Resumo: ao arrancar dos aspectos gerais da teoria dos direitos fundamentais de Alexy, o presente artigo pretende colocar em evidência a categoria dos princípios, que tem como característica a função de otimizar direitos fundamentais. No entanto, devido ao fato de não se aceitar uma ordem valorativa para os princípios, observam-se as colisões, que são resolvidas pela aplicação da máxima da proporcionalidade, aqui demonstrada pela análise do posicionamento do STF quanto à prisão preventiva.
Palavras-chave: direitos fundamentais. Conflitos de normas. Máxima da proporcionalidade.
Resúmen: por el despliegue de la teoría de los derechos fundamentales de Alexy, intentamos poner en evidencia la categoría de los principios, que tiene como función la otimización de los derechos fundamentales. Todavía, como se no les acepta un orden de valores, se observan colisiones de principios, para las cuales se recurre a la máxima de la proporcionalidad, que se demostra en el artículo con el análisis de los fallos del STF acerca del arresto cautelar.
Palabras-clave: derechos fundamentales. Conflictos de normas. Máxima de la proporcionalidad.
Sumário: Introdução. I. Teoria dos direitos fundamentais de Alexy e o conceito de norma de direito fundamental. I.1 Classificação das normas constitucionais. I.2.1 Conceito de regras e princípios. II. Conflitos de normas. II.1 O problema do conflito de regras e de princípios. II.2 Considerações acerca do manejo de princípios. II.3 O cariz de relatividade dos mandados deônticos insertos nos princípios. III. Máxima da proporcionalidade. III.1 Conceito de proporcionalidade e suas etapas operacionais. III.2 O problema da falibilidade dos juízos de valores nas operações de proporcionalidade III.3 A liberdade e o princípio de segurança pública. III.3.1 Proibição de liberdade provisória como regra abstrata e a priori. III.3.2 Da prisão preventiva. III.3.3 Do controle da constitucionalidade da prisão cautelar. Conclusões. Referências das fontes citadas.
INTRODUÇÃO
A pretensão de substantivação das liberdades e demais interesses do homem que vai inscrita nas normas fundamentais, positivadas em documentos político-jurídicos em momentos conflituosos (definidos como revoluções – constitucionais –, cujo objetivo é dar um novo arranjo ao Estado, reestruturando-o politicamente, em suas instituições e contemplando os interesses do homem depreendidos dialeticamente nas relações entre o povo e a auctoritas), é, também, foco para conflitos numa outra e superveniente dimensão. Melhor explicando, podemos dizer que os conflitos que demandam a positivação constitucional de certas posições político-jurídicas, antes de encontrarem a solução definitiva no fechamento do ciclo revolucionário-constitucional (como talvez entendessem, numa primeira etapa da história constitucional moderna – a do movimento intelectual anterior à onda de constitucionalização de fins do século XVIII –, os jusracionalistas e, posteriormente, os exegetas), configuram, apenas, uma das séries de ondas de conflitos, que se estendem indefinida e ininterruptamente ao longo da vida do direito. Os direitos de liberdade, v.g., depreendidos de uma natureza humana e, portanto, inerentes a todos os homens, atemporal e universalmente, não são tão irredutíveis como pensavam os politólogos e jurisfilósofos oitocentistas. O idearium de um Benjamin Constant, para quem a liberdade só encontrava limites estabelecidos pela lei, não perscrutava aí as dificuldades operacionais de seu campo prático, cuja teia problemática tendeu a tornar-se mais densa a cada avanço da humanidade (científico, técnico etc.).[1] E basta para que tomemos contato com os problemas dessa categoria pensarmos nas esferas conceituais do direito à intimidade e à preservação da imagem e a da liberdade de imprensa; ou da segurança pública (com o objetivo de proteger a vida, a integridade física e a propriedade dos cidadãos) e as garantias de índole constitucional-processual. Tal como a evolução das ondas, em que há sempre a crista de uma parecendo engolir a que se desfaz nas areias, os conflitos de normas fundamentais sucedem-se uns aos outros, requerendo posições mediadoras de política jurídica que, contudo, se relativizam a dimensão conceitual das normas fundamentais, não podem comprometer seu núcleo duro.
A solução para o problema da hermenêutica constitucional não pode, portanto, arrancar da idéia[2] de que as normas definidoras de direitos fundamentais têm valor absoluto. A vasta dimensão ontológica do princípio da dignidade da pessoa humana, apenas para citar aquele a que freqüentemente o operador jurídico recorre para tentar harmonizar certas normas fundamentais em entrechoque, não deve ser entendido como um supraprincípio, que se sobrepõe hierarquicamente aos demais, sem padecer de relativização: as exigências político-jurídicas para o concertamento da sociedade de um Estado democrático de direito, partem, é claro, de um ideal de dignidade da pessoa humana, mas não o empregam com toda sua força ideológica no campo prático-social; porque uma tal aplicabilidade pressuporia uma humanidade homogênea, sem dissensos ou conflitos e sem perigos. A alternativa que resta tem de partir de uma racionalidade jurídica mediadora, em que os discursos sobre direitos fundamentais são analisados com a finalidade de descobrir-lhes valores éticos orientadores para a dissolução problemática concreta. Esta vertente hermenêutica, que renuncia a qualquer prévia posição hermética em torno das valorações, portanto, só é posta em operação, por um lado, nas situações críticas[3], e, por outro lado, tendo-se como premissa de que nenhum dos direitos fundamentais possui valor absoluto. A teoria dos direitos fundamentais de Alexy parte dessa metódica. Reconhece o caráter relativo dos direitos fundamentais e, demonstrando a ocorrência de conflitos entre eles, procura uma solução discursiva mediadora, empregando a máxima da proporcionalidade.
O presente artigo pretende avançar sobre o problema dos conflitos entre normas do direito fundamental, tendo como eixo axial a teoria dos direitos fundamentais de Alexy. Para tanto, deverá, num primeiro momento, estabelecer os alicerces da teoria do constitucionalista alemão, e, posteriormente, fazer aproximações epistemológicas ao problema do conflito de normas. Ao final, já será possível descrever em linhas gerais a proposta de Alexy para a dissolução da problemática dos conflitos de normas, que é seu equacionamento através da máxima da proporcionalidade. É neste ponto que trataremos de uma das questões paradigmáticas de nosso tribunal constitucional, que é o enfrentamento dos limites da prisão cautelar. A pesquisa bibliográfica servirá para dar arrimo, através do método dedutivo, à formulação de nossa posição quanto à questão problemática referida ao conflito de direitos fundamentais. As categorias que constituem diretrizes para o desenvolvimento do texto, encontram-se já destacadas na parte preambular do trabalho e serão, à medida que delas nos ocupamos, conceituadas no corpo do texto.
I. TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE ALEXY E O CONCEITO DE NORMA DE DIREITO FUNDAMENTAL.
Os direitos fundamentais podem ser abordados de múltiplas maneiras, e parece-nos inolvidável o fato de que começaram a existir através da perspectiva filosófica, quando se definiram aqueles direitos inerentes a uma natureza humana e que, portanto, fazem parte do direito natural[4]; no entanto podem ser estudados e compreendidos segundo os métodos da história, que pretende demonstrar seu surgimento; ou da sociologia, que elabora leis a partir dos exames empíricos sobre a função dos direitos no sistema social; isto apenas para citar três formas de abordagem do tema. Contudo, Alexy adverte que seu intuito não é outro senão o de estabelecer uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais, tendo como um dos objetivos “[…] a reabilitação da tantas vezes criticada axiologia dos direitos fundamentais”[5], abrindo, com isso, uma brecha para que divisemos seu modo de entender a estrutura geral do direito.
Na verdade, a vertente do positivismo científico que tenta escoimar das ciências sociais, por um lado, o conhecimento comum, a doxa, e, por outro, qualquer rasgo de conhecimento com características de ética, moral ou outra fonte alheia aos métodos estabelecidos segundo uma epistemologia própria, como pretendia Weber[6], e que no direito se notabilizará pelo juspositivismo kelseniano, que refuta as influências metajurídicas, não consegue explicar de maneira convincente a prevalência da Grundnorm como norma hipotética justificadora de todas as demais do corpus iuris. Porque as posições político-jurídicas assumidas pela auctoritas ao longo das experiências jurídicas (jurídico-legislativas e jurídico-jurisdicionais) são hauridas, tout court, do vasto universo de fenômenos humanos e não do puro e simples decisionismo. Da mesma forma, v.g., os direitos de liberdade que, antes de serem compreendidos pela razão humana como fato natural, são decorrentes das experiências sócio-culturais e, portanto, tornam-se direitos datados dentro de um sistema histórico, sem que para tal se possa excluir as influências de diversos conhecimentos, inclusive os axiológicos, que se entrecruzam num determinado hic et nunc histórico; e quando concretizados como direitos fundamentais, estão sujeitos a uma carga valorativa no momento pragmático-jurídico, que por nenhuma forma elide seu étimo justificante; basta que se pense na hermenêutica mais simples, que parte da semântica dos termos jurídicos e aí já localizaremos, nos jogos de linguagem desenvolvidos pelo intérprete algum traço ético.
Alexy, no entanto, alerta que a sua não deixa de ser uma teoria dogmática – calcada nos pressupostos da dogmática jurídica – e, portanto, pretende estabelecer as bases para a compreensão dos direitos fundamentais. A dogmática jurídica, de onde arranca o constitucionalista os pressupostos para suas investigações, apresenta três dimensões: a analítica, a empírica, e a normativa. Na dimensão analítica, “[…] trata-se da consideração sistêmico-conceptual do direito válido”, abrangendo desde os conceitos fundamentais (conceito de norma, v.g.), “[…] passando pela construção jurídica […] até a investigação da estrutura do sistema jurídico […] e da fundamentação sobre a base de direitos fundamentais.”[7] Já a dimensão empírica apresenta dois significados: “primeiro, com relação ao conhecimento do direito positivamente válido e, segundo, com relação à utilização de premissas empíricas na argumentação jurídica.”[8] Nesta dimensão tende-se a estabelecer um prognóstico da práxis judicial, ultrapassando, dessa forma, os conceitos de direito e de validade do positivismo jurídico. Por fim, na dimensão normativa vai-se para além das constatações acerca do direito positivo válido, para alcançar a orientação e a crítica da práxis jurídica, especialmente da práxis jurisprudencial[9]. Estabelecendo esses vetores, Alexy referirá que a teoria pretendida é integrativa (das três dimensões da dogmática jurídica), enfatizando, no entanto, a dimensão analítica, em que investiga as estruturas dos direitos fundamentais, em seu conceito, influência no sistema jurídico e fundamentação. Explica:
“A via para uma adequada teoria integrativa conduz-se através de uma teoria estrutural dos direitos fundamentais. Uma teoria estrutural – enquanto parte de uma teoria integrativa – é uma teoria primariamente analítica. É uma teoria primária e não puramente analítica, porque investiga estrutura tais como a dos conceitos de direitos fundamentais, da influência dos direitos fundamentais no sistema jurídico e da fundamentação dos direitos fundamentais, tendo em consideração as tarefas práticas de uma teoria integrativa.”[10]
Portanto, ao colocar em relevo o aspecto eminentemente prático da ciência jurídica, Alexy procura dar à sua tese um viés empírico-analítico, que permitirá, por um lado, investigar os fundamentos conceituais dos direitos fundamentais e, por outro lado, adentrar o âmbito da pragmática jurídico-constitucional, aquela que é operada pelos tribunais ao darem concreção às regras e princípios fundamentais. Mas sua metódica requer seja antes estabelecido o conceito de norma de direito constitucional.
Ao tratar dessa categoria, Kelsen refere-nos que com o vocábulo norma “[…] quer-se significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.”[11] Mas explica que a acepção de norma inclui não só o comando de dever dirigido ao homem, mas, também, a permissão e a atribuição de competência, ou poder, para agir de certa maneira[12]. A norma, expondo esquematicamente, encerra um dever-ser (Sollen) dirigido a um ser (Sein). Mas o normativismo formalista do modelo kelseniano reduz a norma a estruturas lógico-formais, extraindo de seu conteúdo os aspectos fáticos e valorativos. Por outras palavras, os elementos metajurídicos, como os valores axiológicos, serão estranhos ao seu conceito de norma. Já Alexy procura evitar o reducionismo juspositivista, através de um conceito semântico de norma, segundo o qual há distinção entre norma de direito fundamental e direito fundamental, sendo aquela uma idéia mais ampla do que esta; assim como, também, há diferença entre norma e enunciado normativo, uma vez que aquela categoria deve encerrar um caráter deôntico.
