O resgate do critério da dependência econômica na identificação da relação de emprego na contemporaneidade

Resumo: O artigo apresenta o critério da dependência econômica como nota distintiva da relação de emprego, a partir de uma racionalidade transdisciplinar sobre o trabalho assalariado. Inicia pela demonstração dos problemas provocados pelo critério da subordinação jurídica diante das relações contemporâneas de trabalho. Baseando-se na economia política clássica, são delineados os traços do trabalho assalariado no capitalismo. A par da contribuição interdisciplinar, apresenta-se a ressignificação da dependência econômica. Na defesa deste critério, são refutadas as conhecidas críticas à essa ideia, de modo a considerar que a antiga noção de dependência econômica é superficial (epidérmica). No aprofundamento deste conceito, a concepção jurídica de trabalho dependente é refeita, notadamente a partir da ideia de ausência de propriedade.

Palavras-chave: Dependência econômica. Trabalho assalariado. Subordinação jurídica. Relação de emprego.

Abstract: The article presents the criterion of economic dependence as distinctive note of the employment relationship, from a transdisciplinary rationality on wage labor. Start by showing the problems caused by the criterion of legal subordination relations on contemporary work. Relying on classical political economy, are outlined traces of wage labor under capitalism. Alongside the interdisciplinary contribution, presents the redefinition of economic dependence. In defense of this criterion, are known refuted the criticism of this idea, in order to consider that the old notion of economic dependence is superficial (epidermal). In this concept further, the legal concept of dependent work is redone, especially since the idea of no property.

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Keywords: economic dependency. Wage labor. Legal subordination. Employment relationship.

Sumário: 1. Introdução. 2. Rompendo com a subordinação distintiva. 3. Entendendo o trabalho assalariado. 4. O Retorno da Dependência Econômica. 5. Ultrapassando a clássica dependência econômica. 6. Refazendo a delimitação jurídica do trabalho dependente. 7. Conclusões

1. INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, o principal debate do Direito (individual) do Trabalho concentra-se na (re)avaliação da eficácia e dimensão do critério de subordinação jurídica como nota distintiva desta disciplina. Diante de novas situações de trabalho e, igualmente, de velhas situações com novos epítetos, persistem dúvidas sobre a adequação do conceito clássico de subordinação jurídica no trato destas questões. A atipicidade do trabalho coloca-se, intermediariamente, entre a autonomia e a subordinação, trazendo intensas dificuldades de operação para o conceito clássico de subordinação jurídica.

O atípico pode, igualmente, ser entendido como a heterogeneidade contemporânea do trabalho. Esta heterogeneidade comporta uma complexidade de formas de trabalho, que englobam desde o emprego não registrado, o trabalho precário (contratações à margem da CLT, a exemplo daquelas por meio de pessoa jurídica – “PJ´s”), trabalho informal (pequenos autônomos e grupos familiares vinculados ao sistema simples de produção) até as parcerias, entre outras situações. Nesta heterogeneidade de formas de trabalho, identificam-se trabalhadores que prestam pessoalmente serviços submetidos não à subordinação clássica do Direito do Trabalho, mas sim em uma condição de dependência.

Fora da noção clássica de “subordinação jurídica”, estes trabalhadores dependentes integrantes desta atipicidade são excluídos da tutela legal da relação de emprego. Entretanto, a realidade destes dependentes desprotegidos repete o problema da excessiva exploração do trabalhador que culminou no surgimento do Direito do Trabalho, embora o faça através de formas distintas da relação de trabalho subordinado clássica. Não obstante, tem-se indubitavelmente repetida a condição originária trabalhista: uma parte hipossuficiente que carece de proteção legal ante ao poder econômico do seu tomador de serviços. A desigualdade das partes nestas novas relações de trabalho persiste, ensejando a necessidade de um tratamento diferenciado e protetivo.

No âmbito normativo, a Constituição Federal de 1988, que irradia seus princípios e valores no sistema normativo, elenca como seu fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Para além da constitucionalização da tutela do trabalhador (art. 7°), o ordenamento jurídico brasileiro estabelece a proteção ao trabalho como um dos seus valores fundamentais e objetivos do Estado Brasileiro. Neste contexto valorativo constitucional, o sistema normativo trabalhista tem como objetivo proteger os trabalhadores (expressão literal do art. 7°), cabendo a reinterpretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a fim de cumprir o programa constitucional, na direção da noção ampla de empregado, notadamente pelo viés da acepção de trabalho dependente.

Nesta contextualidade, a dependência econômica[1] apresenta-se como um critério distintivo da relação de emprego capaz de comportar as diversas manifestações atuais de trabalho assalariado, inclusive hábil a desvendar criticamente a atipicidade de certas formas de trabalhar e elucidar algumas ocultações do assalariamento disfarçado. Em outras palavras, a questão cinge-se a tentar rearticular a sinonímia entre empregado e assalariado, a qual, atualmente, não se realiza adequadamente pelo critério da subordinação jurídica. Defende-se que a tradução jurídica da noção de assalariado corresponde à ideia de dependência econômica.

Com efeito, este artigo apresenta uma síntese da tese de doutoramento[2] que resgata o critério da dependência econômica numa perspectiva mais aprofundada da ideia de trabalho assalariado. Vale lembrar que a dependência econômica no Direito do Trabalho é uma ideia antiga, cuja aplicação foi recusada apenas por “razões doutrinárias”, até porque o texto legal (“sob dependência”) mais se aproxima semanticamente da dependência econômica do que da subordinação jurídica. No entanto, a noção antiga de dependência econômica, considerada aqui “epidérmica”, não atende, da mesma forma, as expectativas contemporâneas.

2. ROMPENDO COM A SUBORDINAÇÃO DISTINTIVA

No bojo do pós-fordismo e da crise do Direito do Trabalho[3], novos e velhos problemas são colocados para a subordinação jurídica. Percebe-se que a marca da sujeição hierárquica do trabalhador foi atenuada ou diluída pelas dinâmicas de gestão do trabalho mais flexíveis, tornando mais difícil – pelo olhar tradicional – visualizar o mesmo assalariado, por força dos seus novos epítetos, como o (antigo) empregado. O novo do modismo contemporâneo disfarça, ilude e simula o velho padrão capitalista de trabalho assalariado, valendo-se de categorias e contratos de parceria, colaboração, autonomia, entre outros.

Os problemas do conceito de subordinação já iniciam pela sua própria definição. No debate histórico-doutrinário do juslaboralismo, a noção de subordinação jurídica pode ser dividida em dois sentidos bem demarcados. No sentido subjetivo, consiste em ordens e disciplina, fundada na ideia de poder, sendo esta a concepção hegemônica. No sentido objetivo, relaciona-se com inserção em produção alheia, por ausência de domínio dos fatores de produção, fundando-se na ideia de organização (ou propriedade), sendo esta posição minoritária.

Cotejando a concepção hegemônica, infere-se que a escolha pela subordinação hierárquica corresponde a uma grande mudança de foco, no sentido de, desprezando as características pessoais dos sujeitos da relação, apenas considerar a forma de execução da relação. É o objeto contratual que fixaria a relação de emprego e não seus sujeitos. Isto é, era a subordinação jurídica o objeto contratualmente negociado entre trabalhador e empregador e não mais a venda da força de trabalho. Se antes o Direito do Trabalho destinava-se aos hipossuficientes marcados pelo seu estado de assalariados, agora, somente interessam os assalariados que laboram sobre forte subordinação hierárquica e pessoal.

Esta ideia de subordinação seria melhor retratada com o verbete “sujeição”, entendida como sujeito dependente do poder de outro. Mas o signo sujeição tem significante muito relacionado à sujeição do escravo, o que justifica sua não utilização pelo peso histórico que rememora, ou seja, “[…] poderia sugerir submissão do trabalhador, a recordar o estado de servidão a que se viu submetido o escravo em certas etapas da história humana” (ROMITA, 1979, p. 72). Tratava-se de uma mudança de filosofia idealista. Retira-se simbolicamente o nome de sujeição pessoal, mas esta alteração de nomenclatura nada modifica a realidade de sujeição pessoal. Isto porque não era conveniente ao juvenil capitalismo (ou à doutrina juslaboral) resgatar traços do trabalho forçado, mesmo que estes fossem os mais aproximados ao da nova realidade.

Na atualidade pós-fordista, as formas atípicas de trabalho – novas formas – são o sintoma maior da crise da subordinação. Um dos traços marcantes deste pós-fordismo que mais contribuiu para a formação destas situações atípicas é precisamente a tônica de colaboração e autonomia. Com as potencialidades de gestão e a possibilidade de controle na dispersão, a reengenharia produtiva não se vale mais do clássico padrão de trabalho apoiado nas relações de hierarquia-disciplina. No pós-fordismo é possível visualizar outro cenário para o modo de trabalhar: não se exige a presença do trabalhador na sede da empresa; os serviços são determinados e até executados eletronicamente; a jornada dispensa a fiscalização, inclusive porque se prefere a remuneração por produtividade, a qual, pelo seu baixo valor, exige o máximo de trabalho, já impondo jornadas maiores, inclusive sem pagamento de horas extraordinárias; dispensa-se o poder punitivo ao repassar, por meio do expediente formal da falsa parceria, a posse (embora se diga que houve venda) da mercadoria a ser comercializada, fazendo com que a maior punição – não receber pelo trabalho prestado – ocorra quando a atividade não for realizada devidamente.

