O Reconhecimento Das Relações Poliafetivas Como Entidades Familiares

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The Recognition Of Relations Multi-Affective Like Family Entity

Autor: Pereira. Sharon Kamila – Discente do curso de Direito – IESB Instituto de Ensino Superior – e-mail: [email protected]

Orientador: Sotero. Andrea Luiza Escarabelo – Docente mestra do curso de Direito – IESB Instituto de Ensino Superior de Bauru – e-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar a existência das uniões poliafetivas no Brasil e a necessidade do reconhecimento legislativo, visto que, apesar dos avanços e conquistas do direito de família, ainda se reconhece apenas a relação monogâmica, ainda que o princípio magno seja o da afetividade. Desse modo, a pesquisa desenvolver-se-á com base na existência dessa entidade familiar, e as consequências do não reconhecimento legislativo brasileiro, tendo como resultado o desamparo e a ausência de direitos e deveres. A área da pesquisa a ser desenvolvida, será o Direito Civil e Constitucional, baseada na investigação epistemológica sócio jurídica, tendo em vista, a não recognição do Estado quanto a existência desse modelo de família, demonstrando por fim, que não enxergar a realidade, não a fará desaparecer, tendo-se como melhor resultado, a desconstrução da ideia conservadora de que a base familiar brasileira é constituída por uma relação monoafetiva, afinal, hoje, o que identifica uma família é o AFETO.

Palavras-chave: Afeto. Poliafeto. Poliamor. Família Eudemonista. Constituição Federal 1988.

Abstract: The present work aims to address the presence of multi-affective unions in Brazil and demand legislative recognition, since, despite the advances and achievements of family law, only a monogamous relationship is still identified, even with the magnetic principle being the affective. Thus, the research will be developed based on the existence of this family entity, and the consequences of not recognizing Brazilian legislation, resulting in helplessness and the absence of rights and duties. The area of research to be developed will be Civil and Constitutional Law, based on the socio-legal epistemological investigation, bearing in mind the State’s lack of recognition as to the existence of this family model, showing, finally, that it does not see reality, it does not it will make it disappear, with the best result being the deconstruction of the conservative idea that the Brazilian family base is constituted by a mono-affective relationship, after all, today, what identifies a family is AFFECT.

Keywords: Affection. Multi-affective. Polyamory. Eudemonist family. Federal Constitution of 1988.

Sumário: Introdução; 1. A Família Anteriormente a Constituição Federal de 1988; 2. O Novo Direito das Famílias e Sua Função Social; 2.1 Princípio da Dignidade Humana; 2.2 Princípio da Liberdade; 2.3 Princípio da Afetividade; 3. O Que é o Poliamor?; 4. A Omissão do Estado e a Importância do Reconhecimento das Uniões Poliafetivas; Conclusão.

INTRODUÇÃO

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Saint-Exupéry, 1942), essa frase define o direito das famílias nos dias atuais. Deixou-se para trás o pátrio poder, ou seja, hoje a família não possui mais uma estrutura patriarcal, patrimonialista, monogâmica e heterossexual; não só os juristas, mas a sociedade como um todo elevou o afeto como princípio fundamental para a formação de uma família, surgindo assim o conceito de família eudemonista, onde se busca a realização de todos os membros que compõe aquela união de afeto.

Utilizar-se-á a pesquisa sócio jurídica, a partir de conceitos teóricos doutrinários, abrangendo o comportamento humano e social que levou a recognição de novas entidades familiares dentro da sociedade brasileira, porém, ainda sem qualquer amparo legislativo.

Assim, apesar dos avanços legislativos, principalmente após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, com a ideologia de inclusão e não exclusão, princípios fundamentais como da isonomia, igualdade, liberdade e dignidade, os poliamoristas ainda estão à margem da sociedade, sem garantias ou deveres.

Não obstante, tem-se como requisitos para constituição de entidade familiar, segundo depreende-se do artigo 1.723 do Código Civil/02: a convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família; todos presentes numa relação poliafetiva, assim como numa relação monogâmica, ocorre que com a igreja, houve a implantação e construção cultural das relações monogâmicas, tendo o matrimônio como elemento essencial e sagrado para a constituição de família, causando estranheza, ainda hoje, quando falamos da existência do poliamor.

Outrossim, não regulamentar as relações poliafetivas como núcleo familiar de direitos e deveres, não os farão deixar de existir! É uma realidade, e a não existência de normas que reconheça essas uniões acarretam consequências jurídicas graves, prejudicando todos os envolvidos nesse relacionamento, seja no âmbito civil, previdenciário ou sucessório.

