O relativismo do valor justiça: lições de Perelman e uma reflexão crítica

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Resumo: Este trabalho visa refletir sobre a noção de justiça, também conhecida por sentimento de justiça, que se manifesta por meio de diversas teorias da justiça. Prevalece hoje o entendimento pelo relativismo da justiça, segundo o qual não pode haver uma concepção absoluta, pois cada teoria seria uma mera visão particular de justiça. Analisa-se detalhadamente a visão de Perelman, conhecido relativista do século XX. Todavia, após exposição da visão de Perelman, apontamos problemas que reputamos questionáveis em sua teoria. Outras críticas são dirigidas por nós contra o relativismo em geral, críticas que reputamos sérias o suficiente para caminharmos em sentido contrário, pois nosso entendimento é pela efetiva possibilidade de existência uma concepção absoluta de justiça.


Palavras-chave: Justiça, Relativismo, Perelman, Arbitrariedade,Crítica.


Abstract: This work aim to investigate the notion about justice, also known as the sense of justice, which manifests itself through various theories of justice. Nowadays prevails the understanding about the relativist feature of justice’s notion, according to the impossibility or inexistence of such absolute conception, because every theory would be merely a particular view of world about what is justice. It analyzes in detail the view of Perelman about justice, famous relativistic of twentieth century. However, after exposure of Perelman’s theory, we show points that we consider serious problems in his theory.  After this, we make additional reflections against relativism in general, whose problems are considered by us too serious to agree with the relativists. It’s because our understanding agrees the real possibility of existence of an absolute conception of justice or an absolute sense of justice.


Sumário: 1. Sobre o relativismo da justiça. 2. A justiça na concepção de Perelman. 2.1 As concepções particulares de justiça e a justiça formal. 2.1.1 A cada qual a mesma coisa. 2.1.2 A cada qual segundo seus méritos. 2.1.3 A cada qual segundo suas obras. 2.1.4 A cada qual segundo suas necessidades. 2.1.5 A cada qual segundo sua posição. 2.1.6 A cada qual segundo o que a lei lhe atribui. 2.2 Conclusões acerca da justiça formal. 2.3 As antinomias da justiça e a equidade. 2.4 Igualdade e regularidade. 2.5 Da arbitrariedade na justiça. 2.6 Conclusão de Perelman. 3. Reflexão crítica sobre o relativismo de Perelman. 3.1 Pontos específicos criticáveis na teoria de Perelman. 3.2 Outras observações: críticas ao relativismo em geral. 4. Breves conclusões. Referências bibliográficas.


1. Sobre o relativismo da justiça


Por ser a justiça uma noção que divide inúmeros pensadores, uma forma de sistematização das diversas linhas de pensamento sobre esse tema pode assim ser compreendida: de um lado, os adeptos de uma concepção absoluta da justiça, que entendem poder haver uma noção válida para todos os tempos e para as mais diversas sociedades; de outro lado, os adeptos de concepções relativas da justiça, que reputam descabido um conceito de justiça que não seja produto de uma dada sociedade e de uma dada época.


Poderíamos, ainda, vislumbrar uma corrente mais cética no meio dos relativistas: aqueles que acreditam que cada indivíduo guarda suas próprias noções do que seja justo e injusto, de um tal modo que seria impossível, até mesmo dentro de uma mesma família, obter um conceito unânime de justiça. Ora, para essa corrente, se dois indivíduos dificilmente obterão consenso sobre uma noção única de justiça, se a própria família em que se convive não permite um conceito único, nada mais resta que resignar-se a não buscar a noção do que seja justo ou injusto numa sociedade, posto que numa coletividade de inúmeros integrantes, a probabilidade de um conceito único seria certamente nula. Todavia, para fins de simplificação, pode-se enquadrar esse grupo de céticos na modalidade dos relativistas, já que sua visão não passa de um maior acirramento das “desconfianças” dos relativistas mais moderados.


Antes de procedermos na defesa de uma teoria de justiça que vele por uma noção absoluta, afigura-se-nos bastante pertinente analisar uma teoria de justiça do grupo que caminha em sentido contrário ao nosso pensamento, a fim de enriquecer o debate (ou melhor, o embate) entre as duas concepções contrárias. Realizar esse confronto direto é um interessante caminho que pode sugerir argumentos em favor de um dos dois blocos principais de pensamento.


Nesse intuito, elegemos os ensinamentos de Perelman[1] como uma das teorias relativistas de justiça mais influentes na atualidade. No tópico seguinte faremos sucinta exposição das idéias desse autor sobre a justiça, extraídas de seu artigo denominado “Da Justiça”[2]. Em momento posterior, procederemos às críticas oportunas não só sobre a sua teoria, como também ao relativismo em geral.


Vejamos, agora, a teoria da justiça para Perelman.


2. A justiça na concepção de Perelman


Inicia Perelman reconhecendo que o termo “justiça” é uma palavra muito forte de per si, carregada de elevado cunho emotivo, de modo que não seria nada indiferente buscar a sua correta definição, posto que é nesse tipo de discussão que reside o campo de batalha do mundo espiritual não só dos indivíduos, mas de toda a filosofia[3]. Busca então o autor retirar-lhe toda a carga emotiva, por entender ser este o preço a se pagar para que se possa obter o consenso do que seja justiça, se é que tal consenso é racionalmente possível[4].


Citando Proudhon[5], Perelman ilustra a enorme relevância da noção de justiça para a humanidade, de modo tão eloqüente quanto a colocação de Kelsen (vide a introdução do presente trabalho):


“A justiça, sob diversos nomes, governa o mundo, natureza e humanidade, ciência e consciência, lógica e moral, economia política, política, história, literatura e arte. A justiça é o que há de mais primitivo na alma humana, de mais fundamental na sociedade, de mais sagrado entre as noções e o que as massas hoje reclamam com mais ardor. É a essência das religiões, ao mesmo tempo que a forma da razão, o objeto secreto da fé, e o começo, o meio e o fim do saber. Que imaginar de mais universal, de mais forte, de mais perfeito do que a justiça?”


Já prenunciando a sua postura relativista, Perelman afirma, citando Dupréel, que a justiça não é uma noção suscetível de demonstração infalível, mas uma mera convenção, que consiste em defini-la de determinada maneira, de uma tal forma que, em havendo um debate ou mesmo litígio, cada parte adotará uma concepção de justiça que lhe dará a razão e deixará o adversário em posição desvantajosa[6]. Em seguida, enumera o autor aquilo que entende ser as concepções mais correntes de justiça, para revelar-lhes a incompatibilidade de aplicação simultânea, bom como para buscar o substrato comum de cada noção.