Estas novas estratégias de gestão da mão de obra sinalizam para a aparência de autonomia e independência. Presos a uma versão estreita e limitada do conceito de empregado como aquela jungida à subordinação pessoal e hierárquica, o dogmatismo não mais identifica o estado de dependência aonde ele sempre esteve. Com isso, operou-se a redução dogmática do campo de aplicação do Direito do Trabalho pela cegueira dogmática-jurisprudencial.

Por outro lado, os problemas do critério da subordinação vinculam-se a uma tentativa de redução de custos através de estratégias gerenciais. Ao apenas visualizar o empregado como aquele que vive de ordens e teme punição, a doutrina juslaboral quase que, subliminarmente, estimulou a gestão de pessoal a, retirando esse traço fundamental de ordens, eliminar também a proteção trabalhista. Isto é, a limitação jurídica do conceito de empregado propiciou o sucesso econômico da nova técnica de gestão de pessoal. A consequência prática é que a restrição do conceito de subordinação à tão somente subordinação pessoal e hierárquica produziu a exclusão da proteção aos assalariados que não são rigidamente hierarquizados. 

Por isto, é preciso notar que a fuga da subordinação representa o ideal de lucro sem responsabilidade, confirmando a lógica capitalista de extração de mais riqueza mediante a redução dos custos. Logo, não pairam dúvidas de que o motivo principal do esvaziamento ou da própria crise da subordinação jurídica é justamente o interesse de evasão à proteção trabalhista, precisamente ao custo desta tutela legal. Não somente o discurso modista de formas novas de trabalho e de um novo perfil do trabalhador legitima a opção por uma contratação de força de trabalho “por fora” do marco regulatório do emprego. É antes uma decisão econômica – redução de custos como necessidade da intensa concorrência, inclusive com práticas sistêmicas de dumping social – que conduzem a criar novas modalidades de contratação, inclusive sob a lógica de colaboração e autonomia.

A insuficiência da subordinação jurídica se demonstra, porquanto seu sentido prevalecente e hegemônico (subordinação subjetiva) é a noção de subordinação pessoal ou hierárquica. Seu conteúdo corresponde essencialmente ao dueto ordem-punição, elementos externos pautados numa relação rigidamente hierárquica do empregador (superior) com o empregado (inferior). Ocorre que as dinâmicas contemporâneas de trabalho firmam-se, cada vez mais, numa relação aparente de colaboração, ruindo com a antiga rígida hierarquia. A contemporaneidade enfraquece o enunciador (ordens e fiscalização) para uma afirmação subliminar do enunciado (trabalho).

Antes mesmo das formas novas e das dinâmicas de autonomia, a concepção clássica da subordinação jurídica era, numa perspectiva crítica, incapaz de justificar situações distintas do tradicional trabalho operário-fabril. A subordinação clássica sempre teve dificuldades de abranger o trabalho intelectual ou especializado tecnicamente, tendo que, para estes tipos de trabalhadores, ser reformulada para uma subordinação “externa” e “tênue”[4]. Nestas situações, é preciso considerar a subordinação por “indícios externos”, tal como respeito a horário de trabalho e necessidade de comparecimento na empresa (BARASSI, 1953). No mesmo sentido, a noção clássica de subordinação não explica satisfatoriamente o trabalho a domicílio, inclusive porque, nestes casos, sequer pode valer-se da ideia de subordinação externa, pois não controla nem o tempo e nem o local da prestação dos serviços.

Ademais, a ideia de controle se manifesta igualmente em outras situações distintas daquela de trabalho dependente. Ou seja, afirma-se, cada vez mais, que o controle se realiza sem a clássica subordinação. Existe controle nos contratos de obra/resultado e estes, ainda assim, podem ser desenvolvidos sob o prisma da autonomia ou da dependência. Há controle nas terceirizações, conforme se constata numa leitura atenta destes contratos de apoio empresarial, notadamente   quando as empresas prestadoras de serviços e seus empregados observam atentamente o padrão de trabalho e a cultura organizacional da tomadora. Nos contratos de franquia, ocorre a observância de um padrão minucioso de trabalho, caracterizando manifesta subordinação técnica e organizativa do franqueado para com seu franqueador. Logo, a sujeição à forte subordinação não se restringe ao trabalho dependente, o que demonstra que a subordinação não é algo exclusivo da relação de emprego.

Nestes termos, se a condição originária do Direito Laboral foi a proteção aos trabalhadores economicamente fracos e se a atual crise limita esta proteção ao contingente diminuto de pessoas, a perspectiva futura do Direito do Trabalho – caso queira permanecer com sua ontologia – é ampliar sua proteção para os demais hipossuficientes. Para tanto, é imprescindível superar a concepção de subordinação como sujeição hierárquica. Noutro sentido, as concepções renovadas de subordinação objetiva[5] têm seus méritos, especialmente seu esforço em corrigir uma redução conceitual indevidamente realizada pela doutrina ao contentar-se com uma forte hierarquia. Todavia, continuam considerando uma consequência do fenômeno – a direção ampla subjacente à integração – como o próprio fenômeno do trabalho dependente.

 A teoria da subordinação jurídica nunca rompeu a superficialidade da questão do estado de assalariado, justamente por creditar correção teórica a uma concepção insustentável epistemologicamente. A essência do assalariamento, como modelo capitalista de organização das relações de trabalho, não reside nos conceitos jurídicos, os quais somente visualizaram sua epiderme quando se vincularam à ideia de ordens (hierarquia) ou integração (acoplamento). É o mito da completude da ciência jurídica que legitima e impulsiona uma explicação apenas “jurídica” para a realidade social, ainda no afã irrefletido de uma “teoria pura”, no caso para o Direito do Trabalho.

Diante da principal consequência do assalariamento – “receber ordens” – e ansiosa por rejeitar os “perigos” de uma concepção econômica de dependência, a doutrina encontrou seu “melhor” critério, passando a definir o empregado – expressão jurídica do assalariado – como aquele sujeito subordinado. À primeira vista, os assalariados ao venderem sua força de trabalho colocavam sua energia à disposição dos seus tomadores, logo aceitando, como necessidade técnica, a direção dos seus serviços. Logo, o conteúdo jurídico imediato da situação econômica de assalariado era estar “sob ordens”.

No entanto, este primeiro cenário de disposição da força de trabalho se modifica sensivelmente nas situações de trabalho intelectual (ou domínio técnico) ou em domicílio. Nestas hipóteses, a principal consequência fica mitigada, “adelgaçada”, “diluída” e “ténue”. Tal como o local de trabalho ou fiscalização de horário de trabalho não servem como paradigma de comprovação da subordinação. Igualmente, o contexto pós-fordista implementa sistemas externalizantes de trabalho, fugindo também da versão clássica de estar “sob ordens”. Assim, pode-se verificar novos e antigos assalariados não sujeitos à subordinação, demonstrando que esta não integra ao conceito de assalariamento.

O assalariado caracteriza-se por colocar a venda sua força de trabalho, ou seja, por dispor de sua energia em favor de outro. Se o traço marcante da relação de emprego é estar à disposição de outrem, derivam-se daí duas possibilidades: a primeira de comandar intensamente esta “disposição”; a segunda de apenas estabelecer o resultado deste trabalho à disposição, considerando que o próprio trabalhador tem as condições (técnicas, intelectuais ou materiais) de realizar seu ofício sem vigilância e fiscalização. Não obstante as duas possibilidades de “disposição”, a subordinação somente visualiza a primeira acepção, apenas compreende a disposição como estrita obediência às ordens contínuas. Por decorrência, a subordinação deve ser vista como consequência da relação de emprego e não sua causa.

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Pela sua gênese positivista[6] e pela sua natureza de consequência possível, é urgente retirar do critério da subordinação jurídica o protagonismo da definição da relação de emprego. Ainda no aprofundamento destas questões, averigua-se que é infundada a caracterização do Direito do Trabalho como a regulação fordista do trabalho assalariado. Isto é, o Direito do Trabalho se constitui como o marco regulatório do trabalho assalariado na sociedade capitalista e não como a correspondência jurídica da dinâmica organizativa do fordismo. Com efeito, o instituto juslaboral impregnado de fordismo – e, no caso brasileiro, de positivismo – foi o critério da subordinação jurídica. O Direito do Trabalho não é, portanto, um produto do fordismo, nem sob o aspecto cronológico, nem sobre o aspecto ontológico, embora se possa qualificar a noção clássica de subordinação jurídica como um conceito jurídico delimitado pela realidade fordista. Assim, a opção pela subordinação jurídica, na sua acepção clássica, representou uma guinada reducionista do campo de incidência do Direito do Trabalho, a qual, indevidamente, limitou o conceito de dependência à situação de sujeição hierárquica. Disto, há que se perceber a subordinação jurídica não capta a noção integral de assalariamento, mas apenas as consequências desse fenômeno.

