O reconhecimento da multiparentalidade pelo ordenamento jurídico nacional e a possibilidade de múltipla filiação registral

Resumo: O homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, o qual, corriqueiramente, se materializada na busca pela felicidade, competindo à sociedade, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizando a todos viver juntos, de forma benéfica. Impostergável se faz o reconhecimento do afeto e da busca pela felicidade, enquanto valores impregnados de juridicidade, porquanto abarcam a todos os indivíduos, suplantando qualquer distinção, promovendo a potencialização do superprincípio em destaque. Ademais, em se tratando de temas afetos ao Direito de Família, o relevo deve ser substancial, precipuamente em decorrência da estrutura das relações mantidas entre os atores processuais, já que extrapola a rigidez jurídica dos institutos consagrados no Ordenamento Pátrio, passando a se assentar em valores de índole sentimental, os quais, conquanto muitas vezes sejam renegados a segundo plano pela Ciência Jurídica, clamam máxima proteção, em razão das peculiaridades existentes. Destarte, cuida reconhecer que o patrimônio, in casu, não é material, mas sim de ordem sentimental, o que, por si só, inviabiliza qualquer quantificação, sob pena de coisificação de seu detentor e aviltamento à própria dignidade da pessoa humana.

Palavras-chaves: Princípio da Afetividade. Busca pela Felicidade. Multiparentalidade.

Sumário: 1 Comentários Introdutórios: A Filiação à Luz do Princípio da Igualdade entre os Filhos; 2 A Presunção de Paternidade no Direito de Família; 3 A Filiação Socioafetiva: A Complexidade dos Arranjos Familiares Contemporâneos como elementos de influência do estabelecimento dos Vínculos de Filiação; 4 O Princípio da Afetividade enquanto Axioma de Validação da Filiação Socioafetiva; 5 O Reconhecimento da Multiparentalidade pelo Ordenamento Jurídico Nacional e a possibilidade de Múltipla Filiação Registral

1 Comentários Introdutórios: A Filiação à Luz do Princípio da Igualdade entre os Filhos

Em sede de comentários introdutórios, cuida destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, buscando promover um diálogo entre os anseios da sociedade e as maciças modificações insertas na sociedade, em decorrência do cenário contemporâneo, estabeleceu um sucedâneo de alterações em valores que, até então, estavam impregnados de aspecto eminentemente patrimonial. Nesta senda, denota-se que as disposições legais que norteavam as relações familiares, refletindo os aspectos característicos que abalizavam a Codificação de 1916, arrimada no conservadorismo, estavam eivadas de anacrocidade, não mais correspondendo aos desejos da sociedade. Nesta toada, é possível pontuar que, com clareza solar, o artigo 227 da Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, hasteia o princípio da isonomia entre os filhos, afixando que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação[1]. Por oportuno, cuida evidenciar que o ideário de igualdade, enquanto flâmula orientadora, tem o condão de obstar as distinções entre filhos, cujo argumento de fundamentação é a união que estabelece o liame entre os genitores, casamento ou união estável, além de repudiar as diferenciações alocadas na origem biológica ou não. “Não há mais, assim, a possibilidade de imprimir tratamento diferenciado aos filhos em razão de sua origem. Sequer admite-se qualificações indevidas dos filhos[2]. Ora, com a promulgação da Carta de 1988, verifica-se que o Constituinte, sensível ao cenário contemporâneo apresentado, bem como impregnado pela mutabilidade, passou a valorar as relações familiares enquanto emolduradas pelo aspecto de afetividade.

Desta feita, com supedâneo em tal sedimento, é plenamente possível anotar que todo e qualquer filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em órbita patrimonial, seja em âmbito pessoa. Destarte, todos os dispositivos legais que, de maneira direta ou indireta, acinzelem algum tratamento diferenciado entre os filhos deverão ser rechaçados do Ordenamento Pátrio. Operou-se, desta sorte, a plena e total equiparação entre os filhos tanto na constância da entidade familiar como aqueles tidos fora de tal entidade, bem assim os adotivos. Ademais, não mais prosperam as regras discriminatórias que antes nomeavam os filhos como sendo ilegítimos. Trata-se, com efeito, da promoção da dignidade da pessoa humana, superprincípio hasteado pelo Ordenamento Pátrio como pavilhão, que fora, em razão dos costumes e dogmas adotados pelo Códex de 1916 olvidados. Colaciona-se, além disso, o entendimento jurisprudencial que obtempera:

“Ementa: Direito de Família. Filiação Adulterina. Investigação de Paternidade. Possibilidade Jurídica. I – Em face da nova ordem constitucional, que abriga o princípio da igualdade jurídica dos filhos, possível é o ajuizamento da ação investigatória contra genitor casado. II – Em se tratando de direitos fundamentais de proteção a família e a filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese liberal e construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com o desenvolvimento social e a evolução jurídica.” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 7.631/RJ/ Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira/ Julgado em 17.09.1991/ Publicado no DJ em 04.11.1991, p. 15.688).

