Resumo: O presente artigo tem como objetivo a análise do reconhecimento da união estável no direito brasileiro e a limitação da liberdade de escolha do indivíduo, buscando-se, desta forma, demonstrar que ao se reconhecer a união estável, impõe-se aos conviventes regime semelhante ao de um casamento, sem que os mesmos tenham declarado a vontade de casar. Para tanto, primeiramente é feito um estudo sobre a união estável no Brasil, seu histórico, conceito e características. Após tal análise, busca-se demonstrar a importância da autonomia privada para o direito de família, sendo abordada a legislação e a doutrina acerca do tema. Passado este ponto, é feito um paralelo entre o reconhecimento da união estável e a autonomia privada, buscando, assim, demonstrar que ao ser reconhecida a união não matrimonial, estar-se-á mitigando o direito a liberdade de escolha dos conviventes, ou pelo menos de um deles, tendo em vista que optaram por não casar, mas terão um regime de bens semelhante ao de um casamento.
Palavras-chave: Reconhecimento. União Estável. Autonomia Privada.
Abstract: This paper aims to analyze the recognition of stable union under Brazilian Law and the limitation of freedom of choice of the individual, seeking, in this way, demonstrate that by recognizing the stable union, is imposed on cohabiting a scheme similar to a marriage without statement of intent of marry. To do so, first is made a study of the stable union in Brazil, its history, concept and characteristics. After this analysis, it seeks to demonstrate the importance of private autonomy to the family law, being addressed the doctrine and legislation about the theme. Past this point, a comparison is made between the recognition of stable union and private autonomy, seeking, thereby, to demonstrate that to be recognized the non-marital union, will be mitigated the right of freedom of choice of the cohabitants or, at least, of one of them, considering that they choosed doesn't marry, but will have a property system similar to a marriage.
Keywords: Recognition. Stable Union. Private Autonomy.
Sumário: Introducão. 1 A união estável no direito brasileiro. 1.1 Breve histórico da união estável no Brasil. 1.2 Conceito e características da união estãvel. 2 Princípio da autonomia privada no Direito de Família. 3 A relativizacão da vontade privada no reconhecimento da união estável: a imposição legal de um casamento. Conclusão.
Introdução
O direito de família no Brasil vem passando por profundas transformações, principalmente depois da Constituição Federal de 1988. A principal mudança se encontra na extensão do conceito de família, considerando como entidade familiar não só a família composta de marido, esposa e filhos. Nos dias atuais, o conceito de entidade familiar se tornou mais amplo, albergando outros tipos de família.
Além da família tradicional, formada por cônjuges e filhos, passaram a ser reconhecidas e protegidas como entidades familiares as famílias monoparentais, as formadas por avós e netos, as formadas por uniões não matrimoniais etc. No caso específico da união estável, conforme será visto, não só foi dada proteção, como também foram estabelecidas regras similares às do casamento. E é este tipo de união o objeto do estudo aqui apresentado.
O objetivo do presente trabalho é, portanto, traçar as características da união estável e fazer uma explanação acerca da autonomia privada no direito de família para, ao final, demonstrar que o reconhecimento da união estável acaba por limitar a autonomia privada, e, por consequência, a liberdade do indivíduo, tendo em vista que os efeitos patrimoniais são semelhantes ao de um casamento, ocorre que na união estável não há manifestação de vontade.
Para alcançar o objetivo apresentado, é feito um recorte temático, desta forma, não se entrará na questão da união estável entre pessoas do mesmo sexo, tampouco na questão que envolve outros tipos de entidade familiar. Também não será objeto do presente estudo questões como a proteção ao bem de família, alimentos ou sucessões no caso da união estável, a questão a ser abordada aqui é apenas, como dito, o reconhecimento da união estável como limitadora do princípio da autonomia privada.
Desta forma, será analisado o histórico da união estável no Brasil, seu conceito e suas características, fazendo, num segundo momento, a análise da autonomia privada no direito de família para, ao final, abordar o reconhecimento da união estável e fazer um paralelo desta com a liberdade do indivíduo.