3. ENTENDENDO O TRABALHO ASSALARIADO

Fugindo do positivismo e da dogmática, é imperioso voltar a entender o que é trabalho assalariado para, então, repensar a proteção jurídica para esta relação de trabalho. Na filosofia política, Jonh Locke (1978) atribui ao trabalho a fonte da propriedade. Pressupondo que o homem tem a propriedade de sua própria pessoa, terá, igualmente, a propriedade sobre os frutos do seu trabalho. É o trabalho da pessoa sobre os bens naturais, originalmente comuns a todos, que os coloca fora desta propriedade comum e dentro da propriedade individual. Em nome do trabalho realizado, a pessoa se apresenta perante a coletividade como proprietária, exigindo um direito natural à garantia desta propriedade pela sua justa origem no trabalho. Esta noção, impregnada de individualismo, pressupõe que a liberdade individual somente se concretiza quando o indivíduo é proprietário de si mesmo, sendo a sociedade o mercado de encontro entre estes proprietários.

Além de criar a propriedade, o trabalho também cria a riqueza. Rompendo com a crença fisiocrata de que a agricultura é a criadora da riqueza, Adam Smith (2010) credita a riqueza das nações não ao acúmulo de metais ou aos ganhos das trocas, mas sim ao trabalho humano. Em grande medida, a riqueza cresce conforme a divisão do trabalho, que exerce a função de motor desse crescimento e que desenvolve os papéis dos indivíduos no sistema social. A divisão do trabalho se perfaz como tendência natural do desenvolvimento dos processos de troca, sendo, entretanto, dependente de uma acumulação de capital. A partir daquele considerado como pai da economia política, o trabalho é concebido como ideia abstrata que cria valor e, simultaneamente, como atividade concreta produtora dos homens.

No entanto, a estruturação social capitalista, notadamente a divisão da propriedade, não permitiu que os trabalhadores fossem os titulares do resultado do seu labor, como deveria ocorrer pela ideia de Jonh Locke. Descontadas as despesas com os meios de produção (matéria-prima, instalações e instrumentos), a criação de riqueza se expressa na diferença entre o valor criado pela força de trabalho (produto apropriado pelo capitalista) e a remuneração paga à mesma força de trabalho. Isto porque o salário, em essência, não pode corresponder ao total do valor criado pelo trabalho, sob pena de não ser salário, mas uma retribuição integral do trabalho agregado, tal como numa legítima sociedade. Adam Smith já tinha percebido que o produto do trabalho não é somente do trabalhador. “[…] todo o produto do trabalho nem sempre pertence ao trabalhador. Ele deve, na maioria dos casos, dividi-lo com o proprietário do estoque, que o emprega” (SMITH, 2010, p. 44).

A riqueza social, então, é o produto do trabalho social, sendo apropriada, no bojo das relações salariais, pelos contratantes proprietários, na forma de mais-valia (trabalho excedente não pago). Karl Marx elucida a questão: “O modo capitalista de apropriar-se dos bens, decorrente do modo capitalista de produção, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio”. Vê-se que nas relações de trabalho entre proprietários e não-proprietários, o primeiro se apropria dos valores produzidos pelo segundo, o que ocorre sob a aparência (ou pela ocultação) de livre contrato de trabalho com um salário “justo”. A apropriação do valor se converte em (nova) propriedade: a propriedade das mercadorias produzidas pelos trabalhadores.

Despossuído de propriedades e possuído por prementes necessidades de subsistência, o trabalhador surge discursivamente como um sujeito livre, por não mais estar sob os grilhões da escravidão ou o pagamento sensorial da corveia na servidão. Robert Castel desvela: “O assalariado é então 'livre' para trabalhar, mas a partir do lugar que ocupa num sistema territorializado de dependência, e o trabalho que executa é exatamente o mesmo tipo do da corvéia”. O capitalismo empreende um discurso de ampla liberdade de trabalho, que se estende da possibilidade de escolha do emprego ou mesmo da desistência deste a qualquer tempo. Entretanto, estrutura relações sociais, políticas e econômicas que tecem fios invisíveis que limitam tais possibilidades, alocando, em regra, o trabalhador sempre na condição de dependente. Ao privar da substancial propriedade, impele sempre uma dependência do não-proprietário para com o proprietário, até porque a pobreza vicia a liberdade.

Uma real liberdade de trabalho corresponderia à liberdade de acesso aos meios de produção, não a situação de imperativo de sobrevivência que compele o trabalhador a, com a necessidade subjugando a vontade, trabalhar. A maioria das funções, na atual divisão social do trabalho, não são desejadas, mas aceitas por razões de necessidade e realizadas sem desejo, de modo insosso e desprezível. Em outras palavras, a separação meios de produção e trabalhador acarreta também em alienação/estranhamento e sub-alternatividade do trabalhador frente à mercadoria. O estranhamento no trabalho remete a caracterização deste como mercadoria, talvez por isso seja chamado de “mão de obra”.

Assim, a situação objetiva de trabalhar para outrem já significa a subordinação formal deste que trabalha em favor daquele que recebe o trabalho. Esta subordinação cinge-se ao manifesto controle do tomador do serviço, através não da direção técnica, mas sim da detenção da propriedade dos meios de produzir. Nestas circunstâncias, o direito de propriedade na circulação capitalista empreende o papel de sonegar qualquer propriedade oriunda do trabalho para aquele que não é previamente proprietário, como o trabalhador. Portanto, o assalariado se caracteriza pela constante necessidade e dependência, pois somente possui sua força de trabalho. A coação ao trabalho se faz pela miséria e pela necessidade de obter meios para a sobrevivência[7], embora esta condição de dependente esteja camuflada pela formatação jurídica de liberdade contratual oriunda de individualismo e formalismo jurídicos iluministas. Como reforço a esta dependência estrutural, visualiza-se, ainda, a situação dos desempregados que formam um exército industrial de reserva, o qual reitera a disputa pela condição de vendedor de força de trabalho.

A questão central do modelo capitalista é, portanto, o monopólio de uma classe social sobre os meios de produção, impelindo a classe não-proprietária a vender sua força de trabalho, inclusive com cessão de trabalho excedente. Diferentemente dos modos de produção anteriores – que se pautavam em trabalho forçado (escravo, corveia, etc.) –, o capitalismo construiu um modelo de trabalho formalmente livre, mas que, pela não detenção dos meios de produção, realiza-se como trabalho socialmente imposto. Se a coação era baseada na lei, agora ela ocorre pela própria estrutura social e, assim, de modo invisível.

Em síntese, a liberdade de trabalho dos não-proprietários num regime capitalista cria um estado estrutural de dependência do assalariado em face do capital, a despeito das garantias jurídicos-formais. A liberdade de trabalho do assalariado subjaz a necessidade imperiosa de sobrevivência, explicada pela perda anterior da titularidade dos meios de trabalho e reforçada pelo receio de prosseguir nas fileiras dos desempregados. Por fios invisíveis, estabelece-se uma dependência estrutural de um para com o outro, daquele que, como imperativo de sobrevivência, precisa imediata e cotidianamente vender-se ao outro, quer seja por não haver outra possibilidade econômica (ausência de propriedade), quer seja porque, em termos técnicos, não sabe desenvolver outro ofício senão aquela função parcelar-polivalente.

A produção dessa riqueza tem observado a lógica da intensificação do processo de trabalho, sendo esta a tônica do capitalismo[8], ora pela extensão da jornada de trabalho, ora pelo aumento de produtividade oriundo das inovações técnicas e da divisão do trabalho, ou mesmo pela conjunção de ambas. Para obter mais produtividade no mesmo tempo, é necessária a intensificação do trabalho (obtenção de maior eficácia), seja pelo aumento da velocidade da máquina, seja pela cumulação da operação de máquinas para um único empregado, seja pela maior disciplina e controle para eliminar os “poros da jornada”.

Precisamente, as diversas formas de organizar a produção (fordismo e toyotismo), com metodologias distintas, somente concretizam a lógica do capital de mais acumulação através da intensificação do trabalho. O diferencial do pós-fordismo não reside no avanço tecnológico, mas na relativa ruptura com o parcelamento das funções e com a implementação de uma lógica voraz de colaboração de classes. Como decorrência, o toyotismo foi economicamente bem sucedido porque conseguiu, pela sua sistemática de gerência produtiva, dar respostas satisfatórias (ganhos de produtividade e lucro) às oscilações contemporâneas do mercado (retração e expansão), além da incorporação da precariedade ao sistema produtivo.

