Palavras chave: Direito Constitucional. Direito Eleitoral. Ordenamento Jurídico. Princípio da Fidelidade Partidária. Constitucionalidade.
Introdução
A democracia foi idealizada com base no princípio de que o governo seria exercido pelo próprio povo, pois tem como preceito a participação máxima dos cidadãos nas atividades governamentais.
Ocorre que, à exceção de alguns exemplos isolados, reconheceu-se, desde os primórdios da teoria do estado, a impossibilidade do exercício direto dos atos de governo pelo povo – que configuraria a chamada democracia direta –, desenvolvendo-se, então, teorias acerca da democracia participativa, as quais culminaram no nascimento da idéia de representação para o exercício do poder de governo, constituindo-se a noção de democracia indireta.
Vigente no Brasil, essa forma de governo é caracterizada pela realização de eleições através das quais o povo escolhe seus representantes, devendo estes exercer os atos de governo, no lugar de seus eleitores.
Em tal contexto, ditas eleições configuram a expressão do principal preceito da nossa República, porquanto esta é formada com base na democracia que deve ser respeitada por todas as normas que possam vir a ser postas em vigor.
Destarte, uma vez que os nossos tribunais passam a destituir políticos eleitos e empossar outros que não obtiveram a aprovação populacional suficiente, de acordo com a previsão constitucional, para ocupar o cargo de representação, corre-se o risco de afrontar o conceito fundamental de democracia.
Até o final de 2006, a destituição de representantes eleitos concretizava-se apenas nos casos de condutas ímprobas ou ilícitos eleitorais, no entanto, a partir do ano de 2007, a Justiça Eleitoral adotou a interpretação segundo a qual o mandato eletivo não pertence ao ocupante do cargo, mas sim ao seu partido, de modo que, caso o político eleito abandone sua agremiação, perde a vaga, passando esta a ser ocupada pelo suplente do partido originário, aplicando, portanto, o chamado princípio da fidelidade partidária.
De fato, esse instituto é reconhecido juridicamente e aplicado em diversos países regidos pela democracia participativa. No entanto, para viabilizar a sua adoção no Brasil, é necessária uma análise acerca da constitucionalidade do mesmo no âmbito nacional, em respeito à nossa Carta Política e até mesmo à nossa democracia.
Segundo a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a fidelidade partidária estaria configurada como um preceito implícito na CF/88, uma vez que, inerente à própria forma de governo por ela instituída. Impõe-se, contudo, analisar se o nosso ordenamento jurídico aceita normas implícitas e se, realmente, essa seria uma delas.
De outra banda, sabe-se que a população brasileira deseja uma moralização do cenário político nacional, e por isso deve-se discutir até que ponto a aplicação do princípio da fidelidade partidária poderia prejudicar a representatividade do governo, e se não deveria ser estudada a hipótese de incluir expressamente a necessidade da conduta de fidelidade por parte dos políticos eleitos no nosso ordenamento jurídico.
Nesses termos, busca-se através do presente estudo (I) esclarecer se, de fato, o princípio da fidelidade partidária pode estar contrariando dispositivos constitucionais, ou até a forma de governo instituída pela Constituição Federal; e (II) auferir a a necessidade e a possibilidade de incluí-lo em nosso ordenamento – assunto esse, de indubitável relevância, quando se vive em um Estado Democrático de Direito.
Iniciar-se-á o presente estudo pela conceitualização de noções básicas de teoria do Estado, para possibilitar o esclarecimento de questões que precedem o entendimento da matéria de fundo a ser desenvolvida.
1.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Conforme se depreende da leitura do artigo primeiro da Constituição Federal de 1988, o Brasil é uma república federativa, formada pelos Estados, Municípios e Distrito Federal, que constitui um Estado Democrático de Direito[1].
Estados Democráticos são aqueles nos quais “a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto – a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo o poder legítimo”[2].
E, por Estados de Direito entende-se aqueles em que o poder é limitado à ordem constitucional, de forma que sequer o próprio Estado poderá impor suas vontades quando desprovidas de embasamento legal, ou atuar contra as normas já existentes[3].
A fusão desses dois conceitos, que configura o inicialmente referido Estado Democrático de Direito, foi positivada no parágrafo único do dispositivo legal supracitado, através da seguinte disposição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, reafirmando a soberania das ordens democrática e jurídica.
Diante disso, entende-se claramente a opção do legislador constituinte por instituir uma república constitucional, sendo esta uma forma de governo na qual os cargos políticos em geral podem ser acessados por “todos os indivíduos que preencham tão-somente as condições de capacidade estabelecidas na própria constituição”[4], os quais são escolhidos através de eleições livres, mediante sufrágio universal.
Logo, no nosso Estado, o poder é exercido por cidadãos eleitos pelo povo, com o dever de assegurar aos seus compatriotas o exercício dos direitos acima citados, sob a égide da ordem constitucional, devendo “assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e, sobretudo, dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos”[5].
1.2. A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Uma vez reconhecido o nosso Estado como Democrático de Direito e identificadas as duas principais características do mesmo, parece relevante traçar algumas considerações acerca do princípio democrático e a sua forma de expressão nesta república.
Como referido, a democracia foi idealizada com base na premissa de que o governo seria exercido pelo próprio povo, pois tem como preceito a participação máxima dos cidadãos nas atividades governamentais[6].
No entanto, reconhecida a impossibilidade do exercício direto dos atos de governo pelo povo – que configuraria a chamada democracia direta, desenvolveram-se as teorias acerca da democracia indireta, que culminaram no nascimento da idéia de representação para o exercício do poder de governo, constituída daí a concepção de democracia representativa[7].
Para esclarecer conceitualmente essa forma de governo representativo, adotam-se as palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, em seu Curso de Direito Constitucioal, afirma:
“A base fundamental da representação é a idéia exposta por Montesquieu de que os homens em geral não têm a necessária capacidade para bem apreciar e conseqüentemente bem decidir os problemas políticos. Assim, no interesse de todos, essas decisões devem ser confiadas aos mais capazes, aos representantes do povo”[8].
Assim sendo, objetivando os melhores resultados da administração pública, na democracia representativa, a população deve escolher por meio de eleições os representantes que lhe parecem mais aptos a praticar os atos de governo em defesa de seus anseios.
No entanto, embora não sejam todos os cidadãos capazes de bem administrar a res publica, são todos eles capazes de identificar quais são os mais bem preparados para fazê-lo, motivo pelo qual se justifica a utilização de eleições diretas e universais para a eleição desses representantes[9].
Conjugando-se todas as explicitações efetuadas até aqui, reafirma-se que as eleições dos representantes do povo, configuram a expressão do preceito básico da constituição da nossa República, porquanto esta é formada com base na democracia que deve ser respeitada por todas as outras normas que possam vir a ser postas em vigor.