2.1 As concepções particulares de justiça e a justiça formal


Eis as diversas fórmulas de justiça mais correntes nas construções do pensamento filosófico ilustradas por Perelman[7]: 1) a cada qual a mesma coisa, 2) a cada qual segundo seus méritos, 3) a cada qual segundo suas obras, 4) a cada qual segundo suas necessidades, 5) a cada qual segundo sua posição, 6) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.


Ora, a noção de justiça, de Platão e Aristóteles, até os contemporâneos, residiria num ponto comum incontroverso: a idéia de justiça seria a aplicação de uma certa igualdade. Aristóteles já observava a necessidade de haver uma dada semelhança entre os seres aos quais se aplicaria a justiça. Historicamente, aponta Perelman, a idéia de justiça aplicava-se aos membros de uma mesma família, para estendê-las depois aos membros da tribo, aos habitantes duma cidade, de um território, até que, por fim, se chegasse a uma justiça de todos os homens[8].


Cada vez que se usa em cada uma das fórmulas o “cada qual”, pressupõe-se uma diferença entre os seres segundo um critério eleito (como a necessidade, ou como o mérito, entre outros). Após eleger um tal critério, criam-se grupos distintos, e cada membro do mesmo grupo é igual a qualquer outro do mesmo grupo, pelo critério que os assemelha e, ao mesmo tempo, os distingue dos componentes de todos os demais grupos. As divergências ocorrem quando se tenta eleger um critério específico em detrimento dos outros: cada defensor de uma teoria de justiça defenderá um critério que importará mais que os sugeridos por outros. Assim é que haverá quem defenda o critério da necessidade de cada um, outros defenderão o mérito, outros defenderão a posição, e assim sucessivamente[9].


Todavia, embora haja divergências inconciliáveis, Perelman aponta o substrato comum a todas as noções[10]:


“Seja qual for o desacordo deles sobre outros pontos, todos estão, pois, de acordo sobre o fato de que ser justo é tratar da mesma forma os seres que são iguais em certo ponto de vista, que possuem uma mesma característica, a única que se deva levar em conta na administração da justiça. Qualifiquemos essa característica de essencial. Se a posse de uma característica qualquer sempre permite agrupar os seres numa classe ou categoria, definida pelo fato de seus membros possuírem a característica em questão, os seres que têm em comum uma característica essencial farão parte de uma mesma categoria, a mesma categoria essencial.”


Assim é que conclui o autor pela definição da justiça formal ou abstrata como “um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”[11].


Essa noção é formal porque não explicita qual o critério que diferenciará os seres, ou seja, não informa quais são os diversos grupos que devem haver, nem informa como se deve tratar cada um deles: tudo o que se sabe é que deve-se tratar os que estiverem no mesmo grupo de uma mesma maneira. Logo, por não determinar as categorias que são essenciais para a aplicação da justiça, não haverá quem se oponha a tal critério, por ser comum a todas as noções de justiça. O desacordo surgirá quando se tratar de eleger o critério essencial para a aplicação da justiça, ou, mais precisamente, “no momento de passar de uma fórmula comum da justiça formal para fórmulas diferentes da justiça concreta”[12].


Em seguida, mostra Perelman como cada uma das fórmulas concretas enunciadas não passam de determinações diferentes da mesma concepção de justiça formal.


2.1.1 A cada qual a mesma coisa


Nessa concepção, todos os seres devem ser tratados da mesma forma, sem que se leve em consideração quaisquer particularidades que os distingam. Afirma Perelman que o fato perfeitamente justo é a morte, em virtude de atingir a todos os homens indistintamente[13]. Esta seria a única concepção puramente igualitária, já que as demais exigem a aplicação de um certo critério distintivo: efetivamente, aqui, todos os seres aos quais se pretenda aplicar a justiça pertencem a uma única categoria essencial.


Todavia, cumpre mostrar a ressalva de Perelman, segundo o qual esse igualitarismo não é necessariamente humanitário: pode ocorrer de, ao invés de se pretender a aplicação a todos os homens – e essa seria a aspiração mais humanitária –, um grupo social que se considere a classe superior, ou única classe com direitos e deveres, valendo a justiça apenas para esse grupo, excluindo os demais membros da população[14]. Tal era o que ocorria na antiga Esparta, cuja classe superior era a dos aristocratas.


Perelman demonstra o seu total ceticismo para com essa fórmula nos termos seguintes[15]:


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“Logo,vê-se que a fórmula igualitária da justiça pode, em vez de testemunhar um apego a um ideal humanitário, não constituir senão um meio de fortalecer os laçoes de solidariedade entre os membros de uma classe que se considera incomparavelmente superior aos outros habitantes do país.”


2.1.2 A cada qual segundo seus méritos


Aqui já não se exige a igualdade de todos, mas um trato proporcional aos méritos, deméritos, sacrifícios e intenções. Para fazerem parte de uma mesma categoria essencial, devem os membros ter mérito e, mais que isso, tê-lo no mesmo grau valorado de intensidade[16]. Para seguir a proporcionalidade é evidente que as recompensas variem na mesma medida que o mérito. O demérito também deve ser levado em consideração quando se deseja não só recompensar, como também punir. O sistema se encarregará de definir os valores particulares que influirão decisivamente nas atribuições.


Podemos acrescentar, e apenas a título de esclarecimento, já que o autor não o fez, que é aqui que se definirá, por exemplo, se o direito penal de um país será um direito penal do fato ou do autor, se haverá ou não responsabilidade objetiva, quais os bens jurídicos que merecerão maior punição, dentre inúmeras outras decisões legislativas.


2.1.3 A cada qual segundo suas obras


Aqui também aplica-se uma proporcionalidade, só que o parâmetro essencial já não é mais um critério tão moral como aquele que guia a concepção segundo os méritos (mostrada acima): aqui, independentemente dos sacrifícios ou esforços despendidos, premia-se segundo o resultado[17]. Essa apuração se dá com fatores facilmente mensuráveis, como o peso, a medida, as horas trabalhadas, as peças concluídas, os resultados de concursos públicos.


Outra comparação mostrada por Perelman também se faz relevante: enquanto o critério baseado no mérito tende à universalidade, permitindo aferir-se uma medida comum aplicável a todos os homens, o critério baseado apenas no resultado (obras ou conhecimentos), em sua essência bem mais simplista e pragmática, limita-se a comparar obras ou conhecimentos da mesma espécie[18] (exemplo: obras literárias, pontuação numa mesma prova).