Nesse diapasão, a mais proeminente consequência da afirmação do corolário da isonomia entre os filhos é tornar o interesse menorista o essencial critério de solução de conflitos que envolvam crianças ou adolescentes, inserindo robustas alterações no poder familiar. Ao lado disso, cuida citar as ponderações de Madaleno, “embora ainda não tenha sido atingido o modelo ideal de igualdade absoluta da filiação, porque esquece a lei a filiação socioafetiva, ao menos a verdade biológica e a adotiva não mais encontram resquício algum de diferenciação e tratamento[3]. Sobreleva ponderar que a isonomia propalada no Texto Constitucional compreende a prole havida ou não durante a constância do matrimônio, bem como “os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro)[4], como bem destacam Flávio Tartuce e José Fernando Simão. Neste sentido, é possível colacionar que “a licença maternidade conferida às mães adotantes encontra-se embasada no princípio da isonomia insculpido na Carta Magna, que garantiu tratamento igualitário aos filhos naturais e adotivos, consoante disposto no art. 227, da CR/88[5]. Com toda a propriedade e pertinência, as modificações propiciadas pelos anseios da coletividade e pela contemporaneidade, as quais influenciaram o Constituinte na elaboração da Carta Cidadã, permitiram que fossem extirpadas do Ordenamento Pátrio as discriminatórias expressões de filho adulterino e filho incestuoso, tal como a nomenclatura de filho espúrio ou filho bastardo, que refletiam o tratamento diferenciador existente durante o Estatuto Civil de 1916, o qual privilegiava a família pautada no conservadorismo e no patrimônio. Ora, a norma abrigada no Texto Constitucional estabelece a isonomia entre toda a prole, consagrando, por mais uma vez, os aspectos de afetividade, não permitindo mais a diferenciação que vigia.

Insta salientar que, conquanto a legislação não tenha consagrado à proteção a filiação socioafetiva, os Tribunais de Justiça, com fincas no superprincípio da dignidade da pessoa humana, têm ofertado respaldo a tal situação. Afora isso, impender negritar que a estruturação de uma relação pautada em liames socioafetivos, de maneira indelével e robusta, a existência do filho afetivo assegura o direito subjetivo, inclusive, de vindicar em juízo o reconhecimento desse vínculo. No mais, deve a filiação socioafetiva ser inconteste, reunindo, via de consequência, além do óbvio convívio entre os possíveis genitores e os pretensos filhos, elemento concretos, que demonstrem, com segurança, que aqueles detinham o desejo de exercerem a condição de pais, conjugado com o nome, o tratamento e os fatores caracterizadores da posse do estado de filho. Cita-se, oportunamente, o seguinte entendimento jurisprudencial que se coaduna com o lançado a campo:

“Ementa: Civil e Processual Civil. Recurso Especial. Família. Reconhecimento de Paternidade e Maternidade Socioafetiva. Possibilidade. Demonstração. 1. A paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial e doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem pertinentes, as regras orientadoras da filiação biológica. 2. A norma princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as restrições à busca do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com a possibilidade de filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma ampliativa, os restritivos comandos legais hoje existentes, para assegurar ao que procura o reconhecimento de vínculo de filiação sociafetivo, trânsito desimpedido de sua pretensão. 3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo biológico. […]” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1189663/RS/ Relatora Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 06.09.2011/ Publicado no DJe em 15.09.2011).

“Ementa: Direito civil. Família. Recurso Especial. Ação de anulação de registro de nascimento. Ausência de vício de consentimento. Maternidade socioafetiva. Situação consolidada. Preponderância da preservação da estabilidade familiar. […] – O descompasso do registro de nascimento com a realidade biológica, em razão de conduta que desconsidera o aspecto genético, somente pode ser vindicado por aquele que teve sua filiação falsamente atribuída e os efeitos daí decorrentes apenas podem se operar contra aquele que realizou o ato de reconhecimento familiar, sondando-se, sobretudo, em sua plenitude, a manifestação volitiva, a fim de aferir a existência de vínculo socioafetivo de filiação. Nessa hipótese, descabe imposição de sanção estatal, em consideração ao princípio do maior interesse da criança, sobre quem jamais poderá recair prejuízo derivado de ato praticado por pessoa que lhe ofereceu a segurança de ser identificada como filha. – Some-se a esse raciocínio que, no processo julgado, a peculiaridade do fato jurídico morte impede, de qualquer forma, a sanção do Estado sobre a mãe que reconheceu a filha em razão de vínculo que não nasceu do sangue, mas do afeto. – Nesse contexto, a filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, como também “parentescos de outra origem”, conforme introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural. – Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação. – Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano. Permitir a desconstituição de reconhecimento de maternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança – hoje pessoa adulta, tendo em vista os 17 anos de tramitação do processo – preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade. E a identidade dessa pessoa, resgatada pelo afeto, não pode ficar à deriva em face das incertezas, instabilidades ou até mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos familiares. […]” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1000356/SP/ Relatora Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 25.05.2010/ Publicado no DJe em 07.06.2010).

Com realce, a realidade inaugurada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[6], notadamente a robusta tábua principiológica que a influencia, concatenada com os anseios da sociedade, rendeu ensejo a um polimorfismo familiar, manifestado precipuamente no princípio da diversidade das entidades familiares, viabilizando que núcleos familiares distintos gozem do amparo legal e reconhecimento, bem assim especial proteção do Ente Estatal, como instrumento de afirmação dos feixes irradiados pela dignidade da pessoa humana. Não se pode olvidar que os princípios constitucionais concernentes a institutos típicos de direito privados passaram a nortear a própria interpretação a ser conferida à legislação infraconstitucional.

O bastião robusto da dignidade da pessoa humana passou a assumir dimensão transcendental e normativa, sendo a Carta de 1988 içada a centro de todo o sistema jurídico, irradiando, por conseguinte, seus múltiplos valores e conferindo-lhe unicidade. No mais, cuida pontuar que o direito é fato, norma e valor, motivo pelo qual a modificação maciça do fato deve, imperiosamente, conduzir uma releitura do fenômeno jurídico, iluminado pelos novos valores hasteados. Destarte, a família é um fenômeno fundamentalmente natural-sociológico, cuja gênese é antecedente a do próprio ente Estatal e cuja salvaguarda assegurar a constituição e formação do ser humano.