1.3. A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E O MANDATO ELEITORAL
Como se viu nas elucidações consignadas até aqui, o regime representativo pressupõe que o povo delegue para alguns o exercício do poder político, habilitando-os a atuarem como seus representantes.
Cabe, portanto, analisar a natureza dessa representação política, que, primordialmente, foi identificada pela doutrina “como uma representação jurídica, tendo sido o mandato eleitoral, por conseguinte, reputado um mandato jurídico, figura típica do Direito Civil”[10].
No entanto, com o passar do tempo, impôs-se o reconhecimento de diversas diferenças entre os mandatos do Direito Privado e do Direito Público, sendo apontados como traços próprios do mandato representativo político a generalidade, a liberdade, a irrevogabilidade e a independência, de forma que: a primeira diz com o fato de os eleitos representarem a comunidade como um todo, e não apenas os que neles votaram; a segunda é relacionada com a autonomia de vontade do eleito, que não se sujeita à qualquer pressão externa; a terceira reflete o fato de que o mandato não pode ser revogado senão por previsão constitucional; e a última demonstra que os atos desses representantes não se sujeitam a ratificação por parte dos eleitores[11].
Tendo em vista o objeto do presente estudo, releva apenas ressaltar os desdobramentos da primeira das características tratadas acima, o que se fará, inicialmente, pela adoção de alguns dizeres de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“Da eleição resulta que o “representante” recebe um poder de querer, é investido do poder de querer pelo todo, torna-se a vontade do todo. A eleição, a escolha do representante, e, portanto, uma atribuição de competência. Nada o vincula, juridicamente, à vontade dos eleitores. No máximo, reconhece-se que a moral e o seu próprio interesse o impelem a atender os desejos do eleitorado. A moral porque a eleição não se obtém sem promessas… O próprio interesse porque o tempo trará nova eleição…”[12].
Desse entendimento subsume-se que, pela democracia, os representantes políticos não estão restritos à vontade da população a que representam, de forma que não podem, por agir contra a vontade dos representados, perder o mandato eleitoral[13].
Somando-se a essa conclusão os conceitos anteriormente tratados que dizem respeito à definição de Estado Democrático de Direito, pode-se afirmar que uma vez detentor dos poderes de representação legitimamente outorgados pela população mediante sufrágio universal, o detentor de cargo político só poderá perder seu mandato nas hipóteses previstas expressamente na Constituição Federal.
De início, cabe esclarecer que, neste tópico, não se pretende esgotar a análise dessas instituições, objetivando-se apenas ressaltar as características que mais se aproximam da matéria de fundo do presente trabalho de pesquisa, cabendo, de abertura, efetuar uma breve análise da natureza do vínculo existente entre candidatos e agremiações.
Os partidos políticos são associações civis que se instituem com base em uma agregação de afinidade ideológica buscando alcançar, manter e exercer o poder político com o objetivo de defender os interesses inerentes ao seu sistema ideológico[14].
A eles, a Constituição Federal atribuiu expressivo relevo ao estabelecer como condição de elegibilidade a filiação partidária, de forma que, incumbe aos mesmos o papel de mediação entre os governantes e o povo, agindo ativamente no processo de formação da vontade política dos grupos sociais[15].
Ou seja, compete a cada partido político intitular as bandeiras por ele defendidas e indicar os candidatos que lhe parecem mais aptos a representar os simpatizantes dessas mesmas causas, para que os cidadãos possam analisar o conjunto de idéias de cada partido e qual deles prefere que o represente.
Em tal contexto, imperioso reconhecer que ao optar por determinado partido, o candidato a qualquer cargo eletivo está, de certa forma, comprometendo-se com as campanhas por ele defendidas, de modo que, se eleito, deve praticar os atos de governo norteado pela ideologia de sua agremiação, que, em tese, reflete a de seus eleitores.
Dito isso, cabe também identificar e limitar as possibilidades de autuação desse tipo de entidade, para que se possa, no decorrer dessa pesquisa, efetuar uma análise, livre de distorções baseadas em premissas equivocadas, da legislação objeto deste estudo.
Alexandre de Moraes, interpretando a nossa norma fundamental, afirma que os partidos políticos foram regulamentados pela Constituição Federal “como instrumentos necessários e importantes para a preservação do Estado Democrático de Direito”[16].
A fim de possibilitar o exercício dessa função, lhes é assegurada total autonomia
“para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”[17].
Ressalta-se, no entanto, que dita autonomia: (I) “não se estende a ponto de atingir a autonomia de outro partido, cabendo à lei regular as relações entre dois ou mais deles”[18]; e (II) “não há de realizar-se com o sacrifício de referenciais democráticos”[19].
Dessa maneira, há que ter-se claro que “A relevante função pública exercida pelo partido político impõe a sua submissão aos princípios constitucionais, especialmente às normas que asseguram direitos e garantias fundamentais”[20].
Em virtude dessas ressalvas efetuadas nos dois parágrafos anteriores deve-se ter cuidado ao interpretar a legislação relacionada aos partidos políticos e seus direitos, para que não sejam transpassados esses limitadores da autonomia partidária.
Ademais, insta consignar que a doutrina atualmente vem identificando disfunções desses caracteres desenvolvidos neste tópico, porquanto tem afirmado que os partidos políticos estão se convertendo em “meros instrumentos para a conquista do poder, uma vez que raramente a atuação de seus membros condiz fielmente com os ideais anunciados nos programas partidários”[21].
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, essa descaracterização da figura e da função das agremiações partidárias foi intensificada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, que fizeram com que se tornasse conhecida “a imagem dos governantes, permitindo que estes se dirijam, como que imediatamente, a todos”, o que têm ensejado “que prevaleçam as personalidades e seu carisma sobre as idéias e programas”[22].
1.5 O SISTEMA ELEITORAL BRASILEIRO
A análise do sistema eleitoral brasileiro é indispensável para um melhor entendimento da organização política do nosso Estado, da forma utilizada para auferir a vontade popular e, principalmente, do nível de legitimação do poder dos políticos eleitos.
O Código Eleitoral Brasileiro, em seus artigos 83 e 84, e a Lei n° 9.504/97, nos artigos 2º e 3º e parágrafos, trazem previsões acerca dos métodos adotados para realização das eleições no país, demonstrando a adoção de dois sistemas eleitorais distintos. Acompanhe-se:
“Art. 2º Será considerado eleito o candidato a Presidente ou a Governador que obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos.
§ 1º Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, far-se-á nova eleição no último domingo de outubro, concorrendo os dois candidatos mais votados, e considerando-se eleito o que obtiver a maioria dos votos válidos.
§ 2º Se, antes de realizado o segundo turno, ocorrer morte, desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação.
§ 3º Se, na hipótese dos parágrafos anteriores, remanescer em segundo lugar mais de um candidato com a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso.
§ 4º A eleição do Presidente importará a do candidato a Vice-Presidente com ele registrado, o mesmo se aplicando à eleição de Governador.