2.1.4 A cada qual segundo suas necessidades


Essa fórmula de justiça é a que mais se aproxima da noção de caridade, pois busca reduzir os sofrimentos resultantes das privações de meios suficientes à provisão das necessidades mais básicas à vitalidade humana. A sua aplicação exige que sejam tratados da mesma forma aqueles que fazem parte de uma mesma categoria essencial do ponto de vista de suas necessidades[19].


A sutil distinção que se faz dessa concepção e da caridade reside no fato de que a caridade busca satisfazer as necessidades de cada indivíduo em particular, considerando-se os elementos psicológicos do indivíduo isoladamente considerado. Já a concepção de justiça segundo as necessidades elege e ordena o que entende por necessidades essenciais, de modo a formar diversas categorias essenciais, concedendo a cada uma delas – e cada categoria é um universo em que se abstrai de outros caracteres individuais não levados em consideração –  a devida “quantia”, que é igual entre os membros de um mesmo grupo, mas, na comparação entre diversos grupos, será proporcional à necessidade dos mais carentes[20]. As maiores discussões surgem quando se busca definir o que será entendido por necessidades essenciais, e qual a respectiva ordenação de prioridades entre elas.


2.1.5 A cada qual segundo sua posição


Essa é a fórmula aristocrática de justiça: tratam-se os seres não por características intrínsecas que os distingam, mas por fatores externos à sua vontade (geralmente, mas não necessariamente, o nascimento ou a nobreza), que os colocam em grupos e posições sociais diferentes. Caminha-se, aqui, em sentido contrário à tendência universalizante de outras justiças[21], pois dividem-se os homens em categorias diversas que continuarão a ter tratamentos diversos. Nada mais natural, portanto, que tais concepções sejam defendidas por aqueles que sejam os seus beneficiários, que se fazem reconhecer superiores quer “pela força conferida pelas armas, quer pelo fato de ser uma maioria defrontada com uma minoria sem defesa”[22].


Adverte Perelman[23], numa demonstração clara de repúdio a essa fórmula, que:


“Em geral, um regime só é viável se cada membro de sua classe superior é defrontado com suas responsabilidades e se os direitos que se lhe concedem resultam dos encargos que se lhe impõem. Quando os direitos particulares não coincidem com responsabilidades especiais, o regime não tardará, graças à arbitrariedade generalizada, a degenerar num favoritismo sistematizado, numa “república de amigos”.


Tais reflexões não se aplicam somente a regimes em que a superioridade vem com o nascimento, mas também a regimes diferentes, tal como o regime democrático. Com efeito, em cada regime existe uma classe superior, a que dispõe de força e de poder no estado. Um regime só será viável, com o correr do tempo, se as exigências impostas a essa classe forem inteiramente particulares e se a severidade com que se exigirá contas da gestão de cada qual for proporcional às responsabilidades assumidas.”


2.1.6 A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.


Essa fórmula contenta-se com a simples aplicação do direito positivo: justo é o juiz que aplica às mesmas situações as mesmas regras jurídicas. Essa concepção, ao contrário as outras (vistas anteriormente), “não se arvora em juiz do direito positivo, mas se contenta em aplicá-lo”[24]. Enquanto as outras concepções tendem a uma concepção moral da justiça, esta fórmula é a concepção propriamente jurídica da justiça; sobre essa distinção, eis as palavras ilustrativas do autor[25]:


“Aquele que julga, em moral, deve primeiro determinar as categorias segundo as quais julgará, depois ver quais são as categorias aplicáveis aos fatos; em direito, o único problema que se deve examinar é o de saber como os fatos considerados se integram no sistema jurídico determinado, como os qualificar. Em direito moderno, as duas instâncias, a que determina as categorias e a que as aplica, são rigorosamente separadas; em moral, estão unidas na mesma consciência.”


Fica evidente, para esse padrão, a conformidade do intérprete com os valores que foram eleitos pelo legislador quando da elaboração de normas de atribuição de direitos e deveres. Nessa perspectiva, o direito positivo jamais entraria em conflito com a justiça formal, pois aquele seria mera aplicação concreta da justiça formal, por meio da elaboração de categorias essências e atribuições correspondentes a cada grupo[26].


2.2 Conclusões acerca da justiça formal


Após analisar as principais concepções concretas de justiça, chegou Perelman ao conceito de justiça formal nos moldes já mencionados. Nada mais natural, segundo ele, que a evolução moral, política, econômica e social tragam consigo a mudança dos valores consagrados em dado contexto temporal-espacial, culminando em visões de mundo típicas de cada contexto, criando fórmulas diversas de justiça concreta[27]. Daí conclui-se que as concepções de justiça são conflitantes porque, quando cada um apresenta a sua, apresenta não só a justiça formal (que é reconhecida por todos), como uma aplicação concreta de alguma concepção do universo. Logo, quando houverem conflitos de concepções de justiça, os conflitos serão, na verdade, nos valores particulares que são elevados a patamares mais elevados em cada concepção concreta.


Eis em palavras oportunas a própria visão do autor[28]:


“Vê-se como a justiça formal é conciliável com as mais diferentes filosofias e legislações, como se pode ser justo concedendo a todos os homens os mesmos direitos, e justo concedendo direitos diferentes a diferentes categorias de homens, justo segundo o direito romano e justo segundo o direito germânico.”


2.3 As antinomias da justiça e a equidade


Continuando sua argumentação, Perelman afirma que a aplicação da justiça é demasiado complicada em razão de, ao se proceder à delimitação das categorias concretas essenciais que servirão de parâmetros, nem sempre todas serão concordantes entre si[29]. Exemplifica com o patrão que remunera dois operários que exercem a mesma função com a mesma produtividade, sendo um solteiro, e o outro um pai de família: remunerar melhor o operário que é pai atende ao preceito da justiça segundo a necessidade, tendo em vista ter ele mais encargos familiares; todavia, essa aplicação desobedece o preceito de justiça que dedicaria “a cada qual a mesma coisa”, quando se baseasse no resultado do lavor, posto que o operário solteiro receberia menos havendo realizado os mesmos serviços. Por haver essas colisões, é que se depara com aquilo denominado antinomias da justiça[30]:


“Com efeito, nunca podemos afirmar que fomos perfeitamente justos, que levamos em conta todas as concepções da justiça que se amalgamam em nós para formar a confusa mescla a que chamamos sentimento de justiça, que tratamos da mesma forma seres que fazem parte de uma mesma categoria por nós considerada essencial. Pelo contrário, sempre se pode afirmar que se foi perfeitamente injusto se não se levou em conta uma classificação considerada essencial pela própria que omitiu levá-la em consideração.”


