Resumo: Trata-se de estudo acerca da adoção da teoria do domínio do fato na ação penal nº. 470, alcunhada de mensalão, apresentando como amostra a parcela do processo relativa ao ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. Tem-se como principal referencial teórico Claus Roxin, sistematizador ímpar da aludida teoria, que também é abordada conforme as lições de Hans Welzel. Analisam-se as diferentes expressões do domínio do fato, versando sobre o domínio da ação, o domínio funcional do fato e o domínio da vontade, com maiores esclarecimentos quanto ao domínio da organização. Desvirtuando-lhe em essência e estrutura, o STF emprega a respectiva teoria de modo a assinalar patentes distorções e ensejar íntimas correlações com a teoria da cegueira deliberada, resultando numa infesta aproximação da responsabilidade penal objetiva.
Palavras–chave: Teoria do domínio do fato. Mensalão. Domínio da organização. Ação penal nº. 470.
Abstract: This study discuss the adoption of the domain of fact theory in the midst of the criminal action n. 470, named as “mensalão”, presenting as a sample the subject regarding to the former minister chief of staff, José Dirceu. Claus Roxin has been adopted as the main theoretical reference, remarkable developer of the alluded theory, which is also discussed according to the teachings of Hans Welzel. It analyzes the different expressions of the domain of fact, dealing with the domain of action, the functional domain and the domain of will, assigning more evidence on the organization’s domain. Distorted in essence and structure by the Supreme Court, it gives rise to close correlations with the theory of willful blindness, which harmfully approaches to the objective criminal liability.
Keywords: Domain of fact theory. Mensalão. Domain of organization. Criminal action n. 470.
Sumário: 1. Introdução – 2. Teoria do domínio do fato: 2.1. A construção welzeliana; 2.2 A sistematização de Claus Roxin; 2.2.1 O domínio do fato sob o enfoque da ação; 2.2.2 O domínio do fato sob o enfoque da vontade; 2.2.3 O domínio da organização; 2.2.4 O domínio do fato sob o enfoque da contribuição relevante dentro de um plano global – 3. A prova da autoria e a teoria do domínio do fato: uma análise crítica do julgamento da ação penal nº. 470: 3.1 “O domínio funcional […do] chefe do organograma delituoso.”; 3.2 “[…] José Dirceu tinha mesmo o domínio intelectual das ações […]” versus “[…] domínio funcional do partido dos trabalhadores e […] dos seus mais destacados dirigentes e próceres.”; 3.3 A teoria do domínio do fato como uma “panaceia geral”; 3.4 A “[…] teoria do domínio do fato não basta […] para exonerar o ministério público do gravíssimo ônus de comprovar […] a culpabilidade do réu […]”; 3.5 Teoria do domínio do fato: deliberadamente cega? – 4. Conclusão.
Contents: 1. Introduction – 2. The domain of fact theory 2.1 Welzel’s theoretical development; 2.2 Claus Roxin’s systematization; 2.2.1 The domain of action; 2.2.2 The domain of will; 2.2.3 The functional domain; 2.2.4 The organization’s domain – 3. Proof of authorship and the domain of fact theory: a review of the judgment in criminal action n. 470: 3.1 "The functional domain […of the] head of criminal organization chart."; 3.2 "[…] José Dirceu had the same intellectual domain of actions […]" vs. "[…] functional domain of the Workers' Party and […] of its most prominent leaders and important members"; 3.3 The domain of fact theory as a "general panacea"; 3.4 "[…] domain of fact theory is not enough […] to dismiss the serious burden to prove by the prosecution office […] the defendant’s culpability […]"; 3.5 The domain of fact theory: deliberately blind? – 4. Conclusion.
1 INTRODUÇÃO
A temática da pesquisa que originou o presente artigo foi a da aplicação da teoria do domínio do fato no processo popularmente conhecido como mensalão – ação penal nº. 470/MG –, objetivando-se a análise de sua adequação no caso em tela. Para tanto, foi selecionada como amostra a parte do processo concernente ao ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.
No tocante ao principal referencial teórico adotado, tem-se Claus Roxin, estudioso alemão que sistematizou a teoria do domínio do fato e lhe conferiu os contornos atual e mundialmente conhecidos. Seus ensinamentos foram recorrentemente abordados no julgamento da aludida ação, ainda que de forma questionável.
A partir dos resultados obtidos no cotejamento da teoria do domínio do fato com os documentos constitutivos do referido processo, verifica-se que aquela foi empregada pelo Ministério Público e, posteriormente, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal como condão caracterizador da autoria delitiva conferida a Dirceu, sobre o qual se delimita a abordagem deste estudo. Nesse passo, concluiu-se pela observância, nos dizeres do subscritor da exordial acusatória, bem como dos membros da Suprema Corte, de imprecisões terminológicas e inconsistências estruturais quanto à transposição de tal construção teórica ao plano fático do que se entendeu por mensalão.
Explanar-se-á a teoria do domínio do fato nos moldes contemplados pelo finalismo welzeliano e, mais aprofundada e detalhadamente, no entender de Roxin. A partir deste, serão apresentadas as diferentes expressões do domínio do fato, contemplando-o sob a perspectiva da ação, da vontade e da contribuição relevante dentro de um plano global.
Num último momento, são analisadas as distorções pelo Supremo ao aplicar a teoria do domínio do fato, correlacionando-a com a teoria da cegueira deliberada, assim como demonstrando sua inerente repercussão no cenário pátrio, política e juridicamente considerado.
2 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
Em sentidos bastante longínquos ao que se conhece hoje, a concepção de domínio do fato foi exposta por diversos autores no decorrer da história, cuja empregabilidade se deu por razões igualmente diversas em suas respectivas construções teóricas.
Em 1915, foi Hegler (apud ROXIN, 2000) quem apontou, pela primeira vez, tal conceito, no desenvolvimento da teoria da culpabilidade. Para ele, apenas quem detém o domínio do fato age culpavelmente, ainda que tal domínio se revele na imprudência de não evitar o resultado quando assim esperado fosse. Em que pese não tenha adotado o domínio do fato para a conceituação da autoria, foi esta doutrina de relevante contribuição, sobretudo para o entendimento atual da autoria mediata, inexistindo tal domínio na figura do indivíduo instrumentalmente utilizado.
Hermann Bruns (apud ROXIN, 2000), por sua vez, em 1932, utilizou tal expressão de acordo com a teoria da adequação. Considerar-se-ia como autor aquele que, dolosa ou culposamente, revelasse a possibilidade de dominar o fato, ou seja, agisse propiciamente à sua ocorrência. Insta observar que, em verdade, não logra êxito tal pensamento quando da distinção entre as modalidades de participação lato sensu, haja vista que quaisquer delas são adequadamente capazes de alcançar o resultado.
No ano de 1935, subsequentemente e ainda independentemente das teorias já expostas, incumbiu-se Weber (apud ROXIN, 2000) da exposição do domínio do fato como fundamentação para a teoria subjetiva da participação. Segundo ele, a autoria pressupõe a vontade de dominar o fato como próprio, não elucidando efetivamente em que consiste o mencionado conceito.
Em sentido diverso, Lobe (apud ROXIN, 2000), em 1933, tece críticas à vontade de agir como autor, elegendo como essencial o animus domini, a ser verificado na execução do fato sob esse domínio, respeitados, pois, critérios subjetivos e objetivos para tanto. Através de tal concepção, tão pouco lembrada quando abordada a presente temática, é que se formulou, ainda que incipientemente, a ideia de domínio do fato, diferenciando a participação da autoria exatamente pela verificação do domínio da ação executiva direcionada ao resultado mediante uma vontade própria.
Já Eberhard Schmidt (apud ROXIN, 2000), em 1936, apresenta o domínio do fato dentro da ideia de dever. Conforme seu entendimento, vigora o conceito extensivo de autor, consistente naquele que, dada sua posição de dever, atua conscientemente como detentor de tal domínio.
Por fim, cumpre apontar a doutrina de Welzel (2004), a quem se atribui a conceituação do domínio do fato de forma sólida, sem abster-se, todavia, de conferir a devida relevância a inúmeros outros trabalhos, como os de Maurach, Gallas, Lange, Niese, Sax, Busch, Less e Jescheck (apud ROXIN, 2000). A partir daquela concepção doutrinária, procedeu-se a evolução da aludida teoria para os moldes hodiernamente considerados pelo Direito, nos mais robustos centros de estudos penais em todo o mundo, cuja representatividade é conferida a Claus Roxin, sistematizador ímpar do domínio do fato na doutrina da autoria e figura central do presente artigo.
2.1 A CONSTRUÇÃO WELZELIANA
De forma clara e com inserção primaz na configuração da autoria, foi a expressão domínio do fato pioneiramente tratada por Hans Welzel, em 1939, quando do desenvolvimento da doutrina finalista da ação, segundo a qual todas as condutas humanas se dirigem de modo a perseguir determinado fim. Esta, glose-se, desloca o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade e os integra ao tipo, o que, segundo Maurach (1965, p. 31), compõe a moderna estrutura do delito, que “[…] não só é sustentada pelos adeptos do conceito finalista da ação […] como também por aquêles penalistas que, por princípio, se consideram ‘não finalistas’, tais como Bockelmann, Gallas e Eberhard Schmidt.”[1]
Na constatação da autoria, segundo o autor citado, não é suficiente a verificação do domínio final do fato. Faz-se necessária, também, a demonstração de elementos objetivos e subjetivos, além da comissão mesma, nos crimes de mão própria.