Art. 3º Será considerado eleito Prefeito o candidato que obtiver a maioria dos votos, não computados os em branco e os nulos.
§ 1º A eleição do Prefeito importará a do candidato a Vice-Prefeito com ele registrado[23].
Art. 83. Na eleição direta para o Senado Federal, para Prefeito e Vice-Prefeito, adotar-se-á o princípio majoritário.
Art. 84. A eleição para a Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, obedecerá ao princípio da representação proporcional na forma desta lei.[24]
Como visto, o nosso sistema eleitoral é misto, abarcando princípios diferenciados para legitimar a eleição dos cargos políticos, de forma que aplica aos cargos de Presidente, senador, Prefeito e Vice-Prefeito o princípio majoritário e aos demais o princípio da representação proporcional.
O princípio majoritário, como o próprio nome sugere, é o sistema de representação no qual a conquista do cargo se dá diretamente pelo candidato que obtiver o maior número de votos, alcançando a preferência da maioria dos votantes[25].
Para Canotilho, as vantagens da adoção desse sistema são:
“(1) formação de governos funcionais, pois o sistema eleitoral não visa apenas ou fundamentalmente formar uma representação que ‘reproduza o povo’ mas possibilitar a formação de governos eficazes e estáveis; (2) alternância do poder através do sistema bipartidário, dado que o sistema majoritário impossibilita, na prática, a formação de pequenos partidos, sendo um importante fator psicológico (DUVERGER) para evitar a pulverização partidária e favorecer o sistema bipartidário; (3) robustecimento da oposição, pois o sistema majoritário possibilita uma clara separação entre governo e oposição, robustecendo aquele e esta, sem necessidade de recurso a frágeis coligações”[26].
Por outro lado, há quem critique essa forma de eleição, afirmando não ser justo que apenas a maioria tenha direito à representação, deixando as minorias sem nenhuma possibilidade de participação no governo. A essa concepção, os defensores desse sistema respondem apenas que essa é a essência da democracia[27].
Por outro lado, o princípio da representação proporcional é o sistema que objetiva possibilitar tanto às vertentes políticas majoritárias quanto às minoritárias, representação política, na medida de suas expressividades[28], podendo-se afirmar que esse sistema “visa amenizar a disparidade de representação entre as vontades da maioria e da minoria”[29].
A representação proporcional tem como parâmetros: o quociente eleitoral, que é o resultado da divisão de todos os votos válidos da eleição pelo número de cadeiras a serem preenchidas; e o quociente partidário, que é o resultado da divisão do número de votos válidos de cada partido pelo quociente eleitoral, do qual se aufere o número de vagas que cada partido deverá preencher[30].
Assim, têm-se como vantagens desse sistema, segundo Canotilho:
“a) a igualdade material, pois a proporcionalidade corresponde melhor à exigência de voto igual, designadamente quanto ao valor do resultado (erfolgswert); b) adequação à democracia partidária, dado que a moderna democracia não é uma democracia individualista de ‘notabilidades’ mas uma democracia partidária em que cada partido tem um programa (preferência pelos problemas), de acordo com a ideologia ou interesses por eles mediados (partidos como expressões de antagonismos e convergências), e na qual, em princípio, só os indivíduos escolhidos pelos partidos têm reais possibilidades de serem eleitos (monopólio partidário); c) representação de todos os grupos sociais em virtude da representação do parlamento dever ser ‘um espelho da sociedade política’ (LEIBHOLZ); ora só o sistema proporcional, em ligação com a estrutura partidária, possibilita a ‘reprodução’, no órgão representativo, dos mais importantes grupos sociais e políticos”[31].
Essa sistemática também recebe muitas críticas, sendo a principal delas a que afirma como conseqüência da representação proporcional uma diluição de responsabilidades e a formação de um governo heterogêneo, no qual nenhuma das vertentes políticas pode ser responsabilizada pela ineficácia das ações governamentais, porquanto nenhuma delas consegue assumir a sua expressão máxima[32].
Afirma-se ainda que a multiplicidade de partidos na administração é contraproducente, pois enfraquece o governo que forçosamente está baseado em uma coligação contraditória e que ressalta as divergências entre as correntes ideológicas ao invés de buscar pontos de contato[33].
Destarte, diversas são as vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas políticos adotados pela legislação brasileira, no entanto, não compete a este estudo aprofundá-los, e tampouco eleger o melhor deles, sendo que, cabia apenas esclarecer a diferenciação entre eles, com a exposição das terminologias que doravante serão utilizadas.
2. HIERARQUIA DAS LEIS E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Feitas essas considerações preliminares, impõe-se a efetuar uma análise acerca da hierarquia das leis que compõem um ordenamento jurídico e a conseqüente apreciação dos requisitos necessários de validade dos dispositivos jurídicos em geral, para que em momento posterior se possa auferir a aplicabilidade da matéria em apreço no ordenamento jurídico vigente no nosso país.
2.1 TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
Nos dizeres de Eurico Marcos Diniz de Santi, define-se ciência como um “conjunto de proposições descritivas passíveis de verificação empírica, acerca de determinado objeto demarcado metodologicamente”[34], premissa a partir da qual subsume-se que o “objeto demarcado pela Ciência do Direito é, precisamente, o conjunto de normas jurídicas válidas.”[35].
Outrossim, conforme preleciona Norberto Bobbio, “as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações entre si”[36], de maneira que, para o autor, essa pluralidade de normas constitui um sistema, conceituado, por sua vez, como “um conjunto de elementos (partes) que entram em relação, formando um todo unitário”[37], sendo imprescindível para essa unidade que “não existam normas incompatíveis”[38].
Partindo-se desses preceitos conclui-se que os principais problemas de todo e qualquer ordenamento jurídico vigente nascem das relações existentes entre as normas constituintes desse complexo sistema, de forma que, esses problemas são eminentemente de duas naturezas: primeiramente, tem-se que saber se o conjunto de normas constitui uma unidade; para, em segundo plano, investigar-se se dito conjunto, uma vez que unificado, constitui um sistema.
Ao presente estudo interessa sobrejacentemente a discução do primeiro problema em relação ao nosso ordenamento jurídico, já que o tema em tela tem a ver com a constitucionalidade da aplicação de determinado princípio no nosso ordenamento, dizendo eminentemente com a hierarquia das normas, conceito este que, de acordo com os ensinamentos de Norberto Bobbio, é o cerne da questão da unidade do ordenamento[39].
Para possibilitar a unidade de um ordenamento jurídico complexo, assim classificado pelo incontável número de normas que o compõem, como o brasileiro, imprescindível a adoção da teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen.
O núcleo dessa teoria consiste em afirmar que:
“as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores, subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental”[40].
Dita teoria vai além disso, ao defender a imprescindibilidade da existência de um escalonamento que terá como ponto de partida a chamada norma fundamental, sendo que esta dará substrato a todas as demais normas positivas e à interpretação dada a quaisquer delas[41], afirmando ainda “a existência de normas individuais que nada mais são do que formas de execução das referidas normas gerais erigidas segundo a previsão da norma fundamental”[42].
