O reexame necessário das sentenças proferidas contra a Fazenda Pública é instituto que vigora desde longa data no direito processual brasileiro. Originou-se do direito processual português e paulatinamente foi sendo incorporado ao processo civil pátrio. Como é sabido, o duplo grau de jurisdição obrigatório tem por fundamento o princípio inquisitório e visa resguardar o interesse público fazendo com que as decisões proferidas contra a Fazenda Pública só sejam executadas após serem revistas pelo tribunal respectivo. Apesar das críticas que o instituto sofre por parte da doutrina nacional, trata-se de cautela recomendável no sentido de se conferir maior expressão de certeza à sentença sempre que esteja em risco o patrimônio do Estado.
As sentenças atualmente sujeitas ao reexame necessário encontram-se previstas no art. 475 do CPC, modificado pela Lei nº 10.352/2001, com a seguinte redação:
“Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
§ 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.”
A redação original do artigo 475 sofreu modificações com a Lei nº 10.352, de 2.12.2001, sendo excluído o inciso I que aplicava a remessa necessária às sentenças declaratórias de nulidade de casamento, e reescritos os demais incisos com as modificações supervenientes. O inciso I passou a contemplar de maneira expressa as autarquias e fundações públicas, a teor do entendimento jurisprudencial e doutrinário predominante na época. Os parágrafos 2.º e 3.º passaram a prever hipóteses em que o reexame necessário haverá de ser dispensado pelo juiz. No entanto, uma nova reforma do instituto se aproxima com o advento do novo Código de Processo Civil.
Como se sabe, o anteprojeto do novo CPC foi encaminhado ao Congresso Nacional no dia 08.06.2010 após a conclusão dos trabalhos da Comissão especialmente constituída pelo Senado Federal para esse objetivo[1]. Conforme aduzido na Exposição de Motivos do Anteprojeto, os trabalhos tiveram por objetivo simplificar os procedimentos processuais de forma a garantir uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz[2]. Entretanto, o texto da Comissão não está imune às críticas dos operadores do direito pela forma como foi elaborado e em algumas questões pontuais. A propósito do assunto, o Advogado-Geral da União teme que as novas regras relativas aos honorários advocatícios e ao reexame necessário possam gerar custos desnecessários aos cofres públicos[3].
Sobre o tema em debate, é certo que as informações iniciais davam conta da extinção do reexame necessário no texto do anteprojeto sob a justificativa de se priorizar a celeridade processual e a efetividade do processo. Nesse sentido, parte da doutrina chegou a afirmar que “não mais se justifica a manutenção, em nosso ordenamento jurídico, desse instituto”[4]. Entretanto, tais opiniões acabaram sendo relevadas por conta do argumento de que “os descalabros contra o Erário acontecem nas demandas de grande valor”[5]. Ao final, o anteprojeto do novo Código acolheu sugestão no sentido de contemplar com temperamentos o duplo grau de jurisdição obrigatório, sob a denominação de “remessa necessária”, nos seguintes termos:
“Seção III
Da remessa necessária
Art. 478. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública.
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação ou o direito controvertido for de valor certo não excedente a mil salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal, em súmula desse Tribunal ou de tribunal superior competente, bem como em orientação adotada em recurso representativo da controvérsia ou incidente de resolução de demandas repetitivas.
§ 4º Quando na sentença não se houver fixado valor, o reexame necessário, se for o caso, ocorrerá na fase de liquidação.”
Como se vê do texto enviado ao Senado Federal, as disposições gerais acerca do reexame obrigatório não sofreram maiores alterações. Entretanto, as hipóteses que autorizam a dispensa do duplo grau obrigatório foram sensivelmente ampliadas, acolhendo sugestão do Conselho Federal da OAB nesse sentido.
A hipótese do parágrafo 2º, que dispensa a remessa obrigatória em razão do valor da condenação, sofreu substancial alteração no anteprojeto alcançando o valor de mil salários-mínimos. Indubitavelmente, o elevado valor estipulado no anteprojeto é exagerado e não corresponde ao cenário jurídico nacional composto na sua maioria de ações individuais com pequena ou média repercussão econômica. Nesse ponto, melhor seria ter mantido o razoável valor estabelecido pela Lei nº 10.235/2001. Certamente, tal dispositivo deve sofrer emendas na Câmara dos Deputados durante os debates do processo legislativo. Caso contrário, o elevado valor previsto para a dispensa do reexame obrigatório poderá trazer consequências econômicas indesejáveis aos cofres da Fazenda Pública atingindo a sociedade em geral.