O tema aqui abordado é de grande importância, pois quando se fala em união estável, pouco se fala na questão da opção de não casar dos conviventes, da liberdade que os mesmos têm para, caso queiram, constituir matrimônio. E, mesmo optando por não casar, correm o risco de sofrer efeitos patrimoniais, como dito, semelhantes aos do casamento, contrariando a vontade de pelo menos um deles, tendo em vista que se não houve matrimônio, um dos conviventes, ou ambos, decidiram não casar.
A relevância do tema reside na questão que existe entre a proteção à família e a insegurança do indivíduo, pois ao se estudar as questões acerca do reconhecimento da união estável, apenas é abordado o princípio de proteção à família, mas se esquece que ao se tentar proteger a família, através da interferência na liberdade do convivente que escolheu não casar, realiza-se um "casamento" entre pessoas que não manifestaram vontade de casar.
A pesquisa utilizada no estudo em tela será doutrinária, serão analisados os posicionamentos majoritários, bem como a legislação pátria acerca do tema, sendo buscada, desta forma, uma visão sistêmica amparada na doutrina, na Constituição e na legislação infraconstitucional. Tal pesquisa será iniciada pelo histórico da união estável no direito brasileiro, para que sejam entendidos os motivos que levaram ao legislador criar uma série de normas referentes a este tipo de união. Será feito também um estudo comparativo entre a união estável e outros institutos do direito de família, como o casamento, o regime de bens, a separação e o divórcio.
Este estudo comparativo será feito com o fim de tentar demonstrar a diferença básica entre a união estável e os outros institutos previstos na legislação de direito de família, que é basicamente a manifestação expressa da vontade do indivíduo. Assim, através da análise doutrinária, da pesquisa da legislação e do estudo comparativo com outros institutos do direito de família, o resultado esperado é demonstrar que o reconhecimento união estável e a imposição do regime de bens em tais casos é uma forma de interferência do Estado na autonomia privada do indivíduo.
1 A união estável no direito brasileiro
Para iniciar o estudo da união estável, faz-se necessária uma breve explanação acerca do histórico e das características de tal instituto para que seja compreendido de onde surgiu e o que é este tipo de “união de fato”. Desta forma, o presente tópico aborda a origem da união estável no direito brasileiro, seu conceito e suas características.
1.1 Breve histórico da união estável no Brasil
A união estável surgiu após um longo período de desinstitucionalização do modelo familiar, antes fundado no casamento. A família antiga era formada através de um casamento e composta de pai, mãe e filhos, onde o pai detinha o poder e tal família tinha certos dogmas como a questão religiosa e o fato de ser indissociável (SPENGLER, 2013, p. 275).
Ocorre que com o passar do tempo, tais dogmas foram perdendo importância e o caráter institucional da família também foi desaparecendo. Fabiana Marion Spengler (2013, p.276-277) ensina que a família passou a não mais ser apenas aquela nascida do matrimônio, onde cada membro da família tinha seu papel bem delineado, com os direitos dos filhos legítimos assegurados para se tornar uma
“rede de relações afetivas, sentimentais e de solidariedade, na qual se aposta na construção de laços de afeto baseados nas identidades pessoais de cada um de seus componentes e na interação entre seus membros. Nesse contexto, teríamos um mundo no qual as relações familiares seriam escolhidas, o casamento seria uma opção de constituição de entidade familiar ladeado pela união estável e pela monoparentalidade. Esse novo modelo também propõe o rompimento da sociedade conjugal quando o afeto, o companheirismo e os objetivos comuns já não existissem, sem a hipocrisia da manutenção de relações estáveis ou matrimoniais por motivos de ordem social ou financeira.”
Assim, com a evolução do conceito de família, houve a necessidade do reconhecimento de outros tipos de entidade familiar, como é o caso da união estável, que ocorre entre pessoas que querem viver juntas e constituir família, mas optam por não casar. Frise-se que trata-se de uma opção, ou seja, normalmente as pessoas passam a viver juntas sem o casamento por opção, ou quando não podem casar por algum impedimento legal.[1]
Ocorre que antes da Constituição Federal de 1988, as uniões estáveis não tinham um reconhecimento jurídico pacífico, pois ainda havia muito preconceito com estas formas de união, ainda existia o pensamento de que a família deveria ser composta por marido, mulher e filhos. Apenas quando a Constituição foi promulgada é que o cenário mudou, sendo ampliado o conceito de família, pois foi introduzido o uso do termo “entidade familiar”, presente no artigo 226, §§3º e 4º [2], e com isso passou-se a haver previsão expressa de proteção à união estável.