Esta análise, pautada essencialmente na crítica de Karl Marx à economia política clássica, revela-se adequada para explicar as relações contemporâneas de trabalho no capitalismo. A compreensão dialética da totalidade do conjunto social permitiu a Marx identificar as estruturas gerais do trabalho assalariado e formular suas implicações, notadamente a ideia central: a dependência estrutural e prévia do assalariado ao empregador. Como consequência, o sujeito assalariado é aquele que, forjado no despossuimento, é impelido, embora juridicamente livre, a vender-se como mercadoria – como uma força – em troca do salário, cujo proveito econômico resultante deste trabalho é apropriado por outro. Despossuído, coagido e expropriado são termos delimitadores do conceito de trabalhador assalariado.

No Brasil, o assalariamento segue esta estrutura geral, com o tempero próprio da historicidade e política latino-americana. De início, a formação do mercado de trabalho brasileiro foi caracterizada por políticas e mecanismos legais de coação para a condição de assalariado. Com destaque, teve-se a não inclusão dos ex-escravos e o aprisionamento das terras, além do aprisionamento “contratual” dos imigrantes. Estas circunstâncias históricas engendram, também nas terras brasileiras, uma estrutural dependência daqueles não-proprietários para com os proprietários daqui. Ou seja, o ponto de partida dos assalariados brasileiros foi justamente a construção político-social do despossuimento da maioria, forjando necessária venda da mão de obra como condição de sobrevivência dos trabalhadores.

Por isso, a liberdade de trabalho somente reside nos planos dos discursos, inclusive por que sequer foi albergada nas ordens jurídicas anteriores à CLT, vide o exemplo do trabalho do imigrante da Lei 108/1837. A pseudo liberdade também inscreveu suas marcas neste país como o efeito palpável da retórica política e jurídica de trabalho livre, quando a necessidade destes despossuídos corroía totalmente a livre opção de trabalhar. O despossuimento do obreiro brasileiro é a marca forte do capitalismo local. Como garantia do reforço desta imposição da venda da força de trabalho, o mercado de trabalho local ainda se vale dos expedientes do exército industrial de reserva (desemprego) e da persistente informalidade. A dependência aqui se revela intensa e viciadora da vontade do trabalhador, inclusive ocultada numa legislação pensada e operacionalizada pelo positivismo.

Agravando a dependência, os novos discursos da reengenharia pós-fordista tentam recolocar a situação de precariedade e instabilidade anterior ao próprio trabalhismo. No tempo presente, a principal consequência desta precariedade do trabalho tem sido o esvaziamento da forma clássica do emprego pelas diversas medidas de externalização e precarização. Talvez como resposta do capital a certo status de proteção legal obtido na forma jurídica do emprego ou mesmo apenas a renovação da lógica ontológica de extração de lucro, foram criadas novas formatações de não-emprego para a prática de trabalho assalariado.

Destarte, o cenário político-social do mercado de trabalho nacional assemelha-se a um grande mosaico, com figuras aparentemente dispares e antagônicas – assalariado protegido e precário, toyotismo e fordismo, flexibilização de relações já “flexíveis”, trabalho escravo contemporâneo e robotização – que se firmam como integrantes de uma mesma dinâmica. Sem prejuízo da singularidade histórica, a expansão do capitalismo – leia-se mais extração de riqueza do trabalho – realiza-se com mais intensidade e com mais enfraquecimento dos trabalhadores, o que lhes atribui uma condição estruturalmente mais dependente do capital quando comparada aos países de capitalismo central. Por sinal, o verbete “dependente” desacompanhado de qualquer adjetivo é justamente o texto literal da definição legal de empregado, consoante art. 3º da CLT. Todavia, o positivismo e seu afã puritano reduz, intencionalmente, esta dependência à subordinação jurídica.

O mercado de trabalho brasileiro, portanto, não é destinatário, em termos hegemônicos, da proteção do Direito do Trabalho. Conjuntamente com as questões sociais, políticas e históricas descritas acima, a conceituação de empregado adotada pelos operadores jurídicos tem uma parcela de responsabilidade nesta considerável ineficácia do Direito Laboral. Justamente a subordinação jurídica, precisamente sua vertente subjetiva, simboliza um acesso estreito e limitado para o mundo da tutela trabalhista. Como visto, esta “pequenina entrada” colabora significativamente para impedir que mais assalariados recebam a proteção social que o Estado brasileiro juridicamente se comprometeu.

Nestes termos, a subordinação jurídica exerce o papel de concausa para o agravamento deste cenário de reduzido reconhecimento da relação empregatícia. Por força dos limites que a doutrina trabalhista lhe imputou, a subordinação jurídica não deu conta do trabalho ilegal e informal e, principalmente, sucumbiu diante dos discursos da autonomia e colaboração amparados na acumulação flexível. Se já se apresentava como um critério estreito diante da totalidade dos assalariados, assume a tendência, na contemporaneidade, de distanciar o conceito de assalariado do conceito de emprego, pois os assalariados dependentes de hoje são coordenados/integrados a empresas, mas não classicamente subordinados.

4. O RETORNO DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

Diante dos problemas do conceito clássico da subordinação jurídica e das situações paradoxais de trabalho dependente não-subordinado, a dependência econômica tem sido novamente cogitada como nota distintiva do Direito do Trabalho. Por consequência, parcela da doutrina nacional e estrangeira cada vez mais se vale da antiga ideia de dependência como critério mais pertinente para o enfrentamento das situações atuais de trabalho. O critério, outrora renegado e tido como inaceitável pelo seu conteúdo extrajurídico, desponta novamente no debate doutrinário.

No horizonte estrangeiro, o debate está franqueado, tendo a dependência econômica um lugar de destaque como alternativa ou complemento à subordinação jurídica. As novas figuras atípicas nas relações de trabalho são todas envoltas pelo estado de dependência econômica que é de difícil enquadramento na clássica subordinação. O professor português José João Abrantes (2004, p. 94-95) enuncia que: na Itália a legislação valeu-se do epíteto “parassubordinado” (il lavoro parasubordinato); na Alemanha designa-se “pessoas semelhantes a trabalhadores” (arbeitnehmerähnliche persone)[9], pois são prestadores de serviço economicamente dependentes (tarifsvertragsgesetz), também intitulados quase-trabalhadores; em Portugal, denomina-se contratos equiparados.

No espectro da Organização Internacional do Trabalho – OIT, discute-se o problema do conceito de empregado e o seu campo de destinatários. No debate da 91a Reunião da OIT em 2003[10], enfrentou-se a questão do “ámbito de la relación de trabajo” e, por consequência, as situações de “trabajo encubiertas o ambiguas”. No relatório do debate, afirma-se que “La dependencia económica, es cierto, no entraña subordinación en todos los casos, pero puede ser un criterio útil para determinar si un trabajador es un asalariado y no un empleado por cuenta propria” (OIT, 2010, p. 31-32).

No Brasil, Arion Sayão Romita, o mesmo autor que introduziu no país o conceito de subordinação objetiva, já sinaliza para a retomada da dependência econômica, afirmando que o atual contexto “propicia a revalorização da dependência econômica como critério  legitimador da aplicação das leis a quem contrata serviços remunerados por conta de outrem, ainda que não juridicamente subordinado” (ROMITA, 2004, p. 1287).

A condição de dependente do trabalhador é indiscutivelmente a causa e a razão de ser do Direito do Trabalho. Com efeito, é o traço da dependência o constitutivo da singularidade do juslaboralismo, haja vista que seu caráter protetivo, limitador da exploração deste trabalho, é o caractere que o distingue das demais disciplinas das relações privadas. Serve, então, como medida de garantia de civilidade a uma relação econômica que é estruturalmente injusta e desproporcional. O Direito do Trabalho destina-se àqueles que somente têm a força de trabalho como possibilidade de vida e, assim, como serem dependentes daqueles que lhes ofertem um salário.

A oferta de trabalho, na forma de assalariamento capitalista, resulta em exploração da própria pessoa, porque se manifesta como apropriação alheia do trabalho daquela. Perante as situações de excessiva exploração do trabalho humano, a ontologia juslaboral foi criada almejando combater a exploração do homem pelo homem, seja por sua atenuação (reformismo cristão), limitação (socialismo utópico) ou mesmo a supressão (comunismo). Independentemente dos graus de tolerância da exploração, resta clarividente o compromisso ontológico do Direito do Trabalho em questionar a desigualdade entre o patrão (tomador dos serviços) e o trabalhador (prestador dos serviços), ou melhor, em contestar a hipossuficiência nas relações laborais, embora persista sua função geral de legitimar esta exploração capitalista.

