Sumário: Considerações iniciais; 1 Princípio da Legalidade; 1.1 Conceito; 1.2 Princípios da Legalidade e da Reserva Legal; 1.3 Legalidade e Legitimidade; 2 Princípio da Legalidade Tributária; 2.1 Anotações Históricas; 2.2 Conteúdo; 2.3 Reserva de Lei Formal e Exceções; 2.4 Subprincípio da Interpretação Objetiva do Fato Gerador; Considerações finais; Bibliografia.
Considerações iniciais
O grande desafio da presente pesquisa consiste em apresentar os principais aspectos relativos ao Princípio da Legalidade Tributária no direito brasileiro[1], de forma a estabelecer o papel que o mesmo exerce nos tributos de nosso país e, também, a importância do aludido para a ordem jurídico-tributária, bem como para os contribuintes.
Para tanto, primeiramente, fez-se uma abordagem acerca do Princípio da Legalidade genérica sem adentrar na seara tributária e analisando-se o conceito do princípio da legalidade, a diferença entre legalidade e reserva legal e, também, legalidade e legitimidade. Ao depois, e finalmente, tratou-se do Princípio da Legalidade Tributária em si, versando-se sobre temas como a evolução histórica, o conteúdo, as exceções, etc.
1 Princípio da Legalidade
1.1 Conceito
Lei, em acepção bastante concisa, pode ser definida como o “comando geral e abstrato que, aprovado pelo Poder Legislativo, inova o ordenamento jurídico, disciplinando, em nível imediatamente infraconstitucional, relações entre particulares e atividades públicas.”[2]
O conceito acima é relevante em razão de, em nosso ordenamento jurídico, vigorar o Princípio da Legalidade – explicitamente preconizado no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal – cujo conteúdo estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, ou seja, somente através das espécies normativas elaboradas consoante as regras do processo legislativo constitucional se podem criar obrigações.
Há quem diga – como fazem Celso Bastos e Ives Gandra Martins – que o Princípio da Legalidade tem mais característica de garantia constitucional do que de direito individual, pelo fato de não resguardar um bem da vida específico, e sim garantir ao particular a prerrogativa de rechaçar injunções impostas por outra via que não a da lei.
Ao lado da função de garantia, tal princípio tem, também, a finalidade de combater o poder arbitrário do Estado, eis que “com o primado da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei.”[3]
Aliás, acerca do assunto, o ilustre professor José Afonso da Silva assevera que “o princípio da legalidade é nota essencial do Estado Democrático de Direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito […], porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca de igualização das condições dos socialmente desiguais. Toda sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei.”[4] (destaque do autor)
É salutar, ainda, lembrar que, ao lado dos objetivos de garantia do indivíduo e de combate contra arbitrariedades dos administradores, o Princípio da Legalidade vela pela segurança jurídica, tendo em vista que “as leis, de modo geral, acabam por sustentar, de forma duradoura, as bases jurídicas em que se assentam as relações sociais.”[5]
1.2 Princípios da Legalidade e da Reserva Legal
Convém salientar, que não se deve confundir o Princípio da Legalidade com o da Reserva Legal, não obstante tal fenômeno ocorra com freqüência entre nossos doutrinadores, eis que “o primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente por lei.”[6]
Como se pode constatar, o Princípio da Legalidade açambarca muito mais casos que o da Reserva Legal, em razão deste último somente incidir em determinados campos estabelecidos pela Constituição, ou, conforme ensina Alexandre de Moraes, “se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao Princípio da Legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei.”[7]
A Constituição Federal brasileira prevê duas espécies de reserva legal, que são a absoluta e a relativa. Haverá reserva legal absoluta quando a Constituição ordenar a edição de lei formal para a sua regulamentação, devendo tal lei ser entendida como ato elaborado consoante as regras constitucionais de processo legislativo e, também, emanado pelo Poder Legiferante. Já a reserva legal relativa vai estar presente quando a Magna Carta, apesar de exigir edição de lei em sentido formal, permitindo à mesma estabelecer somente parâmetros de atuação do Poder Executivo, podendo este complementá-la por ato infralegal, que, por sua vez, deverá estar adstrito ao preconizado na lei em sentido formal.
1.3 Legalidade e Legitimidade
Em um Estado Democrático de Direito, o Princípio da Legalidade deve sempre se fundar no Princípio da Legitimidade, isto é, não pode ser respeitada tão-somente a exigência de que a atuação estatal seja baseada na lei em sentido formal. O instrumento de atuação do Estado (lei) deve não só ser formal, mas também estar de acordo com os valores basilares do Estado brasileiro, tais como a dignidade da pessoa humana, a busca de uma sociedade justa, livre e igualitária etc.
Além da necessidade de existir consonância entre as leis que regulam o Estado e os valores buscados por este, para que haja a verdadeira legitimidade, é imprescindível que tais normas sejam elaboradas pelos legítimos representantes do povo, i.e., as pessoas escolhidas, através do sufrágio universal, para representar o povo e não por quem tenha tomado o poder pela força.[8]
Com isso, fica claro que legalidade e legitimidade nem sempre são a mesma coisa, sendo correto afirmar que pára de haver identidade entre ambos os termos quando se admitir uma ordem legal, porém injusta.