Ainda explicitando a importância dessa norma fundamental, impõen-se transcrever trecho da obra Kelsiana, onde o autor afirma que:
“o fundamento de validade de uma ordem normativa é (…) uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as outras pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem”[43].
Seguindo esse reciocínio, pode-se entender ser a Constituição a ordem jurídica fundamental das comunidades, estabelecendo e positivizando princípios fundamentais do ordenamento jurídico e critérios para aplicação das normas do ordenamento[44].
Conjugando-se as teorias e conceitos supracitados com o status conferido à nossa Constituição Federal por Celso Ribeiro Bastos quando afirma que “a Constituição vem a ser um conjunto de normas de valor hierárquico máximo dentro da ordem jurídica”[45], pode-se seguramente afirmar que ela é a nossa norma fundamental e que, portanto, todas as demais normas devem ser editadas dentro dos limites impostos pela Carta Magma.
2.2 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Partindo-se do pressuposto de que existe uma hierarquia entre as normas de um mesmo ordenamento jurídico e entendendo-se que, no nosso sistema, a norma fundamental é a Constituição Federal, pode-se afirmar que a produção das normas jurídicas brasileiras deve necessariamente respeitar seus parâmetros[46].
Essa é a supremacia constitucional, que pode ser entendida como a qualidade dada à norma derivada do poder constituinte pela qual se impõe restrições a todas as demais produções legislativas do ordenamento.
Em vista da referida submissão das leis ao regramento fundamental, podem existir expressões normativas inválidas, entendida essa invalidade como conceito desassociado da idéia técnico-formal de vigência, tendo relação direta com sua regularidade jurídica e aplicabilidade[47].
Diante disso, objetivando-se possibilitar que as balizas impostas pela Constituição Federal sejam respeitadas, necessária se faz a criação de um meio “pelo qual se tornam efetivas as exigências traçadas pelo constituinte à regularidade dos atos praticados por indivíduos ou entidades que devem obediência às normas constitucionais”[48], concretizando-se esse meio através do chamado controle de constitucionalidade.
Esse mecanismo de controle de validade das leis é um conjunto de dispositivos utilizados para garantir a já explicitada e justificada supremacia da Constituição; sendo conjunto porquanto a multiplicidade de razões de inconstitucionalidade dos atos legislativos exige uma diversidade de modos de controle[49].
2.3 ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE
De acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, em O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro[50], existem dois critérios significativos de classificação das categorias de inconstitucionalidade das normas, sendo um deles referente ao tipo de atuação estatal que ocasionou a inconstitucionalidade, e o outro relacionado ao procedimento de elaboração e ao conteúdo da norma.
A classificação concernente ao tipo de atuação estatal divide os critérios da inconstitucionalidade em por ação ou por omissão, considerando que “É possível violar a Constituição praticando um ato que ela interditava ou deixando de praticar um ato que ela exigia”[51].
Destarte, a inconstitucionalidade por omissão, pode ser exemplificada pela inobservância de uma obrigação constitucional; sendo que, quando referente ao poder legislativo, esse dever pode unicamente ser entendido como dever de legislar.
Por outro lado, a inconstitucionalidade por ação, materializa-se através de um fazer contrário à manifestação expressa da Constituição, concretizando-se assim por meio da edição de um ato normativo incompatível com a norma fundamental[52].
A outra classificação identificada por Luís Roberto Barroso na obra supra-referida é a relacionada ao procedimento de elaboração e ao conteúdo da norma, que divide os elementos da inconstitucionalidade entre formais e materiais.
A inconstitucionalidade formal refere-se à falta de observância de uma norma fundamental de procedimento legislativo, concretizando-se subjetivamente pela inobservância daquele detinha o poder de iniciativa legislativa, e objetivamente pelo desrespeito ao quorum mínimo de aprovação, de acordo com o processo de tramitação a ser observado – constitutivo ou complementar[53].
Já a inconstitucionalidade material diz com o conteúdo da norma que, em hipótese alguma, pode contrastar com os parâmetros constitucionais concernentes. Além disso, dito critério de constitucionalidade também impõe não sejam desrespeitados os limites do poder de legislar previstos na norma fundamental que veda o excesso de poder, em qualquer de suas formas[54].
Com o intuito de explicitar em que consiste dito excesso de poder, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes ensina:
“O conceito de discricionaridade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, idéia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentro de limites estabelecidos pela Constituição. E, dentro desses limites, diferentes condutas podem ser consideradas legítimas. Veda-se, porém, o excesso de poder"[55].
Diante disso, pode-se afirmar que a idéia de inconstitucionalidade material não relaciona-se unicamente a matérias legisladas em contrariedade a dispositivos da Carta Magna, devendo também ser analisado se a matéria positivada, de acordo com os preceitos constitucionais, poderia ser objeto de produção legislativa, ou se ertaria-se diante de um caracterizado excesso de poder.
Além dessas classificações, a doutrina identifica algumas outras, como por exemplo, a “incostitucionalidade total ou parcial, direta ou indireta e superveniente ou originária”[56]; sendo que ter-se-á uma inconstitucionalidade total quando o diploma legal impugnado estiver integralmente em desconformidade com a norma superior e tratar-se-á de inconstitucionalidade parcial se apenas alguns dos dispositivos contemplados no diploma legal impugnado contiverem as desconformidades[57].
A inconstitucionalidade direta caracteriza-se pela contrariedade frontal entre a produção legislativa examinada e a nossa carta fundamental; considerando-se indireta a inconstitucionalidade que se dá por afronta a qualquer lei hierarquicamente superior que, por sua vez, esteja de acordo com a Constituição Federal[58].
Por fim, tem-se uma inconstitucionalidade originária quando o diploma legal esta em desacordo com o ordenamento desde a sua gênese; por outro lado, a inconstitucionalidade superveniente é aquela de que padece a lei que veio a assim tornar-se por motivo de alteração constitucional posterior à sua criação[59].
Feitas essas considerações acerca dos conceitos supra referidos, impõe-se ressaltar que os mesmos estão sendo analisados neste estudo por possuírem não só o caráter formal de classificação, servindo também para sistematizar e facilitar a análise de constitucionalidade propriamente dita.
Tendo em vista o critério subjetivo explicitado nas considerações efetuadas acerca da inconstitucionalidade formal das normas, fazem-se necessários alguns apontamentos sobre as competências de cada um dos poderes estatais e a indicação da correspondente capacidade legislativa, de acordo com a exegese das disposições constitucionais concernentes.
O constituinte, com o intuito de defender as garantias fundamentais dos cidadãos e evitar abusos de poder do Estado, incluiu nas previsões da Constituição Federal a tripartição dos poderes, através da qual é dissociado o exercício das funções estatais entre três poderes independentes e harmônicos entre si[60].
