O processo administrativo e a dignidade da pessoa humana

Resumo: Este trabalho propõe-se a analisar o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana no contexto do processo administrativo. Partindo da teoria geral dos princípios, como espécies de normas jurídicas basilares que informam o ordenamento do Direito, o trabalho enfoca a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como valor imprescindível aos ditames de proteção do ser humano, especialmente na via administrativa. Para tanto, foram manejados elementos básicos concernentes à teoria e prática do processo administrativo, bem como outras fontes específicas da dignidade da pessoa humana, envolvendo material bibliográfico e jurisprudencial adequados. O método adotado pautou-se pelo raciocínio dedutivo.


Palavras-chave: (A) Processo Administrativo; (B) Princípio Jurídico; (C) Dignidade da Pessoa Humana.


Abstract: This work intends to analyze the content of the principle of the dignity of the human person in the context of the administrative proceeding. Starting from the general theory of the principles, as species of fundamental rules that inform the order of Law, the presente work focuses finally on the dignity of human person, basis of the Federative Republic of Brazil, as essential value to the dictate of protection of the human being, especially in the administrative process. To reach the mentioned goal, it has been employed basic knowledge concerning the general theory of administrative proceeding, as well as other specific sources of the dignity of the human person theory involving bibliographical material and proper jurisprudential. The adopted method was deductive reasoning.


Keywords: (A) Administrative Process, (B) Principle of Law (C) Dignity of Human Person.


1. INTRODUÇÃO


A processualidade ampla implica reconhecer o processo como instrumento legitimador das funções estatais. Destarte, a figura do processo administrativo surge como o meio pelo qual a Administração Pública aplica o do direito ao caso concreto, de ofício ou mediante provocação, para satisfazer os imperativos do interesse público, com relativa definitividade.


Tendo em mira a importância do processo administrativo, verdadeiro legitimador da função administrativa, emerge a necessidade de tomá-lo sob ótica protecionista da pessoa humana, fim último do próprio Estado.


Posto isso, o presente trabalho tenciona sopesar e considerar tal desiderato, ajustando as finalidades do processo administrativo aos imperativos de proteção de direitos fundamentais da pessoa humana, tais como direito de defesa defesa, contraditório, liberdade filosófica, sigilo, acesso aos autos, devido processo legal administrativo, entre outros.


Para tanto, far-se-á inicialmente uma abordagem inicial da teoria geral do processo administrativo e dos princípios jurídicos, no intuito de meditar acerca de suas naturezas jurídicas, funções, características e importância social para, em estágio mais maduro, focar-se com mais detença a dignidade da pessoa humana, que permeia a própria razão de ser dos conceitos anteriormente abordados, vez que se trata de princípio aglutinador de vários direitos do ser humano.


2. PROCESSO ADMINISTRATIVO


O Estado exerce determinadas funções que só se imbuem de legitimidade uma vez respeitados os ditames regentes de processos específicos. Sendo assim, a função administrativa, por intermédio da qual o Estado busca realizar o direito no caso concreto, de ofício ou mediante provocação, a fim de contemplar o interesse público sem definitividade,  instrumentaliza-se mediante prévio e regular processo administrativo, da mesma forma que a feitura das leis requer precedente processo legislativo e a sentença, processo judicial. Logo, a ideia de processo não é exclusiva da seara jurisdicional, vez que vigora a noção de processualidade ampla nas relações do Estado com os destinatários dos comportamentos públicos.


“De fato, o exercício da função administrativa se dá através de um procedimento. Isso significa que a edição de qualquer ato administrativo pressupõe uma série de atos antecedentes, necessários à formação da vontade da Administração. (…) É assim porque a formação da vontade estatal não é livre, ao contrário do que ocorre nas relações privadas. O agente administrativo está vinculado a normas e princípios jurídicos, que disciplinam o modo de formação do ato que por ele será editado. Isso porque o ato administrativo não é a manifestação de vontade do próprio agente que o pratica, mas sim do ente estatal.” (MELLO, 2007, p. 223)


A natureza do processo administrativo não é assunto remansoso na doutrina. A par das correntes privatistas[1], a muito superadas, a doutrina moderna se biparte entre duas correntes publicistas do processo. Corrente minoritária atribui ao processo a índole de uma situação jurídica. De acordo com esta propugnação, cujo maior patrono foi James Goldschimidt, o direito estático sofre uma mutação estrutural quando se convola em direito dinâmico (processo): enquanto estático, o direito é puramente subjetivo, porém quando se modifica, passa a incorporar uma miríade de possibilidades, expectativas, perspectivas e ônus, em resumo, “chances” em obter-se o reconhecimento do direito, por intermédio da prática de atos tendentes a alcançar o resultado almejado. A pessoa, quando ingressa no processo, passa a ocupar situação distinta da anterior.


Para a corrente majoritária, inspirada em Büllow, o processo é relação jurídica. Isso indica que o processo administrativo apresenta a natureza de vínculo intersubjetivo (pois travado entre Administração e administrados) que sofre a incidência de regra jurídica de direito público estabelecendo direitos e deveres entre os envolvidos. Daí seu caráter jurídico. Tal relação jurídico-processual administrativa apresenta as características básicas das relações jurídicas em geral[2], além de atributos próprios, quais sejam: a hierarquização dos sujeitos participantes[3] e a finalidade preestabelecida em lei. [4] O processo é nexo que liga dois ou mais sujeitos, atribuindo-lhes poderes, direitos, faculdades e os correspondentes deveres, obrigações, sujeições e ônus.


Processo não se confunde com procedimento. Procedimento é aspecto externo daquele vínculo jurídico, é sua forma externa, o rito que se desdobra temporalmente em sequência de atos lógica e juridicamente encadeados, visando à decisão final do Estado. Cada ato administrativo processual apresenta nexo de causalidade em relação aos demais e ao mesmo tempo, devem resguardar sua autonomia, ou seja, individualidade jurídica, incorporando finalidade própria dentro do conjunto. [5] Muitos autores modernos definem o processo administrativo como espécie de procedimento, qual seja, o participativo.