Desse modo, O presente trabalho tem como objetivo abordar a existência das uniões poliafetivas no Brasil e a necessidade do reconhecimento legislativo, visto que,

apesar dos avanços e conquistas do direito de família, ainda se reconhece apenas a relação monogâmica, ainda que o princípio magno seja o da afetividade.

É evidenteanecessidadedeevoluçãolegislativa,desconstruindo a ideia conservadora da existência apenas de relações monogâmicas, única e exclusivamente, como base familiar, afinal, o que identifica uma família é oAFETO!

  1. A FAMÍLIA ANTERIORMENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Família sempre foi tida como base de todas as sociedades, haja vista, seu impacto e influência cultural. No entanto, antes de adentrarmos ao objeto do presente trabalho, importante salientar que, a família como é conceituada hoje, não é a mesma que antecedeu a Constituição Federal de 1988 do Brasil.

Patriarcal, patrimonializada, monogâmica e heterossexual, essa era a hierarquização de família. O homem era tido como “chefe”, o patrimônio era elevado ao seu mister, além das relações aceitas pela sociedade serem apenas monogâmicas e heterossexuais.

O Código Civil de 1916 regulava as famílias, e “trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao casamento” (DIAS, 2020), ou seja, a Constituição Federal foi um grande marco para o direito das famílias, com sua entrada em vigor, houve a consagração da igualdade entre homens e mulheres, o reconhecimento e igualdade entre os filhos havidos fora do casamento, o direito de divórcio e o reconhecimento de outras estruturas familiares, como por exemplo, a monoparental, obrigando portanto a atualização de diversos institutos do Código Civil atual.

Assim, pode-se dizer que, elevou-se a afetividade a preceito constitucional pétrea, consolidando um novo paradigma das relações familiares, sendo reconhecido como meio de busca pela felicidade.

Nesse sentido, importante citar o entendimento dos doutrinadores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho:

“O fato é que o amor – a afetividade – tem muitas faces e aspectos e, nessa multifária complexidade, temos apenas a certeza de que se trata de uma força elementar, propulsora de todas as nossas relações de vida”. (STOLZE E PAMPLONA, 2019, p. 1206)

Desse modo, pode-se dizer que o amor é uma força que impulsiona as relações entre as pessoas, tendo muitas formas, cabendo ao Estado lhes garantir dignidade e plena liberdade de escolha, afinal, como previsto na Carta Magna, em seu artigo 226 a família é base da sociedade e tem especial proteção do Estado.

No entanto, apesar de todos os avanços citados, as relações poliafetivas ainda não detém qualquer segurança jurídica, deixando essas famílias totalmente desamparadas juridicamente. Como restará demonstrado adiante, se a família é a base da sociedade e se o afeto é elemento essencial para constituí-la, é evidente a necessidade de mudanças, para que essas relações deixem de ser ignoradas, não só pelos legisladores, mas também, pela sociedade como um todo.

  1. O NOVO DIREITO DAS FAMÍLIAS E SUA FUNÇÃO SOCIAL

A Constituição Federal de 1988 foi um elemento impulsionador do Direito das Famílias, quebrou-se o paradigma de função econômica e reprodutiva, para enxergar a família como núcleo de desenvolvimento físico e psíquico dos membros que a compõe, com o objetivo de promover a dignidade humana e a busca pela felicidade, sendo, portanto, espaço de afeto e amor.

Não obstante, houve também a equiparação de direitos e deveres entre homens e mulheres, além de consagrar a igualdade entre todos os membros que compõe uma família, seja ela constituída da forma monoparental, anaparental, eudemonista, dentre outras composições, nas palavras de Zeno Veloso (1999, p. 03), “num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.

Qual seja, importante frisar, que o artigo 226 da CF/88 dispõe que a família é a base da sociedade e goza de proteção especial do Estado, apesar de consagrar alguns tipos de entidades familiares, vale dizer que são apenas exemplificativas e não taxativas, existindo diversos outros modelos de famílias, nesse sentido, vale trazer a tona o ensinamento de Paulo Lôbo:

“Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.” (LÔBO, 2002, p. 07)

Assim, neste seguimento, tendo em vista as grandes mudanças passadas pelo direito de família, pode-se dizer que “numa perspectiva constitucional, a funcionalização social da família significa […] a realização do projeto de vida e de felicidade de seus membros” (STOLZE E PAMPLONA, 2020, p. 98).