2 A Presunção de Paternidade no Direito de Famílias

À sombra dos argumentos expendidos, cuida salientar que filiação consiste na relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que estabelece um liame entre uma pessoa àquelas que a geraram, ou mesmo a receberam como se a tivessem gerado, “sendo que no parentesco consanguíneo em linha reta estão estruturadas todas as regras de filiação, do pai que gerou o filho e este o seu próprio filho, neto daquele e assim por diante[7], afixando-se os vínculos em linha reta ascendente ou descendente entre genitores e prole. Tal como pontuado algures, inexiste qualquer discriminação conceitual com referência à filiação, sendo todos considerados iguais perante a lei, não mais subsistindo a odiosa distinção entre filhos legítimos ou ilegítimos, estes últimos subdivididos entre naturais e espúrios, em conformidade com a existência, ou não, de impedimento matrimonial. Os filhos espúrios, por seu turno, poderiam ser adulterinos, se algum ou ambos os genitores fossem casados, ou incestuosos, caso os pais tivessem vínculos próximos de parentesco, tal como pai e filha, o irmão e a irmã produzindo descendência. Quanto aos nomeados filhos espúrios, Maria Helena Diniz firma magistério no sentido que:

“Espúrios, os oriundos da união de homem e mulher entre os quais havia, por ocasião da concepção, impedimento matrimonial. Assim, são espúrios: a) os adulterinos, que nascem de casal impedido de casar em virtude de casamento anterior, resultando de um adultério. O filho adulterino pode resultar de duplo adultério, ou seja, de adulterinidade bilateral, se descender de homem casado e mulher casada; ou, ainda, de adulterinidade unilateral, se gerado por homem casado e mulher livre ou solteira, caso em que é adulterino a patre, ou por homem livre ou solteiro e mulher casada, sendo, então, adulterino a matre; os provenientes de genitor separado não são adulterinos, mas simplesmente naturais […]; b) os incestuosos, nascidos de homem e de mulher que, ante parentesco natural, civil ou afim, não podiam convolar núpcias à época de sua concepção. Hoje, juridicamente, só se pode falar em filiação matrimonial e não matrimonial; vedadas estão, portanto, quaisquer discriminações”[8].

Conquanto tenham desaparecido as designações acerca da legitimidade da prole, quando decorrente das chamadas justas núpcias, atualmente, à luz dos robustos influxos constitucionais, todos os filhos são iguais e naturais, ainda que o Estatuto de 2002 reporte, de maneira exclusiva, à filiação conjugal, quando, na redação do artigo 1.597[9], afixa os pressupostos de presunção conjugal de paternidade, no sentido de conferir reconhecimento à presunção de paternidade nas hipóteses expressamente consagradas nos incisos do sobredito dispositivo legal. “Ocasião, então, que nascendo um filho na constância do casamento, essa prole é presumida por lei, como fruto do matrimônio e o registro civil da criança pode ser feito por iniciativa da mãe, querendo, bastando provar seu casamento[10].

Inexiste na codificação de regência dispositivo legal que permite a presunção de paternidade dos filhos, em sede de união estável, apesar de ser constitucionalmente acampada como entidade familiar. “Diante da situação gerada pela exclusão da incidência da presunção pater is est na união estável, concluímos que, apesar da regra expressa na Constituição Federal de proibição de todo e qualquer tratamento discriminatório entre os filhos[11], subsiste uma distinção teórica e prática na legislação civil. Com efeito, ao aplicar a presunção de paternidade tão apenas no casamento, a Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[12], que institui o Código Civil, estatuiu diferentes categorias de filhos, quais sejam: os filhos de pessoas casadas, que gozam de presunção e podem, automaticamente, reclamar os seus direitos decorrentes do parentesco paterno, e os filhos de mulheres não casadas, que, não dispondo de presunção, precisam de reconhecimento pelos seus pais e, não ocorrendo de forma espontânea, precisam investigar a paternidade, aguardar a prolação da decisão judicial para, somente então, vindicar os direitos respectivos. Apenas com o escopo de ilustrar a situação vertida nos autos, é possível trazer à colação o paradigmático posicionamento explicitado pelo Ministro Athos Gusmão Carneiro, ao relatoriar o Recurso Especial Nº. 23/PR, quando explicitou que:

“Além desta ponderável linha de argumentação, outra já agora se poderá opor relativamente ao tema filiação: a que resulta da equiparação, que a nova ordem constitucional fez, entre todos os filhos, os quais, “havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” – Constituição Federal, art. 227, §6º. Numerosos dispositivos das leis civis, alusivo ao Direito de Família, terão agora necessariamente de ser repensados ou interpretados sob esta nova visão, pois ampliados aos filhos nascidos fora do casamento civil aqueles direitos ou posições antes reservados àqueles nascidos de justas núpcias. […] Incontestada a vida “more uxório”, sob o pálio do casamento eclesiástico, induvidosa a “união estável” que a vigente Constituição protege e define como entidade familiar, tenho em que presumem-se (sic) filhos do casal os nascidos durante a aludida união estável, aplicando-se-lhes a antiga parêmia do pater est […] Negar esta presunção aos filhos nascidos de “união estável”, sob o pálio de casamento religioso, com vivência como marido e mulher, será manter funda discriminação, que a Constituição não quer e proíbe, entre filhos nascidos da relação de casamento civil, e filhos nascidos da união estável que a vigente Lei Maior igualmente tutela”[13].

Salta aos olhos, o flagrante tratamento discriminatório entre os filhos dispensado pela legislação infraconstitucional, aviltando a filosofia isonômica constitucional, sendo, em decorrência disso, reclamada uma interpretação concatenada com os ditames constitucionais, estendendo-se, dessa forma, os efeitos práticos da presunção também à união estável. A mesma situação ocorre em referência aos filhos gerados da filiação entre pessoas solteiras e divorciadas, ou das pessoas formalmente separadas, ou cujos casamentos foram julgados nulos ou, ainda, foram anulados, tal como as pessoas viúvas há pelo menos trezentos dias subsequentes à dissolução de sua sociedade conjugal.