Assim, partindo da distinção entre norma e enunciado normativo, poder-se-á dizer que o enunciado expressa uma norma de conteúdo deôntico (um mandado, uma obrigação, um dever, uma permissão etc.). De maneira a que se chegue à conclusão de que “Uma norma é o significado de um enunciado normativo.”[13] Ou, segundo entendemos, o enunciado normativo é o instrumento lingüístico que compreende significante e significado, entendendo-se aquela categoria lingüística como “[…] um relatum” cuja definição não se pode separar da de significado[14]; ao passo que esta categoria, “como representação psíquica da “coisa””, conterá em si os aspectos psicológicos e ideológicos, apenas mediados através de significantes[15]; já por isso, não será desarrazoado pensar-se que o significado poderá vir à compreensão do intérprete através de diversos significantes; ou, transpondo isso para a teoria semântica de norma, uma norma de direito fundamental poderá ser expressa por vários enunciados normativos.
A norma (na sua acepção mais ampla, que concerne aos âmbitos ético, moral, religioso etc.), para ser entendida como um dever-ser que é, ou seja, contendo uma determinação vinculante, tem de trazer ínsita a idéia de validade. Por outras palavras, deve ser considerada, em seu campo conceitual, a capacidade de fazer-se cumprir o dever-ser nela expresso. Normas sociais defasadas no tempo histórico-cultural ou deslocadas do ambiente sociocultural de origem, v.g., não vinculam, nem mesmo se tornam exigíveis e nem seu desatendimento imporá a conseqüência da censura moral. No que concerne especificamente ao mundo jurídico, a idéia de validade vai aderida à imposição da norma por autoridade autorizada – a auctoritas instituída, com competências específicas – para o efeito. Mas o conceito semântico de norma que Alexy defende, é indiferente às teorias de validade (sociológicas, éticas, jurídicas)[16], preocupando-se fundamentalmente com a adjetivação da norma como norma de direito fundamental.
A partir disso, Alexy irá sustentar a existência de dois tipos de normas de direito fundamental: a norma jusfundamental que está diretamente estatuída na Constituição, existindo segundo uma referência a sua positivização; e a norma adscrita, que não é simplesmente aquela atestada pela jurisprudência, mas sim a norma à qual se pode dar uma fundamentação jusfundamental correta[17]. No entanto, a teoria de Alexy ultrapassa a exposição tipológica das normas de direito fundamental, avançando numa teoria da estrutura das normas.
I.1 Classificação das normas constitucionais.
Alexy propõe a classificação bipartida das normas de direito fundamental em princípios e regras, alertando que a distinção se faz necessária para o estabelecimento de um “marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais […]”[18]. Após referir sobre as imprecisões em torno dos termos, passa a delimitar suas características. Antes de tudo, referindo que regras e princípios “podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas do mandado, a permissão e a proibição”; para além de que princípios e regras são “razões para juízos concretos de dever-ser”. Diante dessas constatações, o autor passa a investigar critérios para a distinção das duas modalidades de normas, partindo daquele que trata do grau de generalidade da norma, pelo qual chega à conclusão de que as regras possuem menor grau de generalidade, e o inverso ocorrendo com os princípios. É possível, disso, estruturar uma tese que diferenciará regras de princípios segundo um juízo qualitativo. Em todo caso, deixando entredita a vinculação entre ambas modalidades.
I.2.1 Conceito de regras e princípios.
Segundo Alexy, “[…] as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possível.”[19]. Já quanto aos princípios, refere o constitucionalista que “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”. Podem ser tidos, portanto, como mandados de otimização[20].
II. CONFLITOS DE NORMAS.
Se se perspectiva a Constituição como elemento de formação e coordenação de todo o corpus iuris do Estado, então necessária e obrigatoriamente ter-se-á de considerar dois aspectos fulcrais para sua caracterização: de um lado, a força vinculativa representada pela validez histórico-político-jurídica do conjunto de direitos fundamentais nela catalogados; de outro lado, o descortino de um sistema de estruturação que, por isso mesmo, deve ser coerente e harmonioso.
Com efeito, a Constituição é não apenas expressão formal de determinado hic et nunc histórico-político-jurídico de um Estado, mas um complexo conjunto de regras e princípios (que são as normas de direito fundamental), que têm a pretensão de vigência. Por outras palavras, a Constituição, tal como ocorre com as leis em geral, determina um dever-ser irrecusável e peremptório no plano das concreções jurídicas, já que, através dessa pretensão de vigência, ela ordena e conforma a realidade social e política do Estado[21]. Nessa característica da Constituição, encontramos sua força vinculativa. No entanto, a aplicação das normas de direito fundamental, com suas funções ordenadora e conformadora, não pode ser levada a cabo sem a consideração do aspecto sistêmico das normas encerradas na Constituição. É por isso que Hesse, ao tratar da interpretação constitucional, refere aí interferir o princípio da unidade da Constituição, segundo o qual “A relação e interdependência existentes entre os diferentes elementos da Constituição obrigam a não contemplar, em nenhum caso, só a norma isolada, mas sempre no conjunto em que deve ser situada”. E mais adiante arremata: “[…] as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras normas constitucionais.”[22] A isso devemos denominar de princípio da concordância prática.
O princípio da unidade da Constituição também nos permite avançar noutro sentido: o de que a Constituição não prescreve a prevalência ou a hierarquia de normas, de modo que podemos considerá-las todas estabelecidas num mesmo plano. Se é assim, a aplicação de determinado princípio ou regra deverá ultrapassar o problema das colisões, por isso sendo impraticável a interpretação da norma isolada.
II.1 O problema do conflito de regras e de princípios.
O conflito ocorre quando se apresenta como possível a aplicação – a substantivação no plano prático-jurídico – de mais de uma norma de direito fundamental que, no entanto, tendem para soluções contraditórias para uma mesma questão problemática. Assim, se pensarmos no princípio da segurança pública, que é descrito em mais de um enunciado normativo, mas que no art. 144, CR depreendemos que se trata de responsabilidade do Estado “[…] para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”, chegaremos à conclusão de que tal tarefa, em inumeráveis situações concretizada por qualquer das modalidades de prisão processual, colidirá com os princípios que tendem para a otimização da liberdade do cidadão, dentre os quais o princípio da presunção da inocência (art. 5º, LVII, CR). Mas as colisões, como refere Alexy[23], são verificáveis tanto com o manejo de regras quanto de princípios e, sob este aspecto, ambas modalidades de normas de direito fundamental não se diferenciam. Mas qual o critério distintivo?