Portanto, conclui-se que a Constituição Federal, não apenas consagrou a igualdade entre todos os membros que compõem uma família, mas, também, trouxe como princípio magno a afetividade e a dignidade como forma de alcance da tão sonhada felicidade, afinal, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 72).

2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

“Toda pessoa tem direito […] ao reconhecimento de sua dignidade”, é o que se depreende do artigo 11 do pacto de San Jose da Costa Rica, adotada pelo Brasil em 1992, mas já constante na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º, inciso III.

Tem-se, portanto, a dignidade da pessoa humana como princípio universal e indispensável para vida em sociedade, nas palavras de Tartuce (2020, p. 8), “a dignidade humana concretiza-se socialmente, pelo contato da pessoa com a sua comunidade”.

No direito das famílias, a dignidade humana – princípio fundamental – é observado a partir da despatrimonialização dos núcleos familiares, reconhecendo a igualdade entre todos os membros, além da admissão de novas entidades de família, a despeito de sua formação.

Nesse contexto, o ensinamento da doutrinadora Maria Berenice Dias:

“A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidade mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.” (DIAS, 2020, p. 64).

Logo, entende-se, que a dignidade humana no âmbito familiar é a garantia e igual tratamento para todas as bases e núcleos familiares existentes na sociedade brasileira, independentemente de sua composição, seja ela homoafetiva, paralela, poliamorista, etc., prevalecendo o afeto e a proteção a todas elas.

2.2 PRINCÍPIO DA LIBERDADE

Para Luís Roberto Barroso (2011, p. 124):

“A liberdade, efetivamente, tem um conteúdo nuclear que se situa no poder de decisão, de escolha entre diversas possibilidades. Mas tais escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais, econômicas e históricas. Portanto, trata-se de uma capacidade que não é apenas subjetiva, mas consiste na possibilidade objetiva de decidir”.

Inadmissível o Estado impor um modelo de constituição de família, ou até mesmo, negue seu reconhecimento por não refletir ao padrão de relação seguido pela sociedade. Destarte, a Constituição assegura a liberdade nas relações familiares, conferindo aos membros o poder de escolha acerca da forma de constituir suas famílias, respeitando sua autodeterminação afetiva, sendo defeso qualquer intervenção de entidades públicas ou privadas, é o que prevê o artigo 226, §7º da Constituição Federal, consoante com o artigo 1.513 do Código Civil.

Outrossim, a isonomia de tratamento jurídico confere igualdade a todos, sendo significativa a liberdade de escolha do modo que irão conviver, cabendo ao Estado apenas propiciar recursos para o exercício do direito das entidades familiares.

De suma importância as palavras da autora Maria Berenice Dias:

“A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou enorme preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção no âmbito familiar. Todos têm a liberdade de escolher o seu par ou pares, seja do sexo que for, bem como, o tipo de entidade que quiser para constituir sua família.” (DIAS, 2020, p. 65).

A despeito dessa liberdade, cabe ao Estado reconhecer as relações poliafetivas, sendo essa, uma identidade relacional digna e compatível com os princípios e direitos fundamentais constantes na Constituição, capaz de dar origem a famílias que exercem sua função social voltada à promoção da dignidade, afetividade e da personalidade de seus integrantes, buscando a realização pessoal de todos os seus membros.

É evidente que conservadorismo retrógrado, matrimonializado, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada, heterossexual e monogâmica, que constituía o Direito das Famílias é de fato afrontar o princípio da liberdade, sendo inconstitucional qualquer tratamento desigual no âmbito social e jurídico.

2.3 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Nesse diapasão, indispensável delinear o princípio da afetividade, afinal, é o que fundamenta o direito das famílias e suas relações socioafetivas, “o afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Também tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família” (DIAS, 2020, p. 73).

Dessa forma, como bem ressalta Rodrigo da Cunha Pereira:

“[…] a afetividade ascendeu a um novo patamar no Direito de Família, de valor a princípio. Isto porque a família atual só faz sentido se for alicerçada no afeto, razão pela qual perdeu suas antigas características: matrimonializada, hierarquizada, que valorizava a linhagem masculina […]. A verdadeira família só se justifica na liberdade e na experiência da afetividade […].” (PEREIRA, 2012, p. 223).

Frisa-se, a família patrimonialista e matrimonialista perdeu espaço na sociedade com o surgimento de novas entidades contemporâneas, acentuando o conceito de família eudemonista, buscando a realização de todos os membros, perdendo-se o vínculo biológico para constituir vínculo de afeto e solidariedade.

De suma importância trazer à baila um trecho do brilhante julgamento realizado pela Ministra Nancy Andrighi:

“A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.” (ANDRIGHI, 2010).

