Resumo: O Direito Penal do Inimigo, desenvolvido pelo alemão Günther Jakobs, foi muito discutido e criticado, sobretudo no que tange à sua defesa da relativização de determinadas garantias processuais penais dos “inimigos”. Apesar disso, tal teoria fez-se sentir em várias legislações penais, inclusive no Brasil, com destaque para o Regime Disciplinar Diferenciado, cujos dispositivos em muito se aproximam das ideias defendidas pelo penalista germânico.
Palavras chaves: Cidadão. Exclusão. Inimigo. RDD (Regime disciplinar diferenciado).
Abstract: The Criminal Law of the Enemy, developed by german Günther Jakobs, has been much discussed and criticized, especially when it comes to his defense of the relativity of certain criminal and procedural safeguards of the “enemies”. Nevertheless, this theory was felt in several criminal laws, including Brazil, with emphasis on the “Regime Disciplinar Diferenciado”, whose devices are very close to the ideas defended by the German penologists.
Keywords: Citizen. Exclusion. Enemy. RDD
Sumário: Introdução – 1. O Direito Penal do Inimigo na teoria de Günther Jakobs – 1.1 A primeira construção teórica do Direito Penal do Inimigo (1985) – 1.2 A segunda construção teórica do Direito Penal do Inimigo – 1.2.1 Pessoas X inimigos: quem são os inimigos e como devem ser tratados? – 1.2.2 Características do Direito Penal do Inimigo – 1.2.3 Reflexos do Direito Penal do Inimigo nos ordenamentos jurídico-penais – 2. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) – 2.1 As origens do RDD no ordenamento brasileiro e a Lei 10.792/03 – 2.2 Hipóteses que autorizam a inclusão no RDD: o réu como inimigo? – Conclusão – Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho insere-se na discussão sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), introduzido no ordenamento jurídico penal brasileiro pela Lei 10.792/2003, apresentando-o como expressão das ideias de Günther Jakobs, no que tange à sua teoria sobre o Direito Penal do Inimigo.
Para tanto, serão expostas as ideias principais de Günther Jakobs sobre o Direito Penal do Inimigo, precisando quem seria o inimigo ou não-pessoa em sua teoria, bem como estabelecendo as mais importantes características desse Direito e os reflexos dessa teoria em legislações jurídico-penais de vários países.
Serão expostas ainda as origens do Regime Disciplinar Diferenciado, suas características e possibilidades de aplicação, demonstrando a aproximação desse instituto com a formulação desenvolvida pelo penalista alemão.
2. O Direito Penal do Inimigo na teoria de Günther Jakobs
2.1 A primeira construção teórica do Direito Penal do Inimigo (1985)
Poucos temas causam tanta controvérsia e paixão nos debates como o Direito Penal do Inimigo, construção do penalista alemão Günther Jakobs. De fato, nos últimos anos, o tema vem sendo recorrentemente debatido, sobretudo em função de sua atualidade, diante dos fenômenos expansionistas e punitivistas do Direito Penal. Na sociedade de risco, marcada pela superinflação legislativa e pelo surgimento de novos tipos penais, principalmente os tipos penais de perigo abstrato e de mera conduta, e ainda pelo endurecimento das leis penais, o tema torna-se pauta obrigatória de discussão.
O início da construção teórica do Direito Penal do Inimigo encontra-se no ano de 1985, quando o alemão Günther Jakobs trouxe a tona a expressão em uma Jornada de Professores de Direito Penal, realizada na cidade de Frankfurt. A princípio, o autor germânico identificou a concepção de Direito Penal do Inimigo a uma série de normas que atingiam a criminalização de estados prévios à lesão ao bem jurídico, “saltando as barreiras do que deveria ser um Direito penal respeitador das garantias cidadãs” [1].
Inicialmente, nesta conferência, Jakobs estabeleceu uma distinção entre o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo, diferenciando-os de acordo com o sujeito para o qual cada Direito se destina. Nesse primeiro momento de construção teórica do Direito Penal do Inimigo, entendeu-se que o Direito Penal distingue-se segundo o agente que assume como autor: o cidadão ou o inimigo.
Pode-se visualizar o autor como cidadão, e, nesse sentido, o Direito Penal só está legitimado a intervir em sua esfera de liberdade quando a conduta deste agente gera um resultado ou perigo de resultado danoso ao bem jurídico. Exige-se uma exteriorização de comportamento por parte do cidadão, que autoriza a intervenção do ordenamento jurídico. Por outro lado, pode-se ainda visualizar o autor como inimigo ou como constante ameaça aos bens protegidos. Este inimigo não teria proteção de sua esfera privada e, portanto, poderia ser responsabilizado, inclusive por seus pensamentos [2].