A ideia de procedimento participativo indica que o processo é vínculo jurídico que se expressa numa seqüência harmônica de atos deve ser realizado em contraditório, permitindo que os interessados possam dialeticamente influir na formação do provimento que afetará suas esferas jurídicas. Nesse sentido, a noção de procedimento é mais ampla que a de processo e, segundo orientação de Calmon de Passos apud Carvalho Filho (2006, p. 813), traduz “o processo em sua dinâmica, é o modo pelo qual os diversos atos se relacionam na série constitutiva de um processo.” (PASSOS apud CARVALHO FILHO, 2006, p.813). Mello (2003, p. 43) entende que procedimento é gênero e processo é modalidade específica de procedimento, realizado em contraditório, assim:


“Acolher a expressão processo administrativo significa admitir que o procedimento no qual atuem os interessados em contraditório acontece também na Administração Pública. Processo caracteriza-se então por: formas procedimentais particulares, debate contraditório, certa dose de formalismo e publicidade, viabilizando destarte a formação da decisão final motivada.”


Assim, todo processo é procedimento, mas nem todo procedimento é processo. O processo administrativo é o modus operandi da função administrativa, ou seja, a via pela qual o Estado aplica o direito ao caso concreto, de ofício ou mediante representação, para contemplar o interesse público sem definitividade e que permite debate contraditório entre os interessados.


O processo administrativo tem por finalidades: a) assegurar atuação administrativa eficiente, (através da disciplina dos meios pelos quais a Administração Pública toma decisões), vez que o pré-estabelecimento de um caminho a seguir representa, ao lado de segurança jurídica, importante fator de economia processual e b) garantir a maximização dos direitos dos administrados. Neste sentido, o processo administrativo é “instrumento de participação, proteção e garantia dos direitos individuais. Caso prestigiado, o cidadão terá convicção de que o ato administrativo é legítimo e perfeito” (MOREIRA, 2003, p. 63). 


Tendo em vista tais finalidades, abordar-se-á a importância do processo administrativo na salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa humana, tido como fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com o que se encontra insculpido no art.1º, III da Constituição da República.


3. PRINCÍPIOS E REGRAS


Na seara filosófica, princípio é vislumbrado como o indicativo do local em que brota, nasce, origina-se o conhecimento, revelando o sítio de onde se irradia sua existência. [6]  Na geometria, em sentido não dissonante, o vocábulo princípio designa as “verdades primeiras”. Sendo assim, cada sistema científico (político, filosófico, jurídico, econômico, físico, matemático, dentre outros) é guarnecido por ideologia própria que contempla um arcabouço particular de princípios, funcionando estes como verdadeiros sustentáculos do particular objeto enfocado por cada sistema, fornecendo coerência a seus elementos. [7]


No campo do Direito, pode-se estabelecer conceito de princípio como orientação ou diretriz, dotada de caráter geral e emanada da conexão sistemática das normas, que serve como sustentáculo de aplicação, interpretação e subordinação do ordenamento jurídico.


“Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõe, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem potencialmente o conteúdo, sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.” (CRISAFULLI apud BONAVIDES, 2008, p.275):


Partindo-se do pressuposto de que princípios são verdadeiras bússolas, vigas-mestras para qualquer indivíduo que se envereda pelos quase sempre tormentosos caminhos da via jurídica, acabam exercendo uma miríade de funções no escopo de tornar o ordenamento jurídico mais tangível e coeso.


Neste sentido, os princípios cumprem as seguintes funções, de acordo com Brüning (2007, p. 96-97):


a) Função fundamentadora: os princípios consagram valores fundamentais, supremos que nortearam a elaboração de determinada norma jurídica, revelando sua gênese, os motivos de seu nascedouro. Daí a razão pela qual exercem função fundamentadora.


b) Função interpretativa: os princípios funcionam também como verdadeiros vetores a guiar o intérprete quando surge ara este a necessidade de solucionar determinados problemas jurídicos, motivados pela complexidade do ordenamento jurídico e pela reiterada conflitância entre suas espécies normativas. Portanto, o jurista deve se embeberar da fonte principiológica e agir em conformidade com seus ditames para solucionar querelas jurídicas.


c) Função integrativa: os princípios funcionam como amálgamas ou ligas, no sentido de completar as lacunas e vaguezas de outra ordem presentes ocasionalmente em algum texto de lei. Representariam assim, elementos promovedores da efetividade da norma viciada ou defeituosa.


Princípios são espécies de normas, daí serem qualificados como normas principiológicas. Apresentam, portanto, a natureza jurídica de normas jurídicas (ao lado das regras), vez que dizem o que deve ser, impondo certo comportamento.[8] O gênero norma jurídica é resultado de atividade interpretativa, por intermédio da qual, o aplicador ou cientista do direito, pautando-se por método de interpretação (literal, histórico, teleológico, sistemático), analisa determinado texto (ou enunciado) normativo, atribuindo (ou não) sentido a seus dispositivos[9].


“Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma, deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.” (ÁVILA, 2005, p.30)


Sendo assim, o intérprete realiza verdadeiro trabalho de reconstrução, pois, parte do texto normativo limitador e manipula a sua linguagem, incorporando núcleos de sentido àquele texto original (ÁVILA, 2005, p.34). Esse trabalho de reconstrução conduz o intérprete a duas ordens de normas: princípios e regras, cuja distinção será objeto do próximo item do presente capítulo.