A justificação histórica e ontológica da criação de uma tutela legal para as relações de trabalho é a condição essencialmente dependente do trabalhador assalariado para com o Capital. Por esta razão, o critério da dependência econômica detém uma força histórica marcante no Direito do Trabalho, como delimitação conceitual jurídica da condição de assalariado. Apesar dessa importância histórica e ontológica, entendeu-se que a dependência econômica era tão somente a causa “pré-jurídica”, nada além disto. Estando fora da seara jurídica, não poderia, então, servir como critério jurídico, sob pena de ofensa ao puritanismo conceitual positivista. Há inexplicável paradoxo nesta rejeição de importância e utilidade.

Noutro sentido, a dependência econômica é, de igual modo, o fundamento da expansão do Direito do Trabalho. Na busca pela proteção dos sujeitos em debilidade econômica, o Direito do Trabalho empreende um histórico de recorrente alargamento do campo dos seus destinatários. Rememore-se que a intervenção protetiva da legislação trabalhista iniciou-se exclusivamente para as “meias forças” – mulheres e crianças –, embora adstrita ao fundamento geral de integridade física, garantida por meio da limitação da jornada. Adiante, afirmou-se como sistema protetivo para os operários fabris, baseando-se não mais em poder de polícia, mas agora considerado como um direito social: o Direito do Trabalho. Ultrapassa a fronteira da fábrica ao estender esta proteção aos empregados do comércio em geral, inclusive abrangendo sujeitos economicamente médios como os alto-empregados e gerentes. Transcende o trabalho manual em direção ao trabalho intelectual. Chega à residência familiar protegendo os domésticos e ao campo tutelando os rurícolas e, ainda, afirma-se como tuitivo mesmo para o trabalho fora da fábrica, aquele praticado no domicílio obreiro.

Todo o fundamento do princípio da proteção trabalhista e, igualmente, do princípio da irrenunciabilidade é a debilidade econômica frente ao empregador, e não a subordinação jurídica. Ademais, a própria legitimação ontológica da subordinação jurídica se dava pelo paralelismo do seu conceito com o de dependência econômica, ou seja, pela existência conjunta com esta última noção. Da história e da ontologia, confirma-se que a tutela do trabalho sempre foi legitimada socialmente pela condição hipossuficiente do trabalhador. E a medida desta hipossuficiência – de quem trabalhar para outrem – é justamente a dependência econômica. É a razão histórica e ontológica que justifica e legitima o modelo de proteção do Direito do Trabalho em favor daquele sujeito não-proprietário que vende sua força de trabalho, pela sua prévia condição de dependente econômico.

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5. ULTRAPASSANDO A CLÁSSICA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

A retomada da dependência econômica para que seja mais efetiva deve ser (re)pensada numa dimensão mais aprofundada em relação àquela ideia apresentada no início do século XX. O perfil daquele sujeito que vive da venda do seu trabalho seria a primeira tradução jurídica para o conceito de dependência econômica. O primeiro autor a usar o conceito de dependência foi o francês Paul Cuche, em 1913, para o qual a dependência econômica decorria de dois requisitos inseparáveis. Primeiro, o trabalho deverá ser a única ou principal fonte de sobrevivência do trabalhador, conferindo ao serviço prestado a condição para o seu sustento. Segundo, o empregador deve absorver de forma regular e integral os serviços prestados pelo trabalhador, havendo, portanto, a inserção e exclusividade do trabalho deste na empresa. Em síntese, o trabalho do obreiro lhe garantiria prevalentemente sua subsistência e seria exclusivo em favor de um tomador.

Outro autor francês, Alexandre Zinguerevitch, formulou um conceito mais amplo de contrato de trabalho, a partir dos traços mais gerais da dependência econômica, enfocando especialmente a questão da privação da liberdade econômica. Zinguerevitch pretendia defender uma noção ampla de contrato de trabalho a partir dos critérios gerais da OIT, em especial o principio diretor de que o trabalho não pode ser tratado como mercadoria, quebrando ou limitando juridicamente o “livre jogo” da lei de oferta e procura de mão de obra no mercado de trabalho.

O pressuposto de Zinguerevitch era “[…] o que caracteriza essencialmente as relações entre o patrão e o empregado é estado de fraqueza e dependência econômica no qual  se encontra o segundo em relação ao primeiro” (1936, p. 28). Logo, quem não pode trabalhar para si mesmo e, assim, precisa fornecer seu trabalho para outro é economicamente fraco. Seriam, então, dependentes aqueles sujeitos “privados de liberdade econômica”. Como resposta às críticas, muitos autores aderiram à justaposição da dependência econômica à subordinação jurídica. Cabe notar que o próprio Paul Cuche referia-se à dependência econômica como um critério adicional à subordinação jurídica.

Como visto, a delimitação jurídica do critério da dependência econômica sempre se ateve à superficialidade quando concebe o dependente como sendo aquele trabalhador que vive da remuneração. Este viver de salário representa apenas a epiderme do fenômeno, haja vista que todos os que prestam serviços, inclusive os autônomos, vivem da contraprestação pecuniária recebida. De igual modo, empresas podem se encontrar em uma situação de dependência econômica para com outras empresas maiores, a exemplo dos processos produtivos de subcontratação.

Como reparo a esta superficialidade, José Martins Catharino já esboçava uma acepção relativizada da dependência econômica, visando torná-la mais juridicamente eficaz. “Na sua concepção relativa, […] bastando que o salário seja o principal meio de vida, e a absorção parcial e predominante do seu tempo disponível por empregador” (CATHARINO, 1982, p. 203). O mesmo autor destaca adiante que ainda assim há falha no critério, invocando a hipótese fática em que uma pessoa trabalhe e seja igualmente remunerada por duas empresas. Entretanto, o professor baiano frisa que a ausência de dependência econômica, ou seja, uma situação de independência econômica do obreiro, é manifestação clara da desfiguração do contrato de emprego. Catharino registra que as divergências com a ideia da dependência econômica não resultam na sua invalidade, graças a sua sólida raiz histórica e política do critério que lhes garantem sustentação (1982, p. 204).

Atrelada à aparência primária da dependência econômica, a doutrina juslaboral teceu diversas críticas a este critério, concluindo pela sua imprestabilidade. A primeira negativa à dependência econômica provém do seu caráter extrajurídico[11], que corresponde a um demérito, pois o conceito não foi formulado nos precisos e completos marcos conceituais do direito. Além do equívoco epistemológico advindo do positivismo que sustenta esta crítica à extra-juridicidade, há uma pretensão subliminar de completude do sistema jurídico que, assim, não pode admitir critérios que não sejam autossuficientes no próprio direito.

Outra crítica advém de um cenário hipotético em que o empregado é mais rico do que seu empregador, cuja situação há subordinação, mas não dependência. A princípio, o cenário da crítica é quase fictício, cabendo a indagação de quantos empregados estão nesta situação afortunada. A crítica, então, inicia-se numa pressuposição idealista, porque pouco considera a realidade concreta e sua manifestação cotidiana. Ainda assim, cabe endossar o exercício de imaginação e reiterar a dúvida: teria mesmo o empregado mais propriedade do que a empresa em que trabalha? Caso a resposta fosse afirmativa, seria lógico que o sujeito, com possibilidade de comprar uma empresa decidisse, ao inverso, vender seus serviços em manifesto prejuízo econômico? A resposta positiva significaria que o sujeito iria preferir economicamente a redução do seu patrimônio, em manifesta ofensa à lógica capitalista de acumulação. Esta opção, justamente pela irracionalidade diante da dinâmica do sistema, não merece aceitação, porque nega a razoabilidade na vontade do sujeito.

Neste bojo, é possível adequar – tornando-o mais real, racional e factível – o exemplo para aquela situação em que o obreiro não está totalmente privado de patrimônio, seja porque detém uma herança ou outra fonte de renda considerável. Usando o exemplo de Jorge Luiz Souto Maior (2008, p. 63) que nega validade à dependência econômica pode-se, ao contrário, confirmá-la. Trata-se da situação na qual um juiz do trabalho – que aufere grande remuneração quando comparada ao mercado médio de trabalho – atua como professor em faculdade privada. Nesta situação, a condição personalíssima deste professor – excepcionalmente hiperssuficiente pela outra ocupação – não significaria autonomia. Ao inverso, no âmbito das relações internas à faculdade, este professor-juiz é tão dependente quando o professor-professor ou um professor-advogado, pois nenhum destes são os detentores do capital que funda a faculdade. Não sendo proprietários, não lhes cabe estruturar a forma de trabalhar, tampouco fixar os objetivos institucionais da empresa e, principalmente, não lhes é apropriado o resultado do seu trabalho.

A inexistência de dependência econômica no contrato de trabalho é uma “exceção da exceção” quando comparada com a existência de dependência econômica, pois aqueles que não têm os meios de produção (dinheiro, propriedades, etc.) têm a liberdade (única opção) de vender seu trabalho em troca da sobrevivência. É este o traço marcante do trabalho assalariado e da relação de emprego. Negar a dependência econômica invocando a hipótese da pessoa rica que se sujeita a trabalhar como empregado é impugnar a realidade social a partir da exemplificação de um “caso de laboratório” (URIARTE e ALVAREZ, 2001, p. 212).