Entretanto, entende Jakobs que só serão legítimas as criminalizações que não causem violação da esfera privada dos cidadãos. O comportamento só é relevante para o Direito Penal quando objetivado e exteriorizado. A partir do momento em que se recorre a dados subjetivos e internos, analisando o que pensa ou deseja o agente, estar-se ia violando o princípio que proíbe a punição de pensamentos: cogitationis poenam nemo patitur. Assim, para o autor germânico “despojar desse modo o sujeito de sua esfera privada não corresponderá ao Direito Penal dos cidadãos, mas sim ao Direito Penal dos inimigos” [3].
Inicialmente, ao diferenciar o Direito Penal do Inimigo do Direito Penal do Cidadão, Jakobs assume uma postura analítica crítica. Dessa maneira, entendia o autor que o Direito Penal do inimigo não se coadunava com as liberdades dos cidadãos nos Estados Democráticos, concebendo-o legítimo apenas de maneira excepcional, como um Direito Penal de emergência.
Nesse sentido, nas palavras do penalista, sobre o Direito Penal do Inimigo, entende que ele “somente se pode legitimar como um Direito Penal de emergência que rege excepcionalmente. Os preceitos penais a ele correspondentes têm, por isso, que ser separados estritamente do Direito Penal dos cidadãos” [4].
Logo, a princípio, havia uma clara preocupação em separar o Direito Penal do cidadão do Direito Penal do inimigo, de modo a evitar a contaminação deste último com os preceitos do primeiro, através do uso da analogia ou de interpretação sistemática [5]. Assim, nitidamente, verifica-se uma postura crítica ao Direito Penal do Inimigo, uma vez que o autor afirma que, como regra, tal direito é ilegítimo nos Estados Democráticos de Direito (Estados de liberdades).
Segundo Ulfried Neumann, “aplaudida foi a aprovação de que a conferência de Jakobs era compartilhada, precisamente, pelos representantes de um pronunciamento do direito penal liberal do Estado de direito” [6]. Além disso, segundo Luís Greco, nesse momento, Jakobs esperava uma evolução do Direito constitucional para tornar o Direito Penal do inimigo impossível [7].
Entretanto, essa postura inicial, que desqualificava o Direito Penal do Inimigo, considerando-o como excepcional nos Estados Democráticos [8], irá ser revisada pelo próprio autor alguns anos depois. No final da década de 90, Günther Jakobs delineia com maior precisão sua teoria, que assume novos e surpreendentes contornos.
2.2. A segunda construção teórica do Direito Penal do Inimigo
Em estudos mais recentes, Günther Jakobs assume uma nova postura a respeito do Direito Penal do Inimigo. Se, antes, ele era visto em caráter excepcional, como um Direito Penal de emergência, passa o autor a visualizar formas de legitimá-lo, considerando-o inevitável na sociedade moderna.
A partir de 1999, com a obra “La ciência del Derecho Penal ante las exigencias del presente” e, sobretudo, com a obra “Derecho penal de enemigo”, de 2003, o Direito Penal do Inimigo assume novos e mais concretos contornos, tendo o tema experimentado uma mudança drástica [9]. A denominação Direito Penal do Inimigo perde o seu valor pejorativo, entendendo Jakobs ser um erro demonizá-lo [10].
A concepção do estudioso não perdeu valor crítico, entretanto, segundo Ulfried Nenumann, é inegável que “na concepção de Jakobs, o centro e gravidade se transmudou da crítica à afirmação do Direito penal do inimigo” [11].
Para compreender a nova teoria esboçada por Jakobs, é preciso analisar alguns conceitos e características essenciais do Direito Penal do Inimigo, os quais foram consolidados com base nessa segunda etapa de sua construção teórica. É o que se passa a expor.
2.2.1 Pessoa X inimigo: quem são os inimigos e como devem se tratados?
No desenvolvimento da teoria de Günther Jakobs, uma importante questão diz respeito à distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não pessoas), uma vez que é a partir desta diferenciação que o autor traçará dois distintos direitos: o Direito Penal do cidadão e o Direito Penal do inimigo. Nesse sentido, entende-se que o “Direito Penal do inimigo designa o polo conceitual contrário ao Direito Penal do cidadão e, com isso, também a contraparte da figura ideal do Direito Penal em um Estado civil de Direito” [12].
Segundo Jakobs, o Estado poderá agir de duas formas em relação aos agentes infratores. Poderá vê-los como pessoas que delinquiram, cometendo um erro ao realizar determinados atos típicos, ou ainda pode vê-los como indivíduos que almejam a própria destruição do ordenamento jurídico e, por isso, precisam ser impedidos [13].
E para responder à pergunta “quem é o inimigo?”, o penalista alemão se socorre da filosofia, sobretudo das teorias desenvolvidas por Thomas Hobbes e Immanuel Kant. Assim, passa a identificar como inimigo a quem, pretendendo regressar ao estado de natureza (Hobbes), priva de segurança aos demais e se comporta como uma ameaça constante (Kant) [14].
Explica o autor germânico que aquele que age de um modo desviado e que não oferece garantias de um comportamento pessoal em conformidade com o ordenamento jurídico, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como se inimigo fosse. Nas palavras do autor, “essa guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança” [15].