Por conseguinte, a família deixou de se vincular e se manter por motivações econômicas, adquirindo-se como importância primaria os elos afetivos, através da solidariedade mútua de todos aqueles que compõem aquela entidade familiar, Sérgio Resende de Barros, define esse afeto como:

“Um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam.” (BARROS, 2002, p. 09)

Dessarte, imprescindível não notar que a afetividade constituiu de maneira sólida alterações profundas no modo de pensar a família brasileira, consumando que o afeto tem valor jurídico constitucional, sendo assim, qualquer forma de família é válida, desde que preservada a dignidade, liberdade e principalmente, a afetividade.

  1. O QUE É O POLIAMOR?

Mas, afinal, o que é o poliamor? Na definição de Stolze e Pamplona:

“O poliamorismo ou poliamor admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem-se e aceitam-se uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta.” (STOLZE E PAMPLONA, 2020, p. 455, grifo nosso)

Ainda, antes de analisarmos o as relações poliafetivas, importante esclarecer sua diferença das relações simultâneas ou paralelas, nesta última, é formada por mais de um núcleo familiar, onde se vive em residências separadas e, na maioria das vezes os membros envolvidos não possuem conhecimento da existência um dos outros.

Posto isso, “você seria capaz de amar duas pessoas ao mesmo tempo?” Stolze e Pamplona (2020, p. 453), frente a cultura monogâmica e religiosa ocidental, a resposta seria não, porém, colide justamente com o poder de decisão que o indivíduo possui sobre sua vida, o qual foi justamente tido como direito fundamental, a liberdade de escolha.

De acordo com a psicóloga e professora universitária Noely Montes Moraes:

“A etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida por grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo.” (MORAES, 2007, p. 41, grifo nosso).

Homens e mulheres em comum acordo podem constituir um relacionamento poliamorista, desde que haja o intuito de formar família, podendo se assemelhar ao casamento tradicional, diferenciando apenas por ser entre três ou mais pessoas.

Ademais, é de entendimento pacificado pela doutrina majoritária que a Constituição Federal possui apenas um rol de modelo de família exemplificativo e, também, inclusivo, de tal modo a não excluir nenhum tipo de núcleo familiar, ou seja, oportunizar que a união poliafetiva possua não apenas direitos, mas também obrigações.

O que embasa o relacionamento de fato é a vontade de constituir uma família, sendo assim, justo se faz que todos os mandamentos atinentes as famílias consideradas “normais”, se estendam amplamente ao poliamorismo.

Fato é, que a Constituição Federal em seu artigo 5º, caput, efetivou o princípio da igualdade, garantindo a todos tratamento igual perante a lei, além da liberdade de constituir relações sem qualquer interferência Estatal, na mesma linha, Maria Berenice Dias expõe:

“Se o poliamor pode ser considerado uma forma de relacionamento íntimo existente e válido com mais de uma pessoa simultaneamente, formando um único núcleo e seus integrantes possuem ciência das uniões múltiplas, verifica-se a incidência dos princípios estruturantes de família: da liberdade, da solidariedade e igualdade entre seus membros, com vistas à felicidade.” (DIAS, 2020, p. 449).

As alterações conduzidas pela Constituição mudaram o conceito contemporâneo de família, gozando plenamente de proteção jurídica independentemente da sua formação. Como já explanado, no direito das famílias, hoje, o princípio da afetividade norteia as relações familiares, permitindo o reconhecimento de vínculo de todos os laços existenciais das unidades familiares.

Segundo ensinamento de Francisco Amaral:

“Vivemos numa sociedade complexa, pluralista e fragmentada, para a qual os tradicionais modelos jurídicos já se mostraram insuficientes, impondo-se à ciência do direito a construção de novas e adequadas ‘estruturas jurídicas de resposta’, capazes de assegurar a realização da justiça e da segurança, em uma sociedade em rápido processo de mudança.” (AMARAL, 2003, p. 63)

Evidentemente, “hoje, o que identifica uma família é o afeto, esse sentimento que enlaça corações e une vidas. A família é onde se encontra o sonho de felicidade. A justiça precisa atentar nessas realidades” (DIAS, 2004).

  1. A OMISSÃO DO ESTADO E A IMPORTÂNCIA DO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES POLIAFETIVAS

Com a constitucionalização dos princípios das famílias, pode-se afirmar que houver uma “verdadeira democratização dos sentimentos, na qual o respeito mútuo e a liberdade individual são preservados” (DIAS, 2020, p. 449).