Importante salientar que antes da Constituição de 1988, já existia a súmula 380 do Supremo Tribunal Federal[3] que dispõe sobre a existência de sociedade de fato entre concubinos, prevendo inclusive, caso comprovada a sociedade, a partilha do patrimônio comum no caso de dissolução. Ocorre que, mesmo com a súmula e o advento da Constituição, os processos de reconhecimento de união estável continuaram a tramitar em varas cíveis, pois tais uniões ainda eram consideradas sociedades de fato.
Apenas com o advento da Lei nº 8.971/94[4] foi concretizada a previsão constitucional supracitada sendo a união estável equiparada ao casamento. Tal lei teve sua constitucionalidade questionada sob a alegação de que conferiu mais direitos ao companheiro sobrevivente do que ao cônjuge sobrevivente e também incentivou a união estável, quando a Constituição falava apenas em facilitar sua conversão em casamento. Ocorre que tal lei foi considerada constitucional pois, de acordo com Álvaro Villaça Azevedo (2002, p. 323), a intenção principal da lei foi dar proteção à família, não importando qual seja a forma de constituição desta.
Posteriormente foi promulgada a Lei nº 9.278/96[5], esta bem mais ampla que a lei de 1994 e com o objetivo expresso de dar efetividade ao artigo 226, §3º da Constituição Federal. Luiz Edson Fachin (2003, p. 100) denomina tal lei de “Estatuto da convivência, tendo em vista que ela estabelece, dentre outras coisas, os deveres dos conviventes, tais como o respeito e a consideração mútuos e a assistência material e moral recíproca.
Além disso, foi previsto também a comunhão parcial de bens, onde todos os bens adquiridos na constância da união estável são tidos como fruto do trabalho comum dos companheiros, cabendo, no caso de dissolução da união, 50% de todos esses bens para cada companheiro.
Com o advento do Código Civil de 2002, a união estável passou a ser regulamentada e tratada em 5(cinco) dispositivos, do artigo 1.723 ao 1.727 [6]. Desta forma, a união estável, nos dias atuais, obedece as normas constitucionais e ao Código Civil, onde são apontados alguns requisitos para que seja declarada a existência de união estável. Tais requisitos serão vistos no tópico seguinte.
1.2 Conceito e características da união estável
O Código Civil e a Constituição não definem o conceito de união estável, desta forma, o conceito que será adotado no presente trabalho é o conceito de Maria Berenice Dias (2009, p. 161), segundo a doutrinadora:
“Nasce a união estável da convivência, simples fato jurídico que evolui para a constituição de ato jurídico, em face dos direitos que brotam dessa relação. O que se exige é a efetiva convivência more uxório, com características de uma união familiar, por um prazo que denote estabilidade e objetivo de manter a vida em comum entre o homem e a mulher assim compromissados”.
As características da união estável são elencadas no artigo 1.723 do Código Civil, quais sejam: convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, entre homem e mulher[7]. Quanto a convivência ser duradoura, não foi fixado um prazo mínimo na legislação, ou seja, fica ao arbítrio do juiz, de acordo com cada caso concreto posto em juízo, tendo em vista que cada relacionamento possui suas características próprias. Assim, apesar do tempo ser um importante fator para que a união estável seja constatada, ele não é absoluto, podendo a união restar configurada independente da duração, através da identificação de outros elementos (SPENGLER, 2013, p.285).
Em relação à continuidade do relacionamento, requisito ligado ao tempo, tem-se que para a configuração da união estável, há a necessidade da convivência não sofrer interrupções consideráveis, o que não significa que não pode haver desentendimento entre os conviventes, tal requisito apenas não pode sofrer interrupções que descaracterizem a solidez da união. A existência da continuidade também é um requisito que deve ser analisado em cada caso concreto, pois não existem parâmetros exatos para a sua definição.