Dito de modo semelhante, entende-se que aquele que não presta uma segurança cognitiva de um comportamento pessoal não poderá esperar ser tratado como pessoa e também o Estado não pode fazê-lo, pois isso geraria uma violação à segurança das demais pessoas, que apresentam essa expectativa cognitiva de comportamento. E justamente por isso, “seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se há denominado de Direito penal do inimigo” [16].
Sendo assim, verifica-se claramente que, partindo-se desta concepção, só é pessoa aquele que oferece garantias cognitivas suficientes de sua atuação e comportamento pessoais, uma vez que a sociedade juridicamente constituída e, consequentemente, o próprio Direito Penal, só funcionam com este mínimo de cognição.
Logo, o conceito de pessoa está ligado à ideia de sujeito livre, dotado de responsabilidade, que cria uma garantia cognitiva. Observa-se que a pessoa representa papéis dentro da sociedade. Pessoa é, pois, “a máscara, isto é, precisamente não é expressão da subjetividade de seu portador, mas sim uma representação de uma competência socialmente compreensível” [17].
A ideia de pessoa é uma construção social, sendo que nem todo humano será pessoa para fins jurídico-penais. Isto porque, enquanto a ideia de ser humano liga-se a processos naturais, a concepção de pessoa é uma construção social [18]. Dessa forma, compreende-se que “pessoa é, portanto, o destino de expectativas normativas, o titular dos deveres e, enquanto titular de direitos, dirige tais expectativas a outras pessoas” [19].
Contudo, a pessoa só pode ser tratada como tal quando age e se conduz em conformidade com a norma. Caso contrário, converte-se em uma não-pessoa ou inimigo, “quando se comporta permanentemente como um diabo” [20]. O inimigo, na visão do penalista, é aquele que não oferece um mínimo de garantia cognitiva. Não é o mero delinquente comum, mas aquele que abandona o Direito e que, através de sua conduta, não garante um mínimo de segurança cognitiva.
Nesse sentido, segundo Jesús- María Silva Sánchez:
“O inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental. Em todo caso, é alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta este déficit através de sua conduta. (…) a característica do inimigo é o abandono duradouro do Direito e a ausência de mínima segurança cognitiva de sua conduta” [21].
Desta maneira, observa-se que o tratamento de inimigo dispensado a determinados indivíduos é reflexo de sua própria atitude não confiável ou perigosa em relação às expectativas normativas. Observa-se que “somente é inimigo quem realiza a conduta consagrada na expectativa negativa de ação contida na norma penal que estabelece a proibição” [22].
O inimigo é, pois, aquele que, de maneira duradoura, abandona o Direito, fazendo-o em função de seu comportamento, de sua atuação profissional ou através da ligação a uma organização de fins criminosos. Assim, o agente infrator, em sua atuação ou comportamento (exemplo: delitos sexuais), através da forma como conduz a sua vida e em função do seu meio de convivência (criminalidade econômica, criminalidade organizada, criminalidade ligada ao tráfico de drogas) ou em razão de sua participação em uma organização criminosa não traz uma garantia mínima de cumprimento das expectativas normativas geradas pelo ordenamento jurídico penal. Por consequência, são exemplos de agentes infratores que se colocam como inimigos os criminosos econômicos, os terroristas, os membros de organizações criminosas, entre outros [23].
Diante desse quadro, entende-se que o Direito Penal do cidadão só criminaliza fatos exteriorizados, reagindo contra a violação do ordenamento através da pena, a qual reafirma e confirma a configuração normativa da sociedade.
Já o Direito Penal do inimigo, aplicado àqueles que abandonam de forma permanente o Direito e a própria sociedade, é marcado por uma interceptação que antecede em muito a lesão ao bem jurídico. Não se privilegia a liberdade do infrator, mas a segurança da sociedade. O Direito Penal do inimigo não reage a fatos ou situações, mas a autores, em função de sua periculosidade, já que, de certa forma, “o Direito penal do inimigo é um Direito punitivo policial ou de ordem, com um revestimento jurídico-penal” [24].
Por isso, pode-se concluir que contrariamente ao Direito Penal do cidadão, o Direito Penal do inimigo significa apenas coação e nada mais, pois este combate perigos, enquanto o Direito penal do cidadão visa, sobretudo, garantir a vigência da norma [25]. O Direito Penal do inimigo é “somente coação física, até chegar à guerra” [26].
2.2.2. Características do Direito Penal do Inimigo
Desenvolvida a importante distinção entre pessoa e inimigo, que norteia toda a teoria ora estudada, é possível elencar as características essenciais do Direito Penal do Inimigo, conforme bem explicita o próprio penalista alemão.
Segundo Manuel Cancio Meliá, o Direito Penal do Inimigo, construído por Jakobs, pode ser sintetizado por três caracteres básicos:
1. Há o adiantamento da punibilidade, criando-se a ideia de um ordenamento jurídico-penal prospectivo, com referência ao futuro, e não mais retrospectivo, que visa o fato cometido.