Os princípios são assim, normas que fornecem coerência e ordem a um conjunto de elementos, sistematizando-o (WAMBIER et al 2002, p.65). Os princípios são, portanto, espécies de normas jurídicas, como as regras. Assim como elas, os princípios impõem deveres e vinculam os indivíduos, mesmo quando não expressos. Suas principais características são, segundo a compilação doutrinária de BRÜNING (2007, p.97-100):


a) Generalidade: na medida em que não tecem pontuações específicas referentes a hipóteses concretas, mas, por outro lado, estabelecem diretrizes gerais fornecedoras de fundamentos que serão utilizados por norma superveniente.


b) Primariedade: os princípios dão origem a outros princípios, sendo que estes últimos são tidos como sub-princípios dos anteriores. É o caso do princípio da legalidade administrativa, que impõe ao agente público o dever de agir em conformidade com os ditames do ordenamento legal. Deste princípio-mãe surgem vários sub-princípios, tais como a finalidade e razoabilidade.


c) Poliformia: no sentido de que os princípios não apresentam conteúdos imutáveis, pois admitem renovações de acordo com os incontigentes anseios sociais, apresentando assim, substância política ativa. Essa característica vincula-se à faceta pela qual os princípios são dotados de abertura e inexauribilidade.


d) Abstratividade: os princípios alcançam número infinito de situações concretas, ao contrário das regras que apenas incidem sob o amparo de uma específica hipótese de incidência.


e) Sistematicidade: os princípios não podem ser tomados isoladamente, mas imbricados em sistema interdependente que guarnece outras inúmeras normas principiológicas.


f) Limitabilidade: os princípios não são absolutos, vez que, em determinadas situações de conflito com outros princípios, sua força jurídica deve ser relativizada, em prol da coerência do sistema.


g) Dimensão axiológica: os princípios refletem o ideal de justiça de determinada sociedade, em determinado período. Revelam seu conteúdo ético.


h) Informatividade: os princípios são a base de todo o ordenamento jurídico, informando-o.


“Base do sistema constitucional, como reiteradamente lembrado, fazem-se fonte de todas as ordenações jurídicas. Todas as regulações jurídicas que adentram o sistema têm, na principiologia constitucional o berço das estruturas e instituições jurídicas.” (ROCHA, 1994, p.97).


A norma é o gênero, ou seja, da atividade interpretativa, pela qual o cientista ou julgador do direito se debruça sobre texto normativo e com o apoio de um método, confere sentidos que transcendem a mera descrição do que consta nos dispositivos do texto, reconstruindo-o, pode-se chegar a duas ordens de normas: os princípios e as regras.


Imperioso ressaltar, como passo inicial, os pontos de contato existentes entre as duas espécies normativas. Como já foi dito, ambas possuem a mesma natureza jurídica, ou seja, são normas, pois enunciam o que é devido. Tanto princípios quanto regras são formulados com base em expressões dêonticas básicas, quais sejam: o dever, a permissão e a proibição. Ambas as espécies de normas também constituem razões para juízos concretos de dever-ser. (ALEXY, 2008, p.87)


Contudo, mesmo que o expediente distintivo entre as espécies de normas seja alvo de debate dotado de relativa longevidade na seara do Direito, faz-se mister realizar breve análise dos critérios mais difundidos na tentativa de disseptar tais espécies normativas, tendo em vista os fins a que se propõe o presente trabalho.


Sem dúvidas, o critério mais difundido é aquele que se atém ao grau de generalidade ou âmbito de incidência imanente a cada espécie normativa. De acordo com tal critério, os princípios incidem sobre alcance ilimitado, enquanto que as regras já contêm em seus bojos a “hipótese de incidência” em que são aplicadas (WAMBIER, 2002, p.65).


“Segundo esse critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença. Segundo o critério de generalidade, seria possível pensar e classificar a primeira norma como princípio e a segunda, como regra.” (ALEXY, 2008, p.87-88)


Existem outros inumeráveis critérios que se ocupam em promover a distinção entre as espécies normativas. Contudo, em atenção à fluidez e aos propósitos deste trabalho, ater-nos-emos à análise daqueles mais difundidos na doutrina nacional e estrangeira.


Pelo critério do caráter hipotético – condicional, as regras são dotadas de estrutura peculiar, que abrange uma hipótese (se…), seguida por uma conseqüência jurídica (então..). A decisão estaria predeterminada por essa estrutura, na medida em que elas já guarneceriam todo o conteúdo necessário em seu bojo descritivo. Já os princípios apenas funcionariam como postulados indicadores do fundamento normativo a ser utilizado para guiar ulteriormente o julgador quando da procura pela regra mais adequada ao caso concreto. Os princípios, por esse critério, estabelecem somente uma diretriz.


Pelo critério do modo final de aplicação, cujo maior expoente foi o jurista Ronald Dworkin na obra Taking Rights Seriously, o princípio é distinto das regras pela maneira diversa como são aplicados, pois as regas últimas são aplicadas de maneira absoluta tudo ou nada (all-or-nothing), enquanto que os princípios são aplicados de forma gradual, mais ou menos. Isso significa que uma vez preenchida a hipótese de incidência nela prevista, em sendo a regra válida, a consequência normativa deve ser aceita, a menos que a regra seja como inválida, caso em que o cientista deverá encontrar uma exceção à regra. Por outro lado, os princípios ao serem aplicados de modo gradual, não são diretamente determinantes para se atingir uma decisão, pois fornecem os fundamentos, que muitas vezes devem ser conjugados com os fundamentos de outros princípios. (ÁVILA, 2005, pg.44)


Pelo critério que distingue as espécies de normas jurídicas por intermédio da análise da solução a ser alcançada em caso de conflito normativo, [10] a antinomia das regras somente pode ser resolvida mediante a declaração de invalidade de uma das regras conflitantes, eliminando-a do ordenamento ou com a criação de uma exceção, que esmoreça a contradição que vicia seus conteúdos .