Além da convivência ser contínua e duradoura, ela deve ser pública. Segundo Maria Berenice Dias (2009, p. 164),
‘a publicidade denota a notoriedade da relação no meio social frequentado pelos companheiros, objetivando afastar da definição de entidade familiar as relações menos compromissadas, nas quais os envolvidos não assumem perante a sociedade a condição de “como se casados fossem”.
Por fim, para um relacionamento ser configurado como união estável, deve existir a intenção de constituição de família por parte dos conviventes. Este requisito, por ser subjetivo, é de difícil comprovação e está ligada a vontade íntima do indivíduo. Não existe nenhum critério objetivo para identificar essa intenção de constituir família, não é necessária nem mesmo a coabitação. Portanto, este é mais um requisito que deve ser analisado de acordo com o caso concreto, não possuindo parâmetros exatos para a sua configuração.
Portanto, para que seja reconhecida a união estável, o fato jurídico deve ter todas estas características supramencionadas, do contrário, não se trata de união estável e, por consequência, não será considerada a entidade familiar prevista na Constituição Federal. Observe-se, porém, que todos esses requisitos são analisados caso a caso, não havendo parâmetros seguros para que se possa afirmar se determinado relacionamento é ou não uma união estável.
Frise-se que o presente trabalho não tem como objetivo esgotar o tema acerca da origem e das características da união estável, tendo sido feito apenas uma análise geral acerca de tal instituto para que seja feita uma análise entre o reconhecimento deste tipo de união e a autonomia privada, levando-se em conta que reconhecer direitos decorrentes deste tipo de fato jurídico é uma intervenção do Estado na esfera mais íntima do Direito Privado, que é o Direito de Família.
2 Princípio da autonomia privada no Direito de Família
O direito civil possui alguns princípios, dentre eles, o da autonomia privada. Desta forma, tal princípio se estende por todos os ramos do direito civil, do direito das coisas ao direito das sucessões, do direito das obrigações até o direito de família (SILVA, 2003, p. 103). O citado princípio nada mais é do que a liberdade que os indivíduos têm para definirem seus destinos com força de lei. Como consequência desta autonomia, surge a responsabilidade pelos resultados oriundos da escolha tomada.
Ana Prata (1982, p. 13), ensina que a autonomia privada “não designa toda a liberdade, nem toda a liberdade privada, nem sequer toda a liberdade jurídica privada, mas apenas um aspecto desta última: a liberdade negocial”. Tal liberdade, apesar de parecer estar ligada apenas ao direito das obrigações, tem ligação com todo o direito privado, inclusive com o direito de família.
Importante salientar que a autonomia privada e a autonomia da vontade, apesar de serem intimamente ligadas, não são a mesma coisa, e para o presente estudo, é de suma importância diferenciá-las. Enquanto a autonomia privada é, como dito, a faculdade que o sujeito tem de criar normas para si mesmo, ou seja, a liberdade do indivíduo exercer sua vontade, a autonomia da vontade se trata da, como o próprio nome diz, vontade íntima do sujeito.
Observe-se que a autonomia da vontade é um conceito mais amplo, seria uma manifestação de vontade ilimitada, enquanto a autonomia privada é uma liberdade de autorregulação que o indivíduo possui, de acordo com Adriana da Silva Maillart e Samyra Dal Farra Naspolini Sanches (2011, p. 29):
“Como se pode observar, a autonomia das partes em contratos deixa de ser uma manifestação de vontade ampla e ilimitada para ser considerada uma liberdade de autorregulação de interesses nas relações privadas como fato social. E, com o intuito de se demonstrar essa mudança significativa, adotou-se a expressão autonomia privada para determinar essa nova fase da autonomia das partes em contraposição à autonomia da vontade, designada como a face ampla e ilimitada da autonomia de antes do início do século XX”.