2. Há o estabelecimento de penas desproporcionalmente elevadas. As penas não são reduzidas em função da antecipação da barreira punitiva.
3. Há a relativização de garantias penais e processuais penais [27].
Nesse contexto, o próprio penalista germânico também elenca quatro características essenciais de sua teoria, quais sejam: antecipação da punibilidade; penas severas e altas; prevalência da defesa em relação aos perigos, e não da limitação do poder punitivo estatal; relativização de garantias processuais penais dos indivíduos perigosos [28].
No que tange à antecipação da tutela penal, observa-se que o Estado passa a adiantar a criminalização e a tipificação penal, passando não mais a tipificar apenas as condutas exteriorizadas. Para o inimigo, tipificam-se ainda as condutas não exteriorizadas, isto é, as condutas planejadas. Tem-se, aí, a grande característica do Direito Penal do Inimigo, a qual se encontra no “adiantamento do âmbito de incidência da punibilidade, que passa a adotar um enfoque prospectivo (pune-se o fato criminoso futuro), ao invés do tradicional enfoque retrospectivo (criminalização do fato já consumado)” [29].
Destarte, a norma penal, em relação ao inimigo, passa a abarcar novos fatos e situações, ampliando demasiadamente seu âmbito de incidência, sobretudo com a tipificação de condutas que em muito antecedem a lesão ao bem jurídico tutelado. Portanto, aproxima-se perigosamente do Direito Penal do autor, ao incriminar determinado indivíduo pelo que ele é ou pensa, e não pelas condutas praticadas, entendendo-se o inimigo como uma ameaça permanente à própria vigência do ordenamento jurídico.
Assim sendo, entende Manuel Cancio Meliá que há que se falar na eliminação substancial da diferença entre preparação e tentativa, entre autoria e participação, inclusive com a penalização severa da mera participação em organização criminosa ou terrorista, aproximando seu conceito de organização para fins políticos. Verifica-se que, “mediante sucessivas ampliações, se tem alcançado um ponto no qual ‘estar aí’ de algum modo, ‘fazer parte’ de alguma maneira, ‘ser um deles’, ainda que só seja em espírito, é suficiente. [30].
Nesse contexto, exemplos clássicos de antecipações são os delitos de associações terroristas previstos pelo Direito Penal alemão e punidos com penas elevadas, considerando-se tais agentes como inimigos, que não oferecem segurança cognitiva alguma à sociedade. Sendo assim, para não contaminar o Direito Penal do cidadão, eivando de vício suas qualidades em um Estado de Direito, tais como a reação apenas a condutas exteriorizadas, sem a punição de atos preparatórios, o respeito as garantias do delinqüente etc, “deveria chamar de outro modo aquilo que tem que se fazer contra os terroristas, se não se quer sucumbir, isto é, se deveria chamar Direito Penal do inimigo, guerra contida” [31].
Observa-se ainda, como característica inafastável desta teoria, a punição dos atos preparatórios e a proliferação dos tipos penais de mera conduta e dos tipos de perigo abstrato. São crimes de mera conduta aqueles em que o mero comportamento do agente já é suficiente para a caracterização do delito, exaurindo o tipo legal, ou seja, basta a realização do comportamento para a realização do delito, não se exigindo resultado naturalístico [32].
Em relação aos crimes de perigo abstrato, apenas o perigo já é a razão para que o legislador crie o tipo penal, vedando uma determinada conduta. Tal perigo não precisa ser demonstrado ou comprovado, já que é presumido, entendendo-o como “inerente à ação ou omissão” [33].
No que tange à punição dos atos preparatórios, no âmbito do Direito Penal aplicado ao inimigo, e não ao cidadão, criam-se condutas típicas que antecipam a punição a um âmbito prévio à comissão de qualquer fato, em função da falta de segurança cognitiva que se presume em relação ao inimigo. Isto porque, este abandona de forma permanente o Direito[34]. Criminalizam-se, por exemplo, as condutas de mera participação em organizações criminosas e ainda os delitos de instigação ao ódio racial ou de exaltação de autores de crimes ou de fatos criminosos [35].
Fala-se ainda na intensificação da proteção de bens jurídicos, que é marcada, precipuamente, por um endurecimento das penas: passa-se a impor penas elevadas e desproporcionais. Segundo Jakobs, a pena é coação, em uma dupla medida. Em primeiro lugar, ela representa uma resposta ao fato delituoso e ao delinquente, uma reafirmação de que, apesar do delito praticado, a norma continua vigente. Isto porque, o delito significa um ataque à vigência da norma, uma desautorização ao sistema normativo. A pena reafirma a vigência do ordenamento.