Essa divisão é baseada na ilustre conceituação de Montesquieu[61] que criou o sistema de pesos e contrapesos, de maneira que nenhum dos órgãos públicos tenha a faculdade de agir discricionariamente sem que possa ser freado pelos demais.
A dissociação prevista pela norma fundamental “consiste em distinguir três funções estatais – legislação, administração e jurisdição – e atribuí-las a três órgãos, ou grupos de órgãos, reciprocamente autônomos, que as exercerão com exclusividade, ou ao menos preponderantemente”[62], correspondendo eles respectivamente aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
O Poder Legislativo possui eminentemente as funções de legislar e fiscalizar, podendo, no entanto, subsidiariamente exercer atividades de administração (referentes à sua própria estrutura) e de jurisdição (quando processa e julga os crimes de responsabilidade de alguns dos cargos públicos federais)[63].
Ao Poder Executivo competem predominantemente atividades da administração do Estado, devendo efetivar as previsões legislativas e, de certa forma, suprir as lacunas das funções estatais, cabendo-lhe desenvolver as atividades que não competem a nenhum dos demais poderes[64].
Finalmente, ao Poder Judiciário cabe desenvolver o papel jurisdicional, devendo ele aplicar o Direito, inclusive em relação aos demais Poderes, através da “prolação de decisão autônoma, de forma autorizada e, por isso, vinculante, em casos de direitos contestados ou lesados”[65], ministrando as leis para o caso singular.
Efetivamente, a explicitada tripartição dos poderes que rege a atuação dos órgãos do poder público, não veda totalmente o exercício de atividade, por um dos poderes, de caráter que não seja o de seu predomínio, no entanto, impõe limitações a esse exercício descaracterizado.
No presente estudo, por questões de finalidade e utilidade, cabe apenas analisar a competência legislativa do Poder Judiciário e as limitações a ele impostas pela norma fundamental.
De fato, exercendo a sua função de interpretar a lei e aplicá-la ao caso concreto, o julgador faz o direito para as partes envolvidas na lide sub judice, não podendo, de outra banda, invadir a competência legislativa, defendendo-se, portanto, que o magistrado tem a faculdade de legislador negativo, deixando de aplicar a norma caso a entenda inconstitucional, não podendo, entretanto, de forma alguma atuar como legislador positivo, a ponto de criar norma jurídica não legislada pelo poder competente[66], sob pena de violar o explicitado princípio da separação dos poderes.
Com o intuito de proteger a limitação da autuação do Poder Judiciário, Canotilho elencou, entre os princípios a serem observados na interpretação da Constituição, o princípio da conformidade funcional, que objetiva obstar a alteração da repartição de funções estabelecidas pela Lei Maior[67].
Além disso, como bem lembrado por Zagrebelsky, quem delimita a extensão das possibilidades de interpretação da lei é o próprio legislador, sendo que a liberdade do julgador intérprete está condicionada ao texto da própria lei, que pode trazer cláusulas mais abertas ou mais fechadas[68].
Entende ainda Zagrebelsky que, por outro lado, não violaria o princípio do legislador negativo o magistrado que se utilizasse da interpretação das normas do ordenamento para garantir direitos reconhecidos pela norma fundamental, atuando como garantidores da necessária coexistência entre lei, direitos e justiça[69].
Diante de todas as análises feitas, pode-se concluir que ao poder judiciário foi conferido um restrito poder legislador, em parte atinente ao desenvolvimento de sua própria função, e em parte para assegurar o atendimento de normas fundamentais, não podendo, contudo, ser extrapolada essa diminuta liberdade, em respeito à vontade do legislador constituinte.
2.5 PODER REGULAMENTAR DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Uma vez afirmado o restrito caráter legislador atribuído pela Carta Constitucional aos integrantes do poder judiciário brasileiro, cabe aqui, em virtude da matéria de fundo da presente pesquisa, desenvolver algumas noções relacionadas ao poder regulamentar do Tribunal Superior Eleitoral, como intuito de estabelecer os limites materiais da aptidão legislativa desse órgão.
Como vimos no decorrer das considerações feitas acerca da Competência para Legislar, na teoria da separação dos poderes não há ente que exerça exclusivamente a sua função.
No entanto, a função típica de cada um dos poderes é sempre a predominante nas suas atividades, de forma que, pode-se atribuir um certo caráter legislativo ao poder judiciário, podendo este ser exercido em situações específicas, concernentes a matérias restritas.
Ao organizar a função judiciária, a Constituição Federal dividiu tal poder em diversos órgãos, instituindo a Justiça Eleitoral, que tem como instituição máxima o Tribunal Superior Eleitoral[70], sendo que, por competência delegada, o Código Eleitoral dispõe sobre as atribuições específicas desse órgão.
Esse Código, em seu art. 23, incisos IX e XVIII, confere ao TSE capacidade para regulamentar a aplicação de normas que já estejam previstas na legislação eleitoral[71].
Leia-se:
“Art. 23 – Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior:(…)
IX – expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código;(…)
XVIII – tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral.”
Da simples leitura desse dispositivo entende-se que, de fato, o Tribunal Superior Eleitoral possui competência legislativa, no entanto, essa competência é restrita à regulamentação de “matéria administrativa e legislativa, neste último caso, não podendo extrapolar os comandos contidos no diploma legal emanado do poder competente, nos termos do art. 22, I, da Constituição de 1988, qual seja o Congresso Nacional.”[72].
Logo, conquanto restrinjam-se a tratar exclusivamente de matérias já previstas na legislação eleitoral em vigor, inegável a validade constitucional de cláusulas regulamentares expedidas pelo TSE.
Por isso, deve-se sempre efetuar a analise de qual dispositivo da norma jurídica estaria sendo regulamentado por cada resolução expedida por esse órgão, e, em caso de não identificação do mesmo, entendê-la como expressão normativa inválida.
3 O PRINCÍPIO DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA
Neste capítulo, adentrar-se-á na análise do instituto da fidelidade partidária propriamente dito, para que, posteriormente, sobrepondo-a a todos os estudos que precederam este capítulo, se possa alcançar um juízo acerca da possibilidade de aplicação desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro.
Inicialmente, impõe-se definir mais alguns conceitos necessários para o entendimento do instituto da fidelidade partidária, podendo-se estrear essa explicitação conceitual pela intelecção da extensão dos direitos políticos inerentes ao exercício da cidadania.
Com esse intuito, primordialmente transcreve-se os dizeres de Celso Ribeiro Bastos, acerca da delimitação subjetiva do cidadão, como detentor da faculdade de exercitar os direitos de cidadania. Verbis:
“O nacional não deve ser confundido com o cidadão. A condição de nacional é um pressuposto para a de cidadão. Em outras palavras, todo o cidadão é um nacional, mas o inverso não é verdadeiro: nem todo nacional é cidadão. O que confere esta última qualificação é o gozo dos direitos políticos. Cidadão, pois, é todo nacional na fruição dos seus direitos cívicos”[73].