A crítica relativa à exclusividade é infundada, eis que se apresenta como uma consequência superficial do fenômeno. Quem vive de salário deve, por suas necessidades vitais, buscar o número máximo possível de tomadores, a fim de garantir sua sobrevivência. A necessidade de vender-se a mais de uma empresa é, ao contrário, reforço da debilidade econômica do trabalhador que não consegue encontrar os meios de subsistência satisfatória em um único empregador, quando lhe é fisicamente possível trabalhar para diversos tomadores. Note-se que este é o exemplo sintomático do avulso que precisa necessariamente de diversos tomadores para realizar sua sobrevivência.

Todas as críticas acima foram responsáveis para a rejeição do critério da dependência econômica como nota distintiva da relação empregatícia. Embora seja pacífico que a dependência é a causa urge, portanto, transpor esta visão epidérmica, para começar entender com profundidade interdisciplinar a noção de trabalho dependente.

6. REFAZENDO A DELIMITAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHO DEPENDENTE

Se a dependência econômica tem sido, até então, enfrentada sobre seus aspectos superficiais e igualmente criticada pelos problemas oriundos desta aparência, é premente romper com esta análise epidérmica. O aprofundamento da noção de dependência implica refazer, agora com o esteio numa compreensão interdisciplinar e crítica, uma delimitação jurídica do trabalho assalariado. Almeja-se resgatar a sinonímia integral entre trabalhador assalariado e trabalhador dependente.

O primeiro elemento desta delimitação jurídica é reconhecer que o poder – e sua consequência potencial de subordinar os trabalhadores – de uma empresa capitalista decorre da sua propriedade. Retomando Karl Marx, vê-se que “O capitalista não é capitalista por ser dirigente industrial, mas ele tem o comando industrial porque é capitalista” (2006, p. 385). O capitalista comanda a empresa em nome da propriedade de que é titular. Por ser o sujeito proprietário, pode-se afirmar como o comandante da empresa. Por decorrência, o poder diretivo é mera consequência da produção capitalista e não sua qualidade distintiva.

O fundamento central da relação de trabalho é a propriedade, precisamente porque o caráter singular desta relação é o intercâmbio entre proprietários e não-proprietários. Entretanto, essa questão é ocultada no Direito do Trabalho. A ênfase que o juslaboralismo confere ao poder diretivo atua, de certa medida, como ocultadora e naturalizadora desta relação entre proprietário e não-proprietário[12]. O contrato de trabalho aparece, então, como o momento jurídico de legitimação da subordinação, embora antes mesmo de contratar, o trabalhador já é dependente por não ser proprietário.

Sendo o assalariado um sujeito despossuído – por ausência de propriedade capaz de lhe permitir atuar como empreendedor – fica “livremente” impelido a vender sua força de trabalho. O despossuimento é que demarca sua condição de dependente e não o fato de depender de salário. A relação de dependência do assalariado para com a empresa é prévia ao contrato de trabalho e estrutural na sociedade capitalista, na medida em que a força de trabalho somente se realiza quando vendida ao capital. Seu destino dirige-se estruturalmente à alienação em favor do empregador sob a condução sutil dos fios invisíveis da teia capitalista. O trabalho desconectado da propriedade no mundo capitalista reduz o sujeito trabalhador a apenas força de trabalho, ou seja, a algo a ser vendido como mercadoria em troca de salário. Infere-se aí que o viver do salário é a consequência do ser despossuído e não a própria condição de dependente.

A direção dos serviços não é condição essencial para existência de trabalho dependente, embora seja uma das consequências mais habituais. O exemplo do vendedor externo ou do trabalhador intelectual é emblemático no sentido de demonstrar que nem todo trabalho assalariado é heterodirigido. Por isso, é a condição de proprietário dos meios de produção que legitima o comando do capitalista e não a situação inversa. O poder ínsito à propriedade dos meios de produção explica como pode ocorrer trabalho por conta alheia sem a direção dos serviços. Há casos em que o empregador é o dono do resultado do trabalho sem necessitar exercer o comando.

O segundo elemento é a pseudo liberdade de trabalho. A despeito das liberdades discursivas do capitalismo, aos despossuídos cabe a “livre” única opção de vender sua força de trabalho. A liberdade de trabalho dos que não têm substancial propriedade é inócua: se não tem como possuir meios produção, sempre tem que se vender. Neste primeiro sentido, ela é totalmente inexistente.

Conjuntamente com o poder do capitalista baseado em sua propriedade, o assalariado é o sujeito privado de real liberdade. O capitalismo dissocia os fatores de produção (capital versus trabalho) e, consequentemente, sempre força o trabalhador a vender seu trabalho, salvo quando o trabalhador é titular do capital, situação em que ele já é o próprio capital. O capital afasta inicialmente o trabalho dos meios de produção, mas simultaneamente força a venda de trabalho como condição de sobrevivência.

Adiante, num segundo sentido, a liberdade de trabalho é deveras pequena, embora existente quando o empregado pode ter alguma escolha aonde oferecer seu serviço. Em momentos de grande crescimento econômico, a força de trabalho, valorizada pela larga procura, tem alguma liberdade: vender-se para empregador A ou empregador B, conforme o maior quinhão prometido. Neste modelo societal, a liberdade plena de trabalho teria que pressupor a real capacidade de todo trabalhador acessar a condição de empresário. Ou seja, a verdadeira liberdade justificaria que a condição de empregado fosse uma real e livre opção do trabalhador, mas nunca uma necessidade de sobrevivência.

Infere-se que, no capitalismo, o homem trabalhador não mais vende mercadoria (produto do trabalho), mas é a sua força que é comercializada. Dissocia-se, com evidência, o feitor do trabalho e o proprietário do resultado, situação que até então era coligada. O autônomo é aquele que é proprietário da matéria-prima e do resultado do trabalho, sendo que nele foi empregado sua força. Assim, o autônomo tem liberdade para quem vender e não somente se vincula a um único tomador. Aqueles que têm capital razoável para instituir e dirigir sozinhos sua empresa, mas que preferem seguir certos modelos de parceria (franquias, contratos de prestação de serviços, parceiros capitalizados, entre outros) são, por opção, sócios do capital, não sendo dependentes econômicos. É a esta a distinção da dependência econômica com a subordinação objetiva que incluiria estas pessoas integradas a um processo produtivo.

Tudo isto leva a compreender o sujeito assalariado como sinônimo total de sujeito dependente, como aquele tem seu trabalho apropriado pela empresa. Encontra-se o sujeito dependente como o ser despossuído e coagido a se vender como apenas mercadoria (força de trabalho). Neste particular, a subordinação jurídica em nada capta a questão do assalariado e sua pseudo liberdade. A dependência econômica, então, engloba a subordinação jurídica, sendo muito mais ampla do que esta, uma vez que considerando os elementos prévios do assalariado pode também considerar o trabalhador subordinado normalmente como dependente. O trabalho por conta alheia implica estado de dependência do trabalhador, a qual é “uma consequência ou um efeito da prestação de trabalho para terceiros, pertencerem originariamente a pessoa distinta da que efetivamente trabalha, esta se reserva um poder de direção ou de controle sobre os resultados […]” (OLEA, 1969, p. 32).

O esqueleto geral do assalariamento é a relação de trabalho entre um proprietário e outro não-proprietário, na qual há uma dependência estrutural e prévia do segundo para com o primeiro. É esta dependência prévia a tônica do regime do assalariamento, pois quem vende trabalho e não mercadoria (vendida somente pelo proprietário) é assalariado. Quem vende trabalho é sempre subsumido ao seu comprador, pois vende algo que, por ser uma parte de um produto qualquer, somente se concretiza quando for vendida, isto é, quando colocada em ação na produção. A venda de trabalho (força de trabalho) é, assim, sempre dependente no capitalismo.

Com desenvolvimento econômico-social, a pobreza individual deixa de ser sinônimo de despossuimento. Associa-se, prima facie, assalariamento à pobreza individual, o que é um equívoco consoante análise aprofundada, uma vez que despossuimento não significa necessariamente miséria ou pobreza individual. Como na concepção clássica da dependência econômica, a epiderme do fenômeno foi caracterizada como o próprio fenômeno. O assalariado era inicialmente o sujeito despossuído universal, logo, sujeito pobre ou miserável. Entretanto, o atual assalariado não é necessariamente o sujeito inserido na situação de pobreza. A condição salarial transpõe, para alguns, a margem da pobreza, elevando-os a condição de classe média ou até de altos-empregados. Nem por isso, deixam estes de serem sujeitos dependentes econômicos.