Vale destacar que mesmo com as limitações existentes, a autonomia privada continua sendo uma expressão da liberdade, por isso, só deve ser limitada de forma excepcional e com uma clara justificativa, tendo em vista ser um direito fundamental do cidadão. A inviolabilidade da vida privada está, inclusive, prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica)[8], a qual o Brasil aderiu.
A autonomia privada, no Brasil, além disso, está prevista na Constituição Federal[9]. Com a constitucionalização do direito civil, alguns institutos antes previstos apenas pela legislação infraconstitucional passaram a ser previstos pela constituição, dentre eles, a autonomia privada e a livre iniciativa, assim, “afastar a autonomia privada ou limitá-la a extremos, é contrário a esses critérios constitucionais, na medida em que priva o particular de se auto-regrar, tornando-o uma espécie de autômato”(SILVA, 2003, p. 105).
Como Direito Fundamental, a autonomia privada alberga a liberdade de contratar, de testar etc. Tais direitos ganham ainda mais força quando se fala em Direito de Família e Sucessões, pois são os ramos do Direito Privado mais ligados à intimidade do indivíduo, desde a escolha de casar, do regime de bens do casamento, até a liberdade de testar. Tais liberdades, por óbvio, encontram certos limites, tais como a boa-fé, o vício de consentimento etc, porém, o Estado não deve intervir, em regra, nas escolhas dos indivíduos no que tange a sua família.
No âmbito do direito de família, a supracitada Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê, em seu artigo 17.3[10], que o casamento não pode ser celebrado sem o livre consentimento dos contratantes, ou seja, isto nada mais é do que uma exteriorização do princípio da autonomia privada, desta vez apresentada de forma bem específica, ficando clara a preocupação do legislador com a vontade íntima do indivíduo. Além disso, a parte do Código Civil Brasileiro que regula o Direito de Família é todo baseado na autonomia privada.[11]
Ensina Marília Pedroso Xavier (2013, p. 193), que a celebração do casamento possui dois requisitos fundamentais destacados previamente, são eles: “a reiteração do propósito dos nubentes (‘a vontade que ambos acabais de manifestar’) e a forte presença do Estado (‘em nome da lei, vos declaro casados’)”, ocorre que o Estado não deve interferir na vontade dos nubentes, a sua presença se dá apenas para verificar se há algum impedimento e se o ato está cumprindo a legislação.
Outro exemplo que pode ser dado em relação a autonomia privada no direito de família é a escolha do regime de bens, pois a lei faculta aos cônjuges a estipulação do tipo de regime, “sendo certo que os nubentes não estão adstritos a escolher um dos regimes disciplinados pelo código, podendo modificá-los ou combiná-los, ou até mesmo criar um regime novo e peculiar que lhes seja próprio e específico”(NEVARES, 2013, p. 535).
No mesmo sentido do regime de bens e do casamento, obviamente na separação e no divórcio também está presente a autonomia da vontade do indivíduo, tendo em vista que, por uma questão de lógica, “a liberdade que existe para celebração do matrimônio também deve existir na hora de formalizar o rompimento da união” (HOLANDA, 2013, p. 245). Assim, como visto, as regras de direito de família estão intimamente ligadas com a autonomia da vontade, desde a união, passando pelo regime de bens, até a separação e o divórcio.
Desta forma, a intervenção do Estado na autonomia privada em relação ao direito de família deve se dar apenas para garantir a proteção da família, sem que seja feita interferência na liberdade do indivíduo ou que esta seja violada(COUTO, 2009, p. 16). A regra que deve ser seguida é a não interferência do Estado na liberdade negocial do cidadão, devendo este ser livre para constituir família da forma que melhor se adequar a sua necessidade.
Para finalizar o estudo da autonomia privada no direito de família, é importante trazer alguns exemplos de sua aplicação. Os principais são: o casamento, o regime de bens, a separação, o divórcio e a adoção. Todos estes institutos têm um traço em comum, a manifestação da vontade, tanto para casar e decidir o regime de bens deste casamento, quanto adotar um filho, se separar e se divorciar é necessária a manifesta aceitação. Ninguém casa por obrigação, tais atos necessitam de uma manifestação de vontade das partes, sob pena de serem anuláveis. Tal informação parece óbvia e desnecessária, porém é de grande importância para o presente estudo, pois será visto que a união estável é uma exceção à regra, nela, como será visto, há uma relativização da autonomia privada.
