Resumo: Por meio deste texto visa-se refletir sobre o que devemos fazer com os desejos face à ética neoliberal e ao pensamento racional do qual não podemos afastar.
Palavras-chave: Desejos. Neoliberalismo. Racionalidade.
Abstract: This text aims to reflect on what we should do with desires in the face of neoliberal ethics and rational thinking that we can not avoid.
Keywords: Desires. Neoliberalism. Rationality.
Sumário: Introdução. 1. O sujeito social do desejo. 2. O homem, a racionalidade e os desejos. 3. Considerações finais. Referências.
Introdução
Agostinho Ramalho Marques Neto fomentou, a partir do texto Neoliberalismo e gozo,[1] uma reflexão sobre os efeitos do neoliberalismo no contexto capitalista, sugerindo consequências de âmbitos político, jurídico, ético e psicológico.
Para adentrar nesse assunto, primeiramente, faz o mesmo, uma explanação da passagem do liberalismo para o neoliberalismo, de modo que se possa compreender quais seriam as principais mudanças ocorridas nos últimos séculos numa sociedade capitalista voltada ao consumismo.
Em seus desenvolvimentos, Marques Neto cita autores como Thomas Hobbes, Hugo Grotius, Baruch de Espinosa, John Locke, Montesquieu, Jean Jacques Rousseau e Benjamin Constant, ícones do que ele chama liberalismo clássico, o qual teve como base o tripé, lema da Revolução Francesa, igualdade, liberdade e fraternidade.
Por meio desses princípios, defendeu-se a conquista, segundo o autor, de uma igualdade jurídico-formal, consagrada na liberdade contratual, que se apresenta de extrema importância para o bom funcionamento do capitalismo e para a manutenção da ordem social. Em contrapartida e, paradoxalmente, um dos primeiros a formular as arestas da doutrina neoliberal foi Friedrich Hayek, o qual se baseou nos princípios competição, desigualdade e eficiência, sob a promessa da prosperidade de todos.
A abordagem de Agostinho é de grande contribuição, por nos permitir refletir sobre a história e o comportamento de uma sociedade que caminha para a falência do senso crítico e da busca por mudanças positivas e sustentáveis, pois o neoliberalismo traz consigo a exclusão social, e não por acaso, mas por fazer parte do próprio sistema neoliberal.
Essas e outras discussões, digam-se de passagem, são extremamente atuais, já que o texto Neoliberalismo e Gozo foi concebido em 2008, ano de grandes turbulências no setor econômico-financeiro a nível mundial, se arrastando até os dias atuais, não se podendo deixar de citar o momento vivido por nós brasileiros, que passamos por uma grave crise política, que oportunizou, inclusive, um processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, rodeado de muita polêmica por sua inconstitucionalidade, bem como os últimos escândalos quanto à suposta percepções de propina, por parte de muitos políticos, e, até mesmo do Presidente atual, Michel Temer, o que resultou em vários pedidos de impeachment e a acusação do crime de corrupção passiva por parte do Procurador Geral da República.
Uma das maiores contribuições de Agostinho, do nosso ponto de vista, se dá no sentido escancarar que o neoliberalismo, em função de ter em sua base a competição, acaba por proporcionar uma busca pelo desenvolvimento econômico e o acúmulo de riquezas, espaço em que o ganhar a qualquer custo faz com que essa competição deixe de ser limitada pela lei e passe a ser a própria lei. Nesse horizonte, as relações interpessoais passam a ser baseadas, cada vez mais, em interesses econômicos, criando-se o binômio incluídos e excluídos.
Agostinho Neto trabalha a ideia de que o pensamento marxista baseado no binômio opressores/oprimidos, já não contextualiza a atual divisão social, preferindo focalizar a tensão incluídos/excluídos, em que opressores e oprimidos fariam parte dos incluídos, enquanto os excluídos seriam aqueles que não fazem parte de nenhum âmbito da vida social, já que, enquanto indivíduos sem nada a oferecer, passam a ser menosprezados pelo sistema. Em outras palavras, por serem indivíduos de tão pouco valor, ou melhor, de valor nenhum, do ponto de vista do jogo de interesses da sociedade atual, passam a ostentar o papel de excluídos da cidadania.
As consequências neoliberais, geradas pelos denominados excluídos, trazem um reflexo para a sociedade, e tem passado sem questionamentos por uma maioria menos atenta e crítica, gerando um grupo de pessoas desacreditadas de seus valores familiares e pessoais.
O neoliberalismo voraz denota direitos garantidos em extinção, quando se pensa em sua efetivação, e, um direito penal e um poder judiciário em curvas crescentes, devido ao caos e às mazelas de um grupo desamparado.