Por outro lado, a pena tem ainda o caráter coativo, já que “a pena não apenas significa algo, mas também produz fisicamente algo” [36], uma vez que priva o agente da possibilidade de cometer novos crimes enquanto estiver privado de sua liberdade pela pena privativa. Tais funções da pena, que geram coação nesse duplo sentido (coação-reafirmação e coação- privação) valem para o Direito Penal dos cidadãos.
Entretanto, diante do Direito Penal do Inimigo, a pena significa apenas coação física, tendo em vista que o Direito Penal do cidadão visa, sobretudo, manter e reafirmar a vigência da norma, ao passo que o Direito Penal do inimigo quer combater perigos, tornando inócua a ação de agentes. Como o indivíduo perigoso (inimigo), recusa-se a entrar em um estado de cidadania e, portanto, não pode ter os mesmos benefícios dirigidos à pessoa (cidadão), a pena visa, principalmente, proteger a sociedade de atos lesivos futuros. A pena privativa, cada vez mais dura, é, pois, forma de privar a sociedade do convívio com o inimigo. É apenas coação física. No caso do inimigo, “há que se compensar um déficit de segurança cognitiva” [37].
Portanto, em primeiro plano, visa-se proteger a sociedade frente a um agente perigoso, mediante uma pena extensa. A intimidação e o isolamento do agente perigoso justificam as penas elevadas que são previstas, sobretudo, para as associações terroristas na Alemanha. Visa-se, primordialmente, não mais a manutenção da vigência do ordenamento, mas a garantia da segurança da sociedade. Logo, tem-se que o “Direito Penal do cidadão, garantia do ordenamento jurídico, se transmuta em defesa a riscos” [38].
Expressando-se sobre o tema, Cancio Meliá entende que há uma forte carga de Direito Penal simbólico e expansão do punitivismo estatal, numa combinação entre ambas as figuras. Nesse sentido, o punitivismo, marcado pela ideia do aumento de pena como ferramenta única de controle da criminalidade se liga ao Direito Penal simbólico, que visualiza a criação de tipos penais como forma de criação de uma identidade social, “dando lugar ao código do direito penal do inimigo” [39].
Por fim, mas não menos importante, fala-se ainda na relativização, restrição e até mesmo supressão de garantias penais e processuais penais dos agentes infratores que se encontram “vestidos sob a roupagem do inimigo” [40].
Passa-se a questionar a própria presunção de inocência, com a introdução de medidas de ampla intervenção nas comunicações para fins investigativos, bem como com a ampliação dos casos de incomunicabilidade. Ampliam-se ainda os prazos de prisões provisórias para a investigação, bem como se restringe o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare, relativizando-se o princípio segundo o qual não se pode exigir que o acusado produza provas contra si mesmo [41].
A relativização das garantias melhor se visualiza no processo penal. Neste, há inúmeras formas de coação, tais como a prisão preventiva, as extrações de sangue e produções de prova que exigem o fornecimento de material biológico pelo réu, a intervenção nas comunicações, as investigações secretas, entre outras. Essas medidas apenas se justificam quando a coação física não se dirige contra a pessoa, “mas contra os indivíduos que, com seus institutos e medos, põe em perigo o curso ordenado do processo, isto é, conduzem-se, nessa medida, como inimigos” [42]. Essas medidas não devem se dirigir à pessoa, ao cidadão, que age conforme o Direito, garantindo um mínimo de expectativa normativa, mas apenas contra o inimigo, que se coloca frontalmente contra o ordenamento jurídico-penal vigente.
De tal modo, essas medidas se destinam aos indivíduos que não mais assumem uma postura de conformidade frente ao Direito, mas que se colocam definitivamente contra o este, abandonando-o de forma permanente. Tais indivíduos “já não são tratados plenamente como cidadãos, como pessoas em direito e que, de fato, dificilmente poderiam ser tratados como pessoas” [43].
Frente a esses indivíduos, inimigos ou não pessoas, que não oferecem garantia cognitiva suficiente, permite-se tudo o que seja necessário para assegurar a segurança da sociedade. Este a ser o grande objetivo do ordenamento jurídico penal frente aos inimigos. Para concluir, contemplando o tema, Manuel Cancio Meliá, citando a concepção de velocidades do Direito Penal, criada por Jesús- María Silva Sánchez, afirma que se pode pensar o Direito Penal do Inimigo como Direito de terceiro velocidade, “no qual coexistem a imposição de penas privativas de liberdade e, apesar de sua presença, a “flexibilização dos princípios político-criminais e as regras de imputação” [44]
Em apertada síntese, são esses os elementos caracterizadores do Direito Penal do Inimigo.
2.2.3. Reflexos do Direito Penal do Inimigo nos ordenamentos jurídico-penais
O Direito Penal do Inimigo, acima exposto, fez-se sentir em vários dispositivos da legislação pátria e estrangeira, os quais acabaram por contaminar o Direito Penal do cidadão. Isto foi considerado, por muitos autores, como inadmissível, especialmente nos ordenamentos jurídico-penais dos Estados Democráticos de Direito. Tais dispositivos têm sido alvo não apenas de críticas doutrinárias, mas os próprios Tribunais pátrios foram chamados a enfrentar a questão, para declarar a (in)constitucionalidade desses atos normativos.
