O princípio da fungibilidade recursal como garantia do fim social do processo

Resumo: O presente trabalho foi elaborado com a finalidade de demonstrar a importância do princípio da fungibilidade recursal como meio de se combater o formalismo excessivo no direito processual civil. O processo civil moderno deve ser visto como mecanismo de realização do direito material, um processo civil de resultados. O princípio da fungibilidade recursal permite que se alcance a satisfação da sociedade sem que para isso seja preciso abrir mão da forma que garante a regularidade do procedimento. A fungibilidade existe para evitar que o excesso de formalismo interfira na prestação jurisdicional de modo a comprometer o acesso à justiça. [1]


Palavras-chave: Processo Civil. Fungibilidade Recursal. Dúvida Objetiva. Recurso. Formalismo.


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Sumário: 1. Introdução. 2. Breve histórico. 3. Os requisitos necessários para a sua aplicação. 3.1. Da Dúvida Objetiva. 3.2 Da Inexistência do Erro Grosseiro. 3.3. Da Tempestividade. 4. A questão das custas. 5. A importância da fungibilidade recursal. 6. Conclusão.


1 INTRODUÇÃO


A possibilidade de requerer a reapreciação da matéria suscitada é um direito da parte sucumbente. O Código de Processo Civil traz no título X a previsão dos recursos aceitos no ordenamento jurídico brasileiro.


Para cada espécie de recurso existe um momento processual no qual sua interposição é cabível. A não observância das regras processuais e a consequente interposição equivocada de um recurso pode frustrar as pretensões do recorrente perante o judiciário.


Considera-se fungível tudo aquilo que é passível de ser substituído. O princípio da fungibilidade não apenas a substituição de um recurso por outro, mas a troca de uma medida processual por outra que, apesar de aplicada equivocadamente, serve para se alcançar o fim do processo sem prejuízo das partes.


O princípio da fungibilidade é uma maneira de diminuir o rigor das formas processuais. A fungibilidade recursal, especificamente, é extremamente importante para impedir que um “erro tolerável” prejudique o acesso à justiça que é uma garantia constitucional.


2 BREVE HISTÓRICO


A origem do princípio da fungibilidade é atribuída ao direito alemão em decorrência da existência das teorias subjetiva e objetiva.


Segundo a teoria subjetiva, caso a decisão correta não fosse proferida e o recurso interposto pelo recorrente fosse voltado a esta decisão que não foi proferida, este perderia o direito ao recurso. Já para a teoria objetiva, o recurso interposto deve ser cabível para a decisão prolatada independentemente de esta estar ou não correta.


Surgiu o princípio do recurso indiferente, posteriormente denominado de teoria do maior favorecimento. Ele estabelecia que o recurso deveria ser admitido tanto quando interposto contra decisão errada do juiz como quando atacasse a decisão que deveria ter sido prolatada. Isso fez com que as teorias subjetiva e objetiva fossem superadas.


O princípio da fungibilidade recursal adentrou o ordenamento jurídico pátrio por meio da previsão expressa contida no artigo 810 do Código de Processo Civil de 1939 assim dispunha: “salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento.”.


Com a criação de um novo Código de Processo Civil entendeu-se desnecessário manter tal previsão. Entretanto, o código vigente, embora menos confuso que o anterior, também possui dúvidas capazes de fazer com que os operadores do direito cometam equívocos no momento da interposição dos recursos.


A fungibilidade recursal é um princípio jurídico implícito previsto no artigo 244 do código vigente que dispõe: “quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, Ihe alcançar a finalidade.”.


Os doutrinadores consideram a fungibilidade recursal como uma derivação do princípio da instrumentalidade das formas.


No mesmo sentido ensina Guilherme Freire de Barros Teixeira (2009, p.157):


“Não obstante o Código de Processo Civil de 1973 não tenha reproduzido o dispositivo da lei revogada, o princípio da fungibilidade tem aplicação ainda hoje, tratando-se de um princípio implícito, decorrente da instrumentalidade das formas.”


