O princípio da insignificância e a Administração Pública

Descrição: O presente trabalho enfoca a impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela quando há infração penal cometida pelos agentes políticos e administradores públicos em face do princípio da moralidade administrativa, ressaltando porém, a sua possibilidade de aplicação quando a infração é de caráter político-administrativa.


Sumário: I – Da Natureza vinculante da responsabilidade Administrativa. II – A impossibilidade jurídica de aplicação do Princípio da insignificância a gestores e funcionários públicos quando há natureza penal no ilícito praticado. III – Impossibilidade de afronta mínima ou exclusão ao princípio da Moralidade Pública. IV – Possibilidade de aplicação do Princípio da insignificância aos ilícitos político-administrativos. V – Conclusão


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I – Da Natureza vinculante da responsabilidade Administrativa.


No conceito geral de ilicitude legal, temos que essa se perfaz por aquilo contrário ao ordenamento jurídico do “dever ser”, assim é a conduta fora dos padrões aceitáveis incluída em norma cogente. Fruto desta ilicitude, a responsabilidade é nexo-fruto a algo que não é tolerada pelo sistema sócio-jurídico.


Os atos são perseguidos por uma obrigação, e estas são apenadas por uma responsabilidade. Assim quando existe uma violação normativa, moral ou de costumes há esse reclame chamado responsabilidade.


O Gestor Público, prefeitos e governadores, são administradores do interesse público e para o interesse público, essas duas bases axiológicas justificam outros princípios inerentes a administração pública. Isso porque esse gestor do negócio público encontra-se atrelado a todo um arcabouço ligado a uma imperatividade vinculativa em que sua ruptura causa danos a toda coletividade.


“A manifestação humana pode refletir-se mensuravelmente no universo social, revelando-se, pois, inarredável o fenômeno responsabilidade da realidade social, à vista da repercussão dos atos humanos, nessa província jurídica. As manifestações humanas, por conseguinte, subsumem-se quer no território da moral, que no do direito, tanto privado quanto público.”[i]


Essa responsabilidade sobre os caminhos da gestão é publica, por isso não se move entre os limites da gestão privada, mas “vive”, ou deve “viver” sem espaços para a aplicação de princípios individuais. E como leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, os agentes públicos, tal qual o gestor, é cingido de poderes deveres, é que os poderes da atuação pública só existem na medida de sua necessidade para o cumprimento dos deveres. É bom lembrar que os agentes públicos em geral, e de acordo com doutrina absolutamente uniforme, estão sujeitos a três esferas de responsabilidade de cunho jurídico e um de enfoque político, são elas: criminal, administrativa, civil e político-administrativa.


“… convém recordar que na administração pública há uma necessidade elementar de responsabilização. Todo administrador público tem de ser responsável. Não se admite administrador irresponsável. Portanto, não há dúvida alguma que deve haver meios de responsabilização. Mas essa responsabilização precisa ser feita com uma certa prudência, dadas as deficiências da legislação. A responsabilidade deve existir, sim, mas feita com prudência.”(BDM – Boletim de Direito Municipal n.11,1998, p.630).[ii]


“…numa primeira aproximação, o designativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo “tráfico de influência” nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos. (PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Marcio Fernando Elias; FAZZIO JR., Waldo. Improbidade administrativa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 39.).


“HABEAS CORPUS. PREFEITO MUNICIPAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. AFASTAMENTO DO CARGO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.1. Não é de se falar em atipicidade, se que a conduta do paciente de aproveitar a logomarca da administração para inserir um símbolo usado em sua campanha política, imprimindo sua marca pessoal em prédios públicos, veículos, placas etc., mediante custeio do município, corresponde, em princípio, ao delito de “utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio, de bens, rendas ou serviços públicos…”


II – A impossibilidade jurídica de aplicação do Princípio da insignificância a gestores e funcionários públicos quando há natureza penal no ilícito praticado.