3 A Filiação Socioafetiva: A Complexidade dos Arranjos Familiares Contemporâneos como elementos de influência do estabelecimento dos Vínculos de Filiação

Em sede de comentários introdutórios, cuida destacar que a filiação socioafetiva não esta lastreada no nascimento, enquanto fato biológico, mas sim decorre de ato de vontade, construída e reconstruída, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em destaque, concomitantemente, a verdade biológica e as presunções jurídicas. “Sócio-afetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas pessoas, de fato, são pai e filho[14]. Desta sorte, o critério socioafetivo de determinação do estado de filho apresenta-se como um instrumento que aquilata o império da genética, conferindo concreção a um rompimento dos liames biológicos que emolduram a filiação, possibilitando, via de consequência, que o vínculo paterno-filial não esteja estanque à transmissão de genes. Trata-se, com efeito, da possibilidade de cisão entre o genitor e o pai. Aliás, a valoração da socioafetividade, em sede de liames familiares, já foi consagrada pelo entendimento jurisprudencial, consoante se extrai do aresto paradigmático coligido:

“Ementa: Direito de família. Recurso especial. Ação investigatória de paternidade e maternidade ajuizada pela filha. Ocorrência da chamada "adoção à brasileira". Rompimento dos vínculos civis decorrentes da filiação biológica. Não ocorrência. Paternidade e maternidade reconhecidos. 1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada "adoção à brasileira". 2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho – o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo – quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de "erro ou falsidade" (art. 1. 604 do CC/02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de "adoção à brasileira", significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei. 3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada "adoção à brasileira", independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada "adoção à brasileira". 4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que figurem os réus como pais da requerente.” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1.167.993/RS/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 18.12.2012/ Publicado no DJe em 15.03.2013).

À sombra dos comentários expendidos até o momento, notadamente a proeminência contida no corolário da afetividade, é possível destacar que o preceito ora mencionado representa vetor de interpretação, sendo considerado como verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o Ordenamento Pátrio vigorante, traduzindo, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a ordem republicana e democrática, salvaguardada pelo sistema de direito constitucional positivo. “A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco, variando tão somente na sua intensidade e nas especificidades do caso concreto[15]. Com efeito, os vínculos sanguíneos não têm o condão de se sobrepor aos laços afetivos nutridos, podendo, inclusive, ser afirmada a prevalência desses em relação àqueles[16]. Ora, não se pode olvidar que, corriqueiramente, se vislumbra a concreção da filiação socioafetiva enquanto processo contínuo e diário, no qual a convivência e a responsabilidade são responsáveis por nutrir e desenvolver laços que superam o biológico, estando pautados em uma identificação afetiva. “A filiação sócio-afetiva é aquela em que se desenvolvem durante o tempo do convívio, laços de afeição e identidade pessoal, familiares e morais[17]. A partir daí, o afeto passou a merecer a tutela jurídica tanto nas relações interpessoais como também nos vínculos de filiação. A partir da Constituição de 1988, linhas fundamentais foram regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e projetaram-se no Código Civil de 2002, dando prevalência à paternidade afetiva e aos interesses primordiais da criança.

Esta paternidade é aquela que se sobrepõe aos laços sanguíneos decorrentes das alterações familiares da atualidade: desconstituição das famílias, pai que não assume a paternidade, adoção, entre outros. Na verdade, é aquela em que o pai não biológico passa a tratar a criança, no âmbito de uma família, como filha, criando-a e sendo responsável pela mesma. O afeto, enquanto constitutivo de dogma, se revela de maciça importância, sendo, inclusive, um dos baldrames estruturantes dos argumentos que inspiraram o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal, explicitando a valoração dos vínculos pautados no mútuo respeito, companheirismo e busca pela felicidade. No mais, com bastante proeminência, Daniel Sarmento, ao lecionar acerca do tema em debate, saliento, oportunamente, que:

“Enfim, se a nota essencial das entidades familiares no novo paradigma introduzido pela Constituição de 88 é a valorização do afeto, não há razão alguma para exclusão das parcerias homossexuais, que podem caracterizar-se pela mesma comunhão e profundidade de sentimentos presentes no casamento ou na união estável entre pessoas de sexos opostos, não existindo, portanto, qualquer justificativa legítima para a discriminação praticada contra os homossexuais”[18].

Em que pese o substancial destaque da afetividade, enquanto elemento estruturação de filiações, cuida salientar que aquela não tem o condão de suplantar, cegamente, o critério biológico. Com efeito, tão somente no caso concreto, consideradas as mais diversas e complexas circunstâncias, tal como os elementos probatórios que instruem o apostilado processual, para que seja possível definir um determinado critério para estabelecer o vínculo paterno-filial. “O acolhimento de uma pessoa como filho, mesmo sem a presença do elemento biológico, não é recente na história do Direito, apenas passou por um tempo oculto pela força da presunção decorrente do casamento[19]. Ao lado disso, quadra salientar que a filiação socioafetiva decorre da convivência cotidiana, de uma edificação diária, não encontrando explicação nos laços genéticos, mas sim no tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam, de maneira recíproca, o papel de pai e filho. Não há que se falar, contudo, que a filiação socioafetiva decorre de um único ato; ao reverso, imprescindível se faz um conjunto de atos de afeição e solidariedade, que, com clareza solar, tornam explicitados a existência de uma relação entre pai/mãe e filho.