De forma a complementar essa regra, o parágrafo 4º aduz que, sendo a sentença ilíquida, o reexame necessário ocorrerá por ocasião da fase de liquidação. A liquidação de sentença atualmente está prevista nos arts. 475-A e ss. do CPC e pode ser “considerada pressuposto fundamental da execução de sentença ilíquida, consistindo em formalidade necessária para que se permita a excussão de bens do devedor”[6]. Dessa forma, o referido parágrafo parece afastar a hipótese de se utilizar o valor da causa devidamente atualizado como parâmetro para fins de verificar a remessa obrigatória, conforme já tinha entendido a jurisprudência pátria[7]. Nesse ponto, trata-se de inegável avanço, uma vez que nem sempre o valor original da causa retratava a exata repercussão financeira alcançada pelo processo, especialmente quando o valor inicial era meramente estimatório ou para fins de alçada.
A hipótese do parágrafo 3º também sofreu modificações no sentido de se conferir ao reexame necessário o mesmo tratamento dado aos recursos voluntários. Desde o início, os trabalhos da Comissão se pautaram pelo objetivo de reduzir o tempo de duração do processo restringindo a via recursal e conferindo amplos poderes ao juiz de primeiro grau e ao relator. Assim, a remessa obrigatória também não terá lugar quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal, em súmula desse Tribunal ou de tribunal superior competente, bem como em orientação adotada em recurso representativo da controvérsia ou incidente de resolução de demandas repetitivas. Nesse ponto, a inovação fica por conta da parte final do aludido parágrafo, que traz novas hipóteses de uniformização da jurisprudência previstas no texto do anteprojeto.
Outro ponto a ser discutido pela doutrina no texto que foi encaminhado ao Senado é quanto ao cumprimento imediato das decisões sujeitas ao reexame necessário. Ocorre que o anteprojeto tem previsão expressa no sentido de que os recursos não impedem a eficácia da decisão proferida, isto é, serão recebidos somente no efeito devolutivo (art. 908 do anteprojeto). Dispõe, ainda, que poderá ser concedido o efeito suspensivo após requerimento das partes se demonstrada probabilidade de provimento do recurso (§§1º e 2º). Entretanto, tal inovação não deve atingir as sentenças sujeitas ao duplo grau de jurisdição obrigatório que não terão eficácia até que sejam confirmadas pelo tribunal respectivo. Enfatizando essa questão, Marcus Vinicius Rios Gonçalves afirma que: “enquanto não sujeita ao reexame, a sentença não pode ser executada”[8].
Ocorre que a remessa obrigatória não tem natureza de recurso e constitui verdadeira condição de eficácia da sentença, conforme entendimento predominante na doutrina atual. Eduardo Arruda Alvim esclarece que “não tem a remessa obrigatória natureza recursal. Reconhece-lhe a doutrina a natureza de condição de eficácia da sentença (Buzaid, Nelson Nery Jr.)”[9]. No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero afirmam que “o reexame necessário não constitui figura recursal, porque lhe falta a voluntariedade dos recursos. Trata-se de condição para eficácia da sentença”[10]. Ademais, nem teria cabimento qualquer arrazoado da Fazenda Pública dirigido ao Tribunal no sentido de se conferir “efeito suspensivo” à remessa obrigatória, tampouco se admite a apresentação de contra-razões pelo particular ou pela parte vencedora.
Feitas essas breves considerações sobre o reexame necessário no anteprojeto do novo CPC, é preciso salientar que se trata de instituto de tradição no direito luso-brasileiro e sem correspondente no direito comparado cujo objetivo é resguardar o patrimônio público de eventuais equívocos de julgamento que possam ter ocorrido nos casos sub judice. A rigor, o valor de mil salários mínimos que dispensa a remessa obrigatória constante na redação do §2.º do art. 478 do anteprojeto é deveras elevado e merece reparos de forma a amparar o Erário público. Espera-se que o assunto seja debatido com a devida atenção no âmbito do Congresso Nacional no sentido de modificar o texto contemplado pelos trabalhos da Comissão. No atual cenário jurídico nacional, a proteção aos interesses defendidos em juízo pela Fazenda Pública através do duplo grau obrigatório continua se mostrando relevante também em ações de valor inferior ao montante previsto no dispositivo.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Átila da Rold Roesler.
Procurador Federal da Advocacia-Geral da União; professor de Direito Administrativo e Direito Constitcional no Intelectum (curso preparatório para concursos públicos); especialista “Lato sensu” em Direito Processual Civil pela Unisul (SC); autor de diversos artigos jurídicos na área do Direito Público; autor do livro “Execução Civil – Aspectos Destacados”, publicado pela Editora Juruá; ex-Delegado de Polícia no Estado do Paraná.