Há de se fazer diferenças entre sanções penais e sanções político-administrativas, nas primeiras há aplicação de princípios coercitivos individuais por lesão à valores de cunho individual, social e coletivo, no segundo há ofensas à princípios políticos, em nosso caso, democráticos. Existem assim, basicamente, agentes públicos que exercem função política, assim como existem agentes públicos que exercem funções militares e os que exercem função administrativa, como funcionários públicos.


Conforme se entende, o princípio da insignificância, que é utilizado em certas situações no Direito Penal, significa uma moldura que reduz ou descaracteriza a materialidade ou tipicidade do ato ilícito quando o objeto tutelado é irrisório, de pequeno valor, que escaparia a necessidade de tutela, excluindo a aplicação do jus puniendi estatal.


A aplicação do princípio da insignificância no âmbito do Direito Administrativo ainda gera grandes controvérsias jurídicas, isto, pelo fato da seara de aplicação, a administrativa. Pela aceitação da aplicação existem correntes progressistas, que afirmam poder ser aplicado o principio da bagatela em analogia. Contudo, o problema todo é que o objeto tutelado em primeiro plano pelas normas cogentes penais no direito administrativo é a moralidade pública. É que nesta, não há como mensurar como nos delitos patrimoniais de forma a obtermos escala de valores objetivos. Isto, porque não se consegue relativizar algo de valor coletivo abstrato como a moralidade.


Um exemplo dessa positivação de não relativização do Princípio da Moralidade é o artigo 11 da Lei nº 8.429/92, Lei da Improbidade Administrativa:


Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:


I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;


II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;


III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;


IV – negar publicidade aos atos oficiais;


V – frustrar a licitude de concurso público;


VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;


VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.”


Em mais um exemplo de cunho analógico, enxerga-se a impossibilidade da aplicação do princípio da insignificância aos delitos em que o objeto tutelado se encontra na seara dos bens imateriais. É que a Doutrina e Jurisprudência dominante excluem a sua aplicação no caso de roubo, quando o dano é ocasionado pela violência psicológica com que o assalto se perfaz, independente do quanto subtraído.


“(…) Inaplicável o princípio da insignificância ao delito de roubo2 (art. 157, CP), por se tratar de crime complexo, no qual o tipo penal tem como elemento constitutivo o fato de que a subtração de coisa móvel alheia ocorra “mediante grave ameaça ou violência a pessoa”, a demonstrar que visa proteger não só o patrimônio, mas também a integridade pessoal” (AI-AgR 557972 / MG – MINAS. Relatora: Min. ELLEN GRACIE).


Nesse mesmo sentido, a doutrina de José Carvalho dos Santos Filho, é clara ao explicitar a não necessidade de consumação patrimonial para efetividade de lesão aos princípios administrativos:


“o pressuposto exigível de improbidade cometida com base no artigo 11 da Lei n. 8.429/92 é somente a vulneração em si dos princípios administrativos. Conseqüentemente, são pressupostos dispensáveis o enriquecimento ilícito e o dano ao erário, não sendo essencial lesão patrimonial às pessoas mencionadas no artigo 1º da Lei n. 8.429/92.” (Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 15ª edição).


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A moralidade administrativa, então, não admite relativizações. Isto porque, a indisponibilidade do Interesse Público e a Moralidade são sustentáculos da própria existência da Gestão Pública, se faltar um, por qualquer motivo, haverá colapso. Nenhum deles pode ser suprimido em vista de princípios de cunho individual, pois gerariam uma situação insustentada juridicamente.


III – Impossibilidade de afronta mínima ou exclusão ao princípio da Moralidade Pública.


É sábia a lição de Hely Lopes Meirelles, em que, “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na Administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.” Essa, sintetiza de maneira geral, que há vinculação estrita à moralidade, enquanto no privado há escolha dentro de parâmetros no seu uso. Há improbidade quando afrontamos regras da Moralidade Pública, nesse sentido, na conceituação de Léo da Silva Alves[iii]:


“Improbidade é desonestidade em seu sentido mais amplo. Implica na falta de zelo com dois elementos: o patrimônio público e o interesse público. Relaciona-se com a conduta do administrador e pode ser praticada não apenas pelo agente público, lato sensu, senão também por quem não é servidor e infringe a moralidade pública.”