Ciente das colisões de diversas concepções que podem ocorrer, Perelman aponta duas possíveis soluções, caso se pretenda um conceito de justiça que não gere antinomias. O primeiro, e mais simples, seria dar deliberamente preferência a uma única característica essencial, em detrimento de todas as outras: o exemplo mais vivo é a rígida hierarquia no âmbito interno das forças armadas, em que se adota um só critério – a patente –, de modo que todos os homens que estejam sob uma mesma patente serão tratados com absoluta igualdade, com os mesmos vencimentos, mesmos direitos, mesmos deveres e igual poder de comando[31]. O mérito dessas fórmulas que elegem um só critério é a simplicidade da aplicação dos preceitos, facilitando a separação de grupos.


A segunda solução seria o caso de, em vez de se eleger um só critério para distinguir homens e aplicar-lhes a mesma ação, eleger-se duas, três ou mais características essenciais[32]. Evidentemente, a eleição de valores múltiplos a serem levados em consideração conduz a situações mais complexas, pois para que não se verifiquem antinomias, será necessário estabelecer a rígida predisposição da correlação dos valores entre si (isolados) ou combinados: saber até que ponto a característica A se sobreponha a todas as outras, saber em que situações a categoria B será prioritária em relação a C, saber em que proporções a combinação de B e C simultaneamente conduzirão a um nível superior ou inferior em relação a B, e assim sucessivamente. Como exemplo, tem-se o racionamento de alimentos em um dado país em tempos de guerra, levando-se em conta, na valores diversos: idade, sexo, ocupação civil ou militar, relevância do trabalho individual para a guerra. O outro exemplo seria, no mesmo caso dos operários solteiro e pai de família, levar-se em conta simultaneamente a necessidade e a produtividade de cada um, predispondo-se sobre as remunerações levando em conta diferentes valorações de cada fator.


Ora, em caso de eleição de múltiplos valores nos moldes acima mencionados, caso as previsões já efetuadas não sejam suficientemente precisas sobre determinados casos concretos, de modo que se sinta, na aplicação da justiça a situações mais individualizadas, a necessidade de se afastar a regra de justiça previamente estipulada, ocorrerá uma espécie de falha da concepção adotada de justiça. É aqui que será necessário recorrer àquilo denominado por Perelman como equidade[33]:


“Quando aparecem as antinomias da justiça e quando a aplicação da justiça nos força a transgredir a justiça formal, recorremos à equidade. Esta, que poderíamos considerar a muleta da justiça, é o complemente indispensável da justiça formal, todas as vezes que a aplicação desta se mostra impossível. Consiste ela numa tendência a não tratar de forma por demais desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial. A equidade tende a diminuir a desigualdade quando o estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justiça formal, é tornado impossível pelo fato de se levar em conta, simultaneamente, duas ou várias características essenciais que vêm entrar em choque em certos casos de aplicação”


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Logo, o conceito de justiça será tanto mais falho – repleto de antinomias –  quanto mais se houver de recorrer à equidade nos moldes mencionados supra. Logo, uma concepção de justiça que se pretenda mais completa deve, além de eleger os diversos valores reputados essenciais, fixar o coeficiente de importância a ser atribuído a cada um dos valores essenciais[34].


Assim, conclui Perelman que uma concepção concreta de justiça que não pretenda ser insuficiente (uma concepção “manca”, que precisaria de sua “muleta”, que é a equidade) só será possível se a concepção for muito estreita ou se a fórmula de justiça utilizada for complexa o suficiente para levar em conta todas as características essenciais[35].


2.4 Igualdade e regularidade


Com o intuito de avançar em algumas conclusões, Perelman faz uma comparação entre os silogismos lógicos (leis teóricas ou naturais) e os silogismos normativos (leis normativas ou práticas ou de conduta). Para fins de esclarecimento, os silogismos teóricos tradicionais são conclusões assim estruturadas: a maior do silogismo (todo A é B), a menor do silogismo (X é uma espécie enquadrada em A) e a conclusão (logo, todo X é também B).


Afirma o autor que as condições de aplicação da justiça formal correspondem às mesmas etapas de um silogismo lógico[36]: a) uma fórmula concreta de justiça a ser aplicada que forneça a maior do silogismo; b) a qualificação de um ser, baseado no valor essencial eleito pela fórmula de justiça, enquadrando-o num dado grupo, obtendo-se, assim, a menor do silogismo; c) o ato justo que deve ser conforme à conclusão.


A primeira conclusão que Perelman extrai baseado nessa comparação é o fato de a justiça ser distinta das outras virtudes, que são mais espontâneas, a exemplo da caridade. A caridade seria a virtude mais diretamente oposta à justiça: ela pode ser exercida espontaneamente, sem nenhuma reflexão prévia, objetivando aliviar o sofrimento de quem quer apareça, como apareça, sem levar em conta nenhuma outra circunstância; ela é instintiva, direta, indiscutível, podendo ser simbolizada como a enfermeira que passa de um doente a outro, encontrando o remédio que conforta cada enfermo, sem levar em conta seus méritos ou a gravidade de seus ferimentos[37].


Já a justiça não pode ser concebida sem regras, tal como se dá com a caridade: a justiça não pode ser apenas instintiva, é submetida a regras, condições, qualificações e reflexões; a obrigação por ela imposta é condicional, hipotética, pois o modo de agir dependerá da categoria em que se encontra o objeto da ação, devendo empenhar-se em não levar em conta aspectos alheios aos critérios eleitos, sejam emotivos ou individuais[38]. Nada seria menos espontâneo do que a justiça: Perelman a simboliza como um velho severo e frio, que pesa, que calcula, que mede, e que age para cada categoria sem deixar-se guiar por ímpetos fundados em critérios não eleitos[39].


O silogismo imperativo (ou normativo) distingue-se do silogismo lógico em alguns pontos[40]. Em primeiro lugar, distinguem-se no conteúdo da estrutura (e não na estrutura em si): enquanto a maior e a menor da lei teórica enunciam o que é, a maior e a menor do silogismo imperativo indicam o que deve ser. Em segundo lugar, a lei teórica não admite exceções: ela é universal ou necessariamente verdadeira; os fatos é que são normativos, que põem a lei à prova, de modo que um único fato contrário à lei é suficiente para invalidá-la; “esta concepção é a própria condição da indução”[41]. Já a lei prática imperativa não pode ser nem necessariamente nem universalmente seguida: se for um fato necessário, não há como haver obrigação (imposição) e para haver imposição, há que se pressupor liberdade de agir (só se pode coagir o que for livre)[42]; a concepção de uma lei de conduta pressupõe, por si, fatos que lhe desobedecem, de modo que os fatos não desqualificam a lei, pois esta é que os qualifica, que se deve impor sobre eles; daqui a conclusão de que não se pode basear leis normativas na indução[43].