Na verdade, o Direito Penal do Inimigo não constitui essencialmente uma construção nova. Isto porque, ao longo da história do Direito Penal, tal formulação sempre esteve presente, como, por exemplo, no Direito Penal medieval, no qual “eram considerados como inimigos, que teriam que ser castigados com uma morte cruel (…) os hereges, os pederastas, os autores de delitos de majestade” [45].
Modernamente, o Direito Penal do Inimigo tem se mostrado presente, principalmente, nas legislações de combate ao crime organizado, ao crime econômico e, sobretudo, ao terrorismo. De fato, após os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono em 11 de setembro de 2001, seguiu-se uma legislação de caráter autoritário-repressivo no ordenamento estadunidense, que acabou por influenciar a legislação de muitos outros países, principalmente na Europa.
Nos Estados Unidos, pouco após o trágico atentado de 11 de setembro de 2001, o Senado aprovou a Uniting and Strengthening America by Providing Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001, conhecida como USA Patrioct Act, que se converteu em lei em 26 de outubro de 2001 [46].
Tal ato representou uma dura reação aos atentados terroristas. No sopesamento entre defesa/segurança nacional e liberdades e garantias individuais, restou claro que o Senado americano optou pelo primeiro valor em jogo, a segurança nacional, com uma drástica redução da liberdades, garantias e, sobretudo, dos procedimentos de habeas corpus.
Observa-se que houve uma ampliação da atuação policial, aumentando-se as possibilidades para realização de interceptações telefônicas ou telemáticas, de detenção, sem limitação temporal, de estrangeiros que praticam crimes previstos nas leis de imigração ou que, em qualquer caso, sejam considerados como “perigosos” à segurança e defesa nacional. Permitiu-se ainda “o confisco em bibliotecas, bancos, hospitais ou escolas de documentos relativos aos aspectos mais íntimos e pessoais da vida privada de cada indivíduo (desde seu estado de saúde a seu status econômico ou seus interesses intelectuais) [47]”.
Posteriormente, no ano de 2003, foi editado o Domestic Security Enhancement Act, conhecido como Patriot Act II, o qual, seguindo a mesma linha, também promoveu uma regulação violadora dos direitos e liberdades individuais dos cidadãos.
Na Alemanha, por sua vez, há dois grandes exemplos de manifestação do Direito Penal do Inimigo, através do adiantamento da tutela penal e do endurecimento das penas, de forma desproporcional. Neste país, o crime de participação em organizações criminosas ou terroristas é gravemente punido, com penas que chegam até dez anos de prisão. Em 22/08/2002, criou-se um novo tipo penal, prescrito no parágrafo 129b do StGB, que pune a constituição de organizações terroristas no estrangeiro, representando “um exemplo adicional da antecipação da punibilidade” [48].
Ademais, nesse país, recentemente também se criou um novo tipo penal, seguindo essa tendência de criminalização de comportamentos considerados perigosos no âmbito prévio à lesão de um bem jurídico, consistente na responsabilização criminal daquele que, mediante escritos, influencia uma criança com a intenção de levá-la à realização de atos sexuais (parágrafo 176.4, n. 3º StGB). Observando tal tipo legal, verifica-se uma ampla antecipação da punibilidade, “que ameaça de pena uma tomada de contato objetivamente carente de relevância unicamente pelas intenções perseguidas para um momento posterior (…) não somente tem uma configuração demasiado ampla, mas também é incoerente” [49].
Ainda neste país, em 27/12/2003, entrou em vigor uma lei agravando as penas para os crimes de pornografia infantil e abuso sexual de crianças, elevando as penas mínimas e tornando obrigatória a pena privativa de liberdade, inclusive, para casos menos graves, nos quais não houve contato corporal (exemplo: exibição de imagem pornográfica a criança). Eis, aqui, outro marco do Direito Penal do Inimigo, consubstanciado no incremento de tendências punitivas, com o endurecimento das penas impostas aos tipos penais.
No Brasil, muitos autores entendem que um dos grandes exemplos de manifestação do Direito Penal do Inimigo estaria na Lei 8.072/90, que elenca os crimes hediondos. Tal lei foi marcada pela adoção de políticas criminais duras aos crimes ali citados. Inicialmente, havia a imposição de regime inicial de cumprimento de pena integralmente fechado, vedando a progressão de regime, o que feria de morte o princípio da individualização e da humanidade das penas. Ademais, a lei vedava a liberdade provisória para estes crimes.
Entretanto, no HC 82.959-7/SP, em 2006, o STF entendeu pela inconstitucionalidade da vedação da progressão de regimes. Em 2007, o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.464/2007, que passou a admitir a progressão de regime para os agentes condenados pela prática de crimes hediondos [50].