“Art. 37 da CF – Administração pública direta e indireta de qualquer do Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade (…)”


Maurício Antonio Ribeiro Lopes, citado pelo professor Romeu Felipe Bacellar Filho aduz com maestria a forma com que esse princípio carrega o conjunto, o enfeixe de princípios adjacentes e de suma importância para o correto exercício da função pública:


“A moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum o que, contudo, não as antagoniza, pelo contrário, são complementares. A moralidade administrativa é composta de regras de boa administração, ou seja: pelo conjunto de regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre os valores antagônicos – bem e mal; legal e ilegal; justo e injusto – mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa. Vislumbra-se nessa regra um caráter utilitário que é dado por sua imensa carga finalista.”.


Não obstante, o TCU, através da instrução normativa 52/07, informa que será observado o princípio da insignificância “de acordo com os critérios de materialidade, relevância, oportunidade e risco” quando da fiscalização de recursos públicos. O TCU passa agora a preocupar-se, em tempo real, com o que realmente interessa deixando o que é objetivo e juridicamente insignificante. [iv]


Contudo, nossa opinião, é que essa instrução normativa, tem mais caráter técnico e prático no sentido da administração de fiscalização contábil do que base Doutrinária e Jurisprudencial que justifique o norteamento da aplicação do princípio da insignificância na administração publica como regra geral. Ainda mais que do ponto de vista da interpretação jurídica, mesmo que fosse utilizada para justificar a aplicação deste princípio, esta se daria somente na justificação do Princípio da Eficiência no que tange a celeridade e eficiência das auditorias. Entretanto, essa tese de aplicação não estaria justificada, uma vez que o sistema jurídico deve obedecer a um conjunto que carregue no seu centro um princípio norte sem que haja exclusão de princípios que axiologicamente devam ser aplicados em todo.


IV – Possibilidade de aplicação do Princípio da insignificância aos ilícitos político-administrativos.


O professor Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que “agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, isto é, são os ocupantes dos cargos que compõem o arcabouço constitucional do Estado e, portanto, o esquema fundamental do poder. Sua função é a de formadores da vontade superior do Estado”.


Agentes políticos, então, são espécie de agentes públicos, estando, assim, sujeitos, de uma maneira geral, à mesma disciplina quanto à responsabilidade.


“É julgamento político, mas punitivo, a cassação de mandatos pelo Legislativo Municipal. Vê-se que, nos planos estadual e federal, os chamados crimes de responsabilidade, que não sendo infrações penais, mas infrações político-administrativas, são julgados pelo Legislativo, segundo regras estabelecidas em lei federal especial.”[v]


As infrações político-administrativas são de natureza política, deslocadas dos Princípios Mestres do direito penal. Tanto que para o Prefeito, Vice, presidente da Câmara, ou em casos especiais vereador membro da Mesa da Câmara, poderem cometer tais infrações exige-se o exercício do mandato, o agente político deve estar nele, pois a pena só funciona enquanto houver seu exercício, a punição e o processo desta infração política só existe nele.


Contudo, os agentes políticos, tais como conceituados, não se submetem a processo administrativo tal como os outros agentes públicos, é que a natureza de seus ilícitos é sobremaneira política, pautada em uma discricionariedade ampla. Essa natureza, político-administrativo, também implica em dizer que nos crimes de responsabilidade ele não cometerá crime do tipo penal, não estando assim sujeito, dentro dessa modalidade de imputação, as regras do processo penal. Excetuando-se a possibilidade de responder, penalmente, civilmente em processos tangentes.


Ademais, o artigo 52 da Constituição diz que a condenação se dará sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis, como o artigo 3º da Lei 1.079/50 é expresso no sentido de que a imposição da pena pelo crime de responsabilidade não elide o processo e julgamento do acusado por crime comum em face da justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal, revelando, assim, uma nítida distinção entre os crimes comuns e os crimes de responsabilidade.