Saber essa distinção é essencial na compreensão de alguns fatos. O que for submetido às leis teóricas é algo alheio à vontade e à apreciação dos homens, sendo uma forma de ação inevitável sobre a liberdade humana. Já o que for considerado justo ou injusto será objeto de leis normativas, de modo que os fatos que desenrolam esses fatos são fatos controlados por vontades, que podem obedecer ou eventualmente violar as normas de conduta. Mas há um curioso ponto comum: a explicação dos fatos decorrentes de leis teóricas e a justificação de atos confrontados com leis normativas servem-se do mesmo procedimento racional, desde que as premissas básicas sejam aceitas. A diferença aqui está no ponto de que as premissas que velam sobre a justiça formal resumem-se à obrigação de tratar de certa maneira todos os seres de determinada categoria[44]. E essa obrigação será um modelo concreto de justiça, cuja satisfatoriedade não pode ser avaliada pela justiça formal, que se contenta na aplicação correta da regra de justiça.


Diante disso, nada mais justo que perquirir a justiça da regra concreta de justiça, tarefa que já extrapola o campo de domínio da justiça formal.


2.5 Da arbitrariedade na justiça


 Seguindo-se o raciocínio já esboçado supra, quando se confrontam duas concepções de justiça, o que se está a confrontar é, na verdade, os diversos critérios concretos de distinção dos seres em grupos. Cada concepção de justiça aponta seus próprios critérios, e todos eles podem ser entendidos como desdobramentos de princípios e critérios mais gerais. Esses princípios e critérios eleitos, por sua vez, derivam de princípios cada vez mais abstratos, de modo que, numa investigação profunda de uma qualquer concepção de justiça, é possível chegar a um ponto abstrato o suficiente para não se conseguir ir mais longe, esse ponto é o que Perelman denomina “o teto de um sistema normativo”[45]. É um raciocínio análogo à descoberta de um princípio geral e lógico da ciência, a exemplo da gravitação universal, cujos enunciados mais básicos permitem, por deduções racionais, inúmeros resultados concretos.


Nesse ponto, e levando em conta a distinção entre sistemas lógicos e sistemas normativos, assim dispõe Perelman[46]:


“Essas leis que estão no topo de nosso sistema científico, embora enunciem ligações logicamente arbitrárias, porque inexplicáveis, não se pode pensar pô-las em dúvida; de fato, as ligações que elas afirmam são universais e definem a nossa realidade: só nos resta inclinarmo-nos diante dos fatos.


Mas as coisas são totalmente diferentes num sistema normativo. Os princípios mais gerais de um sistema assim, em vez de afirmarem o que é, determinam o que vale: estabelecem um valor, o valor mais geral, do qual se deduzem as normas, os imperativos, as ordens. Ora, esse valor não tem fundamento nem na lógica, nem na realidade. Como a sua afirmação não resulta de uma necessidade lógica, nem de uma universalidade experimental, o valor não é universal nem necessário; é, lógica e experimentalmente, arbitrário […]


Um sistema de justiça, por mais adiantado que seja, não pode eliminar toda arbitrariedade, senão, na verdade, já não seria um sistema normativo: estabeleceria uma necessidade lógica ou uma universalidade experimental e seu caráter normativo desapareceria imediatamente.”


Logo, quando houver conflito entre diversas concepções de justiça, o conflito residirá, em última instância, na incompatibilidade entre os valores que foram eleitos em cada concepção como o fundamento de todo o sistema normativo. O sistema de justiça é apenas o desenvolvimento de um ou vários valores, cuja arbitrariedade reside na própria natureza deles. Perelman chega a afirmar que “isso nos permite compreender por que não existe um único sistema de justiça, porque podem existir tantos quantos valores diferentes houver”[47]. Logo, o primeiro desacordo está nos valores que farão parte do primeiro plano; superado esse dissenso, pode haver novo desacordo quanto às regras que os aplicarão; quando se superar também essa controvérsia, é que se poderá justificar o porquê da injustiça ou não de determinadas regras. Daqui, conclui Perelman que a regra não é arbitrária em si, mas apenas quando permanece injustificada após as decisões mais importantes dentro do sistema[48]. Outra conclusão mais vigorosa do autor é a afirmação enérgica de que todo sistema de justiça dependerá de outros valores que não são o próprio valor de justiça, mas um ideal moral (ou um acervo de valores) ao qual se atribuirá esse aspecto de fundamento da concepção de justiça[49].


Todavia, embora afirme Perelman que o ideal de justiça dependa de outros valores, reconhece também que nela há um valor próprio, independentemente dos valores que a fundamentem: é a necessidade de coerência e regularidade na sua aplicação, prescrevendo-se, uma vez eleito o valor fundamental, o dever de evitar qualquer arbitrariedade nas regras ou qualquer irregularidade na ação[50].


Perelman distingue três elementos na justiça: o valor que a fundamenta, a regra que a enuncia, o ato que a realiza. Afirma que as exigências racionais somente podem ser impostas, dentre os três elementos, às regras e aos atos, por meio de juízos de proporcionalidade, pois a razão não seria capaz, segundo ele, de aniquilar todas as divergências alusivas à escolha dos valores[51]. A justiça do ato seria aferível conforme as regras eleitas, a justiça das regras seria aferível conforme os valores maiores eleitos, mas esses valores, em si, não poderiam ser avaliados[52]:


“Sustentar a existência de um sistema de justiça perfeito é afirmar que o valor no qual é baseado se impõe de modo irresistível, é afirmar, em definitivo, a existência de um único valor que domina, ou engloba, todos os outros. A preeminência desse valor já não seria abstrata: ele se imporia lógica ou experimentalmente, resultaria de uma necessidade racional ou de um fato de experiência. Ora, essa hipótese contém, em si, uma contradição interna: a noção de valor é, de fato, incompatível tanto com a necessidade formal quanto com a universalidade experimental: não há valor que não seja logicamente arbitrário […]


O racionalismo dogmático acreditava na possibilidade de desenvolver um sistema de justiça perfeito. O racionalismo crítico, em contrapartida, por reduzir o papel da razão, por não lhe reconhecer nenhum poder de determinar o conteúdo de nossos juízos, é levado, por tabela, a limitar-lhe a importância no estabelecimento de um sistema normativo. A justiça, enquanto manifestação da razão na ação, deve contentar-se com um desenvolvimento formalmente correto de um ou de vários valores, que não são determinados pela razão nem por um sentimento de justiça.”