Também se costuma elencar como exemplo de legislação que traz dispositivos de Direito Penal do Inimigo a Lei 11.343/2006, a nova lei de drogas, que foi marcada por um endurecimento das penas e do tratamento dispensado aos crimes de tráfico de drogas, inclusive com a vedação de liberdade provisória, assim como previsto pela Lei de crimes hediondos. Muito se discute ainda sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), introduzido na Lei de Execuções Penais pela Lei 10.792/2003 e considerado, por muitos, como clara manifestação da teoria do penalista alemão Günther Jakobs em nosso ordenamento. É este instituto jurídico que se passa mais detidamente a analisar.
3. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)
3.1 As origens do RDD no ordenamento brasileiro e a Lei 10.792/03
A origem do Regime Disciplinar Diferenciado no ordenamento jurídico-penal brasileiro encontra-se na Resolução nº 26, de 04/05/2001, da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, que foi, posteriormente, modificada por sucessivas resoluções, com destaque para a Resolução nº 49, de 17/07/2002, que disciplina o direito de visita e as entrevistas com advogados no RDD. A Resolução SAP 26 autorizou um novo regime de cumprimento de pena, a ser aplicado nos estabelecimentos prisionais de Taubaté, Iaras e Presidente Bernardes.
Referido regime, segundo artigo 1º da resolução, deveria ser aplicado aos líderes e integrantes de facções criminosas e presos cujo comportamento exigisse tratamento específico. Trazia ainda, no artigo 4º, a previsão de prazo máximo de permanência no regime de 180 dias, na primeira inclusão, e de 360 dias, nas demais. No artigo 5º, elencava as regras do RDD que deveriam necessariamente ser observadas para garantir os interesses dos presos[51].
Referidas resoluções, na verdade, representaram uma resposta a uma grande rebelião ocorrida no Estado de São Paulo, no início de 2001, que envolveu várias unidades prisionais da Secretaria de Segurança Pública do Estado, como as unidades de São Bernardo e Tremembé.
Em 04/02/2002, editou-se a Medida Provisória 28, que institui, em âmbito federal, o citado regime. Porém, tal medida vigorou por pouco tempo, tendo em vista que a medida provisória não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional [52]. Em 2003, o Regime Disciplinar Diferenciado também foi instituído no Estado do Rio de Janeiro, pela Resolução 08 de 07/03/2003.
A morte de juízes que atuavam em Varas de Execução Penal, em São Paulo e no Espírito Santo, no ano de 2003, por membros de organizações criminosas, a pressão popular, a comoção social, a histeria da mídia de massa e ainda a clara crise do sistema penitenciário levaram à rediscussão do projeto de lei 5.073 de 2001. Tal projeto, após discussões e alterações, deu origem à Lei 10.792/2003, de 01º de dezembro de 2003 [53].
A Lei 10.792 alterou a Lei 7.210 de 11 de junho de 1984 (Lei de Execuções Penais), para incluir este novo regime de cumprimento de pena, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Nesse sentido, destaca-se, sobretudo, a alteração do artigo 52, que passou a vigorar nos seguintes termos:
“Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave, e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:
I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo da repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;
II – recolhimento em cela individual;
III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;
IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.
§ 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem ou a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
§ 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”. (grifos nossos)
Assim, relevantes alterações foram introduzidas por referida lei, as quais geraram importantes discussões na doutrina. Produziram-se fortes reações doutrinárias contrárias, mormente em função de alegadas violações a determinadas garantias fundamentais, principalmente em relação à humanidade da execução da pena.
Inclusive, houve quem apontasse que as conseqüências do regime, a longo prazo, haveriam de realimentar a violência, a insegurança e o arbítrio no sistema penitenciário brasileiro.
3.2 Hipóteses que autorizam a inclusão no RDD: o réu como inimigo?
O Regime Disciplinar Diferenciado pode ser aplicado para três situações:
1 A prática de fato previsto como crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas.
Aqui, verifica-se que o legislador faz uso da expressão “subversão da ordem ou disciplina internas”. Trata-se de expressão vaga, imprecisa. De fato, o que é subverter a ordem ou disciplina internas? Na verdade, sabe-se que a ordem e a disciplina prisionais internas são extremamente frágeis e podem ser afetadas por infindáveis motivos. Parece muito difícil, ou praticamente impossível, conceituar subversão da ordem e disciplina internas e, mais ainda, delimitar o seu campo de incidência.
Abre-se, portanto, uma margem de arbitrariedade inaceitável, possibilitando-se que se puna, com o regime de cumprimento mais severo, uma gama indeterminada de situações. Trata-se, aqui, de uma ampliação do âmbito punitivo, do poder de punir estatal, típico do Direito Penal do Inimigo.
Verifica-se claramente, pois, a violação do Princípio da legalidade, que tem, entre os seus desdobramentos, a exigência de taxatividade das leis penais (Princípio da taxatividade ou da determinação), isto é, a lei deve ser suficientemente clara e precisa na formulação de seu conteúdo, evitando-se o arbítrio judicial através da certeza da lei.