Em verdade, regras e princípios diferenciam-se na forma de como solucionar os conflitos. Enquanto o conflito de regras permitirá a introdução de regra de exceção, ou pela derrogação da regra antiga pela nova, ou pela aplicação da regra especial em supressão da regra geral, reconduzindo o problema ao conceito de validade jurídica[24], a colisão de princípios resolve-se de outra forma, uma vez que já não mais estará em causa a validade. Explica Alexy que enquanto “Os conflitos de regras são tratados na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar mais para além da dimensão da validade, na dimensão do peso.”[25] Por outras palavras, na colisão de princípios, não se discute a validade (como elementos estruturantes e de otimização de direitos fundamentais, os princípios não contêm determinações definitivas, mas apenas ordens que tendem para o implemento de situações jurídicas, por isso e por causa de seu alto grau de generalidade, não se submetendo a alterações como normalmente se vêem necessárias na outra categoria de normas da Lei Fundamental, que, como quaisquer regras, podem tornar-se defasadas), mas a importância que cada norma contraposta representa para o caso problemático concreto, devendo a divergência resolver-se, sempre, casuisticamente. Expliquemos melhor uma idéia geral de princípio.
II.2 Considerações acerca do manejo de princípios.
Como já demos a entender, os princípios são antes representações com forte carga ideativa de direitos fundamentais e que tendem para sua otimização, do que mandamentos definitivos e de menor grau de generalidade. Neste sentido, os princípios possuem uma função ordenadora, que se presta a conformar relações político-constitucionais. Mas, para além disso, refere Miranda que os princípios “[…] exercem também uma acção mediata tanto num plano integrativo e construtivo como num plano essencialmente prospectivo”. Arrematando seu entendimento, o constitucionalista português explica que
“A acção mediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral do sistema. […] Servem, depois, os princípios de elementos de construção e qualificação: os conceitos básicos de estruturação do sistema constitucional aparecem estreitamente conexos com os princípios ou através da prescrição de princípios”.[26]
Dessa forma, os princípios tanto possuem uma carga de valor constitucional autônoma (sem dúvida, adensada pelas forças ideológicas produzidas pelos discursos políticos, jurídicos e econômicos a cada momento histórico), como reforçam o âmbito conceitual dos direitos fundamentais através de suas funções ordenadora e de integração no momento interpretativo e de constituição das normas adscritas. Por isso o entendimento de Alexy no sentido de que os princípios são não apenas “razões para as regras”, mas “juízos concretos de dever-ser”. Assim, voltando ao exemplo anterior, dispõe a Constituição (art. 144) que o princípio da segurança pública é “[…] dever do Estado, direito e responsabilidade de todos […]”, e visa “[…] a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”, sendo exercida através de órgãos das polícias e dos bombeiros militares; não nos parecendo desarrazoado, no entanto, afirmar que a idéia de segurança pública não se esgota nas atribuições constitucionais conferidas às polícias, uma vez que, para certos casos, pode haver necessidade do sacrifício do bem jurídico-constitucional da liberdade física imposto a quem se imputa prática de crime; e tal assertiva – da segurança pública concretizada através da prisão processual – converge em apoio à regra de inafiançabilidade de certos crimes de maior potencial ofensivo (art. 5º, XLIII, CR) e da jurisdicionalização da determinação do ato coercitivo e de seu controle (art. 5º, LIII, LXI, LVIII, CR). Desta forma, é possível dizer que as prisões processuais, de forma genérica previstas na Constituição, estão arrimadas no princípio da segurança pública e que esta tarefa não fica sob a exclusiva incumbência das polícias.
II.3 O cariz de relatividade dos mandados deônticos inserto nos princípios.
Como a teoria dos direitos fundamentais de Alexy não trata apenas da estrutura formal da Constituição, mas de seu aspecto relacionado com a substantivação dos direitos – pretendendo, desta forma, estabelecer posições dogmático-jurídicas para as operações no plano prático-jurídico –, abordando, portanto, o plano das concretizações jusfundamentais pela experiência jurídico-jurisdicional, necessariamente inclui na órbita problemática a interpretação das normas. É quando se evidencia, por um lado, que os enunciados normativos apresentam registros semânticos abertos, carentes de uma melhor delimitação conceitual para sua aplicabilidade nos casos concretos; e, por outro lado, que essa vagueza conceitual permite a ocorrência de colisão de princípios. Alexy inclina-se a reconhecer que a situação problemática daí decorrente só pode ser resolvida através da operação argumentativa que determina a prevalência de um princípio sobre o outro. Incide no equacionamento a máxima da proporcionalidade.
III. MÁXIMA DA PROPORCIONALIDADE.
Normalmente se diz que o princípio da proporcionalidade está inserido no próprio lógos do direito penal e basta refletirmos sobre os fins da pena para que cheguemos à conclusão de que tanto seu caráter retributivo quanto seus traços preventivo-geral e preventivo-especial requerem um juízo de proporcionalidade. Mas também haverá traços desse princípio no direito administrativo, especialmente quando em conflito interesses de graus e categorias diversos e os de caráter público. Talvez vejamo-lo como princípio-matriz para a solução de conflitos de interesses jurídicos em todos os ramos do direito público, inclusive no direito constitucional[27]. Não sem razão Pedrollo, arrimado em Raquel Stumm, afirma que “Como subprincípio do Estado de Direito, a proporcionalidade abrange toda a atuação estatal, sendo derivada de um imperativo substancial do Estado de Direito, que impõe o exercício moderado do poder.”[28] Em arremate, refere: “Também atende ao princípio da unidade da Constituição, harmonizando os interesses diversos ali presentes, sem o sacrifício unilateral de um em benefício de outro.”[29]
A proporcionalidade é também tratada por Alexy, que concebe como elemento dogmático recorrente à solução do problema da colisão de princípios. Contudo, o constitucionalista, referindo que o conceito dessa categoria não coincide com aquele que emprega para princípio, prefere denominar de máxima da proporcionalidade. Tentemos seguir-lhe as pegadas.
III.1 Conceito de proporcionalidade e suas etapas operacionais.
A idéia fundamental em que se radica a proporcionalidade é a de equilíbrio. Equacionando-se, portanto, o problema jusfundamental de colisão de princípios por meio dessa máxima, o operador jurídico tenderá a conformar a norma segundo um juízo não de validade dos princípios em jogo, mas de preferência de um deles. Sempre, como já deixamos dito, de maneira a otimizar um direito fundamental em causa. A máxima da proporcionalidade, portanto, intervém no plano prático-jurídico, para dar arrimo a uma norma normada casuística e concreta.