Destaca-se que, apesar das transformações havidas no Direito das Famílias, ainda se faz necessária normas para regulamentação e validade, afim de assegurar o reconhecimento jurídico do poliamor enquanto relação capaz de dar origem a núcleos familiares.

De fato, a poliafetividade gera divergências frequentes e alimentam debates complexos na esfera jurídica, mas, imperioso ressaltar o reconhecimento da autonomia da vontade das partes, com o único fim de formar uma família, devendo, portanto, acarretar seu reconhecimento e os efeitos jurídicos que dela decorrem.

Diante dessa realidade, tabelionatos de notas passaram a registrar essas uniões através de escrituras públicas, com o objetivo de regulamentar esses núcleos familiares, malgrado, por solicitação da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), através do processo 0001459-08.2016.2.00.0000, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) notificou as Corregedorias Estaduais afim de impedirem o registro das escrituras pelos tabeliões, em trecho do julgamento, é de fácil percepção a necessidade de políticas públicas para regular essas relações, in verbis:

Futuramente, caso haja o amadurecimento da “união poliafetiva” como entidade familiar na sociedade brasileira, a matéria pode ser disciplinada por lei destinada a tratar das suas especificidades, pois a) as regras que regulam relacionamentos monogâmicos não são hábeis a regular a vida amorosa “poliafetiva”, que é mais complexa e sujeita a conflitos em razão da maior quantidade de vínculos; e b) existem consequências jurídicas que envolvem terceiros alheios à convivência, transcendendo o subjetivismo amoroso e a vontade dos envolvidos.

[…] A sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, o que limita a autonomia da vontade das partes e veda a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva”.” (CNJ, 2018)

Conquanto, tapar os olhos para a existência desses vínculos, não os farão desaparecer, pelo contrário, consequentemente estarão negando o princípio mister da Constituição Federal, qual seja, o tratamento igualitário e a dignidade humana.

Apesar da vedação da escritura, Maria Berenice Dias (2020, p. 449) afirma a possibilidade da “formalização do vínculo por instrumento particular, firmado pelas partes e por duas testemunhas, levado a registro no Cartório de Títulos e Documentos”.

Ainda, vale acrescentar que, conforme pesquisa de campo realizada pela jurista Jéssica Sousa, membro da Comissão de Pesquisas Científicas e Jurisprudências da seção Distrito Federal do Instituto Brasileiro de Direito de Família

IBDFAM-DF, in verbis:

“Existe um consenso da psicologia e da psiquiatria em relação ao poliamor: 91,9% são a favor do reconhecimento legal do poliamor como família, para que os envolvidos e as crianças oriundas do relacionamento tenham proteção jurídica. Ao serem questionados com perguntas abertas, 75% afirmaram que ser poliafetivo é saudável e não promíscuo.” (SOUZA, 2020).

Resta evidente a necessidade de regulamentação legislativa para essas famílias, não devendo limitar-se ao princípio da monogamia para estabelecer a base de todos os núcleos familiares existentes na sociedade brasileira, haja vista que, seu desamparo acarreta consequências, não só os envolvidos no relacionamento (parceiros), mas também, os filhos que possam vir a existir.

CONCLUSÃO

Desse modo, pode-se concluir que, a Constituição Federal de 1988 consagrou diversas garantias fundamentais, consideradas cláusulas pétreas, portanto, inalteráveis, dentre elas, o direito a dignidade e a liberdade.

No Direito das Famílias através dessas garantias, estabeleceu-se o princípio norteador de todas as entidades familiares, o AFETO, sendo assim, a família deixou de se vincular e se manter por motivações econômicas, adquirindo-se como importância primaria os elos afetivos, através da solidariedade mútua de todos aqueles que compõem aquela entidade familiar, buscando a realização de todos os seus membros para que seja atingida plena felicidade.

Além disso, as famílias poliafetivas não são diferentes! Ocorre que, o conservadorismo retrógrado e a monogamia ainda se veem presentes na sociedade brasileira como um todo, fazendo com que, essa omissão traga consequências avassaladoras para todos aqueles que optaram por um modo de vida diferente do que o que fora culturalmente cultivado.

Por fim, vale ressaltar, que faz-se necessário que o legislativo se atente as realidades vividas pelos brasileiros, não devendo tratar os vínculos poliafetivos como promíscuos, tendo em vista que, busca-se na convivência pública, contínua e duradoura a constituição de família, independentemente da composição ou do número de pessoas, desde que não violadas as garantias fundamentais do ser humano.

REFERÊNCIAS

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