No tocante aos critérios subjetivos, tem-se a intenção de se alcançar um propósito com a prática tipificada; a tendência especial da ação típica de alcançar o propósito em si, a exemplo da satisfação de lascívia disposta no artigo 218-A, CP; e os componentes especiais de ânimo descritos no tipo a demonstrar o desvalor social da conduta, projetando-se para além do dolo. No tocante aos últimos, infere-se que podem estes ser somente elementos do injusto ou também da culpabilidade, como se extrai, por exemplo, do motivo egoístico no crime de dano qualificado.
Welzel (2004) aborda a autoria sob dois enfoques, do dolo e da culpa. No tocante ao primeiro, conceitua-se autor como aquele que possui o domínio finalista do fato, ou seja, o domínio consciente do fato destinado a determinado propósito, o que representa a característica geral da autoria, ainda que o tipo exija elementos pessoais – objetivos, como nos crimes próprios e nos crimes de intenção, ou subjetivos, como acima descritos. Dessa forma, partícipe seria quem contribuiu para a execução delituosa de outrem ou quem instigou outrem a decidir praticá-la, não demonstrando domínio, portanto, do fato.
Já no que tange ao autor culposo, resta-se apenas a análise da causação de um resultado que poderia ser evitado, razão pela qual qualquer contribuição causal evitável culminaria na configuração da autoria, não se fazendo possível a figura da participação, num cenário de inegável retomada ao conceito unitário de autor. Em sentido contrário, contudo, pauta-se a doutrina espanhola, que, conforme Mir Puig (2007, p. 368, 369), aceita a participação em delitos culposos, de modo que “[…] a ‘participação dolosa’ em um fato requer o dolo do autor principal […]”, enquanto “[…] para a ‘participação não dolosa’, em que o partícipe não quer o fato, não é preciso, entretanto, o dolo do autor; cabe participação imprudente em um fato imprudente.”
Tecendo considerações acerca do autor mediato, Welzel (2004) apresenta duas de suas hipóteses elementares, a saber, aquela em que o terceiro, instrumento para a prática delituosa, não atende às características objetivas e/ou subjetivas pessoais do autor, sendo, dessa maneira, mero ajudante, bem como aquela em que há ausência de domínio final do fato pelo terceiro. Desde logo, constatada estaria a inviabilidade de se considerar a autoria mediata quando o sujeito atuante fosse igualmente autor, ainda que o autor de trás se servisse de erro de proibição decorrente do autor imediato.
Configurada estaria a autoria mediata, conforme o aludido jurista, quando o terceiro não atuasse com dolo, agindo com ou sem culpa; ou quando o terceiro atuasse finalisticamente, mas não de modo livre; ou quando o terceiro se tratasse de subordinado que atende, de boa-fé, a uma ordem antijurídica; ou, por fim, quando o terceiro se encontrasse em estado de necessidade por coação.[2] Neste, alerta o doutrinador sobre a punição do autor mediato pela lesão autoprovocada pelo terceiro, bem como o emprego de crianças ou enfermos mentais que, em que pese ajam aparentemente de modo livre e final, estejam a fazê-lo sem elemento volitivo próprio.
Nesse diapasão, Welzel (2004) rechaça a designação da autoria unicamente pelo critério psicológico do animus auctoris, defendendo que este deve ser considerado apenas em concomitância ao domínio final e real do fato, conforme anteriormente explicitado.
A coautoria, por seu turno, como se trata de uma forma de autoria, exigiria o compartilhamento desse domínio do fato por mais de uma pessoa, o que se daria mediante a consciência recíproca da divisão do trabalho, numa só execução do delito. Dessa forma, em que pese o indivíduo aja apenas preparatoriamente ou como ajudante dos demais, pode ser ele considerado coautor, desde que detenha o referido domínio comum, observando-se que a mera cooperação sem o entendimento recíproco configuraria, em verdade, a autoria colateral, chamada pelo jurista de autoria secundária (Welzel, 2004).
Consequentemente, em sendo hipótese de crimes de mão própria, deve cada coautor agir conforme o descrito no tipo, atendendo-se, por óbvio, às condições pessoais da autoria. Segundo ressalta o teórico, ausentes estas, estar-se-ia inequivocamente diante de partícipes.
O ensinamento de Welzel (2004), já no que tange à participação, remonta sua dependência de um fato principal consumado ou tentado, a demonstrar seu caráter de acessoriedade. Neste viés, em evidente coerência está o artigo 31 do Código Penal vigente, ao dispor que “[…] o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”
A referida forma de concurso de pessoas, na visão proposta pelo então pensador de dispensa da culpabilidade, exige apenas a presença da antijuridicidade do fato e a tipicidade, ou seja, trata-se de uma acessoriedade limitada, independendo o partícipe da possibilidade de se imputar pessoalmente o fato ao autor – em contraponto à já discutida teoria da acessoriedade extrema, cujos fundamentos convergem para a teoria causal de integração do dolo à culpabilidade. Nesse sentido, Pierangeli (1999) infere que optou o legislador penal brasileiro pela teoria da acessoriedade limitada.[3]
A participação stricto sensu é abordada pelo jurista nas formas de instigação e cumplicidade, bastando-se para ambas o dolo eventual de realização do delito, também dolosamente, por determinado autor. Se este, todavia, extrapola os limites do dolo comum, não responde o partícipe pelo excesso, mas tão somente pelo quantum estritamente influenciado ou fomentado, salvo nos resultados mais graves nos crimes de qualificação pelo resultado. Nesse sentido, dispõe o Código Penal, em seu art. 30, que “[…] não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.”
A instigação é explicitada como influência psíquica e dolosa do partícipe para que o autor cometa dolosamente um ou mais delitos, independendo do meio adotado por este. Se não houve a realização total do crime influenciado ou a sua realização se deu autonomamente, se estaria diante de uma instigação tentada, impunível por só ser a participação penalmente relevante quando promover o fato principal, pois, em contrário, se estaria punindo apenas o ânimo. Seria ela tentada, ainda, quando em erro, o instigador crê incitar um agir doloso, mas se observa a ausência de dolo no comportamento do autor.
Já a cumplicidade é apresentada como prestação dolosa de ajuda a fomentar o partícipe a cometer dolosamente o crime, podendo consistir tal ajuda, também, numa contribuição de caráter psíquico, como um conselho ou como a omissão quando necessário agir. Cumpre, aqui, destacar o posicionamento de penalistas brasileiros (BITENCOURT, 2007; SANTOS, 2008), segundo os quais a ajuda prestada pelo cúmplice dota, em verdade, de caráter eminentemente material ou exteriorizado, como o fornecimento de ferramentas que, ainda que inutilizadas no ato delituoso, ofereçam uma contribuição – na opinião de Pierangeli (1999), não necessariamente causal, mas facilitadora ou ratificadora – dolosa à conduta do autor.
Em se tratando de delitos de resultado, a mencionada contribuição, por conseguinte, só é assim considerada pelo jurista se colaborou causalmente para o resultado. Por fim, se o crime não foi realizado absolutamente ou o foi de modo autônomo, tem-se, também, a cumplicidade tentada, impunível conforme já esclarecido ao discorrer sobre a instigação.
Demonstra Welzel (2004, p. 184), ainda, a consideração mediata da participação, aduzindo que “[…] instigação à instigação é instigação mediada a fato. Cumplicidade na instigação, instigação à cumplicidade e cumplicidade na cumplicidade são casos de cumplicidade mediata a fato.” Se, contudo, mais de um modo de participação recair sobre a mesma ação de um mesmo indivíduo, os mais graves absorverão os mais leves.
Iniciando as considerações finais acerca do concurso de pessoas, o aludido especialista, em sua obra Direito Penal, expõe que, no que se refere às condições pessoais fundamentais à pena, basta ao autor atender às exigências do tipo, uma vez que a participação é concebida apenas acessoriamente. Já nas qualidades de aumento, atenuação ou afastamento de pena, aproveitam estas apenas a aqueles – partícipes ou autores – que efetivamente as detêm.
Com efeito, classifica o jurista, outra peculiar forma de participação, a que denomina de participação necessária. Refere-se, quanto a essa, aos crimes que apresentam, de acordo com sua natureza, a necessidade de uma coparticipação lato sensu de outros indivíduos com o autor, a exemplo do rufianismo, em que a prostituta exerceria a função de partícipe necessária. Tal concurso resta-se impune, não devendo transcender aos limites do tipo, sob o risco de, a depender do mesmo, vir a culminar numa forma de cumplicidade ou instigação e tornar-se, portanto, punível.
2.2 A SISTEMATIZAÇÃO DE CLAUS ROXIN
Dentre inúmeras outras ilustres contribuições ao Direito Penal, apresentou o influente jurista alemão Claus Roxin conceituação sistematizada da problemática acerca da autoria e da participação, cuidadosamente analisando, na parte inicial de sua monografia Autoría y domínio Del hecho em Derecho Penal, a metodologia que considera devida para a construção de tais critérios.