Ademais, o que se vê, na contramão da busca pelo que seria uma sociedade ideal, é um Estado pouco preocupado com a real situação desses indivíduos e com medidas que visam apenas uma melhoria momentânea, a partir de bolsas assistenciais, que não irão a longo prazo mudar a condição de vida do sistema de exclusão ora instalado.
Citando José Nazar e Renato Mezan, o autor frisa, nesse contexto, que o Estado busca, de fato, com esse assistencialismo, a manipulação e a anulação dos “beneficiados” das noções de cidadania e de sujeitos políticos.
Com efeito, o autor propõe uma reflexão sobre quais seriam os incluídos em nossa sociedade e a sua contribuição para o processo neoliberal, apontado tratar-se de um grupo formado por pessoas extremamente capacitadas para serem eficientes e cada vez mais competitivas. Nesse contexto, o que poderia se apresentar como um ponto positivo para a sociedade, quando colocado em questão, demonstra a vulnerabilidade desse grupo, que faz a economia “girar”, aprimorando, a cada dia, o “como” fazer melhor, anulando o senso crítico e questionador dos seus componentes sobre as práticas exercidas.
O perfil neoliberal é tão avassalador que é comparado a um Deus, levando-se em conta os modos de cultua-lo, como enfatiza Giorgio Agamben:
“o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gera a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo” (AGAMBEN, 2012, p. [S.N.]).
É válido frisar, quem melhor internalizou a lógica desse mercado, vendendo-o livremente, são os veículos de comunicação, apresentando uma sociedade de mercado, de consumo, um mundo de conto de fadas, onde o Estado, às custas do sofrimento do povo, concede ao mercado financeiro, muitas vezes, dotado de uma legalidade concedida por esse mesmo Estado, a expansão do mercado consumidor.
O que se gera com essa posição do Estado frente ao neoliberalismo, é a figura do cidadão transformada em consumidor, onde o seu exercício de cidadão se resume ao consumo exacerbado e a qualquer custo, os quais levam ao gozo imediato.
É bem verdade, o mundo dos fatos demonstra, realmente, que o capitalismo prega a busca pela mansão, pelo carrão caro e potente, pelo telefone celular que faz de tudo, pela maior e mais fina televisão na versão 3D, pelos melhores ultrabooks, notebooks, ipod’s, iphone’s, iped’s, tablet’s, pelas roupas de grife com preços astronômicos e inacreditáveis etc.
Por outro lado, a comuna do consumo em sua dimensão de culto ao corpo e busca pela aparência “perfeita” apregoa que o homem ideal deve ser alto, forte e bem vestido. O estereótipo feminino reivindica que a mulher tenha cabelos lisos, seja bem vestida, magérrima ou “sarada” e cheia de curvas voluptuosas, na melhor versão panicat. Dessa forma, “o discurso “narcísico-consumista” da sociedade atual produz “ídolos fortemente sexualizados em imagens do dever ser homem e dever ser mulher”” (VAZ, 2004, p. 127).
O ideal atribui, sobretudo, ao perfil e à posse dos bens, acima delineados, o caminho para reconhecimento e sucesso; o pré-requisito por melhores empregos, muito dinheiro, glamour, grandes amigos, tratamento cordial e convites para os mais importantes, famosos e badalados eventos; a conquista de viagens inacreditáveis e momentos inesquecíveis, além de uma vida amorosa e sexual digna dos filmes de Hollywood. Enfim, que com esses atributos tudo se torna mais fácil, alcançando-se a felicidade plena por meio do possuir, o qual proporcionará tudo o que há de melhor.
Essa busca incessante pelo gozo, provocado pelo consumo desenfreado, faz com que a pessoa passe da condição de um ser insubstituível para um ser descartável. Essa situação é que permite ao processo capitalista se tornar e se manter forte e dinâmico, e, nessa vertente de que tudo é mercadoria, as pessoas também passam a ser vistas como mercadoria, donde banalizam-se as relações pessoais, já que o outro só “serve” (é reconhecido) enquanto portador de alguma satisfação ou benefício, podendo ser, portanto, descartado quando não mais atender às expectativas.
O contexto faz com que a política também seja infectada por esse comportamento, sendo o governante visto como um gestor de negócios. Ao mesmo tempo, a economia vai ocupando o lugar da política, até porque, cada vez mais, tem-se um Estado refém do mercado econômico.
Agostinho Neto chama a atenção ao enfraquecimento da função garantidora do Direito. Logo, ocorre, com esse fenômeno, um retrocesso, pois se o Direito não pode garantir o fiel cumprimento da lei, não tem nada a garantir.