Dito isso, registra-se que dentre os direitos cívicos reconhecem-se, em primeiro plano, os direitos políticos e de sufrágio universal, ou seja, o direito de votar e ser votado, que, teoricamente, são inerentes a todos os cidadãos, sendo, no entanto, restringidos pela própria Constituição Federal, que excetua “do direito ao alistamento eleitoral (…) os conscritos durante o período de serviço militar obrigatório, e os menores de 16 anos”[74].
Logo, por cidadão, capaz de exercer os direitos políticos e de sufrágio universal, entende-se todo aquele nacional, maior de dezesseis anos que não se encontre durante o período de serviço militar obrigatório.
Nessa senda, outro conceito imprescindível a este estudo é o de elegibilidade, que, de acordo com Alexandre de Moraes, “é a capacidade eleitoral passiva consistente na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular”[75].
Conforme se depreende das regras contidas no parágrafo terceiro e incisos, e no parágrafo quarto, do artigo 14 da nossa Constituição[76], para que se concretize essa capacidade, além da condição de cidadão, é necessário o preenchimento de mais alguns requisitos.
Da simples leitura dos dispositivos legais citados, subsumem-se as condições necessárias para o exercício da elegibilidade. Leia-se:
“§ 3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei
I – a nacionalidade brasileira;
II – o pleno exercício dos direitos políticos;
III – o alistamento eleitoral;
IV – o domicílio eleitoral na circunscrição;
V – a filiação partidária;
VI – a idade mínima de:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;
b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;
c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
d) dezoito anos para Vereador.
§ 4º – São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”[77]
Destarte, em tese, preenchidos esses requisitos legais, todo e qualquer cidadão brasileiro, em pleno exercício dos direitos políticos, tem a faculdade de candidatar-se a quaisquer dos cargos eletivos componentes da nossa democracia representativa.
Tendo em vista o objeto do presente estudo, analisar-se-á, neste capítulo, unicamente a conceituação necessária para o entendimento do dispositivo acima transcrito no que diz com a imprescindibilidade de filiação partidária para a candidatura a cargos eletivos, que se entende diretamente relacionada ao conceito de fidelidade partidária.
Essa previsão constitucional reflete o intuito do legislador constituinte de inadmitir candidaturas que não se efetivem por intermédio dos partidos políticos[78], sendo que esses, conforme explicitado no capítulo inaugural do presente estudo, podem ser entendidos como:
“grupos sociais que se unem com o intuito de disputar, conquistar, exercer e conservar o poder, nas suas diversas instâncias, apresentando como atrativo para os seus filiados e adeptos a ideologia e programa que os convença de poderem satisfazer, por meio deles, seus anseios sociais e até mesmo pessoais”[79].
Tendo em vista essa identidade de ideologia inerente à adesão do cidadão ao partido político, entende-se que a eleição de determinado candidato estaria refletindo que o programa do partido por ele representado coincide com a opinião da maioria dos cidadãos[80].
Daí afirma-se a indispensabilidade da conduta de fidelidade, com o intuito de evitar a distorção da representação política dos eleitores, sendo que essa conduta exprime os preceitos do princípio da fidelidade partidária.
Em verdade, o princípio em análise é entendido como instituidor dessa necessidade da conduta de “fidelidade aos princípios doutrinários, ao programa do partido e às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção do partido sob cuja legenda o agente político se elegeu”[81], sob pena de perda do mandato eletivo[82].
Assim, além da condição de cidadão, a Constituição Federal prevê outras condições para que se adquira o status de elegível, sendo que uma delas é a de filiação a um partido político, motivo pelo qual se pode entender a necessidade de manutenção desse vinculo partidário durante todo o mandato, sob pena de perdê-lo, passando a vaga eletiva a ser ocupada pelo primeiro suplente da legenda abandonada.
3.2 A FIDELIDADE PARTIDÁRIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A fidelidade partidária, como dever de obediência às diretrizes do partido e de permanência na agremiação pela qual os detentores de cargos eletivos tenham sido eleitos, sob pena de perda do mandato, foi introduzida no direito brasileiro em 1969, pela Emenda Constitucional n° 01, que incluía na norma fundamental vigente a seguinte previsão:
“Art. 152 A organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos serão regulados em lei federal, observados os seguintes princípios:
I – regime representativo e democrático, baseado na pluralidade de partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem;
II – personalidade jurídica, mediante registro dos estatutos;
III – atuação permanente, dentro de programa aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, e sem vinculação, de qualquer natureza, com a ação de governos, entidades ou partidos estrangeiros;
IV – fiscalização financeira;
V – disciplina partidária;
VI – âmbito nacional, sem prejuízo das funções deliberativas dos diretórios locais;
VII – exigência de cinco por cento do leitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles; e
VIII – proibição de coligações partidárias.
Parágrafo único. Perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmara Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa”.[83]
Uma vez instituída a aplicação do princípio da fidelidade partidária na norma fundamental do ordenamento jurídico em vigor na época, sua aplicação se manteve[84] até que, através da Emenda Constitucional n° 25 de 1985, foi alterada a redação desse artigo, extinguindo-se a aplicabilidade do instituto[85].
O dispositivo passou a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 152 É livre a criação de Partidos Políticos. Sua organização e funcionamento resguardarão a Soberania Nacional, o regime democrático, o pluralismo partidário e os direitos fundamentais da pessoa humana, observados os seguintes princípios:
I – é assegurado ao cidadão o direito de associar-se livremente a Partido Político;
Il – é vedada a utilização pelos Partidos Políticos de organização paramilitar;
III – é proibida a subordinação dos Partidos Políticos a entidade ou Governo estrangeiros;
IV – o Partido Político adquirirá personalidade jurídica mediante registro dos seus Estatutos no Tribunal Superior Eleitoral;
V – a atuação dos Partidos Políticos deverá ser permanente e de âmbito nacional, sem prejuízo das funções deliberativas dos órgãos estaduais e municipais.
§ 1º Não terá direito a representação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados o Partido que não obtiver o apoio, expresso em votos, de 3% (três por cento) do eleitorado, apurados em eleição geral para a Câmara dos Deputados e distribuídos em, pelo menos, 5 (cinc[86]o) Estados, com o mínimo de 2% (dois por cento) do eleitorado de cada um deles.
§ 2º Os eleitos por Partidos que não obtiverem os percentuais exigidos pelo parágrafo anterior terão seus mandatos preservados, desde que optem, no prazo de 60 (sessenta) dias, por qualquer dos Partidos remanescentes.
§ 3º Resguardados os princípios previstos no "caput" e itens deste artigo, lei federal estabelecerá normas sobre a criação, fusão, incorporação, extinção e fiscalização financeira dos Partidos Políticos e poderá dispor sobre regras gerais para a sua organização e funcionamento.”