Demonstrado é o caráter indevido da adoção de unicamente um método para o melhor alcance dos conceitos de autor e partícipe, sendo imperiosa a realização de uma síntese dos pontos de vista teleológico e ontológico. Assim, assinala Roxin (2000) a necessidade de afastamento dos conceitos secundário e extensivo de autor, bem como da sua consideração mediante critérios de merecimento de pena e perigosidade.
No que comporta ao conceito secundário, tem-se a caracterização da autoria pela exclusão dos que se enquadrarem como partícipes, o que, conforme o teórico, resta-se inadmissível, devendo procedê-la primariamente, haja vista a já explanada acessoriedade da participação stricto sensu.
Desviando do conceito extensivo de autor, é apresentada a sua contradição quando da consideração teleológica da equivalência de condições ao passo que coloca a cumplicidade e a indução como causas de atenuação de pena. Ainda, cumpre analisar a incompatibilidade de tal conceito com o disposto no mundo ôntico, ressaltando-se, também aqui, o caráter secundário de determinação da autoria, uma vez que se figuraria como autor apenas quando não fossem apontadas as atenuantes da indução e da cumplicidade.
Em contraponto ao conceito de autor pelo merecimento, lembra o jurista que a própria legislação determina, a priori, uma mesma pena a todos que concorrerem para a ação punível – verifique-se o supramencionado artigo 29, caput, do Código Penal brasileiro – não havendo efetivas razões para se conceber o autor como maior merecedor de pena.
Já no que tange à teoria da perigosidade, afere-se sua grande suscetibilidade a arbitrariedades, observando-se que, na autoria mediata, por exemplo, o homem de trás pode ser o mais perigoso, de forma a se afirmar a necessidade do estabelecimento, para o autor, de um conceito restritivo (portanto, não extensivo) e diferenciador (portanto, não unitário).[4]
Assim, sugerida é uma máxima descritiva, segundo a qual é a autoria formalmente verificada quando o indivíduo figurar no núcleo do acontecer típico em forma de ação. Conferida é, portanto, essência acessória à participação, estando o partícipe a se apoiar no âmago representado pelo autor.
Essa máxima da ocupação de papel central no acontecer típico se apresenta de três formas: mediante o domínio do fato (nos crimes comuns comissivos dolosos), “[…] pela violação de um dever especial (nos delitos próprios, que Roxin chama de delitos de dever) ou pelo elemento típico que exige a prática da conduta com as próprias mãos (nos delitos de mão própria).” (GRECO; LEITE, 2013, p. 3).
A esse respeito, faz-se mister esclarecer, embora não vá o presente trabalho adentrar nessa questão, que, em que pese o domínio do fato constitua, segundo Roxin (2000), o que melhor satisfaz a conceituação de autor, por ele não se nutrem anseios de utilização universal.[5] Isto porque o legislador, em determinados delitos, pauta a figura central da ação em parâmetros diversos, não sendo o domínio do fato o que atribuirá a qualidade de autor ao sujeito, como ocorre nos delitos de mão própria e naqueles chamados por Roxin de delitos de dever.[6]
Os delitos de dever[7] são o que se entende por delitos próprios (aqueles em que o sujeito ativo ou passivo deve dotar de qualidade especial) e omissivos impróprios (aqueles em que, dada a posição de garantidor, deve-se evitar o resultado). A qualidade especial exigida no tipo e a posição especial que se ocupa, respectivamente, convocam deveres, que, se violados, configuram a autoria de quem os detém. Portanto, se concorrem comissiva ou omissivamente para o acontecer causal – seja a contribuição considerável ou pouco relevante – e possuem a requerida qualidade, são autores, senão são apenas partícipes.
Já os delitos de mão própria são aqueles em que o sujeito deve, ele mesmo, praticar o descrito no tipo, não podendo se valer de outrem, de forma que inviável é a consideração de coautoria ou de autoria mediata. Para se enquadrar um delito na categoria de mão própria “Roxin propõe que sejam diferenciados aqui três grupos de delitos: os delitos de comportamento vinculado (nossa tradução de ‘verhaltensgebundeneDelikte’), em que o injusto repousa na reprovabilidade de um determinado modo de se comportar sem que seja necessária a comprovação de uma lesão a bem jurídico (exemplo do código alemão seria o incesto, § 173 StGB); os delitos de direito penal de autor (täterstrafrechtlicheDelikte), que elegem como ratio da punição um modo de condução de vida, como o rufianismo, ainda existente em nosso Código Penal (art. 230); e os delitos de infração de um dever personalíssimo, como o delito de falso testemunho (art. 342). Os dois primeiros grupos são corpos estranhos no moderno direito penal e, em verdade, apenas o último grupo é de maior relevância”. (ROXIN apud GRECO; LEITE, 2013, p. 6).
Nos crimes comuns comissivos dolosos, por sua vez, o fundamento para a determinação da autoria é o domínio do fato. Este se demonstra conforme se doma dolosamente o acontecer causal, não devendo, contudo, ser entendido como a capacidade de se evitar o fato. Se assim o fosse, haveria uma aproximação dos delitos omissivos, onde não há domínio do fato, pois somente aquele que atua positivamente pode, de fato, dominar algo.
O conceito de domínio do fato deve ser conceituado, segundo Roxin (2000), por uma fórmula geral, de modo a atender a todas as hipóteses de autoria desses delitos apresentadas no caso concreto. Para tanto, rechaçada é a utilização de um conceito indeterminado, que traria extremada insegurança jurídica, bem como a conceituação mediante padrões pré-fixados, uma vez que não se tem, aqui, a exatidão das ciências naturais, transcendendo a um juízo de mera subsunção, sobretudo por tratar-se de uma gama diversificada de casos, dos quais muitos são ainda desconhecidos.
Sugere, portanto, o autor que se utilize um conceito aberto de domínio do fato, que partiria de um procedimento descritivo, mas não exaustivo, de seus elementos, de forma a se obter um conceito geral, regado por princípios orientadores. Tal conceito expressa a autoria restritivamente, de forma que é autor aquele que age tipicamente, enquanto o partícipe tem sua punição vinculada a outra manifestação da lei, a saber, a uma causa de extensão da punibilidade. Assim, o conceito de autor mediante o domínio ocupa, no sistema, o âmbito do injusto típico – ao qual pertence o dolo, mas concebido por Roxin em sentido diverso do proposto pela ação finalista de Welzel – não dependendo, pois, da culpabilidade.
Para tanto, analisa-se a teoria do domínio do fato, metodologicamente, a partir de três perspectivas. São elas: o domínio da ação, o domínio da vontade e o domínio funcional do fato.
2.2.1 O domínio do fato sob o enfoque da ação
Claus Roxin (2000) apresenta, inicialmente, o domínio da ação como concernente àquele que, em qualquer hipótese, realiza, de mão própria, livre e dolosamente, todo o disposto no tipo penal.
Observa o jurista germânico, todavia, que, em que pese dote de relevância a característica dolosa da ação, não se pode seguir uma teoria subjetiva, uma vez que não é a vontade de dominar o fato que determina a autoria – ressalte-se que o partícipe também pode possuí-la. O determinante seria, objetivamente, a ação típica completa de própria mão, “[…] ainda que aja a pedido ou a mando de outrem, ou mesmo em erro de proibição inevitável determinado por um terceiro […]” (GRECO; LEITE, 2013, p. 3), quando então permanecerá autor, em que pese abarcado por uma exculpante.
Assim, contrariamente a Welzel (2004), posiciona-se Roxin (2000) pela configuração do domínio do fato e, portanto, da autoria mesmo nas hipóteses em que aquele que realiza o tipo de mão própria encontra-se em estado de necessidade por coação. Isto porque, independentemente da punição, se faz perfeitamente possível o domínio da situação pelo coagido, uma vez que a coação pode vir a tornar a sua atividade ainda mais robusta, como exemplifica o jurista em “[…] el caso en que alguien, para salvar de la muerte a su hijo, secuestrado por unos gángsteres, comete un asesinato por orden de los secuestradores, o un robô en una joyería.”
Discutida é, ainda, a possibilidade de se considerar autor aquele que realiza apenas um ou alguns elementos do tipo, mas não a sua completude. Neste passo, remete-se a Welzel e Maurach (apud ROXIN, 2000) como doutrinadores que entendem pela suficiência da realização de algum elemento do tipo, enquanto Mezger e Schönke-Schröder (apud ROXIN, 2000) exigem que se realizem todos os elementos constantes no tipo. Nesse mérito, entende Roxin que não é possível extrair da vontade do legislador a eleição de um único elemento típico como o bastante para a verificação da autoria. Assim, autor é quem realiza a ação executiva descrita no tipo, sendo possível que o executor de apenas um elemento típico seja coautor, a depender do caso concreto, conforme se abordará mais adiante.
2.2.2 O domínio do fato sob o enfoque da vontade
Existem hipóteses em que o autor não é aquele que realiza a ação executiva, verificando-se o domínio do fato pelo sujeito de trás sobre a vontade regente do executor direto. Tais situações podem ocorrer de inúmeras formas, apontando Roxin (2000) a utilização dolosa de um agente sem liberdade, de um agente em erro, de um agente inferior não só intelectualmente, mas também psiquicamente, como menores e enfermos mentais, bem como de um agente subordinado mediante um aparato organizado de poder. Assim, analisa-se a autoria mediata em três vieses: da coação, do erro e do domínio da organização.