Para que seja operada, a máxima divide-se em três “máximas parciais”: a da adequação, a da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu. A máxima da adequação levada a cabo na equação dos princípios colidentes, requer seja reconhecido no discurso argumentativo o princípio logicamente mais adequado à otimização do direito fundamental posto em causa. É claro que a ponderação que aí se faz não leva a um único resultado correto, mas isso não implica reconhecer tratar-se de um procedimento inviável.
A máxima da necessidade relaciona-se com a escolha do meio mais benigno para a otimização fática de um direito fundamental. Acerca dessa máxima, refere Pedrollo que ela “decorre do fato de que um princípio impõe sua otimização fática (eficácia), o que contudo deve, necessariamente, ser operado de forma a que afete o menos possível outros princípios válidos e com iguais pretensões de realização.”[30]
Já a máxima da ponderação em sentido estrito, é o postulado da ponderação propriamente dito. Seu emprego no processo de argumentação lógica implica na utilização de recursos discursivos não diretamente vinculados à ponderação. Refere Alexy que “[…] podem ser utilizados todos os argumentos possíveis na argumentação jusfundamental”, como os argumentos dogmáticos, pré-judiciais, práticos e empíricos em geral, e para a fundamentação de um enunciado de preferência condicionado e para a fundamentação da regra correspondente, pode recorrer-se à vontade do legislador constitucional, às conseqüências negativas de uma determinação alternativa de preferência, às decisões anteriores etc.[31] Daí verificar-se a possibilidade de maior controle racional para a formulação de um enunciado normativo de preferência. É esta a base para que Alexy formule uma lei de ponderação para a efetiva operação da máxima de ponderação dos princípios: “quanto maior é o grau da não satisfação ou de afetação de um princípio, tão maior tem que ser a importância da satisfação do outro.”[32]
Se, como facilmente se infere, o procedimento de ponderação não leva a uma solução definitiva para os conflitos, na medida em que se considere o sistema jurídico-constitucional um sistema aberto, ao menos é possível, por um lado, reforçar a teoria da argumentação jurídica como forma de mitigar os riscos do puro decisionismo do velho modelo hermenêutico, radicado na simples subsunção do fato à norma; e, por outro lado, possibilitar uma dinâmica interpretativa que se pretenda consentânea com cada hic et nunc histórico-social.
III.2 O problema da falibilidade dos juízos de valores nas operações de proporcionalidade
A crítica normalmente atribuída à teoria argumentativa de Alexy referida à falta de critério material para a escolha do princípio que deve preponderar num caso de concreta colisão de princípios, desconsidera, antes de mais, o fato de que, em etapa antecedente ao problema jusfundamental, quando se planificam os princípios ao nível abstrato, todos os princípios devem ser considerados igualmente válidos e insuscetíveis de hierarquização, porque conotam não com uma ordem de valores (por isso, não decorrentes de prévio juízo de valor), mas, direta ou indiretamente, com o homem como ser ontológico (passa-se de forma diversa o problema de catalogação de bens e interesses do homem com dignidade constitucional, que se relacionam a uma escala de valores axiológicos). Além do mais, a eleição de um princípio jusfundamental como prevalecente em relação a outro, por operação jurídico-jurisdicional de normativização concreta e casuísta – a decisão judicial – não ocorre segundo os ditames kelsenianos de pureza do direito, mas, inapelavelmente, segundo a noção de que o mundo jurídico é permeável em relação ao conhecimento e à experiência comuns – a doxa – sofrendo, pois, as mais diversas influências, éticas, sociológicas, filosóficas, políticas etc. Mas na medida em que o magistrado enxerga o mundo para além da fria e calculada operação racional de interpretação e entende necessária a mediação discursiva efetivada com prudência, pela aplicação da máxima da proporcionalidade, naturalmente sofrerá o influxo de diversos fatores que ingressam nos jogos de linguagem jurídica[33]. Assim, v.g., a maior consciência sobre direitos humanos numa comunidade, causada pela atividade de grupos de pressão ou por programas de agremiações políticas e pela própria atividade político-social em torno da matéria, muito provavelmente ingressará nos jogos de linguagem jurídica; assim como o descontrole sobre a criminalidade em razão das deficiências da segurança pública, pode permear a operação de argumentação jurídica. Embora tais fatores possam sujeitar o operador jurídico a erros por causa, v.g., da ampliação da circunstância de vinculação à questão problemática determinada, são indicativos minimamente seguros do que está a ocorrer no meio social, causando uma interseção no mundo prático-jurídico. Há, obviamente, a possibilidade de falhas – e as há com freqüência –, mas se considerarmos que a argumentação jurídica é um horizonte aberto, então sempre haverá a possibilidade para novas operações retificadoras.
III.3 A liberdade e o princípio de segurança pública.
Recentes julgados de nossa Corte Constitucional têm colocado em causa a constitucionalidade da regra contida no art. 44 da Lei 11.343/2006, que determina a inafiançabilidade e a vedação da liberdade provisória para quem estiver incurso numa das modalidades de tráfico de drogas e de crimes equiparados (arts. 33, caput, § 1º e 34 a 37), a partir de uma lógica de argumentação jurídica que põe em confronto princípios constitucionais e a mencionada regra legal. Melhor explicando, joga-se, nesse discurso jurídico, com a contraposição dos princípios que favorecem a liberdade física (dignidade da pessoa humana, presunção da inocência e devido processo legal) à regra definidora da prisão cautelar.
Mas o exame da constitucionalidade da regra contida no art. 44 não pode, a nosso ver, radicar-se pura e simplesmente na interpretação daqueles princípios, como se houvesse flagrante desequilíbrio na situação jurídico-legal. Isto porque há suporte constitucional – caracterizado por regras e princípios – não só para uma política criminal mais severa em relação ao crime de tráfico de drogas, mas, também, para a prisão cautelar. Isso determinará uma incursão mais profunda na questão problemática, possibilitando mais de uma linha discursiva.