Em exemplo, o decreto 201 de 1967, lei de responsabilidade dos gestores municipais e vereadores, elenca em seu art. 1 º, incisos I ao XV, tipificações penais, crimes cometidos por Prefeitos quando da sua gestão e no artigo 4º , incisos I a X, de crimes político-administrativos, os antigos crimes de responsabilidade. É interessante notar, que muito embora esses dois tipos de ilícitos geram responsabilidades, a primeira de cunho penal e a segunda de cunho civil. No entanto, apenas ao segundo, a nosso ver, comporta a aplicação do instituto do principio da insignificância, pelo que ele é de natureza jurídica político-civil e não penal contendo forte apelo penal. Essa mesma natureza pode ser encontrada na Lei 8429 de 1992.


Ainda, no nosso entender, não se pode negar a aplicação do Princípio da Insignificância nestas infrações com o argumento de serem somente de natureza política posto que carregam velada natureza penal. Não aplicá-las seria criar sistema autônomo, e isso não pode existir em um sistema democrático.


Os professores Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes, em atualização da obra de Hely Lopes Meirelles, lecionam:


“é inegável que a chamada ação de improbidade administrativa tem cunho civil (ressalvados, obviamente, os aspectos criminais da Lei nº 8.429/92, a serem perseguidos em ação penal própria, que não se confunde com a ação civil de improbidade, aqui abordada). (…) Tais características, no entanto, fazem da ação de improbidade administrativa uma ação civil de forte conteúdo penal, e com inegáveis aspectos políticos.”[vi]


Nesse sentido, entendemos, que o enfeixe de princípios, no caso da responsabilidade político-administrativa, como nos casos elencados da Lei 201/67 e 8429 de 1992, não são sustentados inexoravelmente pelo Princípio da Moralidade. Política em grosso modo é um jogo de interesses, seus princípios remontam ao Contrato Social de Rousseau, ao Pacto Federativo e ao Espírito das Leis de Montesquieu. Apelam ao sistema penal para com seus princípios, no que couber, ajudem o sistema político afim de estabelecer um contrabalanço democrático.


V – Conclusão


A necessidade de aplicação do Principio da Moralidade na Administração Pública é mais abrangente e toma espaço para aplicação única de outros Princípios como o da Eficiência. É que esse princípio enfeixa como base fundamental, outros princípios, como o da Legalidade e Impessoalidade. Restando a sua relativização pela aplicação do Princípio da Insignificância, em dano de tamanha monta ao Estado e a Coletividade. Contudo, não podemos olvidar a possibilidade de sua aplicação nas infrações político- administrativas, pois sua natureza é mais política, é de cunho cívico, com forte carga penal. E por essa carga penal, essas infrações clamam que sejam usados os princípios que sejam benéficos em contrabalanço à hiposuficiência do ente político.


 


Notas:

[i] CASTRO, José Nilo. A defesa dos Prefeitos e Vereadores. 5. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.123

[ii] MELO, Celso Antonio. BDM – Boletim de Direito Municipal n.11, 1998, p.630

[iii] VALENÇA, Danielle Peixoto. Improbidade Administrativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: WWW.jus2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4008>.Acesso em: 26 ago. 2009.

[iv] COSTA, Maria Assunção. O princípio da precaução e da insignificância no TCU, Conjur, São Paulo, disponível em < http://www.conjur.com.br/2007-set-28/principio_precaucao_insignificancia_tcu > Acesso em 01 de Setembro de 2009.

[v] CASTRO, José Nilo. A defesa dos Prefeitos e Vereadores. 5. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.93.

[vi] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Atualizado por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. 28. ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 215.


Informações Sobre o Autor

Christian Bezerra Costa

Advogado, Procurador do Município de Zé Doca – MA, Graduado pela Unieuro – DF e pós graduando em Direito Administrativo


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