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 revigorou a aplicabilidade da regra em análise, uma vez que menciona a expressão fidelidade partidária no § 1º do art. 17, que dispõe:
“É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”[87].
Assim, pode-se entender que, efetivamente, o princípio da fidelidade partidária está incluso no nosso ordenamento jurídico, no entanto, deve-se atentar ao fato de que essa redação não impõe a perda do mandato aos detentores de cargos eletivos que não respeitarem essa regra e tampouco delega competência para que quaisquer outras produções legislativas o façam.
Esse é o entendimento de MONICA HERMAN SALEM CAGGIANO, quando afirma, em sua obra Direito parlamentar e direito eleitoral, que a Constituição Federal não possibilita o reconhecimento de uma ligação essencial entre eleito e partido, liberando o parlamentar da necessidade de manutenção de filiação à agremiação pela qual foi eleito[88].
Logo, conforme preleciona Clèmerson Merlin Clève, irrefutável o reconhecimento de que:
“no sistema constitucional brasileiro contemporâneo, o parlamentar não perder o mandato em virtude de filiação a outro partido ou em decorrência do cancelamento da filiação por ato de infidelidade é eloqüente. Ainda que, doutrinariamente, o regime do mandato possa sofrer crítica, é induvidoso que, à luz do sistema constitucional em vigor, o mandato não está à disposição do partido”[89].
Diante dessas considerações, conclui-se que, de fato, o princípio da fidelidade partidária está presente no nosso ordenamento jurídico, mas com aplicabilidade moderada, porquanto, na nossa norma fundamental não há previsão da perda do mandato para os casos de desrespeito a esse instituto.
3.3 AS RESOLUÇÕES DO TSE E SUA CONSTITUCIONALIDADE
Em março de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral, em resposta à Consulta n° 1398, formulada pelo antigo PFL – Partido da Frente Liberal, decidiu que
“os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando, sem justificação nos termos já expostos, ocorra cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito para outra legenda”[90].
Destarte, em caso de troca de agremiação, os parlamentares perdem a titularidade de seus cargos, devendo a vaga deixada ser assumida pelo suplente da legenda abandonada.
Para efetivar a aplicação desse posicionamento, o TSE editou a Resolução 22.610/07, disciplinando o processo de perda de mandato eletivo bem como os casos de justificação da desfiliação partidária.
Vista disso, foram impetradas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, que as julgou improcedentes, afirmando a constitucionalidade da nova interpretação da Corte Eleitoral.
Posteriormente, em resposta a nova Consulta, o TSE estendeu a aplicação da regra da fidelidade partidária aos detentores de cargos majoritários, corroborando o entendimento de que o mandato pertence ao partido e não ao político eleito[91].
Assim sendo, o Poder Judiciário brasileiro decidiu-se pela possibilidade da aplicação do princípio da fidelidade partidária no ordenamento jurídico brasileiro.
Ocorre que, embora tenha-se visto, no tópico A FIDELIDADE PARTIDÁRIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, que esse princípio está previsto na nossa norma fundamental, não se pode concluir que a resolução em análise seja constitucional, pois determina a perda de mandato dos parlamentares que desfilian-se da sua agremiação origirnária, aplicando sanção que, efetivamente, não está prevista na Constituição Federal.
Para efetuar a análise da constitucionalidade das Resoluções em tela, conveniente a utilização da classificação, anteriormente estudada, das espécies de inconstitucionalidade, sendo que a presente explicitação utilizar-se-á apenas dos conceitos de constitucionalidade formal e material para analisar a legitimidade dessa norma jurídica.
Quanto à constitucionalidade formal, pelo que se viu nas considerações concernentes à HIERARQUIA DAS LEIS e CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, pode-se afirmar que a resolução em estudo, primordialmente, infringe um outro princípio constitucional, qual seja, o princípio da separação dos poderes, segundo o qual, cabe
“ao Legislativo a elaboração de leis, de normas gerais e abstratas, impostas perante todos. Ao Executivo cabe a administração do Estado, baseadas nas lei elaboradas pelo legislativo. Já ao Judiciário, cabe obviamente, cabe a função judicial do Estado distribuindo a justiça e aplicando a lei”[92].
Outrossim, a única hipótese de relativização desse princípio é a competência delegada dada ao Tribunal Superior Eleitoral para editar resoluções normativas que disciplinem a aplicação dos artigos contidos no Código Eleitoral, ocorre que, conforme estudado, a imposição da sanão de perda de mandato aos parlamentares infiéis não está presente em dito Código, de maneira que, não cabia ao TSE instituí-la.
Assim sendo, irrefutável o reconhecimento de que o Poder Judiciário, ao editar a Resolução número 22.610/07, invadiu a competência do Poder Legislativo, uma vez que editou norma implementadora de sanção a determinada prática de maneira diversa da prevista na Carta Maior, sem que exista lei que a legitime.
Nesse sentido votou o Ministro EROS GRAU na decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade número 3.999, consignando:
“O Código Eleitoral autoriza o Tribunal Superior Eleitoral apenas, unicamente, exclusivamente a dispor sobre a sua execução [dele, Código Eleitoral] e da legislação eleitoral, sem forca suficiente para inovar no ordenamento. Produzi alguns textos acadêmicos sobre os temas das funções estatais – a função normativa, a função administrativa e a função jurisdicional – e da legalidade. Embora entenda coexistirem, no direito positivo brasileiro, regulamentos de execução, regulamentos autônomos, regulamentos de execução e regulamentos autorizados – bem assim que a Constituição contempla o princípio da legalidade em sentido amplo e sentido estrito – jamais me ocorreria assumir qualquer gesto ou interpretação que conduzisse a transgressão da legalidade. Sempre estive e tenho estado cioso da sua importância [importância da legalidade] e da importância da interdependência entre os poderes”[93].
Logo, indubitavelmente, as normas em análise são formalmente inconstitucionais.
Além disso, impõe-se ainda o estudo da constitucionalidade material da resolução em análise, inclusive para que se possa auferir se o instituto da fidelidade partidária pode ser aplicado ao direito eleitoral brasileiro através de outra produção legislativa infraconstitucional.
De acordo com as motivações explicitadas no título A FIDELIDADE PARTIDÁRIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, embora esteja o princípio da fidelidade partidária presente nas normas contidas na nossa Carta Magna, o legislador constituinte não atribuiu a ele o caráter de imprescindibilidade para manutenção do mandato.
E, considerando-se que as Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral em apreço aplicam a pena de perda do mandato aos detentores de cargo eletivo que abandonam a agremiação, faz-se necessário o reconhecimento de que essas normas também são materialmente inconstitucionais.
Diante de todas essas considerações, irrefutável o entendimento de que ambas as resoluções do TSE infringiram a Constituição Federal tanto formal quanto materialmente, de maneira que desrespeitaram princípios básicos nela contidos como o da legalidade, o da separação dos poderes e o da supremacia constitucional.