A par desta distinção entre pobreza e assalariamento, falar em despossuimento corresponde a afirmar que o sujeito, tendo algum patrimônio, não tem propriedade suficiente para montar sua empresa, ou seja, não detém os meios de produção. Embora, tenha até um automóvel ou uma residência, o trabalhador não tem como viabilizar economicamente a constituição de uma empresa, o que lhe coloca numa relação social de venda compulsória de força de trabalho. Portanto, é preciso distinguir, novamente, que a dependência econômica atinge o sujeito pobre pauperizado e os demais sujeitos medianos (profissionais intelectuais, artistas, vendedores, técnicos, professores, entre outros) que também ocupam a posição social de assalariado.

Percebendo a dependência como prévia, estrutural e distinta de pobreza, cumpre firmar sua delimitação conceitual não mais pelas consequências do fenômeno do trabalho assalariado – como fez parcialmente a teoria da subordinação jurídica. Sabe-se que as definições construídas sobre as consequências dos fenômenos tendem a não captar a sua inteireza, como também a se esvaziar quando o mesmo fenômeno alterna seus efeitos. São estes os exemplos dos diversos critérios que atuaram como notas distintivas do Direito do Trabalho, eis que todos captavam apenas uma consequência parcial do assalariamento e logo se tornavam inadequados. A dependência técnica não se  adéqua ao empregado com domínio técnico, a sujeição hierárquica não combina com o trabalho intelectual, a vigilância e fiscalização têm dificuldades de materialização no trabalho a domicílio, a pobreza individual não explica a ocorrência de altos e médios assalariados e, por fim, a integração à empresa comporta, além dos assalariados, os autônomos. Em todos estes casos, a ênfase foi na consequência e não na causa.

O sentido da expressão “venda de força de trabalho” refere-se ao bem cuja utilidade econômica é restrita, por depender do seu acoplamento a um empreendimento, mais precisamente pela sua conjunção com a propriedade (meios de produção). Sendo o trabalho um elemento da empresa, seu destino é o de estar contido nesta. O trabalho dissociado da propriedade não pode agir como empresa; somente lhe cabe retornar a empresa pela “venda compulsória de força de trabalho”. Ao contrário, quando o trabalho encontra-se associado à propriedade seu resultado deixa de ser apenas força de trabalho (valor-de-uso) e passa a ser uma real mercadoria (valor-de-troca), recebendo os epítetos jurídicos de produto ou serviço.

Nesta definição, é preciso realçar que o trabalhador dependente é exatamente aquele que, por ser despossuído, trabalha por conta alheia e, assim, não se apodera dos resultados desta entrega de trabalho. O trabalho por conta alheia origina o sujeito dependente como fundamento do Direito do Trabalho. Daí, forma-se, por simetria, o conceito de empresa como ente que se apropria dos resultados positivos e negativos – os riscos do negócio –, inclusive porque normalmente dirige a organização da empresa.

Neste particular, dirigir a organização da empresa é um conceito muito mais amplo do que o estabelecimento da hierarquia e de sua faceta mais visível de “emitir ordens”. O ícone da empresa não é o mando, mas a propriedade. Mais importante do que dirigir os serviços – o que pode ser traduzido num controle contínuo da atuação do empregado – é estruturar e organizar os serviços, os quais poderão até ser executados sem esta reiterada direção (vide situação do vendedor viajante). Organizar a empresa diz respeito a estabelecer os rumos da atividade econômica, fixar a dimensão territorial de atuação, definir os preços dos bens e serviços que comercializa e, principalmente, ser juridicamente o proprietário do resultado do trabalho dos seus empregados.

A condição de dono não propicia a atuação como chefe emissor de ordens e fiscalizador, até porque este papel é cotidianamente atribuído aos seus capatazes. O dono cria e organiza, delega a direção aos altos-empregados, mas, sempre, é o proprietário da riqueza gerada pela força de trabalho que comprou. É isto o comando geral inerente a qualquer titular de empresa, sendo o modelo fordista apenas uma possibilidade dentre muitas, a exemplo das pós-fordistas, de dirigir a atividade da empresa.

A par disto, o termo “dependente” deve ser compreendido menos como um adjetivo (subordinado e assujeitado) e mais como aquele que predica ação “depender”. O verbo “depender” – ação daquele que é dependente – deve privilegiar a semântica de “pertencer”, “estar condido” e “fazer parte” em detrimento da subordinação advinda do “estar sujeito” ou carecer economicamente (HOUAISS, 2009, p. 616). O empregado é dependente porque sua força de trabalho não se realiza sozinha, pois pertence estruturalmente à empresa, fazendo parte desta e, como consequência possível, podendo ser subordinado.

A demarcação da dependência foi feita, até aqui, sem adjetivos, numa concepção generalizante. Todavia, é preciso fazer uma opção de recorte desta ampla delimitação visando enfatizar seu aspecto preponderante. A ênfase no aspecto econômico consiste no realce da força e do poder da propriedade. Fala-se em “econômica” para sempre relembrar que a causa e a continuidade do estado de dependente advém da apropriação alheia do trabalho, ocorrida em nome da propriedade.

A chave da compreensão crítica da dependência é, então, seu conteúdo econômico, como correlato à ausência de propriedade. Trata-se da percepção de que esta forma de trabalho dependente é estruturada pelas condições econômicas da sociedade capitalista. Em nome da propriedade, coage-se ao trabalho, como também, por força da propriedade,  expropria-se a riqueza criada pelo trabalhador. Não é à toa que o centro do capitalismo converge à propriedade e não ao trabalho, embora seja o trabalho fundador da riqueza que se represa em propriedade.

Qualificar a dependência como econômica significa explicitar a natureza capitalista da venda da força de trabalho e seu consequente Direito capitalista do Trabalho, que na fuga conveniente do extrajurídico termina esquecendo suas imbricações econômicas. Almeja-se destacar que a manifestação concreta de vontade e a liberdade, no capitalismo, pressupõe um sujeito proprietário, sendo remanescente a coação e a restrição da vontade para os não-proprietários. Daí, resta impraticável considerar como contratantes iguais na sua livre vontade negocial o empregado e o empregador, nas recorrentes tendências flexibilizantes de retorno da convalidação da autonomia privada.

Da mesma forma, objetiva rememorar que se os sistemas jurídicos pretendem concretizar o valor da dignidade humana devem combater o poder veiculado pela propriedade, através de limitações constitucionais e legais. O ascendente solidarismo de uma Constituição-Dirigente, para lograr seu firmamento, precisa conter o capital. Nesta direção, deve-se, cada vez mais, fortalecer as limitações dos poderes dos proprietários, tal como ocorre com a “função social da propriedade”, Direito do Consumidor, Lei do Inquilinato e, ontologicamente, o princípio da proteção do trabalhador no Direito do Trabalho.

Nestes termos, os fios invisíveis da produção capitalista estabelecem a dependência antes do próprio contrato (coação para venda da força de trabalho), limitam as possibilidades de ocupação (dependência técnica) e, no sistema legal brasileiro, caracterizam a execução do contrato como intenso arbítrio sem possibilidade de defesa imediata do trabalho (a dispensa sem justificação, a inexistência de direito de defesa perante a punição, as possibilidades de transferências já previstas em lei) e as demais condições de sonegação de direitos da precariedade brasileira. Por fim, quando da extinção contratual, muitos ainda temem reclamar na justiça, receosos do poder do ex-empregador em posterior perseguição (lista suja e informações desabonadoras).

A relação de trabalho assalariado perpassa, nestes termos, pelas ideias de propriedade, poder e sujeição. A propriedade confere poderes e obriga aqueles que são proprietários apenas de si a se sujeitaram, como condição de vida, ao trabalho para o outro. Em essência, a leitura jurídica do fenômeno social do assalariamento indica que o trabalhador vive sob “sujeição” porque atua conforme o interesse alheio, por falta de propriedade. Assim, a dependência equivale a “sujeição”, destacando o traço do poder nesta relação, enquanto a econômica elucida que o fundamento deste poder é a propriedade. Enfim, serve para que não se esqueça de que o Direito do Trabalho é, essencialmente, o Direito Capitalista do Trabalho, que confere uma dita civilidade à expropriação do trabalho dos não-proprietários.

7. CONCLUSÕES

No retorno interdisciplinar à compreensão do sujeito assalariado, verifica-se que seus caracteres cingem-se à tríade do despossuimento, coação e expropriação. Se o trabalhador é o produtor da riqueza na modernidade, prossegue expropriado da propriedade que cria. Se a liberdade de trabalho é proclamada nos discursos jurídicos, a realidade de necessidade lhe impele, como única opção, a se vender como mão de obra. Se pelo império da necessidade tem que se vender, pouco espaço haverá para manifestação de uma vontade livre. Seja no fordismo ou no toyotismo, mantém-se o processo de intensificação do trabalho assalariado, em reforço da condição dependente do trabalhador, inclusive com a vertente de dependência consentida pela lógica da colaboração. Desta análise, constata-se que dependência se apresenta prévia e estruturalmente ao próprio contrato de trabalho.