Nesse passo, não se pode olvidar a incorreção de se entender o domínio da vontade mediante parâmetros psicológicos, haja vista que isso aproximaria o Direito de uma ciência natural e, portanto, tendente a inflexibilidades. Assim, sugere que sua concepção seja pautada em critérios legais, de forma que se verifique o domínio da vontade não somente quando inexista uma decisão autônoma, mas também quando o próprio Direito assim optar, dando espaço à atuação judicial.
Sob a perspectiva da coação, o domínio do fato presente no autor mediato se dá quando o executor direto não possui liberdade para decidir. Nesse caso, não se trata de qualquer forma de influência volitiva despendida a ele, mas de algo dotado de efetiva intensidade, inclusive porque tanto o cúmplice quanto o indutor tem o poder de exercer alguma influência. Nesse sentido dispõe o Código Penal, em seu art. 22, que “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”
O executor, entretanto, em que pese não aja livremente, tem ciência do que lhe ocorre, assinalando Roxin (2000) que só é possível se estender o domínio do fato ao coator, nesse caso, devido à opção legislativa em atribuir-lhe a responsabilidade – evoca-se o que o doutrinador chama de princípio da responsabilidade.
Segundo o jurista, no estado de necessidade por coação, o sujeito coator é autor mediato, pois é ele quem insere o executor na situação de perigo, da qual este se livraria apenas pelo cometimento de determinado delito. Contudo, no que se tem por estado de necessidade simples – em que não se encontra coagido por alguém, mas devido a fatores externos – não há, em primeira análise, domínio da vontade por parte do sujeito de trás, em que pese algum auxílio prestado por ele venha a antecipar sua ação.
Logo, sendo o estado de necessidade imposto por circunstâncias externas, é possível que se observe a figura da participação, a se utilizar desse estado já instalado. Tal entendimento coincide com o de Welzel (2004), segundo o qual, em se tratando de estado de necessidade simples, aquele que se aproveita da situação para alcançar um fim é partícipe e não autor mediato. Entretanto, Roxin (2000) diverge de Welzel na hipótese em que o sujeito se aproveita do estado de necessidade existente, mas o modifica de modo a fornecer meios para aquele que está em perigo praticar o fato criminoso. Segundo ele, “Modificando la situación externa, mediante lo cual se procura una preponderância con respecto al otro, el sujeto de detrás hace las veces del destino […]”, devendo ser entendido como titular do domínio do fato em autoria mediata. (ROXIN, 2000, p. 176).
Ao impor, dolosamente, ao executor um conflito moral que o faça agir em prol de determinado bem jurídico, mas em desfavor de outro, está configurado o estado de necessidade exculpante supralegal no Direito alemão (teoria diferenciadora), enquanto no Brasil (teoria unitária)[8], respeitado o artigo 24, CP, já se daria a justificação e, assim, a exclusão da ilicitude. Dessa sorte, conforme já explanado, o domínio da vontade do sujeito de trás é concebido a partir da não responsabilização penal do executor por uma escolha do legislador – já que não agiu como real instrumento – transferindo à figura daquele o papel central na realização do fato.
Se o sujeito de trás, por sua vez, influenciar psiquicamente (semelhantemente à coação) o executor e este não estiver abarcado sequer por uma excludente de culpabilidade, entende o jurista alemão por estar configurada apenas a participação. Segundo ele, o legislador entendeu que a decisão última permaneceria nas mãos do executor, tal como aduz Welzel (2004), que inadmite a autoria mediata na aludida situação, ainda que por critérios distintos. Para este, conforme anteriormente exposto, deve o executor direto tratar-se apenas de um instrumento, ao passo que Roxin (2000) considera como já abordado, além da ausência de decisão autônoma, hipóteses legalmente eleitas para tanto, o que, nas situações apenas análogas ao estado de necessidade, não é possível se observar.
No que tange ao – já abordado por Welzel (2004) – estado de necessidade coativo para a autolesão, a problemática é enfrentada por Roxin (2000) à ótica da participação no suicídio. Todavia, dada a tipificação pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro do crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, cabe apenas a apresentação de seu posicionamento, que daria azo à abordagem quanto à autolesão corporal. Infere-se que, segundo o último doutrinador, se verifica o domínio da vontade do sujeito de trás apenas quando tratar-se de estado de necessidade por coação.
Outra questão polêmica entre os adotantes da teoria do domínio do fato reside na autoria mediata por um sujeito que, sem efetiva coação, determina a outrem o ataque a um bem penal de terceiro para que este último, em resposta, o lesione justificadamente. Assinala Roxin (2000) ser possível ao sujeito de trás agir antijuridicamente mesmo que a execução do resultado se dê em licitude. Nesse aspecto, faz-se relevante apontar o pensamento wezeliano, que exige o domínio da situação justificante pelo indivíduo de trás para, somente assim, se verificar o domínio do fato.
Sob a perspectiva do erro, por sua vez, o domínio do fato se dá quando o executor tem seu processo de formação da vontade viciado, pautando-se em algo irreal. Ainda que o erro não venha a excluir ou reduzir o dolo ou a culpabilidade – a exemplo do erro sobre a pessoa – tem-se a autoria mediata, pois possui o sujeito de trás um maior grau de domínio da situação, como se seguirá explicando. Isso, no posicionamento roxiniano, frise-se, é perfeitamente possível ainda que configurada a autoria imediata do executor.
Em havendo erro de proibição (art. 21, CP) inevitável por parte do executor e, assim, atuando este sem dolo ou culpa devido à articulação do sujeito de trás, cuja influência causal sequer precisa dotar de caráter imprescindível ao feito delituoso, tem-se também autoria mediata. Numa situação em que alguém, consciente dos fatos, pede a outrem que aperte um botão para supostamente acender a luz e isso o faz ativar um explosivo e lesionar bens jurídicos penalmente tutelados, aquele dominou os fatores causais. Assim, apesar de o domínio não figurar sobre a pessoa do executor e ser inegavelmente inseguro de sucesso o plano traçado, Roxin (2000) entende pela existência do domínio do fato nas mãos do sujeito de trás, sobretudo porque o atuante equipara-se, aqui, a qualquer causa não humana, agindo, segundo já havia apontado Welzel, de maneira não final e estando a autoria determinada pela fruição dolosa da ausência de dolo do executor.
Todavia, quando o executor age com culpa – inconsciente ou consciente – é inegável que seu papel seja essencial para se conceder o domínio do fato ao sujeito de trás, de forma que, em alguma medida, tem domínio sobre as circunstâncias, ainda que em sentido diverso do concebido pela teoria do domínio do fato (necessidade, ao menos, do dolo eventual). Desse modo, caso esta imprudência esteja tipificada, é possível enquadrar como autor não só o sujeito de trás (através da teoria do domínio do fato), mas também o executor culposo (através de critério diverso, a saber, uma opção legislativa), o que não desconstrói a autoria mediata ora verificada. Nas palavras de Roxin (2000, p. 203), “Bien es verdad que el legislador hace también responsable del resultado al ejecutor allí donde la imprudencia sea punible. Pero la imputación se basa en circunstancias que son irrelevantes para el dominio de la voluntad por parte del sujeto de detrás. […] Así pues, podríamos ampliar el principio que estabelecíamos supra señalando que también aquel que, ante un ejecutor que actúa con imprudencia consciente, aporta una condición del resultado es autor mediato en todo caso.”
Com efeito, nos casos de erro, para a distinção entre autoria mediata ou participação do sujeito de trás, é imperioso verificar a supradeterminação que rege os fatos. Se o executor possui a ciência da probabilidade de alcançar o resultado e assume o risco tanto quanto o sujeito de trás, este é mero partícipe. Contudo, se o conhecimento acerca do curso causal reside em maior escala nesse sujeito não aparente, dada a situação de erro em que se encontra o executor, imerge-se numa discussão repleta de minúcias.
Para se verificar o devido enquadramento do sujeito de trás como autor mediato ou partícipe, nas situações de erro, Roxin (2000) propõe que se conheça o domínio do fato em quatro graus.
Se cientes apenas das circunstâncias fáticas, são dominadores do fato de primeiro grau, enquanto os que conhecem a correspondência social de desvalor da conduta – antijuridicidade material, a saber, conceito aberto à valoração no caso concreto – detêm o domínio do fato de segundo grau. O terceiro nível consiste, por sua vez, na consciência da reprovabilidade da ação, como numa situação em que, por exemplo, alguém, erroneamente se vê em estado de necessidade e outrem, sabendo do erro, se aproveita para alcançar um fim criminoso. Por fim, o quarto grau de domínio do fato reside no conhecimento do sentido concreto da ação, o que se observa, por exemplo, no sujeito de trás que cria no executor uma situação de erro sobre a pessoa.
Em consequência, deve-se ter em mente que o erro de proibição inevitável do executor já dá ensejo à constatação da autoria mediata daquele, uma vez que sequer teria um domínio de segundo grau e, assim, haveria um “atuar cego”.
Tais pressupostos – relativos às situações de coação e erro – são, também, empregados para entender o domínio da vontade mediante a utilização de inimputáveis. Se a vontade do executor for formada através do domínio do sujeito de trás, observa-se uma redução do âmbito volitivo daquele, configurando-se autoria mediata. Nessa, também resultaria a hipótese em que a supradeterminação do sujeito de trás influi na compreensão do executor, seja dos fatos ou do desvalor da conduta, observando-se um âmbito intelectivo reduzido.
Nos casos de inimputabilidade, a opinião de Roxin diverge da de Welzel. Para este, conforme já explanado na subseção anterior, sejam enfermos mentais, crianças ou adolescentes, é possível constatar a autoria, desde que tenham vontade própria e ajam de maneira final. De encontro a tal posicionamento vai Roxin (2000), que entende sempre pela autoria mediata no caso de crianças e, em sendo adolescentes, apenas quando estes não sejam penalmente responsáveis.[9]
Por fim, imperioso é ratificar que não se pode considerar a autoria mediata pelo simples fato de o executor ter agido sem dolo, sem consciência do injusto ou inimputavelmente. Deve-se, como já explanado, observar no sujeito de trás a ciência e o aproveitamento de tais condições para conduzir os fatos, senão (seja por desconhecimento ou erro sobre os requisitos da autoria) faz-se possível punir apenas por participação. Assim, em que pese pareça, à primeira vista, que estaria violada a acessoriedade da participação quando o executor agir de modo não finalístico, “[…] esto en nada cambia en que el sujeto de detrás coopera sin domínio del hecho a la realización del tipo.” (ROXIN, 2000, p. 296), sendo este, portanto, partícipe.
2.2.3 O domínio da organização
O domínio da vontade, além dos formatos da coação e do erro, é percebido nas ordens proferidas na engrenagem de uma estrutura de poder organizada e dissociada do Direito “[…] que garanta a execução do comando, mesmo sem coação ou engano, uma vez que o aparato enquanto tal assegura a execução do fato.” (ROXIN, 2008, p. 323).
A autoria mediata se reveste, aqui, do poder que detém o sujeito de trás, independentemente do grau que ocupe hierarquicamente, para comandar a execução criminosa por sujeitos (absolutamente responsáveis) inespecíficos e, portanto, passíveis de fungibilidade. Dessa maneira, esse domínio se vale não da exata pessoa que executa, mas do sistema que a cerca.
Conhecidos exemplos de tal forma de autoria são as atrozes manifestações do nacional-socialismo[10], bem como as organizações terroristas e as máfias, as quais, como notoriamente sabido, seguem caminho não percorrido pelo Direito. Suas estruturas de poder se valem da fácil substituição de um executor por outro para a garantia do resultado criminoso, de modo que se tem a total segurança de que a ordem será prontamente cumprida.
Desse modo, observa-se que a escolha de um sujeito determinado, cuja qualidade específica é imprescindível à execução, não configura a autoria mediata de quem o ordena. Inexistindo erro ou coação, tem-se apenas a figura da participação.
Faz-se mister salientar, todavia, que a autoria mediata do controlador da organização não exime a responsabilidade do executor imediato. Este possui o domínio da ação e age por seus próprios esforços, enquanto o sujeito de trás atua através do aparato de poder, de forma que ambos são autores, imediata e mediatamente.
Isto posto, não há espaço para a configuração de uma coautoria entre o que emana a ordem e os que, nas circunstâncias já descritas, a cumprem, uma vez que inexiste acordo comum ou divisão de tarefas entre eles. A autoria mediata dota de verticalidade, o que é claramente observado em tais estruturas de poder, ao passo que a coautoria é horizontal e, já assim, se demonstra incompatível.
No mesmo sentido, tem-se a inverosimilhança de se conceber a instigação nas hipóteses em comento, haja vista que, se assim o fosse, não se observaria a preponderância da vontade do autor de gabinete no curso causal.
Há, entretanto, de se ter em mente que, em ocasiões diversas da discutida e, assim, inexistentes os requisitos da autoria, nada impede que se configure a participação stricto sensu mesmo dentro de um aparato organizado de poder. Isso ocorre, por exemplo, nas condutas que não interferem no andamento e na organização do aparato, tais como as decorrentes de um sujeito sem poder de decisão, ainda que dê auxílio técnico para um plano (cumplicidade), “[…] assim como aquele que, de fora do aparato, denuncia um determinado grupo e causa na cúpula uma ideia de aniquilação, sem possuir qualquer influência no decorrer dos acontecimentos (instigador).” (GRECO; LEITE, 2013, p. 15).
Por fim, cumpre observar a crítica de Roxin (2008) no que tange à aplicação da teoria da autoria mediata pelo domínio da organização nos casos de empresas ou demais aparatos regidos pelo Direito. Nessas circunstâncias, não há espaço para se discutir a correção do cumprimento de ordens ilícitas, uma vez que, além de ser inescusável o desconhecimento da lei (art. 21, caput, CP), há leis orgânicas que expressamente vedam tal conduta, a exemplo do estatuto dos servidores públicos civis da União, que, em seu art. 116, IV, impõe como dever do servidor “[…] cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.”
2.2.4 O domínio do fato sob o enfoque da contribuição relevante dentro de um plano global
Autonomamente ao domínio da ação e ao domínio da vontade, tem-se ainda uma terceira expressão de domínio do fato, a saber, a coautoria. Nesta, há, ao menos, dois sujeitos, que demonstram uma mesma medida de domínio, através da sua atuação conjunta, em divisão do trabalho (domínio funcional do fato). Assim, respondem em imputação recíproca, uma vez que o domínio do fato de cada um está vinculado ao dos demais pelo acordo comum.
A contribuição causal de cada agente não se vincula aos limites dispostos no tipo, mas, segundo Roxin, devem integrar a fase executiva. Nesta, observa-se que, se dissociadas as condutas, não se alcançaria – ao menos não em conformidade com o plano comum – o resultado desejado, tendo em vista que “[…] cada individuo domina el acontecer global en cooperación con los demás.” (ROXIN, 2000, p. 307). Para tanto, não se discute a motivação (nem mesmo se essa, em consequência do acordo, culminar na realização de tipos heterogêneos pelos coautores) ou o merecimento de pena de cada um, bem como não se exige que a contribuição dada tenha caráter exteriorizado ou se faça fisicamente presente no momento e local do fato. Logo, é possível considerar a coautoria até mesmo ao vigilante que, aparentemente, em nada contribui ao crime, desde que o atuar dele também seja parte integrante do acordo.
Se, todavia, apenas um dos agentes tem ciência da relação de colaboração estabelecida, este é autor mediato, assim como ocorre com aquele que comete excessos em relação ao quantum preestabelecido. Se, por outro lado, um dos agentes cometer um erro e, diante disso, agir em desacordo com o plano (como, por exemplo, no erro sobre a pessoa), também não seria coerente considerá-lo coautor, o que, entretanto, não ocorreria se todos os coautores incorressem num mesmo erro.
Em havendo um coexecutor sem culpabilidade, a configuração da autoria mediata não exclui a existência de uma coautoria, desde que o autor mediato atue como parte essencial do plano. É possível, ainda, a coautoria quando um sujeito é inserido posteriormente na execução do plano criminoso, o que, todavia, na opinião de Roxin (2000), não significa ser cabível atribuir a ele as qualificantes que já se faziam presentes.
Na fase preparatória, por sua vez, cumpre observar inicialmente o fato de Welzel entender pela coautoria, desde que também haja resolução do sujeito no acordo comum. Contrariamente se pauta o posicionamento roxiniano, segundo o qual aquele doutrinador foi por demais subjetivo nesse aspecto e, como dito anteriormente, o domínio do fato só é considerado no ato executivo, pois a contribuição dada pelo preparador não tem o condão de dominar propriamente o acontecer causal, mas tão somente o psicológico dos executores, sendo possível apenas caracterizar a participação.
É por essa razão que não se faz possível, para Roxin (2000), configurar ao chefe do bando que só determine e não atue nos atos executivos a coautoria. Nesse caso em especial, conforme mencionado na subseção 2.2.2, tem-se geralmente uma autoria mediata, seja pelo domínio da organização ou pela coação, desde que cumpridos, logicamente, os requisitos destes.
3 A PROVA DA AUTORIA E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: uma análise crítica do julgamento da ação penal nº. 470
Nos autos que compõem a ação penal nº. 470/MG, a teoria do domínio do fato se insurge já na exordial acusatória, sendo também trazida à baila nos votos da maioria dos ministros-membros do Supremo Tribunal Federal.
Reconhecida, todavia, a profundidade da discussão sobre todos os aspectos jurídico-penais do que se denominou por mensalão, bem como a inviabilidade de uma exposição minuciosa das 8.405 laudas que estruturam o respectivo julgamento, delimitou-se o tema mediante o qual se desenvolve o presente artigo, atribuindo foco ao então chefe da Casa Civil, José Dirceu, cujos delitos imputados[11] foram debatidos nos itens II (formação de quadrilha[12]) e VI (corrupção ativa) da vasta exposição constante no acórdão da Suprema Corte.
Alusões ao domínio funcional do fato, bem como ao domínio da organização, ora de forma singular, ora numa confusão de conceitos, merecem uma análise mais criteriosa – e discutida, também, sob a ótica de demais doutrinadores e formadores de opinião.
3.1 “O DOMÍNIO FUNCIONAL […DO] CHEFE DO ORGANOGRAMA DELITUOSO.”
O Procurador Geral da República em 2006 se expressou, nas linhas que articulam a peça inicial, de forma a recair sobre o ex-ministro chefe da Casa Civil[13] “[…] o domínio funcional de todos os crimes perpetrados, caracterizando-se, em arremate, como o chefe do organograma delituoso.” (BRASIL, 2006a, p. 25, grifos nossos). Também nesse sentido seguiu a ministra Rosa Weber ao afirmar, em seu voto, que “Tendo o acusado José Dirceu sido o auto proclamado artífice da formação da base aliada e sendo o acerto quanto aos repasses financeiros parte delas, não há como negar ciência, assentimento e responsabilidade quanto ao ocorrido.” (BRASIL, 2012, p. 1.398).
Destas disposições, tem-se que o Ministério Público, assim como conferiu ao acusado o domínio funcional dos delitos, ressaltou para tanto a sua posição hierárquica, o que foi acompanhado, no STF, por ministros como Weber[14]. A esta bastou-se a argumentação de impossibilidade, diante da função que ocupava, de que aquele não se fizesse ciente do conluio.
Conforme já esclarecido anteriormente, o domínio funcional do fato pressupõe a existência de um plano comum, compreendendo os atos executivos ocasionados por mais de um autor. Deste modo, possuir o domínio funcional dos crimes significaria, de logo, reconhecer a existência de uma coautoria, onde o domínio de cada autor se apresenta numa mesma medida, com o fito de integrar um acordo comum.
Observa-se que a teoria do domínio do fato, nos moldes considerados por Claus Roxin, não permite que a ocupação de um cargo de chefia dentro de uma organização de poder, tal qual fez a Acusação, faça presumido o domínio funcional. Para que essa correlação se demonstre possível, seria necessário não somente a consideração de mais de um autor para os delitos ora imputados, mas também a suficiência probatória das respectivas participações nos atos executórios.
Isto pois, segundo a concepção roxiniana, “[…] el cabecilla es coautor cuando dirige o cubre la ejecución de los delitos [… não se olvidando que] no se puede estimar autoría em virtud de la mera posición como jefe de la banda.”[15] (ROXIN, 2000, p. 330).
Na peça acusatória, Dirceu é apontado como o articulador maior do esquema criminoso, a quem pertenceria o poder decisório. Somente em relação a ele é apontada a teoria do domínio do fato, numa construção que parece entender por domínio funcional o que se tem, em verdade, por domínio da vontade e, mais especificamente, por domínio da organização.
Imperioso, contudo, é discernir as diferenças entre o mencionado domínio funcional do fato e o domínio da organização, sem incorrer na incongruência de confundi-los. Em que pese ambos consistam em formas de configuração da autoria, seus pressupostos são eminentemente diversos, haja vista que, para o primeiro é imprescindível a existência de mais de um coautor a atuar, ainda que de longe, na execução delituosa. No domínio da organização, por sua vez, o autor se vale da execução que a estrutura de poder organizada lhe assegura, ou seja, é o sujeito de trás, que não realiza por si mesmo a figura típica.
Ocorre que, afora a grande tendência de se enquadrar as situações de imputação criminosa a chefes de organogramas delituosos como ensejadoras necessárias de um domínio da organização, para este ser configurado, exigem-se requisitos específicos. Faz-se essencial a fungibilidade dos executores diretos, de forma que o resultado almejado pelo sujeito de trás seja concretizado por pessoas indeterminadas, cujas características pessoais são irrelevantes.
Com efeito, a descrição estrutural da mencionada quadrilha é substancial para uma melhor compreensão. Essa seria composta por um núcleo principal, cujo escopo era a obtenção de apoio político e o pagamento de dívidas e demais despesas – sobretudo de campanha – do PT e de aliados. Nesse centro figuraria José Dirceu, Delúbio Soares, Sílvio Pereira e José Genoíno, sendo estes dois últimos, ressalte-se, o ex-secretário geral e o ex-presidente do PT. Já os outros dois grupos existentes seriam o relativo ao Banco Rural (José Roberto Salgado, Ayanna Tenório, Vinícius Samarane, Kátia Rabello e o falecido José Augusto Dumont) e o núcleo publicitário (Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos, Geiza Dias e, sobretudo, Marcos Valério), que simulava empréstimos junto àquele Banco para justificar a origem dos recursos empregados nas campanhas eleitorais, quando, conforme a denúncia, decorriam, em verdade, do desvio de dinheiro público na contratação da publicidade.
Saliente-se, portanto, que os integrantes dos núcleos político, publicitário e financeiro eram pessoas específicas, que dotavam de atributos próprios. Somente em consequência de suas peculiaridades – influências políticas, posições de gestão e articulação partidária – é que se permitia a movimentação do esquema delituoso compreendido por mensalão. Dessa forma, não há que se falar em domínio da organização, bem como não se pode emaranhar seu conceito com o de domínio funcional do fato.
3.2 “[…] JOSÉ DIRCEU TINHA MESMO O DOMÍNIO INTELECTUAL DAS AÇÕES […]” VERSUS “[…] DOMÍNIO FUNCIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES E […] DOS SEUS MAIS DESTACADOS DIRIGENTES E PRÓCERES.”
Mesmo o ministro aposentado Carlos Ayres Britto, presidente do STF quando do julgamento da ação penal nº. 470, proferiu seu voto aplicando a teoria do domínio do fato como vetor para fundamentar a condenação do ex-ministro chefe da Casa Civil. Numa de suas observações, aduziu que o mensalão se deu “[…] sob o impulso originário, controle metodológico e domínio funcional do Partido dos Trabalhadores e de quatro (número inicial da peça acusatória) dos seus mais destacados dirigentes e próceres.” (BRASIL, 2012, p. 4.499-4.500, grifos nossos). Assim, posicionou-se pela adoção do que se entende por domínio funcional do fato, a configurar uma coautoria.
Todavia, surpreendente é a continuidade do mencionado voto, que, com mesma veemência, infere que “[…] o denunciado José Dirceu tinha mesmo o domínio intelectual das ações dos demais acusados, naquilo em que dirigidas para o levantamento de numerário para o pagamento de dívidas e de ‘mesadas’ a parlamentares da base aliada.” (BRASIL, 2012, p. 4.568, grifos nossos).
O que, a primeira vista, não demonstra qualquer atecnia quanto à matéria, tornou expostas publicamente as fragilidades do Judiciário brasileiro, que, representado pela sua mais alta cúpula, atestou limitado aprofundamento no saber relativo à teoria do domínio do fato.[16] Isso porque, como já abordado em seção anterior, o domínio funcional e o domínio intelectual – ou domínio da vontade[17] – consistem em matizes diversas da citada teoria.
Registra-se, portanto, que a impropriedade sugerida na peça acusatória é repetida pelo ministro Ayres Britto. Este, em abordagem expressa, não deixa equívocos quanto à má aplicação conceitual das expressões do domínio do fato, nos termos sistematizados por Roxin.
Cumpre rememorar que o domínio da vontade explica a autoria do chamado autor de gabinete, aquele postado atrás do sujeito que executa o crime, possuindo – seja pelo erro, pela coação ou pela estrutura de um aparato organizado de poder – o domínio intelectual dos atos delituosos. Neste bojo, o que sugere Ayres Britto quando apõe sobre Dirceu o domínio intelectual das ações dos demais acusados é adentrar o campo do domínio da organização, tal qual pareceu fazer o Parquet, uma vez que inexistentes as figuras da coação e do erro.
Entretanto, o grupo designado no curso do processo como núcleo central era formado, além de José Dirceu, por José Genoíno, Sílvio Pereira e Delúbio Soares. Genoíno, na qualidade de ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, teria gerido as relações políticas diretamente com os partidos, enquanto Sílvio Pereira, como ex-secretário geral do PT, se incumbia das disposições de cargos no Governo Federal. Já a Delúbio cabia a intermediação desse específico grupo com os núcleos publicitário e financeiro, a saber, relativo ao Banco Rural.
Assim, é de inequívoca inadequação pautar a condenação de Dirceu no domínio da organização, haja vista a total determinação de cada um dos sujeitos, cujas qualidades específicas eram essenciais ao resultado final, ausente a fungibilidade entre os mesmos.
Diante do discorrido, reafirma-se a necessidade de diferenciar os conceitos de autoria intelectual e coautoria, o que se verifica pela própria estrutura da engrenagem de ambas. Ao passo que a primeira possui uma construção verticalizada, pautada em relações de hierarquia e poder regidas por um aparato organizado, na segunda vige a ideia de isonomia entre os coautores, que integram um só plano e não seriam dispostos senão horizontalmente. Nesse sentido, esclarece Roxin (2008, p.331-333), em artigo de sua autoria publicado na obra Temas de Direito Penal, que “uma série de autores considera o homem de trás, que, no âmbito de aparatos organizados de poder, ordena ações criminosas, não autor mediato, mas co-autor. Neste caso, a rejeição baseia-se, quase sempre, na suposição de que não seria possível um autor mediato atrás de um agente plenamente responsável. Entretanto, tal premissa é equivocada. Posto que, como apresentado no tópico inicial, o domínio da ação do executor e o da vontade do homem de trás se fundam em pressupostos distintos, podem ambos coexistir sem qualquer problema: o autor direto domina o fato concreto através de seu próprio atuar (‘domínio da ação’) e o homem de trás por meio do domínio sobre a organização (‘domínio da organização’), que o liberta da individualidade do executor. Por outro lado, contra uma co-autoria, pronunciam-se três argumentos decisivos. Primeiramente, […] a consciência de ser o destinatário de uma ordem não significa uma resolução comum. […] Inclusive, como uma segunda ponderação, falta também uma execução conjunta do fato. […] Em terceiro lugar, […] a autoria mediata tem uma estrutura vertical […], a co-autoria, pelo contrário, é horizontalmente estruturada […]”.