Ademais, de acordo com as conclusões em que culminaram as análises desenvolvidas no decorrer dessa pesquisa , pode-se afirmar também que qualquer outro dispositivo legal infraconstitucional que venha a ser editado para aplicar o princípio da fidelidade partidária no nosso ordenamento, também estaria violando a Constituição Federal, o que, como visto nas explicitações acerca da teoria do ordenamento jurídico e da hierarquia das leis, não pode ser admitido em nenhum sistema jurídico.
4 A CRISE DO SISTEMA REPRESENTATITVO BRASILEIRO E NECESSIDADE DE REFORMAS
Conforme estudado no capítulo inaugural do presente trabalho, o princípio da democracia pode ser definido basicamente como a “(…) exigência da integral participação de todos e de cada uma das pessoas na vida política do país, a fim de garantir o respeito à soberania popular”[94].
Assim sendo, para que esse princípio esteja sendo aplicado sem vícios ou distorções, é necessário que as atitudes dos representantes da população se legitimem através da aprovação dos representados.
Ao contrário disso, o que se constata atualmente na sociedade brasileira é o ápice de um processo de desilusão gradativa, que culminou na repulsão a todo o processo eleitoral, e seu conseqüente esvaziamento, o que demonstra a perda de função ou até de legitimidade da técnica democrática brasileira[95].
Consigna-se que o termo “técnica” está aí empregado para ressaltar que o que se está criticando é o procedimento, visto como a maneira de efetivar a democracia brasileira, de modo que não se está pondo em dúvida a exigibilidade de vigência do princípio democrático.
Perante esse esvaziamento do processo democrático, pode-se afirmar, de acordo com preceitos adotados por Fernando Henrique Cardoso, que o povo, continua a exercer sua soberania unicamente no plano jurídico, deixando-se de lado a idéia central da democracia, qual seja, a participação política da sociedade nas entidades governamentais[96].
No Brasil, por crise da democracia, pode-se entender crise da democracia representativa, cujas principais causas podem resumir-se basicamente em: “desradicalização da ideologia dos partidos”, “burocratização e centralização do partido”, “heterogeneidade estrutural, ideológica e cultural de seus filiados”, o que leva a conclusão de que a crise da democracia representativa brasileira reflete eminentemente distorções do sistema partidário concorrencial[97].
Diante de todos esses fatores e, de acordo com o entendimento de Otávio Dulci, a infidelidade prática corrente na conduta dos detentores de cargos eletivos deve ser vista como o principal fator de instabilidade da política representativa nacional e de descrença dos brasileiros nos partidos políticos componentes do sistema[98].
Outrossim, conforme consignou o Ministro JOAQUIM BARBOSA no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.999:
“A infidelidade partidária implica instabilidade do sistema democrático em duas ordens diversas. Em primeiro lugar, como decidiu a Corte, o acesso do candidato ao cargo eletivo pressupõe a força do partido político, nas eleições proporcionais. Em contraponto, contudo, não me parece razoável ignorar a relação estabelecida diretamente entre o eleito e o eleitorado.”
Destarte, inegável a instabilidade da democracia brasileira e a necessidade de reforma no sistema eleitoral, de modo que dita reformulação pode partir da inclusão do princípio da fidelidade partidária no ordenamento jurídico.
No entanto, em respeito a todos os princípios e normas constitucionais estudadas na presente, deve-se ter em mente que:
“o debate legislativo é o ambiente adequado para resolver essas e outras questões, que são eminentemente políticas. Somente em situações extremas e somente quando autorizado expressamente pela Constituição é que o judiciário pode se manifestar sobre os critérios que orientam a manutenção ou perda do cargo por infidelidade partidária.”
Assim sendo, impõe-se o reconhecimento de que, de fato, a democracia representativa do Brasil está em crise e que se faz necessária uma série de reformas, para as quais o cerne pode ser encontrado na teorização do princípio da fidelidade partidária.
Ocorre que, as referidas reformulações devem originar-se das discussões e projetos do poder legislativo, porquanto este sim configura órgão de representação popular que pode utilizar-se dos dispositivos expressos na Constituição Federal para intentar a almejada reforma.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, onde o poder político é exercido por cidadãos eleitos pelo povo, de maneira que a eleição dos representantes da população deve ser admitida como a expressão do preceito máximo da constituição da nossa República, qual seja: o princípio democrático, que deve ser respeitado por todos os demais textos legislativos nacionais.
Além disso, essa forma de Estado adota como premissa a ordem jurídico-constitucional, à qual se aplicam as noções da teoria do ordenamento jurídico para reconhecer que nenhuma norma pode ser editada fora dos limites impostos pela Constituição Federal, sob pena de invalidade.
Logo, uma vez detentor dos poderes de representação legitimamente outorgados pela população mediante sufrágio universal, o detentor de cargo político, no Estado Brasileiro, só poderá perder seu mandato nas hipóteses definidas expressamente na Constituição Federal.
No entanto, embora esteja o princípio da fidelidade partidária incluso no nosso ordenamento jurídico, a redação constitucional atual não impõe a perda do mandato aos detentores de cargos eletivos que não respeitarem essa regra e tampouco delega competência para que quaisquer outras produções legislativas o façam.
A despeito disso, o Tribunal Superior Eleitoral editou resoluções implementando a aplicabilidade desse instituto no sistema eleitoral brasileiro de maneira diversa da prevista pela Carta Maior, sem que exista lei que as legitimem, porquanto, como visto, o poder normativo conferido ao TSE, é restrito; podendo tratar exclusivamente de matérias já previstas na legislação eleitoral em vigor – do que aqui não se cuida.
Em tal contexto, irrefutável o reconhecimento de que o Poder Judiciário, ao admitir a possibilidade de exigência da conduta de fidalidade por parte dos políticos eleitos, incorreu em flagrante afronta aos princípios da legalidade, da separação dos poderes e o da supremacia constitucional; uma vez que, em face da atual redação da norma fundamental, inaplicável a pena de perda de mandato aos governantes e parlamentares que trocam de agremiação.
De outra banda, o que se constata atualmente na sociedade brasileira é o esvaziamento do processo democrático, cujo principal fator é a infidelidade prática corrente na conduta dos detentores de cargos eletivos, e a conseqüência iminente é a enorme instabilidade da política representativa nacional.
Diante disso, se faz necessária uma série de reformas, para as quais o cerne pode ser encontrado na teorização do princípio da fidelidade partidária.
Ocorre que, de acordo com os estudos e conclusões alcançadas no presente, ditas reformas devem ser efetivadas no plano constitucional, para que, se possa finalmente reconhecer a aplicabilidade do princípio da fidelidade partidária no ordenamento jurídico brasileiro.
Advogada graduada em 2010 pela Pontifícia Universidade Católica do RS ex-assessora de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Pós-graduanda em Gestão Pública e Desenvolvimento Regional na Universidade Federal de Pelotas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da UFPel
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