Ora, não se trata de qualquer dedicação afetiva que tem o condão de construir um liame paterno-filial, promovendo, por consequência, a alteração do estado filiatório do indivíduo. Nesta senda, é preciso que o afeto existente na relação seja capaz de sobrepujar os vínculos biológicos, em razão da sua robustez, sendo elemento decisivo na construção intelectual do indivíduo. É o afeto substancializado, rotineiramente, por dividir diálogos e projetos de vida, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações, orientar os caminhos a ser seguido, ensinar e aprender, reciprocamente. Há, neste aspecto, uma compreensão ética da filiação no critério socioafetivo, concedendo prestígio ao comportamento das partes envolvidas ao longo de defluxo do lapso temporal. Nas situações em que se verifica no caso de incidência do critério socioeducativo, a filiação está assentada no serviço e no amor dispensado e não na procriação. Com maestria, Rolf Madaleno sustenta que:

“Maior prova da importância do afeto nas relações humanas está na igualdade da filiação (art. 1.596, CC), na maternidade e paternidade socioafetivas e nos vínculos de adoção, como consagra esse valor supremo ao admitir outra origem de filiação distinta da consanguínea (art, 1.593, CC), ou ainda através da inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V, CC); na comunhão plena de vida, só viável enquanto presente o afeto, ao lado da solidariedade, valores fundantes cuja soma consolida a unidade familiar, base da sociedade a merecer prioritária proteção constitucional”[20].

Por óbvio, o laço socioafetivo reclama de comprovação da convivência respeitosa, pautada na publicidade e alicerçada firmemente. Entrementes, não é preciso que o afeto esteja presente no instante em que é discutida a filiação em juízo, sendo comum, quando a demanda alcança as vias ordinárias judiciais, o afeto ter cessado por diferentes motivos. Importante faz-se provar a existência do afeto durante a convivência e que aquele era o liame que entrelaçou os envolvidos durante suas existências, sendo possível sublinhar que a personalidade do filho foi constituída sobre o vínculo afetivo, ainda que, naquele exato momento, não mais exista. O exemplo mais corriqueiro é a “adoção à brasileira”, na qual o indivíduo registra como seu filho um estranho e, depois de anos de uma relação pautada no afeto e de uma vivência como pai e filho, busca negar a relação filiatória por algum motivo. Rememorar se faz imperioso que, mesmo cessado o afeto em determinado momento, a filiação, in casu, se estabeleceu pelo critério afetivo, o qual deve ser reconhecido pelo Poder Judiciário, nos casos concretos.

Destacam Farias e Rosenvald que “adquire o critério sócio-afetivo singular importância para a determinação filiatória por implicar o reconhecimento da insuficiência do critério biológico[21]. Nesta senda, a filiação, a depender de cada situação concreta, atento às diferentes circunstâncias da vida humana, é possível apresentar diferentes feições, ora alicerçada, essencialmente, na genética e noutras situações, sedimentada no afeto, daquele que assumiu função paterna. É possível, em algumas hipóteses, verificar a presença de afeto, como elemento delineador do estado de filiação, a saber: (i) na adoção obtida de maneira judicial; (ii) no fenômeno de acolhimento de um “filho de criação”, quando explicitada a presença da posse do estado de filho; (iii) na “adoção à brasileira”, consistente no reconhecimento voluntário de seu um filho que sabe não ser; e (iv) no reconhecimento voluntário ou judicial da filiação de um filho de outra pessoa[22]. Remansoso é o entendimento jurisprudencial que consagra a filiação afetiva, consoante se inferem dos arestos:

“Ementa: Direito de Família. Ação Negatória de Paternidade. Exame de DNA negativo. Reconhecimento de paternidade socioafetiva. Improcedência do pedido. […] 2. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaração realizada pelo autor por ocasião do registro foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. […].” (Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1.059.214/RS/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 16.02.2012/ Publicado no DJe em 12.03.2012).

“Ementa: Direito Civil e da Criança. Negatória de paternidade socioafetiva voluntariamente reconhecida proposta pelos filhos do primeiro casamento. Falecimento do pai antes da citação. Fato superveniente. Morte da criança. 1. A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança. […] 3. Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 450.566/RS/ Relatora: Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 03.05.2011/ Publicado no DJe em 11.05.2011).

Mencionar faz-se imperioso que o critério socioafetivo, tal como os demais, pode ser empregado em todas as ações que versem acerca da filiação, desde a ação investigatória de parentalidade, aforada pelo filho para o reconhecimento de seu pai ou mãe, até a ação negatória de filiação, ajuizada pelo pai/mãe ou pelo filho para negas a existência do vínculo paterno filial, caminhando pela ação de impugnação de filiação, promovida pelo filho, pelo pai/mãe ou mesmo pelo terceiro interessado para demonstrar a inexistência de uma relação paterno-filial já reconhecida. Em qualquer demanda, contendo no seu bojo a discussão acerca do estado de filho, é possível alegar e discutir a tese da afetividade, com o escopo de determinar se é, ou não, o critério caracterizador daquela situação concreta. “De qualquer sorte, releva a lembrança de que a afetividade somente pode ser invocada para determinar o estado de filiação, jamais para negá-lo. Isto é, não pode o juiz acolher a tese de desafetividade, de modo a negar um vínculo[23]. Visando negar o vínculo, deverá o indivíduo invocar os demais critérios, destoantes do afetivo, em razão dos argumentos expostos.

Registrar faz-se carecido de que, uma vez fixada a filiação, com supedâneo no critério socioafetivo, quando a afetividade foi a marca caracterizadora da relação entre as pessoas envolvidas, afasta-se, em definitivo, o vínculo biológico, não sendo possível, em razão disso, vindicar verba alimentar ou participar da herança do genitor. Com destaque, essa é a única solução, consolidando, inclusive, o fenômeno de despatrimonialização do Direito das Famílias. Ora, não faz sentido que se determine a paternidade ou maternidade com arrimo em interesses puramente econômicos, devendo ressaltar e ser prestigiado o indivíduo e, por consequência, a proteção da personalidade. Nesta senda, são rompidos os vínculos com o biológico, que atua, simplesmente, como genitor, não podendo ser compelido a prestar alimentos e não transmitindo herança para o filho que estabeleceu uma filiação socioafetiva com outrem.