O diagnóstico, conforme visão oriunda da política, economia e sociologia, é que a atipicidade flexível e suas inovações modistas no mundo do trabalho são veiculadoras de mais precariedade no lugar de um status de proteção advindo do contrato de trabalho e sua tutela jurídica. Sem o medo da possibilidade de outro regime político-social, não há mais razão econômica para o capitalismo manter, de maneira irresignada, um sistema de proteção (custoso) em favor do assalariado, bem típico de um Estado Social. Na mesma política, os dilemas estão postos: cumprir o programa constitucional de uma sociedade estruturada na dignidade humana, que dialoga com o valor social do trabalho e a livre iniciativa, na conciliação destes pela ideia de justiça social; ou, no plano do economicus, implementar uma sociedade baseada na busca da eficiência e riqueza que qualifica as tutelas jurídicas como obstáculos (onerosamente) desnecessários.

Como compromissária da primeira opção de justiça social, a dependência econômica se apresenta como a caracterização do trabalhador como o sujeito despossuído, coagido e expropriado. Por não possuir propriedade substancial – o que não significa pobreza individual –, é conduzido a vender de sua força de trabalho como simples valor-de-uso, quando poderia, caso tivesse propriedade, vendê-la como valor-de-troca. Sendo obrigado a se vender, assume socialmente uma posição de assujeitado ao poder daquele que pode lhe comprar, inclusive dirigindo-o ou não. Por fim, a riqueza que se produz neste trabalho – o valor agregado – não lhe pertence, eis que, juridicamente, é a propriedade originária do empregador, apesar de pressupor uma propriedade prévia.

Na operacionalização desta ideia ressignificada de dependência, articula-se uma racionalidade de abertura e amplitude conceitual, que transfere para o conceito de trabalho autônomo o padrão fechado da tipicidade. Na ruptura com o positivismo, afasta-se, igualmente, da pretensão de completude dos conceitos jurídicos, inclusive reconhecendo a inadequação de um conceito milimétrico que tende a ineficácia e obsolescência pela inovação, complexidade e pela processualidade histórica. Como contraposição à ideia de dependência econômica, a autonomia é, então, advinda da titularidade sobre uma organização produtiva, ainda que seja diminuta, isto é, a existência de propriedade suficiente (e trabalho humano) para a constituição da ideia (ampla) de empresa é que caracteriza a autonomia. Infere-se que é justamente a propriedade que cria as condições para o exercício do poder de direção ou mesmo propicia sua delegação para os chefes, gerentes, entre outros.

Afirmar a dependência como econômica demarca o aspecto econômico da relação, oriundo do poder que a propriedade confere ao seu titular. Destina-se a frisar que o Direito do Trabalho é, essencialmente, o Direito capitalista do Trabalho, o qual ao mesmo tempo em que confere uma civilidade à expropriação do trabalho dos não-proprietários prossegue mantendo esta relação estruturalmente de expropriação. Neste desiderato, a dependência econômica proposta, quando comparada à subordinação jurídica, tem muito mais a oferecer, seja na identificação da essência (e não da consequência) do assalariamento, inclusive a par das singularidades brasileiras, seja pela delimitação conceitual aberta perante as realidades formalmente disfarçadas ou pela aptidão a desfazer as ocultações capitalistas, a dependência econômica incorpora melhor as tarefas do Direito do Trabalho na busca por dignidade humana e justiça social.

 

Referências
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Notas:
[1]   Convém frisar que a ideia de dependência econômica trabalhada neste texto não diz respeito à teoria da dependência bastante debatida no âmbito da CEPAL, a partir da década de 1950. A dependência analisada aqui corresponde ao critério jurídico, ao lado da subordinação jurídica, de identificação da relação de emprego, consoante aportes teóricos do Direito do Trabalho.

[2]    Tese de doutorado defendida pelo autor em 29/07/2011 na Universidade Federal do Paraná, sob orientação da Professora Dra. Aldacy Racid Coutinho, intitulada: “A (re)significação do critério da dependência econômica: Uma compreensão interdisciplinar do assalariamento em crítica à dogmática trabalhista”.

[3]    Tais debates foram enfrentados e aprofundados por Oliveira (2009) na dissertação de mestrado, no Capítulo intitulado Crise do Direito do Trabalho.

[4]    Nesta situação, a noção de subordinação teria que ser um pouco mais sutil, uma vez que “[…] o grau de dependência dos trabalhadores de profissão liberal, por causa da natureza especial da prestação, é mui tênue e não apresenta alguns de seus elementos característicos, como seja a sujeição ao empregador no que tange à iniciativa ou método de trabalho” (GOMES e GOTTSCHALK, 2005, p. 93).

[5]    Em todas, realça-se o aspecto da integração do trabalho em detrimento ao aspecto da sujeição pessoal às ordens. Cita-se a: subordinação estrutural de Maurício Delgado Godinho (2006); a subordinação estrutural-reticular de José Eduardo Chaves Junior e Marcus Menezes Barberino Mendes (2008); a subordinação integrativa de Lorena Porto (2009); a subordinação potencial de Danilo Gaspar (2011).

[6]    A hegemonia da teoria da subordinação jurídica é obra de um positivismo cientificista doutrinário, que rechaçou conceitos subjetivistas, apoiando-se na (pseudo) neutralidade e segurança de um conceito (dito) objetivo. O critério da subordinação jurídica é interpretação doutrinária e jurisprudencial de um dispositivo legal bem mais amplo que, literalmente, refere-se só a dependência (OLIVEIRA, 2009).

[7]    No lugar da coação legal ao trabalho, adota-se a coação pela fome e necessidade ao trabalho. “O velho paradigma do trabalho forçado não é pois recusado enquanto se constitui o embrião de uma condição de assalariado “moderna”. Ao contrário, ele acompanha e tenta enquadrar seus primeiros desenvolvimentos. O que pode ser perfeitamente entendido: as condições de trabalho são tais nas primeiras concentrações industrias, que é preciso estar sob a mais extrema sujeição da necessidade para aceitar semelhantes “ofertas” de emprego, e os infortunados assim recrutados aspiram somente a deixar o mais rápido possível esses lugares de derrelição” (CASTEL, 1998, p. 206).

[8]    Nestes termos, Karl Marx anteviu os caracteres do fordismo e do toyotismo na recorrente dinâmica de intensificação do trabalho, descrevendo a lógica capitalista de intensificação do trabalho: Não existe a menor dúvida de que a tendência do capital, com a proibição definitiva de prolongar a jornada de trabalho, é compensar-se com elevação sistemática do grau de intensidade do trabalho e de converter todo aperfeiçoamento da maquinaria em meio para absorver maior quantidade de força de trabalho (MARX, 2006, p. 476).

[9]    O “assemelhado ao empregado” do direito alemão é mais um exemplo do retorno à dependência econômica. “Impressiva, em tais prestadores-colaboradores, é a marca da dependência econômica que os acaba por conduzir a uma situação fática de equivalente à relação de emprego, o que é enfaticamente ressaltado por Wollenschläger, quando define o assemelhado como aquele que frequentemente se encontra em situação de carência econômica tal qual o empregado tutelado” (VILHENA, 2005, p. 545-546).

[10]  Na mesma trilha, a Recomendação 198 da OIT afirma o objetivo de tornar claras as definições em cada legislação nacional dos critérios de reconhecimento do vínculo de emprego, visando assegurar a proteção legal contra situações de trabalho “encubierto”.

[11]  A crítica de Orlando Gomes e Elson Gottschalk é forte contra o extrajurídico. Afirmam que “[…] padecem do mesmo vício de origem [a dependência econômica e dependência social]. Pretendem caracterizar um contrato com elementos metajurídicos. O erro de seus defensores provém de procurarem, preferentemente, analisar a condição social e econômica do trabalhador, em vez de examinar a relação jurídica da qual ele participa. […] O equívoco dos que adotam critérios extrajurídicos reside exatamente no fato de se não preocuparem com a fixação do elemento característico do contrato de trabalho, mas sim com a qualidade da pessoa que deve ser protegida” (GOMES e GOTTSCHALK, 2005, p. 141).

[12]  O jovem Orlando Gomes, conjugando as contribuições de La Cueva e Sinzeheimer, aponta que o direito de propriedade funda uma situação de poder do empregador sobre o empregado. Convém reproduzir o elucidativo trecho: “É fato incontroverso que a propriedade não confere apenas um poder sobre as coisas, mas, também, sobre os homens. Nos domínios da produção de riqueza, esse poder do proprietário concretiza-se, juridicamente, em um conjunto de faculdades através de cujo exercício faz sentir sua autoridade sobre os trabalhadores, isto é, sobre os homens que, não podendo ser proprietários de meios de produção, põem, à disposição dos que podem, a sua força-trabalho” (GOMES, 1944, p. 119).


Informações Sobre o Autor

Murilo Carvalho Sampaio Oliveira

Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Adjunto da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT


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