III.3.1 Proibição de liberdade provisória como regra abstrata e a priori
Em decisão sobre habeas corpus, com pedido de medida cautelar (HC 100.959 – TO)[34], o Min. Celso de Mello escrutina o decreto judicial que manteve a segregação arrimado na gravidade do crime e na possibilidade de o paciente voltar a delinqüir, trazendo à sua argumentação entendimentos jurisprudenciais já consolidados em nossa Corte Constitucional. De antemão, o relator salienta que “[…] a gravidade em abstrato do crime não basta para justificar, só por si, a privação cautelar da liberdade individual do paciente”, e ajunta com a afirmação de que “O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta, só por si, para justificar a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.” Há, nesse sentido, inúmeros julgados (RTJ 172/184, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RTJ 182/601-602, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence; RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
A propósito, o relator destaca dois julgados que se enfeixam com seu entendimento:
“A gravidade do crime imputado, um dos malsinados crimes hediondos (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária […]” (RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
E:
“A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU. A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada.” (RTJ 187/933-934, Rel. Min. Celso de Mello).
Em segundo lugar, ainda no julgado do HC 100.959 – TO, o Min. Celso de Mello repele a possibilidade de o decreto de prisão fundamentar-se na conjectura de que, em liberdade, o criminoso voltará a delinqüir. Lembra, a esse propósito, que “A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação de liberdade do indiciado ou do réu”. Volta à antiga máxima (muitas vezes repetida equivocadamente, sem se levar em consideração a natureza da prisão cautelar) de que a prisão preventiva não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada do indiciado ou do réu; ao princípio da presunção da inocência; e enfatiza que, sem “indicação de fatos concretos – de que o ora paciente, em liberdade, poderia delinqüir ou frustrar, ilicitamente, a regular instrução processual” –, a prisão cautelar não tem cabimento.
Por fim, o Ministro do STF coloca em causa a constitucionalidade do art. 44, referindo: “Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser admitida, eis que se revela manifestamente incompatível com a presunção da inocência e a garantia do due process, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito.” E arremata citando julgado de lavra do Min. Eros Grau:
“A vedação da liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes, veiculada pelo art. 44 da Lei 11.343/2006, é expressiva de afronta aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e 5º, LIV e LVII, da Constituição do Brasil). […] A inconstitucionalidade do preceito legal me parece inquestionável.” (HC 100.872-MC/MG. Rel. Min. Eros Grau).
Trata-se, como se vê, de uma decisão polêmica, que merece análise mais aturada. Tentemo-la.
III.3.2 Da prisão preventiva
Se se pensar na redução do status libertatis por meio da decretação da prisão preventiva, a argumentação expendida por Celso de Mello tem certo cabimento. Por outras palavras, admitimo-la, a princípio, quando estivermos diante da situação de decretação da prisão preventiva, mas não em relação a outras modalidades de prisão. Expliquemos.
Por óbvio, a tão-só gravidade do ilícito penal não será suficiente para um prévio juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade da segregação (aqui, desde uma premissa de que o princípio da proporcionalidade é também empregue no processo penal); haverá, pois, a necessidade de conjugarem-se os pressupostos legais da prisão preventiva, descritos no art. 312, CPP. Também está claro que seu objetivo – garantir a ordem pública ou econômica, ou para a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal –, não pode arrimar-se em preconceitos, em conjecturas, nem mesmo na forte probabilidade de condenação, sob pena de infringirem-se algumas das garantias constitucionais de índole processual, inclusive o princípio da presunção da inocência. Mas, por outro lado, ao condicionar o decreto de prisão a argumentos com “base empírica idônea” e na “indicação de fatos concretos”, o posicionamento do Ministro do STF merece atenção. Primeiro, porque os termos utilizados não nos parecem adequados, não havendo, v.g., como formular um juízo empírico sobre o que pode constituir um vir a ser, que depende essencialmente do aspecto volitivo do criminoso. Como prognosticar, de forma empiricamente segura, que o criminoso representará perigo para a ordem pública, potencialidade de frustrar a aplicação da lei penal ou a instrução criminal? Em segundo lugar, dependendo do jogo de linguagem em que os termos são inseridos, aquelas condicionantes podem restringir ou facilitar o recurso ao expediente da prisão preventiva. Melhor explicando, para uma determinada argumentação jurídica, só constituirá uma “base empírica idônea” para a decretação da prisão preventiva, a vida pregressa do criminoso multi-reincidente; ou, por outro lado, para uma diversa linha de argumentação, a prisão poderá ser recomendada se houver indicativos concretos de que o criminoso é capaz de articular-se numa organização, comandando-a e tendo acesso a outras extensões criminosas. Queremos com isso demonstrar que ambos indicativos cristalizados na jurisprudência de nossa mais alta Corte não passam de conceitos que se submetem a valorações de cariz político-jurídico (e, portanto, reparáveis em qualquer momento, porque diretamente relacionados à formação do magistrado, inclusive politicamente); e, dentro da linha semântica de argumentação, prestam-se a uma ampla gama de formulações jurídicas, que não são auto-exclusivas, nem hierarquicamente estratificadas. O que resta?
Para nós, o juízo de conveniência para a decretação da prisão preventiva deve, essencialmente, ser formulado pelo juiz da causa. É ele quem pode mensurar, com maior grau de acerto, os indicativos da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Enquanto que às instâncias superiores, na falta de critérios objetivos para a revisão do decisum (e enquanto não os houver), caberá o exercício do controle da legalidade e da constitucionalidade do ato judicial.
III.3.3 Do controle da constitucionalidade da prisão cautelar
É claro que quando se fala em termos de controle da constitucionalidade de uma decretação de prisão preventiva, necessariamente haverá a necessidade de aferição da observância das normas de direito fundamental (que compreendem, naquele sentido falado por Alexy, regras e princípios) na decisão judicial. É quando invariavelmente surgem as colisões (aparentes ou não) de princípios, que devem ser equacionadas pela mediação discursiva de política jurídica, utilizando-se, para tanto, da máxima da proporcionalidade. No citado voto do Ministro Celso de Mello (item III.3.1), há referência de que o decreto de prisão preventiva pode importar numa punição antecipada do indiciado ou réu, pondo em causa, portanto, o princípio da presunção da inocência; e, por outro lado, aquele magistrado da Corte Constitucional tende a reconhecer, num âmbito muito mais amplo, já extrapolando o exame de caso concreto, a inconstitucionalidade do art. 44 da Lei 11.343/06, referindo, com base em precedente decisão de lavra do Ministro Eros Grau, que, para além de colidir com o princípio da presunção da inocência, a regra legal afrontaria o due process of law e o princípio da dignidade da pessoa humana. Entendemos, no entanto, que a situação jurídica não pode ser equacionada de maneira tão definitiva e peremptória. Vejamos.