O entendimento é de que o recurso interposto, ainda que de maneira equivocada, alcança a finalidade que dele se espera, qual seja a reapreciação da matéria debatida.


Entretanto, para que este recurso seja recebido é necessário o preenchimento de alguns requisitos.


3 OS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A SUA APLICAÇÃO


Por meio do princípio da fungibilidade recursal é possível que um recurso, ainda que incabível para determinado momento processual, seja recebido.


Nas palavras de Gustavo de Medeiros Melo (2009, p.1462):


“O que importa é atingir na medida do possível a finalidade preventiva contra o perigo da demora. Tamanha deve ser a preocupação com a questão de fundo relativa à preservação da tutela jurisdicional adequada que a tendência vem sendo a aplicação da fungibilidade (hermenêutica) sobre a dúvida objetiva quanto à espécie de provimento a ser manejado..”


No entanto, para que isso aconteça é preciso à existência dos pressupostos, quais sejam a dúvida objetiva, a inocorrência de erro grosseiro e a tempestividade do recurso.


3.1 Da Dúvida Objetiva


Considerado como o mais importante dos requisitos, a dúvida objetiva existe quando há divergência entre a doutrina e/ou jurisprudência a respeito do recurso cabível para determinada decisão. É preciso que haja discussão entre os doutrinadores e/ou julgados contrários nos tribunais.


A fungibilidade recursal deve ser aplicada nos casos em que não seria razoável exigir do operador do direito uma conduta diversa daquela por ele praticada. A fungibilidade existe para impedir que o apego excessivo a forma comprometa o bom andamento do processo de modo a prejudicar a parte que deseja recorrer.


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A dúvida objetiva se refere ao recurso cabível contra determinada decisão judicial. A fungibilidade recursal impede que a forma seja uma regra absoluta, pois a finalidade a ser atingida pelo recurso interposto deve prevalecer.


Segundo o que explica Guilherme Freire de Barros Teixeira (2009, p.155):


“Modernamente, o processo não deve ser concebido como um fim em si mesmo, devendo servir com um instrumento para a atuação do direito material. É verdade que a instrumentalidade do processo não pode servir como “desculpa” para justificar a inobservância de regras legais. Todavia, o processo não pode ficar “preso” a regras de cunho eminentemente formal ou ao exagero e desarrazoado tecnicismo. Deve-se rechaçar a idolatrias às formas.


Além do escopo jurídico, consistente na atuação da vontade concreta da lei, o processo também deve atender o escopo social da jurisdição, buscando a pacificação com justiça. Os exageros formais são incompatíveis com essa elevada missão social do processo. Se devem existir requisitos formais, o sistema deve permitir certa flexibilização, rejeitando que as formas sejam consideradas em si mesmas, sob pena de afronta ao devido processo legal e ao correto exercício da atividade jurisdicional”


O recurso interposto será recebido, processado e conhecido pelo juiz ou tribunal competente como se a interposição feita fosse aquela que do recorrente se esperava.  A forma é deixada de lado para que a finalidade seja alcançada.


Porém, este princípio deve ser utilizado apenas em casos nos quais o recorrente teria sua pretensão jurisdicional frustrada por conta do apego excessivo às formas e do consequente descaso do judiciário para com os fins sociais do processo, mas nunca deve servir para legitimar o erro grosseiro.


3.2 Da Inexistência do Erro Grosseiro


O erro grosseiro é entendido como aquele que contraria uma previsão expressa da lei. Nas hipóteses em que a lei trata do recurso cabível de modo a não deixar margem para dúvidas, o operador do direito não pode interpor recurso contrário a tal previsão.


Segundo Pontes de Miranda (1960, p. 51):


“O êrro é grosseiro quando a lei é explícita, ainda que recente (1.a Turma do Supremo Tribunal Federal, 24 de Novembro de 1941, R. F., 91, 123) ou, o que vale mesmo, contra a jurisprudência assente; aliter, se o próprio tribunal, ou o Supremo Tribunal Federal, vacila, não obstante a letra da lei, ou em virtude de êrro de conceituação.