3 A relativização da vontade privada no reconhecimento da união estável: a imposição legal de um “casamento”
Analisados o histórico e as características da união estável, bem como a autonomia privada no direito de família, passa-se agora ao estudo do reconhecimento da união estável, pois, como se sabe, esta é uma união de fato, que, por não ter um contrato, ou uma certidão, pode ser reconhecida através de um acordo ou de um processo judicial, ocorre que, ao se reconhecer a união estável judicialmente, não se estaria impondo efeitos patrimoniais de um casamento a uma união onde, pelo menos uma das partes, escolheu não casar?
No casamento, como dito, é fundamental que haja uma declaração de vontade de ambas as partes, marido e mulher, ou seja, ambos tem que manifestar expressamente a vontade de realizar o matrimônio. A união estável é diferente, trata-se de uma família de fato, onde duas pessoas passam a viver em comum, mas optam por não casar, não importando para o presente estudo, o motivo desta opção. O grande problema ocorre quando esta união se dissolve, existe patrimônio em questão e não há acordo. Antes da previsão e proteção da união estável, não havia discussão, cada indivíduo ficava com o seu patrimônio e seguia com sua vida, e talvez por isso muitas pessoas optavam e ainda optem por não casar.
Ocorre que nos dias atuais, a união estável, apesar de não se confundir com o casamento, tem efeitos patrimoniais de um “quase casamento” (DIAS, 2009, p. 169), pois possui regras praticamente iguais. No casamento, os noivos têm a opção de escolher o regime de bens, caso silenciem, é aplicado o regime da comunhão parcial, na união estável, os conviventes têm a opção de firmar um contrato estabelecendo as regras, caso silenciem, também é aplicado o regime de comunhão parcial.
Aqui, abre-se um "parêntese" para esclarecer como funciona o regime de comunhão parcial de bens. Tal regime se caracteriza pela comunhão dos bens que forem adquiridos durante o casamento. Assim, os bens que já possuíam antes de casar, e os que vierem a possuir após o casamento como resultado de doação, sucessão ou sub-rogação dos bens que já possuíam antes do matrimônio serão particulares de cada cônjuge. O citado regime está previsto nos artigos 1.658 e 1.659 do Código Civil.[12]
Como dito, para que seja reconhecida a união estável sem que haja acordo entre as partes, é necessário recorrer ao judiciário, e tal união será reconhecida se houverem provas suficientes dos requisitos dispostos no artigo 1.723 do Código Civil, quais sejam: convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Não há um tempo certo ou qualquer critério objetivo para o reconhecimento, devem haver provas de um relacionamento firme, duradouro e com a intenção de constituição de família. Importante salientar que a sentença no processo de reconhecimento não constitui a união, ela apenas declara que a união existiu (DIAS, 2009, p. 179).
Fica claro, então, que os requisitos para a configuração de união estáveis são relativos, dependerá de cada caso, e o legislador brasileiro, ao regulamentar a união estável, fez a escolha por um modelo intervencionista, onde o Estado interfere nas relações pessoais resultantes de uniões não matrimonializadas. Segundo a maior parte da doutrina civilista, essa interferência do Estado é uma proteção conferida com base no artigo 226 da Constituição Federal (FACHIN, 2003, p.96).
Essa relativização da autonomia privada no direito de família nos casos de união estável se dá sob a alegação de que nas famílias de fato sempre houve uma liberdade excessiva, que, para o direito, é perigosa, pois numa liberdade que não há nenhuma regulamentação, o lado mais fraco acaba por ficar “escravizado" (AZEVEDO, 2002, p. 239).
Isto posto, é inegável, mesmo para os defensores da intervenção estatal nas relações pessoais decorrentes de uniões não matrimoniais, que há, na legislação que trata da união estável, uma relativização da autonomia privada no direito de família, pois é imposto aos companheiros um regime de “quase casamento” quando os mesmos optaram por não se matrimonializar.