Para tanto, proíbe-se a utilização desmedida de cláusulas gerais, casuísmos, conceitos indeterminados ou vagos. Há, aqui, uma garantia ao réu, pois “o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante constitui uma autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade” [54]. Assim, tem-se que o princípio da legalidade é uma garantia ao cidadão contra o poder punitivo estatal, garantia esta que se vê relativizada pela disposição deste artigo 52, caput, da Lei de Execução Penal. Eis, aqui, outra característica do Direito Penal do Inimigo: a relativização de garantias do réu.
2. Presos que apresentem alto risco para a ordem ou a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
Mais uma vez, o legislador fez uso de expressões vagas, imprecisas e indeterminadas, ao falar em “alto risco para a ordem ou segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”. De fato, há evidentes dificuldades de definição do critério para considerar uma situação específica como sendo de alto risco. Segundo Nilo Batista, o uso dessas expressões vagas pode trazer consequências nefastas e perigosas [55]. Por outro lado, Francisco Toledo entende que a clareza e certeza das leis são necessárias, para que “possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano” [56], tornando-se acessível não apenas aos juristas, mas a todos.
Observa-se que, como na situação anterior, expõe-se o agente à arbitrariedade e à subjetividade da autoridade penitenciária, em uma clara relativização do princípio da legalidade, enquanto garantia fundamental do réu. Ademais, o artigo consagra claramente um adiantamento da punibilidade, já que o agente é colocado em regime de cumprimento de pena mais severo sem ter ainda cometido qualquer ato ou sem ter exteriorizado conduta que o autorize. Fala-se, inclusive, em uma responsabilidade pré-delitual, que antecede a realização de qualquer fato típico [57].
Por fim, outra clara manifestação do Direito Penal do inimigo neste dispositivo encontra-se em sua perigosa aproximação ao Direito Penal do autor. Isto porque, o agente se submeterá a severo regime de cumprimento de pena em função do que é, isto é, um agente considerado de alto risco para o estabelecimento prisional ou para a sociedade, e não pelo que ele fez. Nesse sentido, entendendo o Direito Penal do inimigo como Direito Penal do autor, é a concepção crítica de Cancio Meliá que, ao discorrer sobre a concepção de Gunther Jakobs, entende que “dificilmente pode parecer exagerado falar de um Direito penal do autor” [58].
Segundo Paulo César Busato, essa “iniciativa conduz, portanto, a um perigoso Direito penal de autor, onde não importa o que se faz ou omite (o fato), e sim quem – personalidade, registros e características do autor – faz ou omite (a pessoa do autor)” [59]. Portanto, tal dispositivo não se dirige a fatos, mas a uma determinada classe de autores. Torna-se mais difícil a vida de determinados agentes no estabelecimento prisional não em função de condutas exteriorizadas (prática de delitos), mas sim por representarem o inimigo social, isto é, por não ofereceram garantia cognitiva suficiente de seu comportamento.
3. Presos sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.
Também neste dispositivo existem claras manifestações da aplicação da teoria do penalista alemão Jakobs. Isto porque, segundo o dispositivo supracitado, a mera suspeita fundada de envolvimento ou participação em organização criminosa já autoriza a submissão do agente a regime de cumprimento de pena mais grave. Há uma relativização das garantias de ampla defesa e do contraditório e, sobretudo, da presunção de inocência, todos estes constitucionalmente garantidos, uma vez que a mera suspeita já justifica um tratamento diferenciado.
Mais uma vez o legislador brasileiro, em sua ânsia punitiva, ao impor uma fórmula de execução da pena diferenciada para agentes sobre os quais recaem meras suspeitas de participação em organizações criminosas, nada mais faz do que eleger determinados agentes, consagrando-os como inimigos sociais.
Segundo Paulo César Busato, o RDD corresponde, pois, a uma “política criminal expansionista, simbólica e equivocada” [60]. Verifica-se que o Regime Disciplinar Diferenciado encontra respaldo na concepção dogmática de Jakobs, promovendo uma inaceitável violação de direitos fundamentais, incompatível com o nosso ordenamento jurídico-penal, que é fruto de um Estado Democrático de Direito, o qual possui, como um de seus fundamentos, a própria dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, Constituição de 1988).
Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) apresenta uma aproximação com as ideias desenvolvidas por Günther Jakobs, no que tange a sua concepção sobre o Direito Penal do Inimigo. Isto porque, este regime mais rigoroso de cumprimento de pena é imposto a agentes em situações nas quais se analisam não as condutas exteriorizadas, mas as características pessoais do autor (“alto risco”, “fundada suspeita”). Utilizam-se expressões vagas e indeterminadas para estabelecer as situações nas quais se admite a submissão do agente ao referido regime, ferindo de morte o Princípio da Legalidade, entre outros direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Natália Berti
Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. Pós-graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Pitágoras, em Uberlândia-MG. Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia.