Resumo: Este trabalho visa abordar a prática da adesão por órgãos não participantes da licitação pelo sistema de registro de preços promovida por outro órgão, procedimento que vem sendo chamado de “carona”, figura esta que viola os princípios jurídicos aplicáveis às Licitações Públicas, tais como a legalidade, isonomia, vinculação ao instrumento convocatório, moralidade e probidade, competitividade, dentre outros, aborda-se ainda Acórdão 1.487/2007, do TCU, que analisou procedimento do Ministério de Planejamento Orçamento e Gestão do Governo Federal, e o Pedido de Reconsideração por parte deste órgão.
Sumário. 1. O Dever Constitucional de Licitar e a Figura do “Carona”. 2. A Violação aos Princípios Jurídicos. 3. Distorções que vem sendo realizadas com a possibilidade do “Carona”. 4. Decisão do TCU acerca do Carona. 5. Do Pedido de Reexame Impetrado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPGO do Ac. 1.487/2007. 6. Conclusão.
1. O DEVER CONSTITUCIONAL DE LICITAR E A FIGURA DO “CARONA”
A Constituição Federal de 1988 instituiu a obrigatoriedade de se realizar licitação prévia nos termos do artigo 37 inciso XXI, que preceitua: “XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”.
Por sua vez a Lei 8.666 de 21 de Junho de 1993, prevê em seu artigo 22, licitação nas modalidades concorrência, tomada de preços; convite; concurso; e leilão e dispõe ainda no § 8 º do referido artigo: “É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo”.
A Lei 10.520 de 17 de junho de 2002 de igual hierarquia da 8.666/93, convertendo Medida Provisória criou a modalidade Pregão destinada à aquisição de bens e serviços comuns.
A licitação pelo Sistema de Registro de Preços (SRP) pode ser realizada nas modalidades Concorrência Pública (§ 3º do artigo 15 da Lei 8666/93) ou Pregão (artigo 11 da Lei 10.520/02).
O decreto 3.931/2001 permite a um órgão administrativo que não promoveu ou participou da licitação para o registro de preços beneficiar-se da Ata de Registro de outro órgão mediante prévia consulta e que o fornecedor e desde que o beneficiário da ata aceite lhe fornecer o objeto, tudo sem que tenha participado da elaboração do projeto básico ou termo de referência, como é o caso do órgão promotor ou participante que obrigatoriamente deve cumprir estes requisitos previstos na Lei 8666/93.
Esta aceitação invariavelmente ocorrerá pela vantajosidade de utilização da economia de escala que opera em favor do fornecedor. O procedimento que vem sendo apelidado, como “carona” está previsto expressamente no artigo 8º do referido Decreto:
Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.
“§ 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.
§ 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.
§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.”
Diante do dispositivo em tela verifica-se que um órgão poderá adquirir bens ou serviços sem ter participado de qualquer licitação, este procedimento ofende literalmente ao disposto no artigo 37 da Constituição Federal, pois é uma espécie de substitutivo legal do procedimento licitatório, não permitido constitucional ou legalmente, utilizado como forma de exclusão da licitação. O procedimento licitatório, salvo as exceções legais (dispensa e inexigibilidade), é condição obrigatória para a Administração Pública adquirir bens e serviços é segundo Hely Lopes Meirelles “antecedente necessário do contrato administrativo.”[1]
Marçal Justen Filho tem como inválido o procedimento em questão:
A prática da “carona” é inválida. Frustra o princípio da obrigatoriedade da licitação, configurando dispensa de licitação sem previsão legislativa. Não cabe invocar a existência de uma licitação anterior, eis que tal licitação tinha finalidade e limite definidos no edital. [2]
O caráter da obrigatoriedade da licitação é duplamente violado, seja em relação à Administração que adere a Ata de Preços, sem ter promovido ou participado da licitação para o registro de preços, bem como em relação ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços permitindo-o contratar com órgão sem participar de licitação promovida por este.
2. A VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS
A utilização do procedimento “carona” frustra os princípios mais basilares, mais comezinhos, aplicáveis à Administração Pública, a se iniciar pelo princípio da licitação. A forma da Administração efetivar contratações de serviços e bens é totalmente vinculada, se dá através de licitação, de pessoas também, através de concurso público.[3]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, destaca que
“a própria licitação constitui um principio a que se vincula a Administração Pública. Ela é uma decorrência do principio da indisponibilidade do interesse público e que se constitui em uma restrição à liberdade administrativa na escolha do contratante; a Administração terá que escolher aquele cuja proposta melhor atenda ao interesse público”[4]
Desta forma o primeiro princípio violado pela figura do “carona” é o princípio consagrado no art. 37 inciso XXI, da Carta da República, que se exprime na obrigatoriedade de prévia licitação para a realização de obras, serviços, compras e alienações pela Administração Pública.
2.1. Violação ao Princípio da Legalidade
A ausência de previsão legal, do “carona” inobserva o princípio da legalidade. Pode-se alegar que a lei não proíbe, mas também não permite, portanto filiamos a doutrina de Joel de Menezes Niebuhr que considera estar vedado à Administração pública utilizar-se da figura do carona[5].
O princípio da legalidade apresenta um perfil diverso no campo do Direito Público e no campo do Direito Privado. No Direito Privado pode se fazer tudo que a lei não proíbe no Direito Público, pelo contrário existe uma relação de subordinação perante a lei, ou seja, só se pode fazer o que a lei expressamente autorize ou determine. O que se verifica na feliz lição de Hely Lopes Meirelles: “A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’, para o administrador público significa: ‘deve fazer assim’.” [6]
A figura do carona poderia ser criada por um decreto, instrumento meramente regulamentador? Cremos que não. A função do Decreto, no rigor do artigo 84 inciso IV, da Constituição Federal, é garantir a fiel execução da Lei, significando que o real comando é da lei e não do Decreto.
Trata-se de reserva legal nos ensinamentos de José Afonso da Silva:
“é absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: a lei regulará, a lei disporá, a lei complementar organizará, a lei criará, a lei definirá, etc”[7]
Há que ser observado o chamado princípio da primazia ou prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) que segundo José Joaquim Gomes Conotilho:
“foi entendido com uma tripla dimensão: (1) a lei ó acto da vontade estadual juridicamente mais forte; (2) prevalece ou tem preferência sobre todos os outros actos do Estado, em especial sobre os actos do poder executivo (regulamentos, actos administrativos); (3) detém a posição de «topo da tabela» da hierarquia das normas, ou seja, desfruta de superioridade sobre todas as outras normas de ordem jurídica (salvo, como é obvio as constitucionais).”[8]
Pelo visto se verifica que houve um verdadeiro extrapolamento das competências constitucionais (inciso IV do artigo 184 da CF), por parte do Exmo. Senhor Presidente da República na inclusão da figura do carona no Decreto de Regulamentação do SRP previsto no artigo 15 da Lei 8666/93, que nem remotamente lhe faz referência, o Chefe do Executivo ultrapassou a alçada regulamentar, que lhe autoriza a Constituição Federal.
O Decreto regulamentador visa explicar a lei, esmiuçá-la, facilitar sua aplicação, não é dado ao decreto prover situações não expressas, explícitas ou implícitas na legislação, não pode inovar ao ordenamento jurídico, está em situação inferior à lei e para Hely Lopes Meirelles: “por isso mesmo, não a pode contrariar.” [9]
A figura do “carona” poderia ser criada pelo Poder Legislativo, por meio de lei, em estrita observância ao princípio da legalidade. Salienta Joel de Menezes Niebuhr:
“Agora, não é constitucionalmente admissível que regulamento administrativo, um decreto da lavra do presidente da República, crie o carona sem qualquer lastro legal, inovando a ordem jurídica por meio da outorga autônoma de competência aos agentes administrativos, com repercussões de monta na esfera jurídica de terceiros.”
Acrescenta o autor: “No Estado Democrático de Direito não se deve governar por decreto, mas por lei como preceitua o princípio da legalidade.’ [10].
Assim também entende Marçal Justen Filho:
“O Direito brasileiro não autoriza que uma contratação seja realizada com base em licitação promovida para outros fins – nem mesmo mediante a invocação da vantajosidade das condições originais. Portanto, a instituição da figura do carona dependeria de uma previsão legislativa, a qual não existe.”[11]
Nesse sentido ainda se posiciona Paulo Sérgio Monteiro Reis: “Nosso posicionamento pessoal é no sentido de que o “carona” só poderia ser instituído na ordem legal por expressa disposição da lei.”[12]
Demonstra-se que é cediço na doutrina que qualquer modalidade, forma dispensa de contratação pela Administração Pública somente poderia vir ingressar no ordenamento jurídico por força de lei, que é no ordenamento jurídico o mais democrático instrumento normativo.
2.2. Violação ao Princípio da Isonomia
O princípio da isonomia é violado quando a figura do carona propicia ao beneficiário de uma Ata de Registro de Preços, direito em contratar com outros órgãos, sem licitação, em detrimento de outros potenciais interessados do mesmo ramo de atividade e com as mesmas condições jurídicas.
O Princípio da isonomia significa que aos indivíduos deve ser assegurado tratamento isonômico, ou seja, tratar os iguais de forma igual e os desiguais desigualmente.
Essa igualdade deve ser observada tanto na elaboração das leis, quanto na sua aplicação. O princípio da igualdade decorre do caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que preconiza que todos são iguais perante a lei.
Conforme se vê estamos diante de um princípio, direito e garantia para o qual todas as demais normas devem obediência. É neste diapasão lição de Celso Ribeiro Bastos:
“Na verdade, sua função é de um verdadeiro princípio a informar e a condicionar todo o restante do direito. É como se estivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão do pensamento, respeitada a igualdade de todos perante este direito. Portanto, a igualdade não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita na ordem jurídica. A igualdade, é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva.”[13]
Acrescenta-se ainda em estudo ao princípio doutrina Cármen Lúcia Antunes Rocha: “A igualdade jurídica domina o conteúdo da legalidade justa e é o princípio que a expressa que se põe na base do Estado Democrático”. [14]
O princípio da isonomia é violado, quando a Constituição Federal, obriga à Administração Pública somente contratar mediante licitação e esta assim não procede. Há exceções, mas são aquelas previstas na lei 8666/93, que se constituem na inexigibilidade, quando houver inviabilidade de competição e, dispensa que pressupõe prejuízo ao interesse público, se for optado pela realização do processo licitatório. Hipóteses estas que não se vislumbra na figura do “carona”.
A licitação visa a escolha da proposta mais vantajosa e o tratamento isonômico a todos os interessados que se encontram nas mesmas situações jurídicas, o fato de um ou mais destes ter sido contemplado em uma licitação pelo SRP não o faz desigual e nos dizeres de Marçal Justen Filho “inflige o princípio da isonomia, eis que cria uma espécie de privilégio para alguém que venceu uma licitação”[15] . Sua contratação por outros órgãos favorece-o em detrimento dos demais interessados aptos legalmente a participar de novo certame licitatório. É imperioso acrescentar ainda que esta possibilidade, ou seja, do fornecedor beneficiário contratar com terceiros é ilimitada, o que intriga Jair Eduardo Santana já que “o único balizador posto no regulamento é em relação a ‘quem pega a Carona’”.[16]. Se não há limite, exceto temporal, para que o fornecedor detentor da ata contrate sem licitação com outros órgãos da Administração Pública, não há limite também para o prejuízo das sociedades empresárias fornecedoras do mesmo objeto registrado em ata.
2.3. Violação ao Princípio da Vinculação ao Instrumento Convocatório
A figura do “carona” viola o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, quanto ao quantitativo fixado na licitação, pois este poderá ser alterado ad infinitum na medida que houver adesão à Ata de Registro por outros órgãos da Administração Pública, de forma ilimitada, alterando ainda o valor estimado da contratação, prazos, locais e condições de entrega, etc. e até mesmo alteração ou adaptação do objeto devido às necessidades do órgão, ou ainda adaptação das próprias necessidades dos órgãos “caronas”, conforme noticiam Madeline Rocha Furtado e Antonieta Pereira Vieira:
“O “carona” negocia, adere e às vezes até modifica o objeto inicialmente registrado, o que não é permitido pela legislação.
Outra preocupação que nos chama atenção são as adesões realizadas adequando-se às necessidades do órgão à Ata Registrada.
Como isso ocorre? Em alguns órgãos da Administração Pública, seja pela corriqueira falta de planejamento, seja pela falta de conhecimento específico, acentuada pela facilidade da adesão a qualquer momento, diante da necessidade do bem ou do serviço, sem a realização de um estudo adequado de quantitativos necessários, realiza tais adesões adequando o objeto pretendido à Ata de Registro de Preços disponível no mercado”.[17]
Afronta também o princípio da vinculação ao edital, no que se diz respeito à figura do contratante dos serviços, que via de regra é aquele órgão promotor, no entanto a figura do carona faz com que poderá se firmado contrato entre a vencedora do certame, ou seja, o detentor da Ata de Registro de Preços, com órgãos diversos, não indicados no edital.
Assim o detentor da referida Ata de Registro, poderá se valer de um resultado favorável, sob as condições de determinado instrumento convocatório, dar a largada para um número indeterminado e ilimitado de fornecimentos do mesmo objeto.[18]
É necessário salientar que o instrumento convocatório possui natureza de ato regulamentador de caráter necessário e indispensável à instauração da licitação tendo como finalidade básica reger a instauração do certame e seu processamento e fixar as condições da futura contratação, tanto que o inciso III do artigo 40 da LLCA relaciona como requisito obrigatório que a minuta do futuro contrato faça parte dos anexos do edital. A figura do “carona” viola claramente estas funções e características do Instrumento convocatório.
2.4. Violação aos Princípios da Moralidade, Improbidade Administrativa e da Competitividade.
O princípio da moralidade foi idealizado pelo jurista francês Maurice Hauriou, no início do século XIX, ao verificar que decisões do Conselho de Estado francês, se fundamentavam não só por contrariar a lei, mas por ofensa à boa gestão pública, anulavam certos atos da Administração.[19] A fiscalização dos atos administrativos através de recursos se baseava na violação da lei, mas a conformidade destes aos princípios básicos da “boa administração”, que seria necessária e determinante para qualquer decisão administrativa e fiscalizada por outro recurso, fundamentado no desvio de poder, que se referia à zona de policiamento da moralidade na administração.[20] Vem a moralidade agregar força ao princípio da legalidade, impedindo que os Administradores utilizando-se de competência lhes atribuída por lei, se desvie do interesse público.
Sobre a violação ao princípio da moralidade discorreu Joel de Menezes Niebuhr:
“O carona, no mínimo, expõe os princípios da moralidade e da impessoalidade a risco excessivo e despropositado, abrindo as portas da Administração a todo tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal.
Imagine-se o seguinte: a empresa “A” ganhou licitação e assinou ata de registro de preços para fornecer mil unidades de dado produto. Com a ata de registro de preços em mãos, a empresa “A” pode procurar qualquer entidade administrativa, sem limite, propondo aos agentes administrativos responsáveis por ela aderirem à ata, entrando de carona, e, pois, contratarem sem licitação. É de imaginar ou, na mais tênue hipótese, supor que a empresa “A” pode vir a oferecer alguma vantagem (propina) aos representantes destas outras entidades administrativas, para que os mesmos adiram à ata de registro de preços que a favorece e viabilizem a contratação. Nesse prisma, a empresa “A”, que participou de licitação para fornecer mil unidades, pode vender cem mil unidades ou o quanto for, dependendo apenas do seu poder de lobby, do quão ela é competente em tráfico de influência ou do montante da propina que ela se dispõe a pagar”. [21]
A prática do carona propicia ao fornecedor um lucro extraordinário, em virtude da economia de escala, quanto maior quantidade fornecida menor custo individual de cada unidade. Nesta esteira observou Marçal Justen Filho:
“Com a “carona”, produz-se a elevação dos quantitativos originalmente previstos sem a redução do preço unitário pago pela Administração. Por isso tudo, não seria exagero afirmar que a prática do carona é intrinsecamente danosa aos cofres públicos, atingindo as raias da improbidade administrativa”.[22]
Toshio Mukai tem como ato criminoso a prática do “carona”:
“[…] o detentor da Ata de Registro foi “contratado” para fornecer um quantitativo determinado e que, no caso, fornecendo o mesmo bem para os “caronas“, sem licitação (portanto ilegalmente, pois um decreto não pode contrariar nem a Lei n.º 8.666/93, nem a Constituição), num quantitativo muito maior (a “caronas” para usufruir de uma situação criminosa e absolutamente ilegal e inconstitucional)”.
Em suma é forçoso reconhecer que a figura do “carona” se constitui em um típico desvio de finalidade do SRP previsto no artigo 15 da Lei 8666/93, constituindo em verdade o instituto em ferramenta formidável para administradores e fornecedores, nem todos, mas aqueles sem escrúpulos possam obter vantagens pessoais causando prejuízo aos cofres públicos e a terceiros.
A figura do carona afeta ainda o princípio da competitividade, quando obsta a livre concorrência prevista no artigo 170, inciso IV da Constituição Federal, já que privilegia determinado fornecedor, desigualando-os dos demais, pura e simplesmente por ter sido contemplado em uma Ata de Registro de Preços, em uma licitação realizada por certo órgão da Administração Pública.
Passando desta forma praticamente dominar parcela de mercado local, regional ou até mesmo nacional, em prejuízo de sociedades empresárias melhor localizadas que poderiam vir a ofertar preços até mesmo inferiores a outros órgãos tendo em vistas as condições locais, de entrega, de pagamento, e outras.
3. DISTORÇÕES QUE VEM SENDO REALIZADAS COM A POSSIBILIDADE DO “CARONA”.
3.1. Existência do mercado paralelo.
Com a cada vez mais freqüente a utilização da figura “carona” e de sua utilização pela Administração Pública, bem como sua presença nos meios de divulgação, vem sendo identificado um mercado paralelo de bens e serviços oferecidos à Administração Públicas, que são objeto de Atas de Registro de Preços em vigor.
Se antes a Administração pública lançava mão da divulgação de avisos e editais dirigidos aos particulares demonstrando seu interesse em aquisição de bens e serviços. Atualmente os particulares, detentores de Atas de Registro de Preços são aqueles que divulgam seus produtos e assediam aos administradores públicos oferecendo seus produtos, com uma vantagem excepcional para a Administração pública: a desnecessidade de licitação.
O carona proporciona que representantes comerciais do quadro da sociedade empresária detentora da ata de registro ou até mesmo consultorias especializadas possam vir a oferecer (vender) os produtos que se encontram registrados na ata. O que poderá a vir constituir um enorme balcão de negócios e um incontrolável mercado paralelo às aquisições pelos órgãos públicos através de processos licitatórios. Tornando-se um rede de corrupção incontrolável, tendo em vista que de forma adesão é desprovida de qualquer tipo de controle dos atos praticados, tal como publicação, que o decreto sequer mencionou sua necessidade. É cediço que a proteção do interesse e do patrimônio público, depende da efetiva aplicação dos mecanismo de controle à disposição da própria administração internamente, ou através de provocação do Poder Legislativo e Judiciário, para agir em defesa da moralidade e probidade administrativa.
Neste momento se encontra na Internet apelo publicitário da Civiam Brasil, com os dizeres: “USE A CARONA DO REGISTRO DE PREÇOS DA UFSJ”, oferecendo Manequins Simuladores, registrados na Ata de Registro de Preços do Pregão 040/2007 da Universidade Federal de São João Del Rei. Consta ainda do anuncio: “Ganhe com a experiência de outros Universidades como a USP; UFSJ; UFOP; UFSCAR e Einstein que adquiriram os mais diversos Manequins […]”.[23]
Já existe inclusive site especializado em divulgação de Atas de registros seu endereço é: <http://www.atasderegistro.com.br>.
Representantes comerciais e funcionários dos fornecedores detentores de Atas de Registro já ocupam os corredores de repartição públicas em busca de interessados naquele objeto no qual teve êxito em registra-lo em Ata.
Este mercado já fora identificado pelo Professor Jair Eduardo Santana:
“de fato existe no mundo dos fatos: uma espécie de mercado paralelo de aquisições (bens e serviços) contratadas sem licitação, foco vitando até mesmo de corrupção e de desvios de interesses (público e privado) que chegou a produzir o que chamamos de “kit Carona”, comercializado as escâncaras diante do Poder Público”.[24]
Fato este que inspirou Joel de Menezes Niebuhr, fazer um verdadeiro desabafo:
“O carona é o júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da corrupção, especialmente num País como o nosso, com instituições e meios de controle tão frágeis. Os lobistas e os corruptores não precisam mais propor o direcionamento de licitação; basta proporem o carona e tudo está resolvido.”[25]
Sem sombra de dúvida este mercado paralelo estas negociações feitas antes e durante o processamento da adesão a uma Ata de Registro de Preços, está velado a proporcionar no mínimo ausência de transparência e publicidade e consequentemente de controle nas contratações da administração pública e desta ausência à prática de atos irregulares e prejudiciais aos cofres públicos o caminho é verdadeiramente curto.
3.2. Adaptação do Interesse Público ao objeto da ata de registro.
O “carona” tem sido muito útil àquele Administrador que não planeja, subvertendo a ordem correta dos atos necessários à aquisição de bens e serviços, constante na lei 8666/93. A aquisição de bens e serviços através da figura do carona é na maioria das vezes efetuada de “traz para frente”, ou seja, em vista do produto constante na Ata e oferecido ao Administrador é que este faz a verificação de suas necessidades, tendendo em considerá-lo adequado pela facilidade de sua aquisição sem procurar buscar outras alternativas que poderiam revelar-se mais eficientes ao atendimento ao interesse público.
Sendo assim não há estudo prévio ou planejamento, para verificação de que produto específico atenderia às necessidades, qual o quantitativo deste produto, quando e qual a forma de se fazer a aquisição, etc. Isto não é feito a Ata já tem a maioria destas características determinadas, sem que o Administrador precise se preocupar com estes “pormenores” bastando adequar o objeto pretendido à Ata de Registro lhe oferecida ou que esteja disponível no mercado.
Assim exemplificaram Madeline Rocha Furtado e Antonieta Pereira Vieira:
“Na necessidade de adquirir um bem ou um serviço, adere-se às Atas, nas quais o objeto não contempla a real necessidade do órgão interessado, modifica-se o pedido, suas características, suas especificidades, periodicidade, freqüência na execução, prazos de recebimento, quantitativos, métodos, etc. Modifica-se o projeto inicial, visando a atender à Ata quando deveria ser o inverso, a Ata poderá ou não atender ao requisitado.” […]
Nessa ótica, ainda poderíamos trazer uma prática desordenada da adesão pelo “carona”, quando da “substituição” do objeto inicialmente registrado na Ata, por equivalente, quando o fornecedor não detém o quantitativo necessário para a adesão, muitas vezes negocia-se a substituição do objeto por outro, porém, utilizando-se os itens registrados na Ata.”[26]
Esta inversão de valores é altamente prejudicial ao interesse público geral, inibe frustra a competitividade e a isonomia, quando há a adequação do interesse público por parte da Administração às condições de um fornecedor específico, ainda que estas condições tenha sido fixadas, pelo órgão gerenciador da Ata, mas as necessidades daquele nem sempre se igualam às necessidades de outro órgão.
Uma licitação promovida nas exatas condições necessárias ao interesse público, com o objeto bem definido, traria certamente resultados mais eficientes e propiciaria pleno atendimento aos princípios jurídicos aplicáveis à espécie.
4. DECISÃO DO TCU ACERCA DO CARONA
O Tribunal de Contas da União, por intermédio do Acórdão nº. 1.487/2007 deliberou quanto à utilização da Ata de Registro de Preços pelos órgãos/entidades não participantes:
“Acórdão: VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Representação da 4ª Secex, apresentada com base no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno, acerca de possíveis irregularidades na ata de registro de preços do Pregão nº. 16/2005, da Coordenação-Geral de Recursos Logísticos do Ministério da Saúde, consoante o decidido no Acórdão nº. 1927/2006 – 1ª Câmara. ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante das razões expostas pelo Relator, em:
9.1. conhecer da presente representação por preencher os requisitos de admissibilidade previstos no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno/TCU, e considerá-la parcialmente procedente;
9.2. determinar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão que:
9.2.1. oriente os órgãos e entidades da Administração Federal para que, quando forem detectadas falhas na licitação para registro de preços que possam comprometer a regular execução dos contratos advindos, abstenham-se de autorizar adesões à respectiva ata;
9.2.2. adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto nº. 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão;
9.2.3. dê ciência a este Tribunal, no prazo de 60 (sessenta) dias, das medidas adotadas para cumprimento das determinações de que tratam os itens anteriores;
9.3. determinar à 4ª Secex que monitore o cumprimento deste Acórdão;
9.4. dar ciência deste Acórdão, Relatório e Voto, ao Ministério da Saúde, à Controladoria Geral da União e à Casa Civil da Presidência da República.”
Do voto do Ministro Relator pode se extrair:
“7. Refiro-me à regra inserta no art. 8º, § 3º, do Decreto nº. 3.931, de 19 de setembro de 2001, que permite a cada órgão que aderir à Ata, individualmente, contratar até 100% dos quantitativos ali registrados. No caso em concreto sob exame, a 4ª Secex faz um exercício de raciocínio em que demonstra a possibilidade real de a empresa vencedora do citado Pregão 16/2005 ter firmado contratos com os 62 órgãos que aderiram à ata, na ordem de aproximadamente 2 bilhões de reais, sendo que, inicialmente, sagrou-se vencedora de um único certame licitatório para prestação de serviços no valor de R$ 32,0 milhões. Está claro que essa situação é incompatível com a orientação constitucional que preconiza a competitividade e a observância da isonomia na realização das licitações públicas. […]
10. Vê-se, portanto, que a questão reclama providência corretiva por parte do órgão central do sistema de serviços gerais do Governo Federal, no caso, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, razão pela qual, acompanhando os pareceres emitidos nos autos, firmo a conclusão de que o Tribunal deva emitir as determinações preconizadas pela 4ª Secex, no intuito de aperfeiçoar a sistemática de registro de preços, que vem se mostrando eficaz método de aquisição de produtos e serviços, de modo a prevenir aberrações tais como a narrada neste processo.
11. Faço pequeno acréscimo para incluir a Casa Civil da Presidência da República entre os destinatários da deliberação que vier a ser adotada, visto que compete ao Chefe do Executivo Federal a expedição do Decreto regulamentador.”
5. DO PEDIDO DE REEXAME IMPETRADO PELO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO – MPGO DO AC. 1.487/2007.
No dia 21 de 12.2007, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão interpôs Pedido de Reexame do Ac. 1.487/2007.[27]
Primeiramente colaciona tópicos dos pronunciamentos do Ministério Público junto ao TCU, bem como do Ministro Relator, que fundamentaram a decisão proferida da qual também colaciona trechos.
Prossegue discorrendo acerca do SRP, noções, vantagens, que se consistem segundo o pedido em: a) desnecessidade de dotação orçamentária; b) redução de volume de estoque; c) eliminação dos fracionamentos de despesas; d) tempo recordes de aquisição, acrescentando nesta alínea que para o carona, o processo é ainda mais célere; e) redução de números de licitações, nesta alínea acrescenta: Quando admitida a carona, esses benefícios adquirem feições exponenciais. Usando a mesma licitação citada de exemplo na decisão dessa E. Corte, verifica-se que a Administração Pública ganhou com a redução de 60 processos licitatórios. No caso do Pregão nº. 124/2005-TJMG, foram economizados 120 processos licitatórios; f) da atualidade dos preços da aquisição, acrescentando que Na licitação do Ministério da Saúde, fundamento da decisão, não ocorreu qualquer sobrepreço ou superfaturamento. Nem mesmo representação por parte de particulares interessados; g) participação de pequenas e médias empresas, o que favorece à ampliação da competitividade e esclarece ainda que as atas têm prazo de validade legalmente estabelecido e há a possibilidade de representação por qualquer interessado, desde que a adesão não se mostre vantajosa, conforme o art. 113, §1º, da Lei nº. 8.6661/993. (grifos do pedido)
No mérito procede à análise do artigo 8º, do Decreto nº. 3.931/2001 – possibilidade de aderir às Atas de Registro de Preços.
Destaca o acerto do Decreto 3.931/2001 em possibilitar a utilização da Ata de Registro de Preços por outros órgãos que não tenham participado do SRP, ou seja, o “carona”, instituto que alega trazer economia, celeridade e eficiência para a Administração. Em seguida aponta as supostas vantagens do “carona”, limitando-se em desmembrar os pressupostos dos §§ 1º a 3º do artigo 8º do referido decreto.
O MPOG destaca o privilégio que é dado ao princípio da competitividade nas aquisições pelo SRP, ponto em que aliamos nosso entendimento. Mas quando avança na tese de competitividade, dado à possibilidade de adesão às atas, ou seja, na utilização da figura do “carona”, neste ponto não podemos concordar, ora não pode haver competitividade em uma aquisição em que o órgão simplesmente escolher um fornecedor que venceu uma licitação em outro órgão para lhe fornecer o mesmo objeto.
Ademais o princípio da competitividade que se busca não é a competitividade somente no âmbito de licitação específica, ou seja, entre aqueles que dela participam, mas é a competitividade ampla que é aquela que se refere ao mercado como todo, é esta competitividade que a orientação constitucional nos parece prestigiar.
Ao se decidir por aderir um Ata de Registro de Preços de outro órgão, mesmo após pesquisa de mercado, não está o órgão primando pela competitividade no certame, não façamos de inocentes em considerar que um fornecedor irá adotar os mesmos critérios ao responder uma cotação ou pesquisa de preços, daqueles que utiliza quando da participação em uma licitação, mormente na modalidade pregão, quando numa disputa acirrada na etapa de lances a competitividade é levada aos extremos. Também não se fixou critérios para realização de tal consulta, aliás, que não é diciplinada pelo decreto que se limita em expressar genericamente: “desde que devidamente comprovada a vantagem”.
Outro argumento do MPOG, que não faz sentido é aquele de que a limitação da adesão em cem por cento dos quantitativos registrados na Ata que ao seu ver enfraquece a tese de que um licitante poderá se perenizar como contratante da Administração.
Primeiramente o percentual de cem por cento, mais é uma generosa extensão de quantitativos da Ata de Registro de Preços a outros órgãos a uma limitação. Na prática o que ocorre são órgãos de menor estrutura recorrendo às Atas de Registros de Preços de órgãos de maior porte, estrutura administrativa e orçamentária, não constituindo limite a órgãos menores que sequer chegam a adotar a totalidade deste percentual, no entanto pela quantidade de órgãos que possam aderir à referida Ata o fornecedor irá se privilegiar de inúmeras contratações sem que qualquer de seus concorrentes possa lhe contrapor oferecendo melhor preço, ainda que as condições de mercado ou comerciais lhe sejam no momento mais favoráveis.
Em relação à ofensa aos princípios da isonomia e da competitividade MPGO, infere que isto ocorreria se a possibilidade de adesão se desse somente após a licitação o que não ocorre, argumenta: “todos sabem, deste o início do certame que a proposta é válida e extensível a todos, enquanto for vantajosa.”
Há que se destacar que a possibilidade da adesão à Ata é realmente de conhecimento dos licitantes. Daí inferir que os fornecedores irão formular propostas com um desconto formidável, tendo em vista uma economia de escala vislumbrando fornecer diante de provável adesão de outros órgãos, dez ou cem vezes o quantitativo constante no edital da licitação é absolutamente temerário.
Utilizando-se do exemplo citado no Acórdão é improvável que aquele fornecedor tenha formulado proposta com valor proporcional à economia de escala que se chegaria a um preço, que vislumbrasse vender 100% da Ata a 62 outros órgãos, ou seja, sessenta e duas vezes o quantitativo para o qual cotou o preço na licitação. O ocorrido poderia se desdobrar em duas hipóteses: Primeira: o fornecedor obteria lucros estratosféricos, pois não vislumbrava tamanha adesão e poderia ter ofertado o preço na licitação com desconto considerável e altamente vantajoso principalmente para o órgão licitador. Segunda: o fornecedor anteviu a imensa possibilidade do “carona”, (ou estrategicamente já investigara a necessidade de vários órgãos na aquisição daquele objeto) e pôde surpreender seus concorrentes oferecendo preços com enorme descontos. Nesta última hipótese se as adesões não ocorressem ou simplesmente os prováveis órgãos aderissem a uma outra Ata de Registro de Preços o fornecedor correria sérios riscos de sequer cumprir com suas obrigações diante do órgão licitador. Pois um preço para venda de 62 vezes o objeto não é o mesmo que vendê-lo uma única vez.
O que se quer dizer é que o decreto diante da possibilidade do “carona” não proporciona à Administração, mormente ao órgão que promove a licitação no sistema registro de preço, a obtenção de proposta, tendo em vista a ausência de quantitativo real a ser contratado diante daquele processo licitatório específico, carecendo a proposta invariavelmente de requisitos essenciais nos quais devem se sustentar. Tais requisitos são trazidos pela doutrina conforme leciona Celso Antonio Bandeira de Melo:
“Para serem apreciadas, as propostas necessitam ser sérias, firmes e concretas, como acentua Marcello Caetano. A estes caracteres Adilson Abreu Dallari acrescenta, com razão, um quarto requisito, a saber: ajustadas às condições do edital. Proposta séria é aquela feita não só com o intuito mas também com a possibilidade de ser mantida e cumprida. Proposta firme é aquela feita sem reservas, quais as de cláusula condicional ou resolutiva. Proposta concreta é aquela cujo conteúdo do ofertado está perfeitamente determinado nela mesma, sem estabelecer remissões a ofertas de terceiros, quais, exempli gratia, o “preço que for mais baixo” ou “tanto por cento menos que a melhor oferta” etc. Proposta ajustada às condições do edital, como intuitivamente se percebe, é a que se contem no interior das possibilidades de oferta nele permitidas.”[28]
Diante desta valiosa lição analisa-se a proposta ofertada em uma licitação realizada pelo sistema registro de preços com possibilidade de adesão da ata por terceiros (quantos desejarem) em até cem por cento de seus quantitativos, verifica-se os se tais requisitos poderiam estar presentes nas propostas ofertadas nestas situações:
Se a proposta séria é aquela que tem possibilidade de ser mantida e cumprida, firme é aquela sem reserva, concreta é aquela que não depende de terceiros e ajustada ao edital é aquele que é elaborada diante de seus termos. A proposta corre o risco de não ser mantida, como comentamos acima, se ofertada em virtude de prováveis adesões posteriores e esta não virem a se efetivar; há reserva quando da adesão o fornecimento depende de aceitação do fornecedor beneficiário da Ata, podendo negar o fornecimento a certo órgão ou fornecer a outro sem qualquer justificativa, motivação ou satisfação, é dependente de terceiros (os “caronas”), desde sua formulação. E finalmente desajusta-se ao edital, quando os quantitativos são indeterminados e poderão sofrer variação imprevisível durante o prazo de vigência da Ata.
O MPOG apresenta várias aquisições pelo país em que se obteve economia em virtude da realização das licitações pelo SRP.
Ao rechaçar a perda da economia de escala detectada pelo TCU, o MPOG insiste que esta crítica se faz não á figura do “carona”, mas ao próprio SRP, principalmente no tocante à ausência de quantitativos mínimos. Temos assim como o MPOG e cremos que como o próprio TCU que esta é uma vantagem considerável do SRP e não é o centro do problema e a razão principal da não determinação real dos quantitativos. A indeterminação dos quantitativos está no número de órgãos (“caronas”) que poderão vir aderir em cem, noventa ou dez por cento do quantitativo constante da Ata de Registro de Preços, ainda que o órgão gerenciador não adquira qualquer unidade.
Ainda a respeito da economia de escala procura dar enfoque inverso utilizando-se do seguinte exemplo:
“Imagine que uma ata de preços que registre o valor de 5.000 (cinco mil) computadores, pode gerar uma economia substancial, em escala, para o carona que tiver a intenção inicial de adquirir apenas 1.000 (um mil).
Ora, mesmo que este último realizasse um certame dos mais competitivos concebíveis, para adquirir 1.000 computadores, certamente não alcançaria um desconto semelhante ao que naturalmente consegue um certame para adquirir 5.000. É o que se pode denominar de verdadeira economia de escala.
Assim, verifica-se que a economia de escala é auto-compensativa.”[29]
O interessante exemplo remonta outra questão o preço ofertado para 5.000 computadores, não seria inferior se ainda na realização da licitação o “carona”, figurasse como um dos gerenciadores da Ata, e o quantitativo se constituíssem em 6.000 computadores, pra se estender à apenas a um “carona” que participasse inicialmente do certame.
Poderia se alegar, mas na época da licitação o “carona” não teve conhecimento ou não sofria tal demanda. Ora, o princípio da publicidade e o orçamento anual, ou ainda a necessidade de planejamento na Administração Pública, jogaria por terra estes argumentos.
Por fim afirma o MPOG, que o Decreto 3.931/2001, apenas sistematizou a regra de dispensa já autorizada pelo art. 24, VII. Vejamos o que diz o dispositivo:
“VII – quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços;”
Ora não faz o menor sentido tal afirmação, é obvio que o dispositivo não se refere à adesão em Ata de Registro de Preço de outro órgão. O dispositivo se refere a contratação direta independente de adesão em Ata de Registro de Preços. O registro de preços é citado no dispositivo simplesmente como parâmetro de aceitabilidade de propostas.
A dispensa se refere à hipótese de licitação anterior o que se nota pela simples expressão “as propostas apresentadas”, não se refere à pesquisa de mercado, quando são disponibilizadas cotações ou orçamentos, procedimento efetuado pela Administração para comprovar a vantagem, nos termos do artigo 8º do Decreto.
O argumento do MOPG, em tentar “legalizar” a figura do “carona” embasando-o no dispositivo colacionado é de um esforço verdadeiramente extremado. A dispensa de licitação ali prevista foi comentada por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, que lhe aponta os seguintes requisitos:
“a) ocorrência de licitação anterior;
b) apresentação, por todos os licitantes habilitados ou convidados, de preços manifestamente superiores aos praticados no mercado ou, alternativamente, todos terem ofertado preços incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes.
c) solicitação, facultada à Administração, de representação das propostas com preços compatíveis aos praticados no mercado;
d) reapresentação das propostas com os mesmos vícios (preços abusivos);
e) contratação direta por preços não superiores aos praticados no mercado ou constantes dos registros de preços ou de serviços.”[30]
Marçal Justen Filho também menciona a existência de licitação anterior: “Na hipótese do inc. VII, a licitação resulta frustrada porque, embora existindo interessados, suas propostas são superiores às admissíveis.” [31]
Quando o MPOG se refere aos princípios da economicidade, ampla competitividade, transparência e divulgação, somente podemos entender que esteja o Ministério enaltecendo o SRP, não a figura do carona, pois quando da sua utilização estes objetivos já foram alcançados e especialmente quanto à competitividade, transparência e divulgação não mais serão privilegiados, pois com a figura do carona somente um ou certos fornecedores estarão ainda na disputa, não há no Decreto sequer qualquer menção (portanto não obriga) à divulgação de que o órgão esteja aderindo a certa Ata de Registro de Preço, senão a obrigatoriedade da publicação do contato após sua assinatura, nos termos da Lei 8666/93.