4 O Princípio da Afetividade enquanto Axioma de Validação da Filiação Socioafetiva

Ao se analisar as relações compreendidas pelo Direito de Família, denota-se que o afeto é o axioma de sustentação dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, a fim de atribuir sentido ao corolário da dignidade da pessoa humana. Consoante lecionam Tartuce e Simão, “o afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana[24]. Neste aspecto, é possível salientar que o corolário da afetividade, enquanto preceito implicitamente alocado no superprincípio da dignidade da pessoa humana, apresenta-se como proeminente vetor de inspiração das relações familiares.

Após o advento da Constituição Federal de 1988, surgiu um novo paradigma para as entidades familiares, não existindo mais um conceito fechado de família, mas, sim, um conceito eudemonista socioafetivo, moldado pela afetividade e pelo projeto de felicidade de cada indivíduo. Assim, a nova roupagem assumida pela família liberta-se das amarras biológicas, transpondo-se para as relações de afeto, de amor e de companheirismo. Vale dizer, em razão da fluidez e complexidade dos contemporâneos arranjos familiares, é plenamente possível destacar que os vínculos, notadamente a filiação, não decorrem tão somente de uma questão biológica; ao reverso, o afeto se apresenta como baldrame impregnado de substância, notadamente quando é responsável por estabelecer os vínculos entre os integrantes da entidade familiar.

Cuida destacar que o afeto não decorre tão somente da biologia, mas sim dos liames de sentimentos e responsabilidade que decorrem da convivência. O contemporâneo Direito das Famílias, superado o aspecto patriarcal-patrimonialista que vigorava durante a regência do Estatuto de 1916, valora o cânone em comento como bastião sustentador das relações, conferindo a proeminência à complexidade dos arranjos familiares. “Em que pese o distanciamento entre a verdade real e a biológica, o acolhimento do pleito anulatório não se justifica quando o ato jurídico de reconhecimento de filho não padece de vício e quando ficou claro que se estabeleceu forte liame socioafetivo[25]. O novo ordenamento jurídico estabeleceu como fundamental o direito à convivência familiar. Faz-se necessário reconhecer que a Constituição Federal legitimou o afeto, emprestando-lhe efeitos jurídicos.

5 O Reconhecimento da Multiparentalidade pelo Ordenamento Jurídico Nacional e a possibilidade de Múltipla Filiação Registral

Ora, em razão da afetividade, no ordenamento jurídico nacional, ter ganhado contornos de fundamentalidade e imprescindibilidade nas relações familiares, há que se reconhecer que a sua ausência tem ensejado como mecanismo autorizador para a destituição da autoridade parental e colocação da criança ou do adolescente para adoção. Ora, é plenamente denotável que o Direito imprimiu grande valor ao afeto, sendo este capaz não apenas de formar novas entidades familiares, refletindo, via de consequência, a dinamicidade peculiar da contemporaneidade, mas também de mitigar vínculos biológicos em face das relações socioafetiva firmadas. Tal como pontuado algures, uma vez reconhecida a filiação socioafetiva, mesmo que de forma voluntária, ela se torna irrevogável, em decorrência dos influxos advindos dos princípios do melhor interesses da criança e do adolescente, da afetividade e, principalmente, da dignidade da pessoa humana.

Doutro ângulo, nos casos em que nunca existiu uma filiação socioafetiva ou, ainda, esta tenha desaparecido, dá-se preferência ao critério biológico para fins de reconhecimento da paternidade, porquanto não se deve impor o dever de carinho, cuidado e afeto àquele que, não sendo o pai biológico, também não quer ser pai socioafetivo. Diante de situações revestidas de tamanha complexidade, maiormente quando há conflito entre as paternidades socioafetiva e biológica, uma alternativa interessante que tem ganhado relevo jurisprudencial  é a inscrição no Registro Civil de ambos os pais (biológico e socioafetivo) da criança ou do adolescente, quando restar verificado o convívio com os dois, ensejando, via de consequência, a figura da multiparentalidade. Ora, cuida explicitar que a multiparentalidade não encontra restrição apenas na figura paterna, podendo ser plenamente observada na maternidade biológica e na maternidade socioafetiva. Dito isso, verifica-se que a aplicação dos princípios da legalidade, tipicidade e especialidade, influxos norteadores dos registros públicos, regidos pela legislação originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se compatibiliza com os princípios Constitucionais vigentes, notadamente a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, inciso IV, da Constituição da República Federativa do Brasil), bem como a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo 227, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasi), “objetivos e princípios fundamentais” esses, decorrentes do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.  O magistério robusto apregoa que:

“No caso da dupla maternidade, em decorrência da fertilização medicamente assistida, o julgador entende que o que queriam as requerentes é possível pelas razões supra, e seria a forma de o Estado-Juiz contribuir para a felicidade delas e da criança. Felicidade que será tanto mais ampla com o reconhecimento de que tanto uma quanto a outra requerente, além de serem mães de fato da criança para cuja existência contribuíram, são também mães de direito. O juiz do nosso século não é um mero leitor da lei e não deve temer novos direitos. Haverá sempre novos direitos e também haverá novos séculos. Deve estar atento à realidade social e, cotejando os fatos e ordenamento jurídico, concluir pela solução mais adequada”[26].