“O conflito entre regras pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida. Um exemplo para um conflito entre regras que pode ser resolvido por meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Se o sino ainda não tiver sido tocado, mas o alarme de incêndio tiver soado, essas regras conduzem a juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si. Esse conflito deve ser solucionado por meio da inclusão, na primeira regra, de uma cláusula de exceção para o caso do alarme de incêndio. Se esse tipo de solução não for possível, pelo menos uma das regras tem que ser declarada inválida e, com isso, extirpada do ordenamento jurídico.” (ALEXY, 2008, pg.92)


 Por outro lado, ainda pelo critério do conflito normativo, a colisão entre princípios requer método de compatibilidade diverso, pois implica em ponderações de sopesamento e atribuição de peso a cada norma principiológica em combate.


“As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de outro sob determinadas condições.” (ALEXY, 2008, p.93)


Para os defensores desse critério distintivo, é a solução adotada em caso de conflito entre normas que conduz o cientista a clara e simples caracterização das espécies normativas, na medida em que a colisão entre regras situa-se no plano de validade, enquanto que a solução do conflito entre princípios  aloca-separa a dimensão do peso.


Alexy (2008, p.90), em conclusão, aprovisiona nova e interessante diferenciação entre as modalidades de espécies normativas, ao considerar os princípios como normas que contém em seu bojo deveres de otimização, de aplicação variável conforme as possibilidades normativas e fáticas, podendo ser aplicados em diferentes graus, de acordo com a variação daquelas possibilidades. Por outro lado, as regras não apresentam tal caráter, devendo ser cumpridas ou não, pois contém determinações que afastam a possibilidade de aplicação graduada. O autor acaba alocando a questão em termos qualitativos e não meramente relacionada a distinção entre distintos graus de generalidade,


“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.  Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.


Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.” (grifos nossos) (p.90-91)


Ademais, princípios são normas finalísticas, na medida em que estabelecem uma finalidade a ser atingida, enquanto que as regras são normas meramente descritivas. Os princípios determinam um conteúdo para o alcance de seu fim, que traduz um comportamento. O princípio da eficiência, por exemplo, estabeleceu como fim a produção do efeito desejado pelo interesse público com qualidade e sem burocracia. Para a efetivação desse estado ideal de coisas, impôs o dever de que os agentes públicos se aperfeiçoassem pessoal e tecnicamente, a fim de exteriorizar aquela finalidade contida no princípio. Por outro lado, as regras apenas descrevem diretamente, e podem ser classificadas como comportamentais, quando contém proibição ou permissão de determinada conduta, ou constitutivas, quando atribuem efeitos jurídicos a determinados fatos, atos ou situações. [11]


Por todo o exposto, restou clara a diferenciação existente na substância das duas espécies de normas jurídicas. Os princípios são dotados de grau de generalidade maior, fornecem fundamentos que direcionam o intérprete na integração do ordenamento, são normas imediatamente finalísticas, dotadas de objetividade, abstração, relatividade frente a outros princípios, primariedade, e informatividade. As regras, por sua vez, se restringem á descrição de um comportamento proibido ou permitido, incidindo sobre uma hipótese específica.


4. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


Merece inconcussa acolhida a diretriz propugnadora do respeito a todos os seres e coisas existentes. É princípio geral de Direito. Mas entre todos os seres vivos, é o ser humano quem se enfatiza por sua extraordinária condição biológica, emocional, moral, espiritual, estética e racional, conferindo-lhe excepcional dignidade no reino animal.


O ser humano é dotado de capacidade para elaborar juízos de valor, vez que dotado de singular racionalidade, o que lhe permite impor sua vontade sobre as vicissitudes naturais, tornando-se emocional e espiritualmente superior às demais criaturas que com ele compartilham a vida no planeta.


“Concebidos como filhos de uma Divindade, capazes de emitir juízos de valor, possuindo sentimentos, racionalidade, senso estético, livre arbítrio e, sendo responsáveis por seus atos e, além do mais, destinatários de toda evolução, os homens têm inigualável dignidade no reino da criação.” (BRÜNING, 2007, p.39)


O reconhecimento da necessidade de respeito incondicional à existência condigna do ser humano implica inicialmente no dever de abordá-lo como algo superior a uma comezinha porção material de células. Significa reconhecer sua superioridade sobre as demais coisas da natureza, em decorrência de sua destacada destinação espiritual, de sua missão existencial.[12]


Bloch (apud SANTOS, 2001) enfatiza as duas dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana: a positiva e a negativa. A dimensão positiva ressalva a necessidade do desenvolvimento pleno de cada homem, propugnando a consideração de sua total autodiponibilidade, de modo a impedir qualquer interferência interna a limitar a capacidade de atuação própria de cada pessoa e também enfatiza a autodeterminação, originada da razão em sua projeção histórica e não pela natureza.


Já a dimensão negativa da dignidade da pessoa humana refere-se à proteção da incolumidade do homem[13], que jamais deverá ser tomado como alvo de humilhações. 


“Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade; a libertação da “angústia da existência da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas.” ( SANTOS, 2001)


A expressão “dignidade da pessoa humana” revela dois conceitos fundamentais, vez que contém dois valores jurídicos: a pessoa humana e a dignidade, merecedores de abordagem acentuada.


4.1. A pessoa humana


Na antiga Grécia, o homem era tratado como animal político ou social, pertencendo ao Estado. A vida do homem em sociedade confundir-se-ia com a vida do próprio Estado, que sobrepor-se-ia sobre os próprios indivíduos, ou cidadãos da polis grega. Deste modo, a dignidade do ser humano era atributo vinculado à integridade do Estado, que, para manter sua incolumidade, poderia valer-se da imolação ou extermínio de seus componentes. O homem vivia para e em função do Estado.


Foi o Cristianismo, retomando ensinamentos judaicos e gregos, que lançou o homem à posição de ente dotado de fins absolutos, possuindo valor em si mesmo. A evangelização procurou propalar no mundo a noção de que o homem possuía valor absoluto, já que Jesus Cristo chamou todos os homens para procurarem sua salvação.  O ser humano, com o posterior advento das filosofias patrística e escolástica, passou a ser considerado ente com subjetividade própria, destinatário de direitos fundamentais e merecedor de dignidade. A partir de então, o Direito deslocaria atenção do plano do Estado para o plano individual, reconhecendo a independência da vida social do homem em relação à vida do Estado. Passou-se a buscar equilíbrio entre liberdade e autoridade.