Diante desses argumentos, fica fácil entender porque Perelman afirma que “como todo valor é arbitrário, não existe justiça absoluta, fundamentada inteiramente na razão”[53]. Daí a sua afirmação de que o ser apaixonado por justiça pensará, a todo tempo, no fundamento de seu sistema, mas sem esquecer que, ao lado dos valores por ele reconhecidos, há também outros valores pelos quais outras pessoas se devotam, de modo que sempre seria possível uma revisão dos valores[54]: embora a justiça pareça ser a única virtude racional , a sua ação é baseada em valores arbitrários, irracionalmente eleitos, aos quais se opõem outros, com uma tão viva intensidade, que um sentimento de justiça  não lhes poderia encarar insensivelmente.


2.6 Conclusão de Perelman


Exposta por Perelman a parte comum a todas as concepções de justiça, que é denominada por ele de justiça formal, permite-se concluir quando um ato é considerado justo: a justiça de um ato reside na igualdade de tratamento que ele reserva a todos os membros de uma mesma categoria essencial[55]. A noção de eqüidade – como já mencionamos anteriormente – vem se fazer presente quando se pretende aplicar simultaneamente várias regras derivadas de concepções de justiça incompatíveis entre si, com o intuito de se escapar das antinomias da justiça.


Reconhece o autor que é mais complicado definir uma noção que possibilite dizer quando uma regra é justa, resignando-se a dizer apenas que ela não pode ser arbitrária, devendo ser justificável perante um sistema normativo em que se insere[56].


E, por fim, quanto à justiça do sistema normativo – investigação que culmina, em última instância, no questionamento dos valores fundamentantes da concepção de justiça adotada – Perelman conclui definitivamente a sua visão relativista[57]:


“Mas um sistema normativo, seja ele qual for, contém sempre um elemento arbitrário, o valor afirmado por seus princípios fundamentais que, eles, não são justificados. Esta última arbitrariedade, é logicamente impossível evitá-la. A única pretensão que se pode, com todo o direito, alegar consistiria na eliminação de toda arbitrariedade que não seja a implicada pela afirmação dos valores que se encontrem na base do sistema. Como, por outro lado, a arbitrariedade do sistema normativo vem sancionar desigualdades naturais, que tampouco são suscetíveis de justificação, daí resulta que, por essa dupla razão, não há justiça perfeita e necessária.”


Afirmando Perelman que somente em nome de uma justiça perfeita é que seria moral defender o pereat mundus, fiat justitia, nada é mais evidente, para ele, que a imperfeição de todos os sistemas de justiça, por serem arbitrários nos seus pontos de partida[58].


3. Reflexão crítica sobre o relativismo de Perelman


Após toda a exposição do que há de substancial na noção de justiça para Perelman, resta mais que patente o relativismo que o marca, tanto é que ele se exime de avaliar substancialmente teorias diversas e eleger as que lhe pareçam mais dignas de mérito. Há pontos, todavia, que reputamos dignos de nota, por abrirem caminho não só à refutação de suas próprias idéias, como também uma crítica ao relativismo da justiça em geral.


3.1 Pontos específicos criticáveis na teoria de Perelman


Quando Perelman afirma que o ser perfeitamente justo é morte, porque ela realiza a concepção cuja formulação é do tipo “a cada qual a mesma coisa”, acaba por demonstrar certa inclinação por uma concepção desta natureza. Prova disso é que num momento posterior, o próprio autor afirma que essa fórmula pode deixar de ser humanitária, quando reforça os laços de solidariedade apenas entre membros seletos, que farão parte do grupo essencial ao qual será aplicada a fórmula de justiça, ao invés de toda a humanidade. Além disso, critica o autor a concepção do tipo “a cada qual segunda sua posição”, por ser a mais odiosa ao dividir homens diferentemente. Ora, se uma nova concepção de justiça do tipo “a cada um exatamente a mesma coisa” abranger exatamente todos os seres humanos, a concepção terá dois enormes méritos: a primeira, e mais imediata, que seria a vantagem de tratar todos os homens igualmente, por não criar distinções entre nenhum deles, atribuindo-lhes a mesma coisa. O segundo mérito, de menos imediata visualização, é que, partindo-se da constatação que os homens nascem naturalmente desiguais – por ocuparem famílias dos mais diversos tipos e níveis, por possuírem talentos ou deficiências as mais diversas, dentre inúmeros outros acasos decisivos no desenrolar de sua vida –, pretender permitir a todos eles uma igual possibilidade efetiva de realização pessoal – que pode ser o valor maior de uma concepção de justiça –, cria-se um humanismo ao qual ninguém poderá impor suas objeções. Equivale a dizer que, em havendo desigualdades naturais nos pontos de partidas individuais, caminha-se cada vez mais rumo à justiça quanto mais próximos estiverem os pontos de “chegada” (os momentos finais da vida), sendo a justiça que atribui a cada qual a mesma possibilidade efetiva de realização pessoal uma diretriz a todo tempo exigível para guiar as regras concretas. Ao humanismo desta concepção, nem o próprio Perelman, relativista como é, parece resistir.


Perelman também fala que uma teoria de justiça é tanto mais simples quanto menos valores são eleitos como fundamentais. Havendo mais de um valor fundamental, caso a teoria pretenda não carregar antinomias, haveria a dificuldade de preordenar os diversos valores em ordens diversas de prioridade. Isso seria necessário para evitar o apelo à eqüidade, que serviria de “muleta a uma concepção manca”. Ora, o fato de ser uma teoria mais complexa geradora de ponderações mais complexas não lhes tira o mérito de coerência dentro de um sistema: é possível que um sistema eleja valores diversos e trate especificamente de como ponderar cada um deles numa respectiva ordem de prioridades, sem necessidade de apelo à eqüidade. Todavia, Perelman parece pessimista o suficiente para rejeitar teorias desse tipo pela simples razão das enormes dificuldades que se podem enfrentar durante o desenvolvimento dessas teorias. Em nosso sentir, justamente por demandarem maior esforço, podem ter um mérito adicional de serem auto-suficientes e de avaliarem mais detidamente não só seus próprios aspectos, como também os de outras concepções que são por elas criticadas. Logo, uma teoria que eleja mais de um valor como fundamental não será necessariamente incompleta ou insatisfatória, uma vez que em seu sistema pode-se haver de antemão preordenado os princípios conforme uma ordem de prioridades justificável. Maiores reflexões podem mesmo conduzir a uma concepção menos propícia a falhas. E não há de se negar que uma concepção mais refletida e menos falha é tanto mais desejável quanto mais provável de ser certeira.