Isto posto, em que pese determinados doutrinadores[18] entendam pela existência de um domínio funcional entre o autor de escrivaninha e o executor direto, bem como ainda que se possa afirmar ter o ministro aposentado se utilizado de tal corrente, jamais se faria possível a utilização, concomitante e sobre um mesmo agente, de ambas as terminologias dessas distintas facetas do domínio do fato, se discutida sob a reiteradamente aplicada ótica roxiniana.
3.3 A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO COMO UMA “PANACEIA GERAL”
Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, o Ministério Público, “Incapaz, portanto, de comprovar as acusações lançadas contra JOSÉ DIRCEU […], recorre, num derradeiro esforço de convencimento desta Suprema Corte, à denominada ‘teoria do domínio do fato’. Trata-se de uma tese, embora já antiga, ainda controvertida na doutrina. No caso de processos criminais em que a produção da prova acusatória se mostre difícil ou até mesmo impossível, essa teoria permite buscar suporte em um raciocínio não raro especulativo com o qual se pretende superar a exigência da produção de evidências concretas para a condenação de alguém. Não quero dizer com isso que tal teoria não tenha espaço em situações especialíssimas, como na hipótese de sofisticadas organizações criminosas, privadas ou estatais. Não obstante a discussão que se trava em torno dela, muitas vezes é empregada pelo Parquet como uma espécie de panaceia[19] geral, ou seja, de um remédio para todos os males, à míngua do medicamento processual apropriado.” (BRASIL, 2012, p. 4.950, grifos nossos).
Apesar da atribuição dada à teoria do domínio do fato como uma panaceia, insta ressaltar que a crítica apenas se faz perfeitamente cabível quando incide sobre a equivocada aplicação da mesma, não devendo recair, em hipótese alguma, sobre sua estrutura e essência.
Neste esmero, é observado que aqueles que se socorrem das lições de Claus Roxin[20], em muitos casos, têm interesses escusos de ganho de causa e as utilizam erroneamente, diante da alta complexidade teórica que apresentam, em desconhecimento típico sobre sua composição. Portanto, é certo que somente por consequência desta malferida aplicação pode a teoria do domínio do fato ser considerada como o famigerado remédio para todos os males.
Conforme já repisado neste trabalho, a configuração da autoria mediante o domínio sobre os fatos criminosos exige que se precedam, ao contrário de uma panaceia, provas concretas[21] para seu adequado enquadramento. Assim, faz-se imprescindível que se comprove, no domínio da organização, a emissão da ordem por parte do sujeito de trás, tal como a execução do plano comum pelos coautores, no domínio funcional do fato, além, por óbvio, do preenchimento dos demais requisitos inerentes a cada forma de domínio, como, por exemplo, a fungibilidade dos executores diretos naquela.
É certo que as situações exaustivamente tratadas por Roxin são desdobramentos da responsabilidade, o que por si não dispensam jamais a prova da ordem emanada[22], bem como de que as comissões no caso mensalão teriam realmente sido engendradas pelo ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Somada à incipiência de tais aplicadores quanto à teoria, em relação à imprescindibilidade do ônus probandi, a má acepção se estende também à sua finalidade teórica, haja vista que a construção roxiniana tem cunho de subsidiar a qualificação de um sujeito como autor, não sendo capaz – e mormente devendo fazê-lo – de intervir no que diz respeito à presunção de culpabilidade.
Nesta seara, é de reprovável caráter manter-se inerte diante de afirmações como as do jurista Ives Gandra (2013), para quem o princípio do in dubio pro reo e o domínio do fato seriam incompatíveis. Como discutido, é de patente desconhecimento acerca da finalidade e das classificações desenvolvidas no bojo da teoria do domínio do fato entendê-las de modo a invectivar conclusões desfavoráveis ao imputado, quando diante da existência duvidosa do acontecer delitivo.
Conquanto o desacerto acima, Gandra (2013) tece também que “[…] a teoria veio pela metade […]”, o que, se bem compreendida menção, somente reforça a ideia de que o compilado teórico roxiniano não teria incidido com propriedade sobre todos os casos da ação penal n°. 470, não pelo conteúdo em si, mas verdadeiramente – e, aqui, em constatação diametralmente oposta a que encerra o entendimento do doutrinador – pela sua incorreta aplicação.
Outro aspecto basilar a ser considerado consiste no fato de o direito penal moderno, em todas as suas consistentes vertentes doutrinárias, afastar a teoria da responsabilidade penal objetiva[23] e impor a culpabilidade como condição material indispensável para a sanção. Neste sentido, Welzel (apud FERRAJOLI, 2002, p. 389) preconiza que a ação humana é dotada de finalidade, avaliável, não podendo ser dada como fato meramente objetivo.
Por sua vez, Luigi Ferrajoli (2002, p. 390-391), encabeça o sistema do garantismo penal, que anseia pelo elemento subjetivo do crime e prima pela máxima do nulla actio sine culpa.[24] Através desta, caberia ao Estado tão somente uma intervenção mínima e em caráter estrito, no ímpeto de conceber uma limitação razoável ao abuso do poder estatal e resguardar o princípio da legalidade.
Desse modo, é inequívoca a necessidade de afastamento da responsabilidade penal objetiva, restando-se infundada qualquer construção que venha a disciplinar a teoria do domínio do fato como de não coadunação com os preceitos da culpabilidade.
3.4 A “[…] TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO NÃO BASTA […] PARA EXONERAR O MINISTÉRIO PÚBLICO DO GRAVÍSSIMO ÔNUS DE COMPROVAR […] A CULPABILIDADE DO RÉU […]”
Em contrapartida à condenação do ex-ministro chefe da Casa Civil efetivada no voto do ministro Celso de Mello, este membro da Suprema Corte remonta ao garantismo penal quando ratifica que “a mera invocação da teoria do domínio do fato não basta, só por si, para exonerar o Ministério Público[25] do gravissímo ônus de comprovar, para além de qualquer dúvida razoável […] a culpabilidade do réu […]” (BRASIL, 2012, p. 5.204, destaques do original).
Nos estritos termos então citados, o ministro subscritor demonstra que a adoção da teoria do domínio do fato em nada exime a necessidade probatória para a configuração da autoria[26]. Entretanto, a percuciência de suas palavras acerca desse quesito não se mantém quando, mesmo ausentes elementos que comprovem suficientemente a atuação de Dirceu no esquema criminoso, faz uso da citada teoria e, por seu intermédio, o condena[27].
Diante das expostas distorções às quais foi submetida a concepção teórica roxiniana, pode-se evidenciar a existência de motivações sociológicas que transcendem não apenas o puro silogismo jurídico, mas o comprometimento racional do julgador. Manifestações advindas do STF durante toda a ação penal n°. 470 certificaram a imersão do respectivo julgamento num cenário transbordante de populismo penal[28], culminando na sobreposição do posicionamento moral e movido à paixão, em detrimento da análise técnica.
Bem assim, expõe Sérgio Habib (2012, p. 60-61) que o processo do mensalão marcou a história jurídico-penal do país e foi, verdadeiramente, relevante não devido à qualidade dos réus, mas ao conteúdo valorativo objeto de julgamento. Aprofunda o professor: “Quer parecer-nos que o Supremo Tribunal Federal, ao rechaçar os argumentos defensivos, o fez muito mais pelos aspectos morais do que pela importância jurídica que eles poderiam apresentar.”
Não assiste, no entanto, razão a Habib quando entende como vitoriosa a conquista representada pela condenação dos acusados, em face da menor relevância atribuída à técnica e às demandas jurídicas. A íntima aplicação do Direito a partir de noções estritamente morais e de anseios passionais culmina em indiscutível insegurança, tornando-se necessária a retomada de ensinamentos básicos do mundo jurídico, como a discussão Direito x Moral, sobre a qual elucidativamente coloca-se Miguel Reale (2009, p. 43): “Não é exato, portanto, dizer que tudo o que se passa no mundo jurídico seja ditado por motivos de ordem moral. […] Há, portanto, um campo da Moral que não se confunde com o campo jurídico. O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral. Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento. […] Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes.”
Analisa-se, então, que a forte emoção regente da mencionada ação penal gera não apenas prejuízos dogmáticos, mas também consequências fáticas irretratáveis, uma vez que lida com um dos maiores bens tutelados, a liberdade humana. Logo, é devido recordar que nem sempre o Direito pressupõe a Moral, existindo inclusive um resíduo de imoralidade por ele abarcado. Dessa forma, em que pese seja consubstanciada a Dirceu determinada imoralidade, não é permitido ao Direito se valer de noções cegas para condená-lo, diante da insuficiência de provas.
Neste ínterim, Paulo Moreira Leite (2013) traz declarações atribuídas ao ministro Ricardo Lewandowski que confirmam ter o STF sido efetivamente acuado pela imprensa, julgando o mensalão sob forte pressão, ainda que diante da ausência de comprovação das acusações.[29] De fato, tais constatações preocupam e revelam uma projeção ofuscante da realidade processual penal no Brasil.