Não se pode tolerar que o profissional displicente seja acobertado pela fungibilidade recursal.


A existência do erro grosseiro impede por completo a aplicação do princípio da fungibilidade recursal, pois “se houve êrro grosseiro, ou má fé, não há conhecer-se do recurso interposto, ainda que o outro se tivesse sido interposto, estivesse dentro do prazo”. (MIRANDA, 1960, p. 60).


Apenas nos casos não houve a ocorrência de um erro carro é viável analisar da questão da tempestividade do recurso.


3.3 Da Tempestividade


Este último requisito é o que mais causa divergência entre os juristas, pois não há unanimidade a respeito de qual prazo recursal deva prevalecer.


Não há dúvida, como explica José Carlos Barbosa Moreira (2008, p.118), que “todo recurso deve ser interposto dentro do prazo fixado em lei, cujo cômputo obedece às regras gerais sobre contagem de prazos processuais (art. 506, combinado com o art. 184 e seus parágrafos).” até mesmo para se evitar a insegurança jurídica, mas a dúvida existente trata do prazo a ser seguido pelo operador do direito.


A maioria da doutrina entende que o prazo para a interposição do recurso deve ser o menor dentre os recursos considerados cabíveis. Segundo eles, a escolha pelo menor prazo exclui a incidência da má-fé.


Ao optar pelo menor prazo o recorrente deixa evidente que sua intenção, ao interpor recurso equivocado, não foi de estender seu prazo recursal.


Esta corrente doutrinária defende que se o recurso errado fosse interposto após o término do prazo para interposição do recurso correto, a preclusão tornaria impossível se aplicar o princípio da fungibilidade recursal.


Entretanto, há quem defenda que se a parte acredita estar interpondo o recurso correto, não é razoável exigir que ela pratique o ato processual em prazo diverso do previsto para o ato, no caso recurso, por ela praticado, interposto.


Esse posicionamento é defendido por Thiago Moraes Bertoldi (2010) que explica:


“Outra razão, é que uma das principais conseqüências da adoção do princípio é a troca em toda a sua plenitude, mormente no que concerne ao prazo, deste modo o prazo é irrelevante para incidir o princípio analisado. Ou seja, não se deve exigir do interessado a interposição do recurso que entende cabível no prazo menor, porque, se o princípio da fungibilidade recomenda seja conhecido um recurso por outro, deve admitir também a troca do prazo.”


Caso o pensamento adotado seja o de se aplicar o menor prazo, a conversão do recurso não beneficia a parte recorrente que terá grandes chances de não ser contemplado pela fungibilidade recursal devido à preclusão.


4 A QUESTÃO DAS CUSTAS


O preparo recursal é requisito para a interposição do recurso prevista no “caput” do artigo 511 do Código de Processo Civil que dispõe que “no ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção”.


As custas recolhidas serão aquelas referentes ao recurso interposto, no caso da fungibilidade, o recurso equivocado.


Caso o valor do preparo do recurso cabível seja superior ao valor do preparo do recurso interposto é prudente que se abra prazo para a complementação do valor tratada pelo § 2o do artigo 511 do Código de Processo Civil que assim dispõe: “a insuficiência no valor do preparo implicará deserção, se o recorrente, intimado, não vier a supri-lo no prazo de cinco dias.”.


Já nos casos em que o recurso interposto é que exija um preparo superior ao do recurso correto cabe a parte recorrente pleitear a devolução da diferença se assim desejar.


5 A IMPORTÂNCIA DA FUNGIBILIDADE RECURSAL


A aplicação da fungibilidade recursal colabora com a existência de um processo civil mais célere e efetivo. Ao dar prioridade à finalidade em detrimento a forma, contribui para um processo mais justo.