Também há que se considerar, a partir da interpretação sistemática conjunta com demais princípios infraconstitucionais, tal como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação dos vínculos familiares, consequentemente, também dos “vínculos de filiação”. Ora, cuida repisar que, nas relações familiares contemporâneas, o aspecto patrimonial não mais vigora, florescendo, em seu lugar, a afetividade como tônica delineadora dos vínculos. Neste sentido, é possível colacionar remansoso entendimento pretoriano que orienta na seguinte senda:

“Ementa: Apelação Cível. Ação de adoção. Padrasto e enteado. Pedido de reconhecimento da adoção com manutenção do pai biológico. Multiparentalidade. Observada a hipótese da existência de dois vínculos paternos, caracterizada está a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. Deram provimento ao apelo”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Oitava Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70065388175/ Relator: Desembargador Alzir Felippe Schmitz/ Julgado em 17.09.2015)

“Ementa: Apelação Cível. Declaratória de Multiparentalidade. Registro civil. Dupla maternidade e paternidade. Impossibilidade jurídica do pedido. Inocorrência. Julgamento desde logo do mérito. Aplicação artigo 515, §3º do CPC. A ausência de lei para regência de novos – e cada vez mais ocorrentes – fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador necessário de impossibilidade jurídica do pedido. É que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Caso em que se desconstitui a sentença que indeferiu a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido e desde logo se enfrenta o mérito, fulcro no artigo 515, § 3º do CPC. Dito isso, a aplicação dos princípios da "legalidade", "tipicidade" e "especialidade", que norteiam os "Registros Públicos", com legislação originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais vigentes, notadamente a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da CF/88), bem como a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo 227, § 6º, CF), "objetivos e princípios fundamentais" decorrentes do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, há que se julgar a pretensão da parte, a partir da interpretação sistemática conjunta com demais princípios infraconstitucionais, tal como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. Caso em que no plano fático, é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da "multiparentalidade", com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. Deram provimento.”  (Segredo de Justiça) (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Oitava Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70062692876/ Relator: Desembargador José Pedro de Oliveira Eckert/ Julgado em 12.02.2015).

“Ementa: Maternidade Socioafetiva. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade  Recurso provido.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Primeira Câmara de Direito Privado/ Apelação Cível 0006422-26.2011.8.26.0286/ Relator: Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior/ Julgado em 14.08.2012/ Publicado no DJe em 14.08.2012).

Com efeito, ao analisar a situação em comento, quadra sublinhar que a dupla filiação, externada pela constatação no registro civil de ambos os pais – afetivo e biológico -, é responsável por fixar um novo paradigma no Direito, conferindo às relações familiares contornos assentados no afeto, zelo e dever de cuidado daquele que escolheu ser pai, mantendo a concomitância com aquele que os vínculos biológicos estabelece como pai genético. Assim, o registro não pode afigurar como um óbice para a sua efetivação, considerando que sua função é refletir a verdade real, logo, se a verdade real é concretizada no fato de várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve, imperiosamente, refletir esta realidade. Mais do que isso, não reconhecer as paternidades biológica e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de todos os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na proporção em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, devendo-se, portanto, manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, porquanto ambas integram a trajetória da vida humana.

Nesta linha, com o reconhecimento da multiparentalidade no registro de nascimento, os filhos passarão a ter, com efeito, todos os direitos advindos de uma relação parental. No que toca aos direitos não-patrimoniais – nome, estado, parentesco -, estes já são reconhecidos e garantidos pelo ordenamento jurídico. No que atina aos direitos patrimoniais, cuida fazer alguns esclarecimentos, sobretudo no que atina a alimentos e herança. Na primeira hipótese, partindo-se da premissa que a verba alimentar compreende valores, bens ou serviços destinados às necessidades existenciais da pessoa, em decorrência da relação de parentesco, quando ela própria não pode prover, com seu trabalho ou rendimentos, a própria mantença. Com realce, inexiste justificativa para tratamento diferenciado, devendo, portanto, ser aplicadas as disposições previstas a respeito de a verba alimentar, estendendo-se a ambos os pais, afetivo e biológico. Em relação ao direito sucessório, inexiste sustentação jurídica para tratamento diverso, devendo, assim, admitir a possibilidade de multi-hereditariedade, estabelecendo-se tantas linhas sucessórias quanto fossem os pais, devendo, porém, ter a ressalva de não se estabelecer a multiparentalidade com vistas exclusivas para atender a interesses patrimoniais.

 

Referências:
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.
__________. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 jul. 2016.
__________. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 jul. 2016.
__________. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 02 jul. 2016.
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Paternidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos. São Paulo: Editora Atlas, 2014.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. v. 05. 27 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
MINAS GERAIS (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.
RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.
SARMENTO, Daniel. Casamento e União entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais in: Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. v. 5. 7 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Método, 2012.
 
Notas:
[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 41.

[3] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 67.

[4] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. v. 5. 7 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Método, 2012, p. 13.

[5] MINAS GERAIS (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão proferido em Agravo de Instrumento N° 1.0433.11.022098-8/001. Agravo de instrumento. Tutela antecipada. Licença maternidade. Servidora municipal. Constituição da República. Prorrogação do benefício. Possibilidade. Cediço é que a licença maternidade conferida às mães adotantes encontra-se embasada no princípio da isonomia insculpido na Carta Magna, que garantiu tratamento igualitário aos filhos naturais e adotivos, consoante disposto no art. 227, da CR/88. A norma constitucional que instituiu o benefício da licença maternidade (art. 7º, inciso XVIII, da CF/88) não se limita apenas à proteção da mãe (biológica ou adotante), mas, sobretudo à proteção do filho recém-nascido. Nos termos dos arts. 41 do ECA, não há que se falar entre diferença de direitos para filhos adotados ou não. Recurso ao qual se nega provimento. Órgão Julgador: Terceira Câmara Cível. Relator: Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula. Julgado em 22.03.2012. Publicado no DJe em 30.03.2012. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[6] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[7] MADALENO, 2008, p. 381.

[8] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. v. 05. 27 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 515-516.