Em primeiro lugar, não se pode valorar de forma absoluta os princípios, nem mesmo estabelecer-lhes uma ordem hierárquica por motivos já bastantes conhecidos: a absolutização, por um lado, implicaria na impraticabilidade das normas de direito fundamental, já que em vez de harmonizarem-se os conteúdos ideológicos de normas, haveria sempre o confronto e o caráter de exclusão recíproca; de forma que o princípio da segurança pública (ínsito à Constituição material do Estado moderno) e o da presunção da inocência sempre e irremediavelmente entrariam em colisão, impedindo qualquer espécie de prisão cautelar. Por outro lado, a hierarquização dos princípios de direito fundamental por operações de política jurídica – estabelecendo, portanto, graus de importância para os princípios – causaria empecilhos à substantivação e à otimização de certos fins de direito constitucional; além do que esse seria um processo que correria os riscos de arbitrariedade e de ideologização, de todo em todo incompatíveis com a estrutura do Estado democrático de direito material; assim, tanto a priorização do princípio da segurança pública em relação ao princípio da presunção da inocência, como o inverso, impediriam uma correta apreciação dos fins da justiça (criminal).
Se os princípios, como normas de direito fundamental, prescrevendo “mandados de otimização”, não são absolutos, que contornos definidores devemos dar à presunção da inocência e à dignidade da pessoa humana? Parece-nos que, diante da impossibilidade de conceitos estanques, prontos e acabados, devemos procurar um valor semântico para ambos princípios, através da prática discursiva da argumentação jurídica. Assim, antes de mais, e no que concerne ao princípio da presunção da inocência, temos de considerar que a presunção “(…) não deverá ser – como efetivamente não foi – absolutizada, pois caso tal situação se verificasse, poderíamos ser conduzidos à inconstitucionalização de toda a instrução criminal”[35]. Além do mais, o princípio da presunção da inocência, como norma de direito constitucional, tende a otimizar um tratamento especial ao indiciado ou réu, diferenciado daquele que se deve destinar ao condenado por sentença penal definitiva. Daí que, a priori, tal princípio não colida, sempre e necessariamente, com as medidas cautelares destinadas a indiciados e réus, como a prisão preventiva. Ao tratar da questão, a processualista portuguesa Alexandra Vilela refere: “(…) ao afirmamos que o arguido é presumido inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…), não pretendemos significar que qualquer freio colocado à sua liberdade individual se revela contrário ao princípio constitucional da presunção de inocência, enquanto modo de tratamento a outorgar ao arguido”[36]. Isto porque, por um lado, se a presunção da inocência impede que os efeitos ordinários de uma condenação sejam atribuíveis por antecipação a quem esteja submetido à prisão cautelar, sua extensão ideológica, por outro lado, não pode afetar um outro princípio igualmente inscrito na Constituição dos Estados modernos, que é o da segurança pública, sob pena de tornar inviável sua concretização ou otimização através do processo penal.
Fala-se, ademais, que a regra proibitiva de liberdade provisória contida no art. 44 atenta não só contra o princípio da presunção da inocência, como, também, contra o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido à condição de supraprincípio, sobrepondo-se a todos os demais, guiando os direitos fundamentais. Tão simples assim? Obviamente, não.
O princípio da dignidade da pessoa humana, tal como o da presunção da inocência, pode – e deve – ser conotado com todos os demais princípios de direito constitucional de índole processual penal, mas sua extensão ideológica não pode desenvolver-se para além da elipse, sob pena de negar-se a si próprio. Ou, ainda em termos esquemáticos, se a idéia de dignidade da pessoa humana se desenvolve ao longo da linha elíptica, naturalmente deve voltar ao ponto de partida, não podendo ultrapassar dessa configuração. Em termos exemplificativos, se se tentar absolutizar o princípio da dignidade da pessoa humana, como um vetor a cortar a figura elíptica, o próprio núcleo ideativo do princípio será invalidado; de maneira que, negando-se a possibilidade de prisão preventiva para o criminoso, se estará negando, v.g., a dignidade da pessoa humana do cidadão sujeito aos potenciais riscos causados por aquele criminoso em liberdade.
Por fim, temos de considerar que o controle de constitucionalidade das decisões judiciais de prisão cautelar não pode pôr de lado outras regras inscritas na Constituição, que se enformam ao quadro de possibilidade da medida constritiva. Assim, o art. 5º, XLIII, inaugurando uma política criminal mais severa, dispõe que o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, deve ser categorizado como crime inafiançável (se não se permite fiança, com maior razão a proibição da outra modalidade de liberdade provisória); já o inciso LXI, refere que a prisão decorrerá do flagrante delito ou “por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (como é o caso da decisão que decreta a prisão preventiva, modalidade que deve ser entendida implícita na regra de direito constitucional); por fim, o inciso LXVI abre a possibilidade para a liberdade provisória, com ou sem fiança, desde que admitida em lei (ou seja, a questão é remetida à solução legal; no caso em análise, a solução deve partir da aplicação do art. 44 que, por sua vez, se inscreve dentro dos marcos político-criminais estabelecidos no art. 5º, XLIII, da Constituição).
Então, pode-se de pronto inquinar o art. 44 de inconstitucional? Não nos parece. Nem também a uma outra vertente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça:
“HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E LAVAGEM DE DINHEIRO. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE. NULIDADE DA LAVRATURA DO AUTO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO VÍNCULO ASSOCIATIVO ENTRE O PACIENTE E A CORRÉ. NECESSIDADE DE EXAME DILATADO DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA PARA DIRIMIR A QUESTÃO. 1. Por demandar o reexame aprofundado do contexto coligido no curso do procedimento criminal e por não restar evidente de uma análise perfunctória dos elementos probatórios, o habeas corpus não é o instrumento adequado para dirimir questão atinente à negativa de autoria ou atipicidade do delito em tese cometido por preso em flagrante.”
“LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO. ARGUIÇÃO DE IRREGULARIDADES NA SUA REALIZAÇÃO. PEÇA PRODUZIDA NOS DITAMES DOS ARTS. 304 E 306 DO CPP. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. Se o auto de prisão em flagrante foi lavrado conforme o ordenamento processual penal, não há que se falar em nulidade do ato simplesmente por eventual atraso na comunicação da detenção a familiar indicado pelo paciente, que, ademais, dispensou a presença de advogado e teve todos os direitos constitucionalmente garantidos.”
“EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. QUESTÃO NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL IMPETRADO. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO CONHECIMENTO. 1. A questão relacionada ao excesso de prazo para o encerramento da instrução criminal, por não ter sido debatida pelo Tribunal de Origem, não pode ser apreciada nesta Corte Superior, sob pena de incidir-se na indevida supressão de instância.”
“LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO LEGAL. OBEDIÊNCIA AOS ART. 5º, INC. LXVI, DA CF/88 E 44 DA LEI 11.343/2006. PRECEDENTES. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E CONSTITUCIONAL. COAÇÃO NÃO DEMONSTRADA. 1. Não caracterizado constrangimento ilegal a manutenção da negativa de concessão de liberdade provisória ao flagrado no comentimento em tese do delito de tráfico de entorpecentes praticado na vigência da Lei 11.343/2006, notadamente em se considerando o disposto no art. 44 da citada lei especial, que expressamente proíbe a soltura clausulado nesse caso, mesmo após a edição e entrada em vigor da Lei 11.464/2007 (precedentes do STF e da Quinta Turma do STJ). 2. Condições pessoais favoráveis são irrelevantes para a concessão da liberdade provisória, se presentes na hipótese outros elementos determinantes à manutenção da prisão processual.3. Writ conhecido em parte, e neste ponto, denegado” (Habeas corpus n.º 107.564-SP (2008/0118309-2). Relator: Min. Jorge Mussi. Impetrante: Merhy Daychoum e outro. paciente: K.A.A. Julgado em 23.06.2009).
Diga-se, aliás, que na medida em que se deixa de considerar o amparo constitucional das medidas de coação, como a da prisão preventiva, em qualquer de suas modalidades, cria-se um entendimento não só defasado em relação ao princípio da segurança pública, como se estabelece uma norma jurídico-jurisdicional – a decisão judicial – contra legem. E mais. Uma decisão com este teor normativo ou uma lei que contrariasse o disposto no art. 5º, XLIII, CR, seria inquinada de inconstitucional. Neste sentido pronunciou-se o STF:
“HABEAS CORPUS. 1. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMISSIBILIDADE. 2. PEDIDO FORMULADO PARA QUE OS PACIENTES TENHAM O DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE: IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE ASSENTOU ESTAREM PRESENTES, NO CASO, OS PRESSUPOSTOS PARA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. 1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. […] Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual: a proibição da liberdade provisória decorre da vedação de fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal, constituía redundância” (Habeas corpus 97.883-5 Minas Gerais. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Paciente: K.J.S.M. e outros. Advogado: Defensoria Pública da União. Coator: Rel. do RHC n.º 24.090 do STJ. Julgado em 23.06.2009).
Em suma, a questão problemática hoje tratada pela Corte Constitucional não chega a ser equacionada de forma adequada. Primeiro, porque verdadeiramente não passa de um conflito aparente de princípios. O julgado que serviu de paradigma para nossa análise, não estabelece um discurso argumentativo de contraposição de normas, mas, tout court, se desenvolve segundo a lógica de hierarquização de alguns princípios, sem, no entanto, os conotar com o restante quadro constitucional. Daí que a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência, princípios que otimizam o direito fundamental da liberdade física, apareçam sozinhos, como se outros não entrassem no discurso jurídico regulador da sociedade, como o relacionado com a segurança pública. Depois, porque o conflito de princípios – se é que pode ser criado à guisa de dar outra feição à norma jurídico-legal do mencionado art. 44 – poderá colocar em causa não a constitucionalidade do art. 44 (que, como demonstrado, tem suporte constitucional), mas sua eventual malversação, incidindo no abuso ou arbitrariedade da prisão. E, nesse caso, sim, diríamos possível a aplicação da máxima da proporcionalidade para solucionar, v.g., a quaestio decorrente do excesso de prisão.
CONCLUSÕES
Há perfeita imbricação entre os direitos e garantias de liberdades individuais e as regras processuais penais, de modo que o estudioso poderá identificar no quadro constitucional direitos constitucionais de índole processual, ou direitos constitucionais processuais. O elevado grau de abstração das normas jurídico-constitucionais, contudo, impõe dificuldades ao intérprete e operador jurídico: os equacionamentos problemáticos para a concreção das normas no plano prático-jurídico, deverão, antes de mais, mitigar os riscos de colisão ou de produção de normas jurídico-jurisdicionais inconstitucionais por meio de procedimento interpretativo de integração; em relação a isso, empregam-se os princípios de direito fundamental como normas de otimização.
Mas, na medida em que se observa a possibilidade de uma mesma questão problemática ser tangenciada por normas de direito fundamental que indicam soluções distintas, ocorrem as colisões, que merecem tratamento específico por meio do procedimento da máxima da proporcionalidade.
É certo que a argumentação jurídica levada a efeito para dissolver a colisão de princípios, não permite ao intérprete uma solução definitiva do problema, uma vez que o sistema jurídico-constitucional é aberto e não exclui o ingresso de variados níveis argumentativos. Nem, a nosso ver, exclui o discurso jurídico que procura atualizar a norma constitucional com o momento histórico-social. No entanto, os postulados da argumentação jurídica, ao pretenderem uma maior racionalidade para as decisões jurídicas, evitam os problemas do positivismo clássico, como o da pura subsunção do fato à norma. Neste ponto, parece-nos que a interpretação que se tem feito de certos princípios de direito fundamental pelo STF, incorre em equívocos desse gênero, que, no entanto, são absolutamente evitáveis.
O questionamento da constitucionalidade do art. 44, da Lei n. 11.343/06 evitou colocar em ponderação os princípios que nitidamente arrimam a regra de proibição de liberdade provisória ali contida. Melhor explicando: ao perspectivar a questão problemática unicamente pela via do princípio da presunção da inocência, da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, a Corte Constitucional deixou de lado, tout court, aqueles princípios que fundamentam as hipóteses de prisão cautelar em nosso sistema processual penal e que dão sustentação à mencionada regra legal. E aquele entendimento não parte, em verdade, de uma autêntica colisão de princípios, senão que arranca em direção à justificação de uma posição de política criminal. Contudo, a colisão pode verificar-se em variadas situações, v.g., quando estiver em jogo o próprio princípio da legalidade – em relação a um caso concreto de prisão – e o princípio da presunção da inocência.
Promotor de Justiça do Estado de Santa Catarina, Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, doutorando pela Univali, Professor de Ciência Política e Direito Penal na UNISUL, Professor convidado da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, Professor convidado do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC
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