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Nas palavras de Guilherme Freire de Barros Teixeira (2009, p.158):


“O princípio da fungibilidade pode ser definido como a possibilidade de substituição de uma medida processual por outra, admitindo-se aquela erroneamente utilizada como se tivesse sido empregada uma outra mais adequada à situação concreta existente nos autos, sendo irrelevante eventual equívoco no manejo de medida inapropriada pela parte.”


Ao trazer tal definição especificamente para o campo recursal é possível afirmar que a fungibilidade recursal permite a substituição de um recurso por outro sem prejuízo da parte contrária.


Sobre o tema ensina Gustavo de Medeiros Melo (2009, p. 460-461):


“A controvérsia jurisprudencial nascida no capítulo dos recursos abriu espaço para instalação de uma política judiciária que procura evitar seja o consumidor da Justiça prejudicado em função de querelas técnicas pelas quais ele não é responsável. Convencionou-se então que, sendo uma questão processual, situada na admissibilidade ou cabimento do recurso e que pouco tem a ver com o objeto litigioso, a interpretação deve ser a mais favorável ao acesso da parte à Justiça.”


O princípio da fungibilidade recursal em nada atrapalha o curso do processo, pelo contrário, ele evita que seja cometida alguma injustiça ao recorrente que interfira diretamente no curso do litígio.


6 CONCLUSÃO


O processo civil moderno, como visto anteriormente, é um processo civil de resultados. A preocupação do direito processual civil é assegurar o acesso à justiça por meio de um processo justo, célere e eficaz.


O princípio da fungibilidade recursal é um mecanismo de flexibilização do direito que ao impedir que a forma se confunda com o formalismo excessivo e que esse se sobressaia perante a finalidade do processo acaba por adequar a norma a sociedade na qual será aplicada.


O processo não é mais um “fim em si mesmo”, mas um instrumento para a concretização do direito material e consequente satisfação da sociedade.


A fungibilidade recursal ajuda a impedir que o processo civil ande em descompasso com a realidade social.


 


Referências bibliográficas

BASES científicas para um renovado direito processual. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. 868 p. ISBN 85-7761-222-8

MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960. t. 11

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 27. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 356 p. ISBN 978-85-309-2772-1

SILVEIRA NETO, Antônio; PAIVA, Mario Antonio Lobato de. FUNGIBILIDADE RECURSAL NO PROCESSO CIVIL – UM MODELO JURÍDICO IMPLÍCITO. Disponível em: <http://www.advogado.adv.br/artigos/2001/mlobatopaiva/fungibilidaderecursal.htm>. Acesso em: 01 out. 2010.

BERTOLDI, Thiago Moraes. O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL NO PROCESSO CIVIL. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/00_principio_TMB.php>. Acesso em: 01 out. 2010.

ALMEIDA, William. O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE FRENTE A TEORIA GERAL DOS RECURSOS, NO PROCESSO CIVIL. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1300/O-Principio-da-Fungibilidade-frente-a-Teoria-Geral-dos-Recursos-no-Processo-Civil>. Acesso em: 01 out. 2010.

HERMANN, Gustavo de Camargo. O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE NO SISTEMA RECURSAL BRASILEIRO. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=38540>. Acesso em: 28 out. 2010.

ESTURILIO, Regiane Binhara. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE, SUAS VARIANTES E NOVAS APLICAÇÕES. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5290/breves-consideracoes-sobre-o-principio-da-fungibilidade-suas-variantes-e-novas-aplicacoes>. Acesso em: 01 nov. 2010.

FACULDADES INTEGRADAS “ANTONIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”. Normalização de apresentação de monografias e trabalhos de conclusão de curso. 2007 – Presidente Prudente, 2007, 110p.


Nota:

[1] Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza, Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor por concurso da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP – Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – Fundinopi (Campus de Jacarezinho) nos cursos de graduação e mestrado em Direito e, da Faculdade de Direito de Adamantina – FAI. Ex-diretor, professor e coordenador de grupo de pesquisa científica da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. Procurador do Estado aposentado. Advogado em Presidente Prudente.


Informações Sobre o Autor

Bruna Izídio de Castro Santos

Acadêmica de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente.


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