[9] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 jul. 2016: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”

[10] MADALENO, 2008, p. 382.

[11] FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 497.

[12] BRASIL. Lei Nº. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 02 jul. 2016.

[13] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão proferido em Recurso Especial Nº. 23/PR. Recursos Especiais. Ação de anulação de atos jurídicos translativos de propriedade em condomínio. Legitimidade “ad causam” ativa de filhos não reconhecidos de condômino já falecido. A regra “pater est…” aplica-se também aos filhos nascidos de companheira, casada eclesiasticamente com o extinto, suposta união estável e prolongada. Defesa oposta pelo réu adquirente, de aquisição por usucapião ordinário. O usucapião é forma originária de adquirir. O usucapiente não adquire de outrem; simplesmente, adquire. Assim, são irrelevantes vícios de vontade ou defeitos inerentes a eventuais atos causais de transferência da posse. No usucapião ordinário, bastam o tempo e a boa-fé, aliados ao justo título, hábil em tese à transferência do domínio. Bem divisível. Os prazos de suspensão do tempo para usucapir (Código Civil, art. 553), que beneficiam os autores menores impúberes, aproveitam aos demais herdeiros do falecido condômino, mas não beneficiam outros condôminos: regra da “personalidade dos efeitos”. Artigo 169, I e 171 do Código Civil. Tese do interesse da anulação dos atos jurídicos, face ao usucapião obtido frente àqueles antigos condôminos não favorecidos pela suspensão do prazo de prescrição aquisitiva. Nulidades de ordem processual afastadas. Recurso especial dos autores não conhecido, e recurso especial dos recorrentes provido em parte. Órgão Julgador: Quarta Turma. Relator: Ministro Athos Gusmão Carneiro. Julgado em 19.09.1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[14] FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 517.

[15] MADALENO, 2008, p. 66.

[16] Neste sentido: MINAS GERAIS (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão proferido em Apelação Cível N° 1.0024.11.026717-6/001. Apelação Cível – Direito de Família – Ação Declaratória – Paternidade Sócio-Afetiva – Situação Fática – CR/88 – Requisitos – Relação paterno filial não demonstrada. – O elemento sócio-afetivo foi elevado a valor jurídico pela Constituição da República de 1988, com o intuito de possibilitar o reconhecimento pela ordem jurídica de situações fáticas que antes ficavam desprotegidas, estando tutelado, inclusive, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em seus artigos 28 a 52, ao tratar das famílias substitutas. – Atualmente, a paternidade afetiva vem assumindo grande importância, já que a posse do estado de filho é que gera os efeitos jurídicos capazes de definir a filiação. É dizer, a filiação não decorre apenas de vínculos sanguíneos, mas, sobretudo, das relações afetivas. – Não demonstrado nos autos os requisitos necessários à configuração da paternidade sócio-afetiva não há como declará-la. Órgão Julgador: Quarta Câmara Cível. Relator: Desembargador Dárcio Lopardi Mendes. Julgado em 06.09.2012. Publicado no DJe em 12.09.2012. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[17] MINAS GERAIS (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão proferido em Apelação Cível 1.0024.09.643339-6/001. Ação anulatória de paternidade cumulada com exoneração de alimentos – Anseio do pai registral em ver revista a qualificação paterna no registro da criança – Estudo Social – Demonstração de existência de relação paterno-filial entre o pai sócio-afetivo e a criança – Prevalência dos interesses da menor – Provimento negado. A filiação sócio-afetiva é aquela em que se desenvolvem durante o tempo do convívio, laços de afeição e identidade pessoal, familiares e morais. À luz do princípio da dignidade humana, bem como do direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar, traduz-se ser mais relevante a idéia de paternidade responsável, afetiva e solidária, do que a ligação exclusivamente sanguínea. O interesse da criança deve estar em primeiro lugar, uma vez que é inegável que em casos de convivência habitual e duradoura com pessoas estranhas ao parentesco, o menor adquire vínculos de confiança, amor e afetividade em relação a estas pessoas. Esse vínculo não pode ser destruído, mesmo que com base na ausência laços biológicos, se afronta os interesses da criança, colocando-a em situação de instabilidade e insegurança jurídica e emocional. Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível. Relatora: Desembargadora Vanessa Verdolim Hudson Andrade. Julgado em 17.10.2012. Publicado no DJe em 19.10.2012. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016.

[18] SARMENTO, Daniel. Casamento e União entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais in: Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 643.

[19] FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 518.

[20] MADALENO, 2008, p. 67.

[21] FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 519.

[22] Neste sentido: BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016: “Enunciado Nº 103 Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócio-afetiva, fundada na posse do estado de filho”.

[23] FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 520.

[24] TARTUCE; SIMÃO, 2012, p. 22.

[25] RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão proferido em Apelação Cível N° 70052673894. Negatória de paternidade. Registro civil. Inexistência de vínculo biológico. Liame socioafetivo. 1. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB). 2. A anulação do registro civil, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro, dolo, simulação ou fraude). 3. Não pode alegar que foi induzido a erro o companheiro da genitora quando afirma, na exordial, que, durante o tempo de relacionamento, ocorreram diversas brigas entre o casal e a genitora da menor manteve, de forma concomitante, relacionamento amoroso com outros homens. 4. Em que pese o distanciamento entre a verdade real e a biológica, o acolhimento do pleito anulatório não se justifica quando o ato jurídico de reconhecimento de filho não padece de vício e quando ficou claro que se estabeleceu forte liame socioafetivo. Recurso desprovido. Órgão Julgador: Sétima Câmara Cível. Relator: Ministro Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 30.01.2013. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 02 jul. 2016

[26] CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Paternidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos. São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 156.


Informações Sobre o Autor

Tauã Lima Verdan Rangel

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES


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