Quanto à qualidade do fornecedor o MPOG justifica que se houver cancelamento do ata por inadimplemento ninguém mais contratará com o fornecedor detentor desta, não há qualquer novidade nisto, ora o mesmo se opera em qualquer tipo de licitação. E ainda que se a contratações operarem de maneira eficaz o carona terá maior garantia. Não o carona não terá maior garantia, terá as mesmas garantias ou menores, pois não há no Decreto qualquer menção à aplicação de sanção por parte do carona se ocorrerem problemas ainda durante as negociações prévias ou antes da contratação e muito menos possibilidade de o órgão gerenciador aplicar sanções ao fornecedor por desatendimento ao carona.
Quanto ao controle e possibilidade de impugnação quanto a utilização da Adesão à Ata restam prejudicados pelo que dissemos tendo em vista que a forma de transparência e divulgação não estão regulamentadas pelo Decreto, ou seja, a publicidade somente se dará após a assinatura do contrato, se este vier a ser elaborado, já que há hipóteses legais da dispensa de sua formalização (§ 4º do artigo 62 da Lei 8666/93).
Argumenta ainda o MPOG criticando aos que atacam a figura do carona e que defendem à realização da licitação quando afirma que este ato se configura “um demasiado apego aos ortodoxos processos licitatórios, em prejuízo, muitas vezes, da própria economicidade para a Administração.”
Para tanto o MPOG, trabalha a idéia de que nada adianta a realização de um processo licitatório nos moldes da lei, se nele não estiver presente a figura da melhor vantagem, citando Marçal Justen Filho, em passagem que se transcreve:
A maior vantagem apresenta-se quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. Configura-se, portanto, uma relação custo-benefício. A maior vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração. (destaque do MPOG)[32]
Deve se observar que a vantajosidade como finalidade da licitação não está dissociada da observância do princípio da isonomia.
O MPOG parece não ter se atentado à advertência do mesmo autor que leciona na mesma obra:
“a licitação busca realizar dois fins, igualmente relevantes: o princípio da isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa. Se prevalecesse exclusivamente a idéia da “vantajosidade”, ficaria aberta oportunidade para interpretações disformes. A busca da “vantagem” poderia conduzir a Administração a opções arbitrárias ou abusivas. Enfim poderia verificar-se confusão entre interesses primários e secundários da Administração”.[33]
Como se viu a vantajosidade da oferta ou do negócio que a Administração visa pactuar, não é motivação suficiente para que se dispense licitação, a legislação pátria impõe a realização de licitação, que tem ainda a finalidade da observância ao princípio da isonomia que vem impondo à observância de outros princípios não menos importantes no desenvolvimento da licitação, tais como legalidade, competitividade, publicidade, moralidade e probidade administrativa, vinculação ao edital, impessoalidade, etc. que o legislador vinculou à validade do processo licitatório, fazendo que a licitação como ensina Marçal Justen Filho, não se desenvolva “apenas no interesse imediato da Administração, mas representando uma garantia aos particulares que possam interessar-se em contratar com ela.”[34] Para que assim a licitação cumpra sua finalidade que é o atendimento do interesse primário, que é o interesse da coletividade como um todo.
6. CONCLUSÃO
A utilização da figura do “carona“ descumpre o dever constitucional de licitar, violando os princípios constitucionais aplicáveis à Licitação e à Administração Pública, especialmente os que dizem respeito à legalidade, isonomia, vinculação ao instrumento convocatório, moralidade e probidade administrativa e o da competitividade.
Cria privilégio a certo fornecedor detentor de uma ata de registro de preços em negociar com a Administração Pública e com ele contratar em detrimento de outros que poderiam competir nos preços, prazos e qualidade, sem a existência de regras claras para que a contratação se efetive.
O “carona” propicia lucro extraordinário ao detentor de determinada ata que com a elevação dos quantitativos nela previstos para atendimento a outros órgãos, sem que haja redução de preços unitário pago pela Administração favorecido pela economia de escala que atua em seu favor.
Dificulta a fiscalização do administrado e dos órgãos de controle em virtude da insuficiência de regulamentação pelo Decreto de forma de divulgação, contratação e execução contratual especial do “carona”, cria um mercado paralelo às aquisições de bens e serviços pela Administração Pública desvirtuando a regra de oferta e procura e levando o Administrador a adaptar o interesse público às soluções encontradas neste mercado, sem que faça os estudos e o planejamento necessário visando o melhor atendimento ao interesse público.
O “carona” subverte a ordem dos procedimentos atinentes às aquisições e contratações públicas beneficiando aos lobistas de plantão que estão a oferecer, planejar e direcionar os negócios da Administração Pública, atendendo a interesses escusos em detrimento aos cofres e aos interesses públicos.
Os argumentos do MPOG, não elidem de forma alguma a ofensa aos princípios e regras do direito administrativo, destacadas neste trabalho, onde obviamente não se esgotou as possibilidades de desatenção a outras normas constitucionais e legais, na utilização da figura do “carona’, instituto criado em desconexão com a constituição e a lei de licitações através de instrumento impróprio em inovar e criar situações não previstas na legislação.
Não se nega as facilidades da figura do “carona”, que é cercada de vantagens, tais como a celeridade, economicidade e eficiência, no entanto posta como está não nos parece atender ao interesse público e aos princípios constitucionais analisados.
No entanto sobrevindo uma lei que venha discipliná-la regulamentando os pontos críticos que vem sendo trazidos a baila, tais como a forma de publicidade, controle, limitação de quantitativos e de adesão, mecanismos que venham propiciar que o maior número de órgãos se inscrevam como participantes da licitação, etc., o que deve ser efetuado após ampla discussão dos interessados e estudiosos dos meandros da Administração Pública e do mercado.
Informações Sobre o Autor
Ramon Alves de Melo
Advogado, Especialista e Consultor em Licitações e Contratos Administrativos e Mestrando em Direito Empresarial pela Universidade de Itaúna-MG.