O filósofo alemão Immanuel Kant, na sua revolucionária investigação acerca da teoria do conhecimento, no século XVIII, posicionou o homem no centro de suas atenções. No processo cognitivo, não é mais o ser cognoscente quem deve amoldar-se aos objetos que toma como objeto de análise, mas, por outro lado, os próprios objetos é que devem se adequar ao conhecimento do indivíduo. O sujeito, dessa forma, passa a ser considerado o elemento decisivo na elaboração do conhecimento.


A partir de Kant, o homem foi definitivamente tomado como ser que indicava um fim em si mesmo, diferentemente das coisas, representativas apenas de um meio, para se alcançar outra coisa. O homem é guarnecido, portanto, de valor absoluto, vez que sua natureza racional existe como fim em si mesmo. Só o ser humano, como ser racional que é, pode ser chamado de pessoa, designação que não se estende aos demais seres e objetos.


Assim sendo, em virtude da contribuição de Kant, a pessoa humana é tida como centro de imputação jurídica, vez que o Direito deve existir para possibilitar seu desenvolvimento. As Ciências Jurídicas só existem em virtude do homem, como necessárias à sua incolumidade e bem-estar.


4.2. A Dignidade


Todos os elementos, no reino dos fins, são dotados quer de preço, quer de dignidade. O preço representa valor que permite a substituição por outro objeto equivalente. Sendo assim, aos objetos atribui-se um preço, vez que sua valoração está condicionada às vicissitudes do mercado. Cada objeto, por portar um preço, acaba por revelar extrinsecamente superioridade ou inferioridade sobre outros objetos, em cotejo de valores economicamente aferíveis. O objeto que vale mais, ostentando preço maior, evidentemente vale mais, é superior, aos dotados de preços mais módicos.


Por outro lado, tal raciocínio não se aplica ao ser humano, já que este não possui um mero preço, mas sim dignidade, própria de sua condição humana. A dignidade é superior a qualquer preço, pois é insuscetível de substituição por outra “dignidade equivalente”. Indica valor interno, comum a todos os homens, imiscuindo-se em sua condição existencial. Todos os homens possuem a mesma dignidade, o mesmo “valor”, não sendo admissível qualquer tentativa de sobreposição de um homem sobre outro, como ocorre com as coisas.


“A dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim, a dignidade entra e se confunde com o próprio ser humano.” ( SILVA, 1998, p. 93)


Portanto, a dignidade significa que todo ser humano revela essência por intermédio da qual outro homem é impedido de submeter ser semelhante aos ditames de seu alvitre. Nenhum ser humano pode ser considerado como meio para os outros, porque é um fim em si mesmo, possuindo valor incomensurável, superior a qualquer outro ser ou coisa. [14]Cabe ao Estado, conforme se demonstrará a seguir, atuar de modo a efetivar essa existência condigna do ser humano.


4.3. A proteção constitucional da Dignidade da Pessoa Humana


Na órbita internacional, a dignidade da pessoa humana encontra escora na Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948, logo após o execrável período da Segunda Guerra Mundial, na qual cinqüenta e cinco milhões de pessoas perderam suas vidas.  In verbis:


“Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo.(…)Artigo I: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”[15]


Foram motivos históricos, portanto, que impulsionaram o processo de positivação interna do referido princípio, normalmente em momentos subsequentes a períodos totalitários e despóticos, fomentadores de profunda transgressão à dignidade da pessoa humana tais como o nazismo alemão, o franquismo espanhol e o salazarismo português. Houve uma espécie de inserção valorativa nos ordenamentos, principalmente após as Grandes Guerras do Século XX, que procurou sobrepor características mais compassadas à existência que ao patrimônio.


O Brasil, palco de igualmente desumano regime ditatorial conhecido pela História como Ditadura do Regime Militar (1964-1985), alçou, após a derrocada do regime repressivo, a dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa, no art.1º, inciso III de sua Carta Maior. [16]


Como consequência do reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, o Estado Brasileiro deve existir em função das pessoas que o compõe, e não o contrário. Isso implica na necessidade de promover uma verdadeira inversão na prioridade política, social, econômica e jurídica até então existente. Na visão de Martins passa-se, a partir de 1988, “ a ter consciência constitucional de que a prioridade do Estado (política, social, econômica e jurídica) deve ser o homem, em todas as suas dimensões, como fonte de sua inspiração e fim último. Mas não o ser humano abstrato do Direito, dos Códigos e das Leis, e sim, o ser humano com concreto, da vida real.” (2003, p.72).  A pessoa humana, assim sendo, deve ser encarada como o holofote de qualquer atividade estatal, seja ela administrativa, jurisdicional ou legislativa.


“Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e “um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro.” (SANTOS, 2001)


A pessoa humana é a razão de ser do Estado, sua raiz antropológica constitucionalmente estruturante, ou seja, todo o aparato econômico, político e jurídico do Estado deve se fundamentar no arrimo, na salvaguarda do homem.[17]


A pessoa humana, ao ter sua dignidade elevada à categoria de fundamento da República, representa assim, o valor último e supremo da democracia.[18] É visto como supremo, pois atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. (SILVA, 1996, p.107). A dignidade da pessoa humana é princípio absoluto, pois a pessoa, “é um minimum invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar.” (SANTOS, 2001)


Silva (1998, p.92) entende que o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, transcende a órbita do Direito e implica em reconhecer a posição predominante do homem em todas as esferas vitais. Nesse sentido:


“Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio de ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, economia e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.”


Santos (2001) adverte-nos acerca impropriedade da concepção individualista da dignidade da pessoa humana, que propugnaria o privilégio irrestrito do indivíduo sempre que este se colocasse em posição conflitante com o Estado. Para Santos (2001), dever-se-ia adotar uma concepção personalista da dignidade, que procurasse encontrar um ponto de equilíbrio, compatibilizando os valores coletivos e individuais, de acordo com as circunstâncias do caso em concreto. Não haveria assim, predomínio apriorístico do indivíduo sobre o todo. 


Contudo, mesmo diante de caso em que se torna necessária a adoção de regra consoante o valor coletivo em detrimento do individual, a concepção personalista do princípio da dignidade da pessoa humana dita o dever segundo o aquela escolha, jamais poderá ferir ou sacrificar o valor da pessoa.


5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO


Tendo em mira as nobres funções desempenhadas pelo processo administrativo, que surgiu em decorrência da necessidade da salvaguarda dos interesses básicos dos homens em contraposição à prepotência do Estado Absolutista, bem como considerando a relevância da valorização da dignidade da pessoa humana na gama principiológica que ampara nosso ordenamento administrativo-constitucional, alocando o ser humano como fim absoluto e valor supremo do Estado Democrático de Direito, mister faz-se a compatibilização da via administrativa ao arcabouço protetor dos direitos fundamentais dos cidadãos.


Em virtude da brevidade do presente trabalho, serão enfocados aqueles direitos e garantias mais importantes, que se destacam nas relações travadas pela administração pública no bojo de processos administrativos. A proteção desses direitos e garantias revela, indubitavelmente, proteção à dignidade da pessoa humana, em suas dimensões positiva e negativa.


– Direito à intimidade, honra, vida privada e imagem das pessoas: no curso de processo administrativo, o órgão julgador deve zelar pelo escorreito amparo dos direitos em foco, em todas as fases e atos processuais, evitando a exposição desnecessária das partes. De acordo com Brüning, a transparência administrativa não é licença para expor à execração pública a vida íntima, a honra e a imagem das pessoas.


– Igualdade perante a lei: é regra que consubstancia o devido respeito à dignidade da pessoa humana no processo administrativo, vez que implica na imposição de dever ao agente público em dispor tratamento equânime às partes, especialmente no momento de colheita de provas,quando o julgador deverá conceder oportunidades igualitárias a ambos os contendores, a fim de influir, em pé de igualdade, na formação da decisão daquele. Nesse sentido, administração e particular deverão, respeitadas as óbvias disparidades competitivas, ocupar posições equivalentes que pressuponham tratamento de igualdade.


– Proibição de penas cruéis: na seara administrativa, tal regra significa a vedação de punições desarrazoadas, em descompasso ao princípio da proporcionalidade. O órgão processante deve abster-se de infligir penalidade excessiva a qualquer ente que ocupe um dos pólos da relação processual administrativa pelo simples fato de agir motivado por sentimentos pessoais, de vingança.,[19] Aqui, tem crucial importância o princípio da proporcionalidade, como foi dito.


“Em seu sentido estrito, o princípio da proporcionalidade veda a imposição de sanções administrativas excessivas e desproporcionais à situação fática que serve de motivo para a imposição da punição. (…) A intensidade da conduta ilícita praticada pelo infrator: quanto mais grave a conduta, mais intensa deve ser a sanção”. (MELLO, 2007, p.173-174)


– Liberdade de convicção religiosa, filosófica e política: no processo administrativo deve ser assegurado o respeito à diversidade de pensamento e convicções de toda ordem aos seus participantes, não sendo admitida o império de qualquer pré-concepção destoante  da linha cultural da autoridade processante. Brüning (2007, p.84) lembra-nos de que é bastante comum, na gestão pública a presença de candidatos da oposição disputando a direção de órgãos e demais instituições com candidatos da situação. O devido respeito à diversidade filosófica-política impõe a necessidade de ilidir qualquer preconceito em torno desses elementos.


– Direito de petição: nesta garantia reside, de acordo com Brüning, (2007, p.84) o campo de maior incidência da processualidade administrativa, vez que ela se espraia pelos mais diversos tipos de conflito. Corolário da democracia participativa, o direito de petição consubstancia proteção à dignidade da pessoa humana porque permite a qualquer interessado recorrer às vias administrativas para reclamar acerca de algo e obter resposta fundamentada. Sejam pedidos de indenização, licenças, denúncias, sugestões ou queixas, o direito de petição tem crucial importância na sistemática do processo administrativo, vez que é o instrumento técnico adequado que permite ao cidadão tomar parte em seu bojo, assegurando a proteção a seus direitos e funcionando como eficaz meio de fiscalização dos particulares sobre as atividades administrativas. Dá azo à possibilidade de efetivação do contraditório e da participação popular na administração pública. Neste sentido é o posicionamento de Siedentopf (apud SOARES, 1997, p.148):


“Para Siedentopf, a participação dos cidadãos nas decisões administrativas objetiva o seguinte: a) racionalização das decisões administrativas através de uma informação melhor e disponível; b) previsibilidade do cidadão quanto ao conteúdo das decisões administrativas; c)   vontade reforçada da ação administrativa através da publicidade e transparência; d) maior legitimação da decisão administrativa tomada; e)  integração do cidadão e grupos de cidadão à decisão administrativa tocada pelo bem comum; f) desenvolvimento da autodeterminação e da emancipação do cidadão na sua comunidade.”


– Acesso à informação: impõe respeito às necessidades de mirar o conteúdo das informações contidas em termos e certidões processuais administrativas, tendo como limite a proteção da intimidade de acordo com as vicissitudes do caso concreto. É corolário da transparência administrativa e democracia participativa.


– Ampla defesa e contraditório: implica, além de posicionar as partes em posições equânimes no intuito de guarnecê-las efetivamente de “armas” para influir no convencimento da autoridade julgadora, a ciência a ambas as partes acerca dos atos praticados por todos os sujeitos do processo, possibilitando a cada um a faculdade de debatê-los e refutá-los, em sua inteireza ou parcialidade. A ampla defesa decorre do contraditório, pois representa este em sua concretude, ou seja, uma vez proporcionado o contraditório, ambas as partes terão a possibilidade de efetuar defesas coesas e preparadas, consubstanciando o que a doutrina designa por “equipotência” ou “equivalência de forças”.


– Exigência do devido processo legal: qualquer restrição à esfera patrimonial ou às liberdades públicas de uma pessoa só é legitimada quando respeitados os ditames do devido processo legal administrativo. Ou seja, exemplificativamente, a liberdade de peticionar, de acessar cargos públicos, de participar dos negócios da Administração, de opor-se à abusos, tudo isso só pode ser mitigado se observados forem os princípios e regras que contemplam o devido processo legal.


“Assim, se uma empresa se inscreve num procedimento licitatório, não poderá ser privada de participar do certame sem o devido processo legal. Também, ninguém poderá sofrer uma desapropriação sem o devido processo legal. (…) Nem sempre isso ocorre, lamentavelmente. Vez por outra, as garantias materiais e processuais são atropeladas por licitações dirigidas e desapropriações a preços irrisórios, para não falar de outras situações freqüentes na administração pública brasileira.” (BRÜNING, 2007, p.142)


Dessa forma, o devido respeito à pessoa humana deve ser, como analisado, alvo de proteção também pela processualidade administrativa. Abusos, discriminações, humilhações, defesas hipossuficientes, tratamentos iníquos, dentre outras violações às garantias fundamentais não poderão ser toleradas no Estado Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana é fundamento, valor fundante e supremo da República e por isso, deve ter seu conteúdo respeitado não apenas na esfera jurídica, mas também social, econômica, cultural, política, em suma, em toda a vida do homem em sociedade. O processo administrativo demorado, desleal, desonesto, tendencioso, desnecessário, tendencioso e excludente desrespeita a dignidade da pessoa humana. (BRÜNING, 2007, p.41)


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Processo administrativo é relação ou situação jurídica que se desdobra temporalmente em harmônica sequência de atos administrativos (processuais) lógica e juridicamente concatenados, visando uma decisão final imperativa do Estado e que se realiza mediante a participação dos interessados em contraditório.


Princípio jurídico é postulado basilar que confere sistematização a um ordenamento, representando comando geral e superior, verdadeira viga-mestra do sistema do Direito.  A transgressão de um princípio pode acarretar a anulação de ato ou até mesmo a ocorrência de delito (improbidade administrativa, verbi gratia), passível de sanção nas esferas administrativa, civil e penal. Apresentam função integrativa, fundamentadora e interpretativa.


Atrelado a tais conceitos, a dignidade da pessoa humana surge, especialmente após momentos beligerantes do século XX, como princípio positivado em diversas Cartas Internacionais, e em especial, a Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU em 1948. No Brasil, o princípio é alçado à categoria de fundamento da República Federativa, no art.1º, III, CF/1988, representando “valor supremo”, aglutinador de inúmeros direitos fundamentais dos seres humanos.


A necessidade de salvaguarda desse importante princípio, o qual aloca o ser humano em posição central de toda atividade estatal, como ente dotado de fins absolutos, conduziu à presente reflexão que pretendeu ajustar a necessidade de proteção dos direitos fundamentais do homem no âmbito da seara processual administrativa.


Posto isso, é inegável que ao homem são asseguradas garantias básicas constitucionais no curso do processo administrativo. Além das tradicionais garantias reservadas aos processos em geral, como ampla defesa, contraditório e devido processo legal, o presente trabalho objetivou também afirmar a imprescindibilidade de salvaguardar sua liberdade filosófica ou religiosa no curso do procedimento, o direito de petição como fundamento da cidadania participativa, o direito à honra, intimidade, sigilo, igualdade, guarnecendo o processo administrativo de garantias fundamentais aptas a assegurar, proteger e alçar o indivíduo como razão de ser também do processo administrativo.


 


Referências

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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 21ªEd. São Paulo: Malheiros, 2006.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes: 2005.

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BRÜNING, Raulino Jacó. Processo Administrativo Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.

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FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson de Abreu. Processo Administrativo. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1989

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MELLO, Shirlei Silmara de Freitas. Princípios do Processo Administrativo: uma visão panorâmica.  Cidadania e Justiça – Revista de Direito. Ituiutaba, 2004.

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Notas:

[1] As teorias privatistas são aquelas que atribuem ao processo a natureza jurídica de contrato ou quase contrato. De acordo com elas, ressalvadas pequenas particularidades, o processo consubstanciaria em seu bojo um plexo de direitos e obrigações a serem pactuados em juízo.

[2] É assim, complexa, pois apresenta-se como soma de uma série de posições ativas e passivas; é autônoma, pois sua validade independe de qualquer relação de direito material; é una, pois todos os atos componentes do procedimento visam à emissão de um provimento imperativo.

[3] De acordo com MOREIRA (2003, p. 27): “A Administração possui poderes e regalias extraordinárias, que afetam  o vínculo intersubjetivo. São as chamadas ‘prerrogativas da Administração’, limitadas e exercitadas em atenção aos ‘direitos dos administrados’”.

[4] Tal relação jurídica não se estrutura aleatoriamente. Os poderes manejados pelo agente estão atrelados a um fim preestabelecido pela lei, de modo que só serão validamente exercidos se contemplarem os específicos deveres legais.

[5] Para PEREZ apud MELLO (2006, p. 470), os requisitos para que existam um procedimento são: a) autonomia relativa dos atos, b) conexão em vista da unidade de efeito jurídico que se expressa no ato final e c) relação de causalidade , de tal modo que um dado ato suponha o anterior e o ato final suponha a todos eles.

[6] “Princípio (…) é momento em que algo tem origem; é a causa primária ou o  elemento predominante da constituição de um todo orgânico” (NUCCI, 2008, p.8)

[7] Brüning (2007, p.94), em arremate, nos comprova, em interessante constatação, a farta presença dos princípios no nosso trato diário com as ciências, de modo geral: “Quem observa a natureza e todo o Universo verá que seu funcionamento é guiado por princípios, como o da atração e repulsa, no sistema solar, que proporciona estabilidade nas distâncias e nos movimentos dos astros. No reino animal, algo semelhante se passa no conhecido princípio da seleção das espécies, formulado por Darwin. As ciências físicas submetem-se a vários princípios, a exemplo do aumento dos corpos em temperaturas elevadas, e o de Arquimedes, segundo o qual, um corpo imerso em líquido perde uma quantidade de peso igual ao peso da quantidade de peso igual ao peso da quantidade de fluido deslocado. As ciências humanas ou comportamentais, como a psicologia, as economia, a política e a religião também têm seus princípios com uma certa particularidade, sendo, via de regra, instituídos pelo homem. O Direito também possui seus princípios,a exemplo da supremacia da Constituição, da anterioridade da lei penal, da anualidade tributária, da liberdade contratual e assim por diante.”

[8] A respeito da polêmica do conceito de norma, essencial torna-se a lição de Alexy (2008, p.52): “Dessa forma, a fundamentação daquilo que se sustenta variará conforme se entenda norma como ‘o sentido (objetivo) de um ato pelo qual se ordena ou se permite e, especialmente, se autoriza uma conduta’ ou uma ‘expectativa de comportamento contrafaticamente estabilizada’, como um imperativo ou  uma modelo de conduta que ou é respeitado ou, quando não, tem como conseqüência uma reação social, como uma expressão com uma forma determinada ou uma regra social”

[9] Em interessante posicionamento, Cesare Beccaria, na tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa (2005, p. 46), entende ser a interpretação das leis um expediente pernicioso, ou sem suas palavras, um verdadeiro mal: “Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei. É como romper um dique à torrente das opiniões. Esta verdade, paradoxal às mentes vulgares mais abaladas por uma pequena desordem de momento que pelas conseqüências funestas, mas remotas, que nascem de um falso princípio enraizado numa nação, parece-me demonstrada. Todos os nossos conhecimentos e as nossas ideias estão conectadas reciprocamente; quanto mais complicados, mais numerosos são os caminhos que até eles chegam e deles partem. Cada homem tem o seu ponto de vista; o mesmo homem, em épocas diferentes tem pontos de vista diferentes. O espírito da lei seria, portanto, o resultado da boa ou da má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou difícil; dependeria da violência de suas paixões, da fraqueza de quem sofre, das relações do juiz com o ofendido e de todas aquelas mínimas forças que mudam as aparências de cada objeto no espírito flutuante do homem.”

[10] Segundo Alexy (2008, p.91-92), tal critério é o dotado de maior clareza entre os critérios diferenciadores: “A diferença entre regras e princípios mostra-se com maior clareza nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Comum às colisões entre princípios e aos conflitos entre as regras é o fato de que duas normas, se isoladamente aplicadas, levariam a resultados inconciliáveis entre si, ou seja, a dois juízos concretos de dever-ser jurídico contraditórios. E elas se distinguem pela forma de solução do conflito.

[11] Para Ávila (2005, p.81-82), as regras constitutivas podem ser reconstruídas a partir dos seguintes dispositivos: dispositivos relativos à atribuição de competências, dispositivos relativos ao exercício de competência ; dispositivos relativos à delimitação material de competência; dispositivos relativos à reserva de competência e dispositivos relativos à delimitação substancial de competência.

[12] “Mesmo as teorias chamadas materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa humana, sempre foram forçadas a reconhecer que existe em todos os seres humanos uma parte não-material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos.” (DALLARI, 1999. p. 9).

[13] Em consonância à dimensão negativa da dignidade da pessoa humana, o art.5º, III da Constituição da República assevera que “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

[14] Kant nos diz, de acordo com a tradução de Paulo Quintela (1989) : “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”  (1989, p.45)

[15] No original, em inglês, “Preamble: Whereas recognition of the inherent dignity and of the equal and inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world. (…) Article 1: All human beings are born free and equal in dignity and rights.They are endowed with reason and conscience and should act towards one another in a spirit of brotherhood.”

[16] Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana

[17] “Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art.193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art.205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana. (SILVA, 1998, p.107)

[18] “Ademais, sublinhar a dignidade da pessoa humana como fundamento implica agregar à própria noção de República e de Estado Democrático de Direito um valor histórico e concretamente condicionado, ou se preferirmos, um dado empírico, já que o valor dignidade da pessoa humana só se pode aferir a partir de uma perspectiva concreta que contemple a pessoa humana como ser dotado de uma dignidade própria; não enquanto categoria jurídica meramente ideal e abstrata, mas enquanto pessoa real. Isso significa que no constitucionalismo brasileiro contemporâneo os conceitos de Estado, República e Democracia são funcionalizados a um objetivo, a uma finalidade, qual seja, a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.”(MARTINS, 2003, p. 73)

[19] “À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, os espíritos humanos que, como  os fluidos, se nivelam sempre com os objetos que os cercam, endurecem, e a força sempre viva das paixões faz com que, após cem anos de cruéis suplícios, a roda assuste tanto quanto antes a prisão assustava. Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflinge exceda o bem que nasce do delito e nesse  excesso de mal deve ser levada em conta a infalibilidade da pena e a perda do bem que o delito devia produzir. Tudo o mais é supérfluo e, portanto, tirânico.” (BECCARIA, 2005, p.92-93)

Informações Sobre os Autores

Shirlei Silmara de Freitas Mello

Doutora em Direito pela UFMG. Professora Adjunta na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Estanislau Correia Almeida Junior

Bacharelando do curso de Direito da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Equipe Âmbito Jurídico

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