Ao diferenciar o silogismo de cunho normativo (típico das ciências humanas, entre as quais se enquadram as de justiça) do silogismo de cunho lógico (típico das ciências naturais), Perelman chega a uma distinção fundamental: enquanto o silogismo lógico parte de uma premissa que é necessária (inevitável) e universal (sempre verificável nas circunstâncias especificadas), o silogismo normativo seria arbitrário pela própria natureza, pois seu valor eleito não pode ser nem necessário nem universal. Ora, em nosso sentir, por mais que os valores eleitos para uma concepção de justiça não sejam necessariamente universais nem “automáticos”, isso não garante que sejam eles puramente arbitrários. A certeza que se tem é a de que o que se elege não é algo automático da natureza, mas algo construído pelo homem. E por serem valores construídos pelo homem, podemos assim concluir: os valores que se elegem derivam das mais diversas ponderações, de modo que podemos ter desde valores extremamente fúteis ou irrelevantes, até valores cuja imprescindibilidade se revela flagrante ao nosso senso humanitário. Ora, arbitrário seria aquilo que fosse eleito sem se estar atento para valores mais importantes. O grupo dos valores mais importantes – os que geralmente fundamentam as concepções mais duráveis de justiça – separa-se de todo o restante grupo de valores fúteis. Arbitrário seria, então, escolher como valor fundamental um desses que integram o grupo dos fúteis. O mesmo não se pode dizer da eleição dentro do outro grupo de valores, os quais gozam de uma relevância notória na humanidade. Uma forma de se descobrir o agrupamento desses valores cuja escolha seria “bem menos arbitrária”, consiste em captar o que é mais violentamente desrespeitado nos momentos mais catastróficos da humanidade, os momentos ditos de maior injustiça. Citem-se, como meros exemplos de desgraças históricas: o escravismo de guerra, as monarquias de sangue, os privilégios de nascença, o escravismo racial, a manipulação do conhecimento pela Igreja durante o período medieval, a escravidão racial, o extermínio racial evidenciado na segunda guerra, as intolerâncias ideológicas, as ditaduras que tolhem a individualidade. Em todos esses casos, as violações mais sérias reclamam valores que merecem um grau de respeito maior, a saber: as diversas liberdades, a extinção de desigualdades arbitrárias, o pluriculturalismo, a dignidade de desenvolvimento da própria consciência, dentre outros fatores. Logo, não se pode conceber uma arbitrariedade tão forte como supõe Perelman, uma vez que há uma série de valores seletos que restringem o grupo de opções razoáveis. E para “corrigir” a arbitrariedade – já em grau reduzido – dentre as opções mais razoáveis, pode-se valer de uma concepção de justiça escolhida no seio dessas, que seja capaz de escolher o valor mais “indisponível” e de satisfazer melhor aos anseios da humanidade. Essa teoria que melhor cumpra os seus propósitos – com mais sucesso do que suas concepções vizinhas mais fortes – , seguramente será capaz de fornecer uma diretriz de indiscutível mérito. Assim, não se pode simplesmente acusar de arbitrária, como o fez Perelman, a opção por uma teoria tão razoavelmente construída.


Conforme exposto, Perelman também afirma que numa concepção de justiça haverá, além de uma exigência de proporcionalidade (coerência) inerente à própria noção de justiça, alguma exigência proveniente de um valor moral alheio ao valor justiça, o que culminaria na arbitrariedade do valor escolhido (o qual seria ditado pela moral) e na fórmula quase completamente vazia de justiça (por depender de valor que lhe seria externo). Todavia, não é assim que enxergamos: depender a concepção de justiça de um valor moral não lhe tira o mérito, pois quem pretender tratar o ser humano como um fim (e não como um meio), deverá ver na aplicação da justiça o máximo respeito aos valores morais mais substanciais e indisponíveis. Para quem não é relativista, essa premissa torna-se mais importante, posto que haverá alguns poucos padrões morais que serão de exigibilidade indiscutível em qualquer sociedade que pretenda oferecer a cada ser humano um mínimo de inviolabilidade e de respeito.


Por fim, quando Perelman expõe as diversas concepções concretas de justiça, em todas elas há o substrato comum da igualdade. Sabemos, todavia, que o termo igualdade, em si, é um conceito vazio, uma vez que comporta uma pluralidade de pretensões distintas, como deixa claramente registrado Norberto Bobbio[59]. Talvez por essa razão Perelman veja, no substrato comum da igualdade, uma multiplicidade de concepções que apenas acentuam o seu relativismo. Apesar disto, tendo-se em conta a constatação da desigualdade natural entre os homens já nos pontos de partida – o nascimento de cada ser –, e a natural tendência de os patamares de desigualdades tornarem-se cada vez mais distantes, nada pode ser mais humano e louvável que buscar reduzir o processo de acirramento de desigualdades. Esse processo só se torna viável caso se adote uma concepção de justiça que preveja a igualdade nos pontos de chegada, ou seja, a possibilidade de, com o passar do tempo (não só em cada vida, mas em cada geração que sucede à anterior) os homens gozarem de patamares cada vez mais próximos de uma igual e efetiva realização pessoal. Uma concepção de justiça que se fundamente nesse valor fundamental pode atender, em nosso sentir, aos anseios das mais variadas sociedades nas mais distantes épocas. Desse modo, uma concepção de justiça que almeje a possibilidade de igual felicidade e realização de cada indivíduo, consagra um valor que talvez não seja resistível por nenhum ser humano que não pretenda agravar as angústias de seus pares. Logo, também discordamos energicamente de Perelman quando aduz que outras pessoas podem adotar outros valores, e que todos os valores seriam revisáveis a qualquer tempo.


3.2 Outras observações: críticas ao relativismo em geral


Em sendo prevalecente a corrente relativista, autores de mais diverso quilate demonstram nitidamente sua postura contra qualquer concepção que pretenda ser absoluta. A título de exemplo, Posner[60] declara explicitamente que é cético quanto à possibilidade de a filosofia moral oferecer respostas a questões jurídicas específicas, ou mesmo a um suporte teórico mais geral (e aqui se enquadraria a noção de justiça). Para este autor, dois são os motivos do fracasso da filosofia moral no nível prático. Em primeiro lugar, se o raciocínio é construído por indução, a teoria seria produto de concepções particulares; se construído por dedução, incorreria o teórico, quando do confronto com um caso particular específico incoerente, no vício de rejeitar a teoria ao invés de reexaminá-la. Em segundo lugar, a solução de dilemas morais requer estudo profundo de aspectos particulares de cada dilema (exemplo: aborto), tempo de que não dispõe o filósofo, cuja formação foca outros aspectos[61]. Em nosso sentir, as duas explicações não se sustentam, em virtude dos argumentos mesmo que já expedimos no item anterior.