Saliente-se, garantias jurídicas são substituídas por garantias de mercado, e empresários vendem uma falsa imagem de zelo para com seus consumidores, não para garantir seus direitos como se pensa, mais sim, para vender e manter uma boa imagem no mercado, com o objetivo único de manter o consumo e suas sensações de prazer.
Famílias inteiras, em busca desse gozo infinito, se veem em situação de superendividamento, encontrando-se impossibilitadas de pagar suas dívidas atuais e futuras. Fazendo-se um paralelo, a busca pelo gozo a todo tempo, em nada difere à busca de um viciado por drogas que o satisfaçam.
A inversão de valores fica demonstrada de forma nítida no âmbito da sociedade contemporânea, não sendo diferente quando se trata de um Estado que, para garantir a segurança, passa a restringir os direitos, não conseguindo manter uma ordem, se especializando, na realidade, em governar a desordem.
A promoção política e o domínio exercido por ela se dá graças à manipulação da falta de senso crítico de uma nação composta, em sua esmagadora maioria, por pessoas despreparadas, e da falsa proteção oferecida aos que se sentem inseguros e precisam sentir que suas vidas e bens estejam resguardadas.
Esse modo de vida faz com que a ética vá desaparecendo e o gozo toma o seu lugar, inexistindo limites e leis. Passa-se a ideia de que tudo é possível, de modo que se alcance o gozo, tanto que não é difícil de se encontrar slogans como: “vendemos sonhos” e “o céu é o limite”.
Postas essas considerações, necessário indagar, o que fazer com os desejos? A psicanálise e o pensamento grego antigo teriam resposta para isso?
1. O sujeito social do desejo
Sem sombra de dúvidas, os estudos de Freud (1974) contribuíram substantivamente para a ruptura epistemológica entre a antiguidade e a modernidade, na forma de compreendermos o ser humano como sujeito dotado de razão e “não-razão”, no sentido de que muitos desejos, sentimentos, emoções e pensamentos, que também guiam nossas ações, não estão claramente informados à consciência, que busca sempre operar pela racionalidade, reclamando análise e compreensão acerca do “sujeito social do desejo”, o qual será refletido a partir da teoria lacaniana.
No campo psicanalítico, Jacques Lacan (1901-1981) foi o primeiro a estudar o ser humano como um “sujeito do desejo”. Lacan foi médico, especializado em psiquiatria e discípulo de Freud, de quem retomou temas complexos para criar, conforme caracterizaram Roudinesco e Plon (1998), seu poderoso sistema de pensamento. O retorno de Lacan a Freud e seu avanço no campo da teoria psicanalítica do inconsciente parecem ter sido motivados por sua preocupação com o rumo reducionista ao campo quase exclusivo da sexualidade que a psicanálise e, principalmente, a terapia psicanalítica, estavam tomando. Foi em sua tese de doutorado, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, apresentada em 1932, que Lacan informou-nos de importantes elementos de sua visão dos conceitos psicanalíticos.
À luz do estruturalismo e da linguística, especialmente, sob a influência de Saussure e Lévi-Strauss, Lacan concluiu, diferentemente de Freud, que a linguagem é a condição da existência do inconsciente. Simultaneamente, por meio da linguagem, essa instância psíquica se instala no indivíduo e manifesta sua existência através dos sonhos, do chiste, do ato falho, do gesto e dos sintomas. É por meio da linguagem que o Sujeito Real (inconsciente), seus fantasmas e desejos, se apresentam a si mesmo (consciente do indivíduo) e ao outro (social).
Para representar o psiquismo humano, Lacan recorreu à estrutura borromeana ou nó borromeu, (Gonçalves, 1992). Trata-se de um nó, no qual três aros interdependentes se entrecruzam, se sustentam e se articulam, formando uma única amarração. Essa estrutura representa as três instâncias fundadoras do saber psicanalítico lacaniano: o Imaginário, o Simbólico e o Real. Nessa representação, o imaginário é o sentido individual, subjetivo que cada qual atribui aos processos sociais, locais e globais, bem como coletivos, vividos; o simbólico, refere-se a história social e coletiva, pré-existente ao indivíduo; e, o real, é a instância na qual se situa o inconsciente, ou o Grande Outro, assim, também, denominado por Lacan.
Na teoria psíquica lacaniana, conforme Roudinesco e Plon (1998), o termo desejo expressa uma cobiça ou apetite referente a um objeto que falta ao indivíduo e, será, por meio da linguagem, sob qualquer de suas formas, que o desejo se manifestará. Isso significa que, a todo o momento nosso real se depara com a existência de objetos faltantes. Esses poderão vir a se constituir em faltas ou desejos, que por meio do discurso (linguagem) e da ação (pulsão), procurará suprir, satisfazer. No entanto, desde os estudos de Freud, aprendemos que, nos indivíduos, entre o inconsciente e o consciente, se estabelecem negociações permanentes na direção da satisfação ou não dos seus desejos.
Aprendemos também, com a psicanálise, que a dinâmica social redimensiona a subjetividade, o psiquismo. Numa perspectiva lacaniana, isso significa que nossas experiências com um simbólico e um imaginário, cada vez mais marcados pela velocidade e volume de situações sociais, de invenções tecnológicas e formas e estilos de vida, criação de padrões de comportamento social e ideal de riqueza e status social, inscreverão em nosso real os objetos que poderão vir a se constituírem em faltas. Tais faltas, consequentemente, poderão vir a se classificarem desejos, que por sua vez acionarão o processo de necessidade, demanda e pulsão (Laplanche e Pontalis, 1992), pondo em movimento nossos mecanismos internos, conscientes e inconscientes, de negociação.
Para melhor explicar essa questão entre o psíquico e o social, tomemos por base um estudo sociológico. Em 1990, no livro As consequências da modernidade, o sociólogo britânico Anthony Giddens, ao discutir, numa perspectiva crítica, a ideia de pós-modernidade, nos ofereceu uma pista interessante de como perceber que os acontecimentos sociais atuam no sentido do redimensionamento das subjetividades.
Em seu ensaio, Giddens considerou que o período pelo qual passamos caracteriza-se menos por ser uma “nova era” – a pós-modernidade – e mais a radicalização da modernidade, pois as estruturas sobre as quais essa se fundou, ou seja, o capitalismo, o industrialismo, a vigilância e o poder militar estão cada vez mais radicalizadas.
Nesse ponto, parece-nos possível apontar que o processo de radicalização das estruturas modernas, sobretudo, das estruturas do capitalismo e do industrialismo, terá efeitos no psiquismo dos indivíduos, principalmente, no que tange à dinâmica psíquica do desejo.
É sabido, desde Marx, que o capitalismo se reproduz como sistema econômico, a partir de si mesmo, criando e divulgando necessidades materiais, que vão muito além das nossas necessidades mais elementares de produção e reprodução da vida. Ora, com efeito, as transformações processadas no campo da materialidade da vida, afetam nossa dinâmica psíquica dos desejos, causando-nos, como dito anteriormente, as faltas (desejos) que clamarão por serem supridas.
Podemos ilustrar a dinâmica acima descrita, a partir de duas situações exemplares: primeira, a emergência de novos arranjos institucionais familiares – parentais, monoparentais, homoparentais, recompostas etc – tem provocado o desejo da institucionalização, da normatização jurídica (direitos) dessas novas famílias (Roudinesco, 2003). Segunda, o discurso social e as experiências simbólicas e imaginárias dos indivíduos com a “nova ideologia urbana” (Costa, 2003), têm sido causa do surgimento de uma falta, que se constituiu no desejo de existir em conformidade com o discurso narcísico da cultura atual, conforme desenvolvemos na introdução.
Indiscutivelmente, a descoberta do inconsciente, como sendo também o lugar de surgimento e manifestação dos desejos, contribuiu para a ressignificação da noção de sujeito. Tal descoberta, como já dito anteriormente, nos informou que nossas ações são, também, guiadas por forças do suceder psíquico que não estão, claramente, informadas à consciência.
Assim, do ponto de vista social, podemos aprender com a psicanálise que os acontecimentos e fenômenos sociais em curso são protagonizados por indivíduos portadores de uma dimensão psíquica (lugar de desejo) em permanente relação dialética com outras subjetividades, portanto, outros lugares/expressões de desejos.
2. O homem, a racionalidade e os desejos
Por mais que a psicanálise tenha apresentada, modernamente, um novo olhar para a pessoa humana e seus desejos, varemo-nos, aqui, de alguns ensinamentos dos principais filósofos gregos, a fim de investigar a melhor maneira de lidar com os desejos.
Muito bem. Desde a antiguidade se estuda o sentido existencial do homem, com ênfase nas relações, geralmente conflituosas, entre os temas desejo e racionalidade.
Del Vecchio (2011), acerca do assunto no horizonte grego, alude defenderem os sofistas que cada homem tem um modo próprio de ver e conhecer as coisas, enquanto Sócrates lecionava a necessidade de o ser humano conhecer a si mesmo.
Inclusive, de acordo com Reale e Antiseri (1990), Sócrates aduzira que o homem é a sua alma, entendida como razão (psyché), consciência. O pensamento socrático postula tratar-se o conhecimento do verdadeiro valor, enquanto a riqueza, o poder, a fama, o vigor físico, a saúde, a beleza e demais bens da vida não são valores em si mesmos, causando grandes males quando exercidos e usufruídos com ignorância.
Observou Sócrates que devido à sua natureza, o homem destina suas ações ao próprio bem, à felicidade (eudamonía), e que os valores acima elencados (riqueza, poder, fama, vigor físico, saúde, beleza entre outros), não revelam uma vida feliz, pois a verdadeira felicidade resulta da submissão da vida e dos seus valores à razão.
Sócrates (Reale e Antiseri,1990) pregara o autodomínio (enkráteia) no sentido de que o homem deve a partir da sua racionalidade (lado racional) dominar a sua animalidade (lado animal, portanto, irracional), ser senhor do seu corpo e dos seus instintos. Logo, realizando o homem a enkráteia conquistará a eudamonía, pois a alma só é feliz quando ordenada, virtuosa (domínio da razão), sendo o próprio homem o único e verdadeiro artífice da sua felicidade.
Aristóteles, nesse mesmo sentido, na obra Ética a Nicômaco, perquiriu que as condutas humanas buscam fins (bens), os quais se encontram subordinados a um fim último, a felicidade. A felicidade, para o estagirita, consiste no aperfeiçoamento do homem enquanto tal, estando condicionado este ideal à atividade conforme a razão.
Assim, para Aristóteles a faculdade do desejo é algo estranho à razão, estando-lhe mesmo em oposição, sendo muitos os impulsos, paixões e sentimentos que a atividade racional deve moderar. O filósofo chamou o domínio dessa parte da alma e a sua redução à racionalidade como virtude ética, a justa medida, o meio termo, já que os desejos, paixões e impulsos inerentes à pessoa humana tendem ao excesso ou à falta, como se vislumbra a seguir:
“A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional do próprio homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo […]” (ARISTÓTELES, 1991, p. 38).
3. Considerações finais
Não temos dúvidas, todos agimos em busca da felicidade, a qual, sendo encarada no horizonte das aspirações imediatas, se confundirá com a satisfação dos desejos, por vezes, ocasionais. Há que se analisar, por isso, em que medida os desejos imediatos nos contemplarão com o que realmente nos traz felicidade.
Em outras palavras, nada impede que, a título imediato, possa-se ter a sensação de saciedade, de agradabilidade. Por outro lado, a experiência demonstra que em um futuro próximo ou remoto, o que foi feito vem a ser objeto de análise ou reanálise, de arrependimento e, logo, de infelicidade. Quem nunca ouviu ou disse coisa do tipo: “por quê fui fazer isto…; onde estava com a cabeça quando fiz aquilo”. Não é raro, não é mesmo?
Os desenvolvimentos psicanalíticos que aqui trouxemos nos apresentaram existirem dois de nós, o consciente e o inconsciente, sendo este último o nosso verdadeiro eu, que, por sua vez, nem sempre, revela para aquele, “suas aspirações”.
Aprendemos também, haver uma constante negociação entre essas faces de um mesmo ser, no sentido de se satisfazer ou não o que se almeja de forma imediata ou mediata. De tal modo, se nem tudo é revelado pelo inconsciente, estaríamos diante de respostas, ou motivações, (não justificativas), para condutas impensadas, irracionais, desconformes, ilegais e/ou imorais.
Essas constatações, porém, não nos eximem de responsabilidades individuais e coletivas, as quais deverão ser assumidas por cada um e por todos, à sua exata medida.
Acreditamos que os problemas individuais e coletivos aqui trabalhados ligados à ética individual-narcísico-consumista neoliberal sejam fruto de uma incompetência no sentido de agir virtuosamente nos moldes aristotélicos supracitados, vale dizer, em se alcançar um equilíbrio. Em tudo, deve-se ter uma mediania.
Sabemos, igualmente, essa conquista é árdua. Entendemos, porém, encontrar-se correto Nuno Coelho (2006) para quem a relação entre o desejo e a razão está sempre por ser decidida, no sentido de a conquista progressiva do desejo pela razão se dá através da habituação do desejo a desejar, conforme a razão lhe sugere. Assim, pensemos correto, racionalmente, que agiremos com correção, com racionalidade. Mas o que é correto e racional? Coletivamente, respeitar o pacto social e, no que tange às questões individuais e íntimas, se autodeterminar.
Informações Sobre os Autores
Hugo Garcez Duarte
Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE
Alessandro da Silva Leite
Professor de Direito