Desta forma, deve-se sempre buscar “a recuperação do liame entre legalidade e legitimidade, sob bases diferentes, a partir do abandono da noção puramente formal da legalidade, definindo-a como a realização das condições necessárias para o desenvolvimento da dignidade humana, como quer nossa Constituição (art. 1º, III), pois o princípio da legalidade não exige somente que as regras e as decisões que compõem o sistema sejam formalmente corretas. Ele exige que elas sejam conforme a certos valores, a valores necessários à existência de uma sociedade livre, tarefa exigida expressamente do Estado brasileiro (art. 3º, I).”[9]
Para concluir, convém relembrar que, para a existência de um Estado Democrático de Direito, deve ser respeitado o Princípio da Legalidade, mas não a legalidade meramente formal – de atuação por meio de leis – mas sim a legalidade unida à legitimidade, onde são respeitados todos os valores fundamentais exigidos pelo Estado.
2 Princípio da Legalidade Tributária
2.1 Anotações Históricas
Embora o insigne doutrinador italiano Victor Uckmar[10] atente para a existência de diversos fatos tendentes a crer que o Princípio da Legalidade remonta a épocas anteriores, o certo é que o início da utilização da legalidade como regra jurídica escrita – e, também, na acepção clássica “de que o sujeito do ônus tributário deve prestar, por meio de seus representantes, prévio consentimento à exação”[11] – ocorreu com a com a Magna Charta, no reinado de João Sem Terra.
Diz a história que, em razão da grande onerosidade trazida pelos tributos, os barões, municiados de armas, rebelaram-se contra o rei João Sem Terra, na busca da diminuição dos poderes deste último, mormente no tocante à maneira exorbitante como impunha tributos.
De acordo com o artigo 12 desta Magna Carta, era terminantemente necessária a autorização do Conselho dos Comuns para a exigência de tributos ou qualquer auxílio pecuniário. “Mais tarde, o referido Conselho passou também a ter o direito de conhecer a aplicação dos recursos cujo percebimento autorizava, tendo, em seguida, sido transformado em autêntico órgão de representação popular, como a Câmara dos Comuns.”[12]
Contudo, somente com as Constituições Americana e Francesa a Legalidade elevou-se à categoria de princípio basilar do Direito Constitucional. Aliás, a Constituição Federal dos Estados Unidos, no artigo I, seção 8ª, conferiu expressamente ao “Congresso, órgão de representação popular, a competência exclusiva para fixar e cobrar exações, impostos e tributos.”[13]
Outro momento de consagração do Princípio da Legalidade foi com a Declaração de Direitos, do ano de 1789, que, também, exigia a instituição de impostos por meio de órgãos de representação popular.
Cabe, ainda, lembrar que, atualmente, em razão da complexidade burocrática do Estado Moderno, o Princípio da Legalidade não pode mais ser encarado somente em sua clássica concepção, ou seja, da necessidade de aprovação popular. Tal princípio, hoje, dever ser visto como garantidor de estabilidade, segurança e transparência nas relações entre contribuinte e Fisco.
Por fim, insta mencionar, também, que o Princípio da Legalidade vem estampado em praticamente todas as Cartas Políticas existentes, v.g., Bolívia[14], China[15], Dinamarca[16], Luxemburgo[17], Paraguai[18] etc.
2.2 Conteúdo
O artigo 150, inciso I, da Constituição Federal prevê o Princípio da Legalidade[19], por meio do qual é vedado aos entes políticos instituir ou majorar tributos senão por meio de lei, ou seja, em princípio “o Poder Executivo não cria tributos, restringindo-se o mister legiferante, concernente à tributação, ao âmbito do Poder Legislativo.”[20]
Como se pode notar – além do Princípio da Legalidade estabelecido genericamente no artigo 5º, inciso II, da Carta Magna – em nosso ordenamento jurídico há a estrita legalidade tributária, sendo sobremaneira importante frisar que o verdadeiro conteúdo do Princípio da Legalidade Tributária vai muito além de simples autorização do Legislativo para o Estado cobrar um tributo.
O Princípio da Legalidade Tributária deve ser entendido de forma a açambarcar dois prismas distintos: legalidade formal e material. No atinente à legalidade formal, cabe aduzir que toda regra tributária precisa se inserir no ordenamento jurídico de acordo com as regras de processo legislativo e, também, ser formulada por órgão Legiferante.
Quanto à legalidade material, é indispensável que sejam estabelecidos in abstrato todos os aspectos relevantes[21] para que in concreto se possa determinar quem vai pagar, quanto se vai pagar, a quem se vai pagar e por qual razão se vai pagar. Em outras palavras, “não basta a exigência de lei, como fonte de produção jurídica específica; requer-se a fixação, nessa mesma fonte, de todos os critérios de decisão, sem qualquer margem de liberdade ao administrador”[22] ou, como diz Luciano Amaro, “requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fator gerador; necessários à qualificação do tributo devido em cada situação concreta que venha espelhar a situação hipotética descrita na lei.”[23]
Neste mesmo sentido, é de boa sugestão colacionar os ensinamentos do insigne Aliomar Baleeiro “ora, os artigos 150, I e 5º, II, da Constituição vigente, referem-se à legalidade, como princípio necessário à instituição e majoração de tributos, tanto do ponto de vista formal – ato próprio, emanado do poder legislativo – como do ponto de vista material, determinação conceitual específica, dada pela lei aos aspectos substanciais dos tributos, como hipótese material, espacial e temporal, conseqüências obrigacionais, como sujeição passiva e quantificação do dever tributário, alíquotas e base de cálculo, além das sanções pecuniárias, dos deveres acessórios, da suspensão, extinção e exclusão do crédito tributário.”[24]
Deste modo, a legalidade tributária não implica tão-somente na simples preeminência da lei, mas sim na reserva absoluta da lei, isto é, como diz Alberto Xavier, “que a lei seja o pressuposto necessário e indispensável de toda atividade administrativa.”[25]
Em razão dessa reserva absoluta da lei é que a obrigação tributária deve necessariamente decorrer da incidência da norma sobre o fato concreto, impedindo, por conseguinte, a atuação da autoridade administrativa com discricionariedade na imposição do tributo.
2.3 Reserva de Lei Formal e Exceções
Como já foi dito acima, quando se fala regulamentação legal para tributos, está-se a reclamar lei formal e material, em razão da legalidade tributária não se contentar com a simples existência de comando abstrato, geral e impessoal (lei material). É preciso, para existir segurança jurídica, a legalidade formal, ou seja, há necessidade de que a regra tributária seja – além de abstrata, geral e impessoal – formulada por órgão dotado de função legiferante e, também, de acordo com as regras de processo legislativo.
Não obstante a necessidade de lei em sentido formal e material para a regulamentação de tributos, é certo que há algumas exceções à regra da reserva de lei em sentido formal, nas quais a Constituição Federal se contenta com simples reserva material, ou seja, possibilita a alteração de alíquotas por mero ato do Poder Executivo.
A Constituição Federal previu exceção para o imposto de importação, de exportação, sobre produtos industrializados, sobre operações de crédito, câmbio e seguros, ou relativas a títulos e valores mobiliários (art. 153, § 1º, CF) e, ainda, sobre contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível (art. 177, § 4º, I, “b”, CF).
A razão da flexibilidade facultada ao Poder Executiva no tocante a alteração das alíquotas desses está no fato de que tais impostos têm caráter extrafiscal, ou seja, sua função precípua não é arrecadar fundos para o Estado, e sim estimular ou desestimular certos comportamentos, por razões econômicas, sociais, de saúde etc.
Note que, apesar de tal flexibilidade, as exceções previstas nos artigos 153, § 1º, e 177 § 4º, inciso I, alínea “b”, ambos da Constituição Federal não são hipóteses de atuação discricionária da autoridade administrativa, por ser imprescindível a submissão das referidas autoridades ao cumprimento das condições e limites especificados na lei.
Como pensamento idêntico ao esposado, ensina Luciano Amaro “não pode a Administração fixar, caso a caso (discricionariamente), a alíquota aplicável; deve o Executivo definir em lei material (ato do Executivo), as alíquotas que serão aplicadas para a medida do tributo, nas situações concretas que vierem a realizar-se sob a vigência dessa norma (respeitados, quando for o caso, os limites e condições previamente postos na lei formal).”[26]
Assim, embora haja esta flexibilidade quanto aos tributos que tenham função extrafiscal, a mesma deve sempre se submeter ao cumprimento das condições especificadas na lei.
2.4 Subprincípio da Interpretação Objetiva do Fato Gerador
O Subprincípio da Interpretação Objetiva do Fato Gerador[27] (ou Princípio da Cláusula Non Olet) tem em si o comando de que sempre é imperioso interpretar o fato gerador objetivamente, sem preocupação com os aspectos relativos à pessoa destinatária da cobrança do tributo ou natureza da atividade.
Por esta razão, quem praticar um ato que preencha a hipótese de incidência deverá pagar o tributo, ao menos a priori. Não se vai avaliar a validade do ato jurídico, a capacidade civil do sujeito passivo ou mesmo a licitude do ato que gera a possibilidade de cobrança do tributo, sempre prevalecendo “a análise do aspecto objetivo do fato gerador, em abono da equivalência necessária à sustentação do postulado da isonomia tributária.”[28]
Consideraões finais
Após esta breve análise – onde foram apresentados os mais importantes aspectos do Princípio da Legalidade Tributária no Brasil – é possível concluir ressaltando a grande importância desta garantia para os contribuintes, tendo em vista que a mesma impossibilita a criação de tributo sem autorização do povo (por meio de seus representantes), evitando, com isso, abusos por parte de nosso Executivo, cuja tradição de insaciável voracidade arrecadatória é por todos conhecida.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Aiache Cordeiro
Advogado no Acre. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Acre. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP. Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade da Amazônia