Tendem os relativistas, dada a sua afeição aos valores eleitos em momentos específicos, a entenderem que a justiça seria o que foi eleito pelo legislador ou mesmo pelos constituintes em cada época. O problema grave desse entendimento é, primariamente, incorrer em todos os vícios do positivismo jurídico. Um regime totalitário revestido de Estado de Direito (ainda que não democrático) seria tão justo quanto um regime segregador de castas, que também seria tão justo quanto um regime de caridade. Um arbitrarismo de tal natureza reputamos inconcebível. O outro problema, mesmo para os regimes mais democráticos, seria os vícios decorrentes de aprovação de leis mediante maioria, que pode culminar na aprovação de uma pretensão opressora contra uma minoria (ao passo que uma teoria de justiça que buscasse unanimidade em seus fundamentos, que são universais, evitaria esse problema). Haveria também a passividade – e em alguns casos, a complacência – dos intérpretes e aplicadores perante o Direito já vigente, ainda que notoriamente injusto.


Problemas dessa estirpe são, em nosso entender, graves demais para se conformar com um relativismo despreocupado.


4. Breves conclusões


Após análise detalhada da visão de Perelman – postura, aliás, compatível com a de inúmeros outros relativistas – pudemos constatar problemas que reputamos de gravidade suficiente para se questionar o puro e simples relativismo sobre a noção de justiça. Entendemos que é possível criar diversas concepções de justiça que não incorram em duas categorias de erros: os apontados pelos relativistas, e aqueles em que eles próprios – os relativistas – incorrem quando adotam postura demasiado cética.


Uma concepção de justiça absoluta que vele pela igual possibilidade de realização pessoal dos seres humanos, embora não garanta a ocorrência prática das suas promessas na realidade, serve de diretriz para se aferir o grau de injustiça de determinadas concepções, de várias regras jurídicas e mesmo de vários atos. E avaliar a justiça das normas e condutas é o primeiro passo para uma reformulação de conceitos e concepções, que servirão para ulterior vinculação dos mesmos conforme os ditames que buscam, efetivamente, realizar a aspiração mais cara ao ser humano, e tão frustrada para a maioria dos seres pela realidade cruel: a simples realização pessoal, malgrado a desigualdade natural dos pontos de partida.


Apontados os problemas do relativismo jurídico, tem-se por realizado o primeiro passo a quem desejar realizar o passo seguinte: defender a possibilidade de um sentimento absoluto de justiça. Realizado este outro passo, que já extrapola o objeto dessa modesta exposição, restará aberta a via para quem quiser ousar defender uma concepção absoluta de justiça que seja satisfatória.


 


Referências bibliográficas:

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. Eduardo C. B. Bittar & Guilherme Assis de Almeida. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2006.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 49.

 

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo; Revisão Técnica de Mariana Mota Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

Notas:

[1] Chaim Perelman (1912-1984), nascido na Polônia, viveu desde a adolescência na Bélgica. Dedicou substancial fração de seu exercício intelectual ao entendimento da lógica da argumentação jurídica, dando especial atenção à atividade jurisprudencial como a criação da norma individual. (BITTAR, pp. 429-431).

[2] Este artigo (que data de 1945) esteve compilado no livro Justice et raison (Éditions de l’Université de Bruxelles, 1963), o qual, juntamente de outros livros, foi compilado na obra Éthique et Droit, pela mesma editora , em 1990. Este último livro foi traduzido por Maria Ermantina, no Brasil, para o Ética e Direito (Martins Fontes, 1996), sendo este o livro que nos serviu de base.

[3] PERELMAN, p. 6

[4] PERELMAN, p. 7

[5] PERELMAN, p. 8

[6] PERELMAN, p. 8

[7] PERELMAN, p. 9

[8] PERELMAN, p 17

[9] PERELMAN, p. 18

[10] PERELMAN, pp. 18-19

[11] PERELMAN, p. 19

[12] PERELMAN, p. 19

[13] PERELMAN, p. 9

[14] PERELMAN, p. 20

[15] PERELMAN, p. 21

[16] PERELMAN, p. 21

[17] PERELMAN, p. 10

[18] PERELMAN, p. 25

[19] PERELMAN, pp. 10 e 25

[20] PERELMAN, pp. 26 e 27

[21] PERELMAN, p. 11

[22] PERELMAN, p. 12

[23] PERELMAN, pp. 27 e 28

[24] PERELMAN, p.12

[25] PERELMAN, p. 28

[26] PERELMAN, p.30

[27] PERELMAN, p. 31

[28] PERELMAN, p. 32

[29] PERELMAN, p. 34

[30] PERELMAN, p. 35

[31] PERELMAN, pp. 35 e 36

[32] PERELMAN, p. 37

[33] PERELMAN, p. 36

[34] PERELMAN, p. 39

[35] PERELMAN, p. 41

[36] PERELMAN, p. 45

[37] PERELMAN, p. 46

[38] PERELMAN, pp. 46 e 47.

[39] PERELMAN, p. 46

[40] PERELMAN, p. 47

[41] PERELMAN, p. 47

[42] PERELMAN, p. 48

[43] PERELMAN, p. 48

[44] PERELMAN, p. 51

[45] PERELMAN, pp. 57 e 58.

[46] PERELMAN, pp. 58 e 59

[47] PERELMAN, p. 59

[48] PERELMAN, p. 60

[49] PERELMAN, p. 61

[50] PERELMAN, p. 63

[51] PERELMAN, pp. 63 e 64

[52] PERELMAN, p. 64

[53] PERELMAN, p. 64.

[54] PERELMAN, p. 66

[55] PERELMAN, p. 66

[56] PERELMAN, p. 67

[57] PERELMAN, p. 67

[58] PERELMAN, p. 67

[59] BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

[60] POSNER, p. 466.

[61] POSNER, p. 467


Informações Sobre o Autor

Pablo Camarço de Oliveira

Doutorando em Filosofia pela UFSC. Mestre em Filosofia pela UFPI. Graduado em Direito pela UFPI. Professor da Escola Superior da Defensoria Pública do Maranhão. Defensor Público do Maranhão


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