Esta opção de não casar é, portanto, de certa forma, desrespeitada quando se reconhece a união estável, e a situação se complica quando há dissolução desta união e bens a partilhar, pois é difícil saber quando foi dado início a tal união. E é justamente esta dificuldade que gera uma enorme insegurança jurídica para os conviventes, tendo em vista que quando há o reconhecimento judicial da união estável, pelo menos um dos conviventes está contestando a união e a partilha de bens e, de certa forma, com razão, tendo em vista que optou por não casar e não manifestou em nenhum momento a vontade de viver em união estável.
É justamente devido a esta insegurança que a questão que permanece é se esta limitação da liberdade é realmente uma proteção para os conviventes, como acredita a grande maioria da doutrina, ou se tal interferência prejudica o convivente que optou por não casar, pois tira sua liberdade e ignora sua opção, indo contra, desta forma, a autonomia privada, direito fundamental intimamente ligado ao direito de família.
Frise-se que aqui não se pretende defender se tal mitigação da liberdade está ou não correta, apenas procura-se demonstrar que ela existe claramente, pois, conforme dito, a união estável é um fato que, por força da lei e da Constituição Federal, se torna um ato jurídico que produz efeitos semelhantes aos de um casamento, e, enquanto este requer a manifestação de vontade exteriorizada de ambas as partes, aquela não necessita de tal manifestação de nenhuma das partes envolvidas, podendo inclusive ser reconhecida judicialmente, mesmo que uma das partes negue tal união.
Conclusão
O presente artigo abordou o histórico do instituto da união estável no Brasil, apresentando, para isto a legislação pertinente ao tema e definindo, através de pesquisa na legislação e na doutrina, o conceito e as características deste tipo de união de fato, identificando, desta forma, o que é necessário para que seja configurada a união estável a luz da legislação e da Constituição Federal.
Estudada a união estável e suas características, foi feito um estudo acerca do princípio da autonomia privada no direito civil e sua importância não só para o direito privado, mas também para o direito de uma forma geral, demonstrando que tal princípio está presente na Constituição Federal, não podendo ser limitado ou relativizado, a não ser em situações excepcionais que visem o bem comum.
Num momento posterior, foi feita uma análise do princípio da autonomia privada no direito de família, demonstrando que tal princípio está intimamente ligado a este ramo do direito civil, tendo em vista que o casamento, a separação, o divórcio, a adoção, o testamento, a escolha do regime de bens e os demais atos relacionados à família são manifestações de vontade exteriorizadas, não são apenas presunções, são vontades declaradas.
Tais atos relacionados ao direito de família (casamento, divórcio etc), como visto, têm um traço marcante, que é a declaração explícita da vontade, enquanto na união estável tal vontade é presumida, ou seja, caso estejam cumpridas as características previstas na lei, a união estável restará configurada, independente da vontade dos conviventes.
Por fim, foi demonstrado, através de pesquisa doutrinária, que o reconhecimento da união estável é uma limitação da liberdade, ou seja, uma mitigação ao princípio da autonomia privada, tendo em vista que a união estável tem efeitos semelhantes aos de um casamento, a grande diferença é que os conviventes optam por não casar. Esta interferência do Estado na liberdade de quem optou por não se submeter a rigidez do matrimônio é justificada pela doutrina como uma proteção à família decorrente da Constituição Federal, tendo em vista que caso não houvesse tal previsão, a parte mais fraca da relação ficaria prejudicada.
Conclui-se, portanto, que disciplina dada à união estável pela Constituição Federal, regulamentada pelo Código Civil Brasileiro, é uma forma de interferência do Estado na liberdade de contratar e na autonomia privada do indivíduo. Se tal limitação é válida ou é excessiva é outra questão, a ser abordada em outros trabalhos. O que se pode constatar, e este é apenas o posicionamento do autor do presente estudo, é que há uma supervalorização do instituto da união estável em detrimento da liberdade de escolha do indivíduo.
Advogado. Mestrando em Direito Constitucional nas Relacoes Privadas pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Pos- graduado em Direito Tributario pela Faculdade 7 de Setembro – FA7. LL. M. em Direito Corporativo pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC
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