Decisões desprovidas de plena independência pelo Judiciário afrontam o princípio do juiz natural e colidem com as garantias constitucionais[30]. Também assim, trazem irônica insegurança à sociedade, sobre a qual, de fato, recairão as mazelas ensejadas por seu próprio clamor condenatório incondicional.
É sabido que o princípio do livre convencimento do juiz é sempre motivado e não perime a previsão constitucional[31] de fundamentação, também, na apreciação das provas. As razões que resultam na solução da lide não podem ser meramente indicativas e abertas, mas pressupõem um raciocínio jurídico que trave liame coeso com os elementos probatórios constatados, de maneira que aquilo que não é palpável em provas não pode ser dado como crível.
Em antítese às críticas aqui abalizadas sobre o modus julgandi do Supremo Tribunal Federal, há quem defenda a condenação de José Dirceu sob a haste do aclamado ativismo judicial, o qual pode ser entendido como a atuação proativa no exercício jurisdicional do Estado a fim de dirimir as controvérsias existentes e dar maior concretude aos preceitos constitucionais.
À primeira vista, tal comportamento contundente compreende um leque de condutas e ações, dentre as quais, a adoção de teorias inovadoras para fundamentações decisórias, perpassando por imposições do poder judiciário que demandem políticas públicas por parte dos poderes executivo e legislativo, na busca incessante de garantia das normas insculpidas na Carta Maior.
Por outro lado, o ativismo judicial resvala nas próprias garantias constitucionais e o ímpeto do Judiciário pode vir a fragilizar a ciência jurídica. É apto a atuar, assim, deturpando teorias sedimentadas, pulverizando a norma expressa, ferindo o princípio da autonomia dos poderes e, finalmente, formando uma jurisprudência cada vez menos uniforme.
Neste viés, o atual ministro do STF Luís Roberto Barroso (2009) traz críticas ao crescente ativismo judicial, quais sejam, o risco para a legitimidade democrática[32], o risco de politização da Justiça[33] e a limitação da capacidade institucional do Judiciário.[34]
Uma vez desnudado, afirma-se que o ativismo, quando bem empregado, não se constitui em bandeira para condenar com base em meras ilações e sob o manto do populismo midiático. Deste modo, em se atendo à concretização de princípios estritamente constitucionais, passa ao largo das constatações contrárias às fundamentadas no presente trabalho, prezando pela liberdade e afastando quaisquer de suas restrições arbitrárias.
3.5 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: deliberadamente cega?
O ministro Celso de Mello, segundo o disposto no informativo nº. 677 do Supremo Tribunal Federal, “No tocante ao crime de lavagem de dinheiro, observou possível sua configuração mediante dolo eventual, notadamente no que pertine ao caput do art. 1º da referida norma[35], e cujo reconhecimento apoiar-se-ia no denominado critério da teoria da cegueira deliberada ou da ignorância deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem prometida.”
No mesmo sentido deu prosseguimento no informativo n°. 684, STF, quando “[…] admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.”
Não obstante o emprego da teoria da cegueira deliberada, também conhecida como teoria do avestruz, ter se dado no concernente ao delito de lavagem de capitais[36] – e, portanto, não específica e expressamente sobre os crimes imputados a Dirceu – a sua aplicação por parte da Excelsa Corte no bojo da ação penal nº. 470 requer atenção e convoca uma análise correlata.
Restando-se evidenciada não apenas pelo aludido ministro, mas também nos votos de Carlos Ayres Britto[37], Rosa Weber[38] e Luiz Fux[39], a cegueira deliberada apresenta raízes em consolidada jurisprudência estadunidense, sendo lá designada como willful blindness ou ostrich instructions e tornando-se mundialmente reconhecida quando a Suprema Corte norte-americana julgou o caso In re Aimster Copyright Litigation.[40]
O objeto do aludido litígio versava sobre a violação de direitos autorais, em cuja decisão, o órgão julgador condenou o acusado e afastou a alegação de que seu sistema criptografado para a disponibilização de músicas o impedia de ter conhecimento específico de quais arquivos eram baixados. Entendendo que optou conscientemente pela indiferença diante dos fatos, foi rechaçado o argumento de sua ignorância quanto à violação autoral em tutela.
A teoria em comento encontra-se insculpida no Model Penal Code – MPC, em sua seção 2.02, elaborada pelo Instituto de Direito Americano – American Law Institute. Nesse sentido, sua livre tradução dispõe: “2.02 Requisitos gerais da culpabilidade. […] (7) Requisito do conhecimento satisfeito pelo conhecimento da alta probabilidade. Quando conhecedor da existência de um fato particular que seja elemento de uma ofensa, de modo que tal conhecimento se traduza na consciência da pessoa da alta probabilidade dessa existência, ao menos que ela realmente acredite que aquilo não exista.”
O intuito maior presente na teoria do avestruz é evitar que aqueles submersos propositadamente numa situação de desconhecimento diante de um delito sejam cobertos pelo manto da impunidade. Crimes envolvendo lavagem de dinheiro, violação de direitos autorais, tráfico de drogas e receptação são exemplos sobre os quais se debruça mais comumente a cegueira deliberada, como vetor para uma possível condenação.
Entrementes, até mesmo os Estados Unidos (HUSAK, 2010) já têm requerido, para a adoção de tal teoria, três requisitos básicos, conforme pontuou a ministra Rosa Weber à folha 1.273 do acórdão. O primeiro consiste na alta probabilidade de que o objeto envolvido tenha origem criminosa, ao passo que a segunda exigência reside na opção consciente de se manter inerte e alheio ao conhecimento desse aspecto criminoso. O terceiro requisito, por sua vez, é a existência da real possibilidade de conhecimento da verdade, a direcionar-se, portanto, a aqueles que dotam de meios para dimensionar suas ações.
Nesse contexto, objetiva-se a punição dos que se escondem sob o véu do desconhecimento do ato ilícito e, miticamente como avestruzes, enterram suas faces sob o solo, de modo a não se depararem com a prática delituosa que se apresenta. Assim, a teoria da cegueira deliberada ganhou força no Direito comparado e foi, inclusive no Brasil, vetor destinado a condenar José Elizomarte Fernandes Vieira e Francisco Dermival Fernandes Vieira no caso popularmente conhecido como Assalto ao Banco Central de Fortaleza/CE.
Em processo de nº. 2005.81.00.014586-0[41], os irmãos Fernandes Vieira, proprietários da revenda Brilhe Car, foram julgados por comercializarem onze veículos mediante contraprestação em cédulas de R$ 50,00, sendo seus destinatários finais os autores do mencionado furto de 164,7 milhões de reais ao Banco Central. O juiz da 11ª vara federal do Ceará, Danilo Fontenele Sampaio, os condenou a três anos de prisão, além de multa no montante de 380 mil reais.
Cumpre salientar, todavia, que a willful blindness doctrine alarga demasiadamente o espectro de subjetivismo penal, considerando suficiente a assunção do risco, em que pese não se almeje o resultado (dolo eventual), o que, frise-se, na maioria das situações é de dificílima constatação.
Em consequência, resta violado de modo atroz o princípio do in dubio pro reo[42], fazendo prevalecer a pretensão punitiva estatal em face da garantia constitucional à liberdade. Nesse diapasão, Jesús-María Silva Sánchez (1992, p. 249) já pondera que “[…] la lógica de la prevención, incluso corregida por la lógica utilitarista de la intervención mínima, sigue caminos distintos de los de la lógica de las garantías individuales.”
Destarte, a teoria do avestruz tende à responsabilização penal objetiva, condenando irrestritamente e independentemente de demonstração dolosa ou culposa – esta, por óbvio, se prevista a modalidade do delito mediante culpa. Em consonância com este fundamento, ocasionou-se a reforma da sentença proferida pelo juízo de primeiro grau (BRASIL. Tribunal Regional Federal – 5. Região. Apelação criminal nº. 5520-CE – 2005.81.00.014586-0. Relator: Desembargador Rogério Fialho Moreira. Fortaleza, 22 de outubro de 2008) e a absolvição dos citados réus do assalto ao BACEN, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, na apelação criminal nº. 5.520-CE.
Questões como a imposição de uma medida exata de consciência, a ser cobrada para a configuração do delito, tornam a teoria da cegueira deliberada perigosamente considerada, sendo-lhe direcionadas críticas bastante contundentes, compartilhadas até mesmo por juristas norte-americanos. Em livre tradução, Douglas Husak (2010, p. 208) assevera que: “Se pretendida como definição de ignorância deliberada, a respectiva previsão do Model Penal Code é defeituosa numa quantidade de aspectos. […] não são todos os casos em que o réu pareceria estar deliberadamente ignorante ao pedido de ‘conscientização da alta probabilidade’ de ‘existência de um fato particular’ […]”
Dentre os demais autores estadunidenses que apreciam desfavoravelmente a disseminada aplicação da teoria, Kaenel (1993) afirma que equalizá-la ao conhecimento real dá ensejo a grande problemática, uma vez que nem sempre estes planos são intercambiáveis, o que acaba por dilatar os limites da discricionariedade judicial e ferir o direito constitucional do devido processo legal.
Pondera-se, ainda, que na busca pelo conhecimento subjetivo do réu, o julgador é compelido inevitavelmente a imposições objetivas, aumentando sua esfera de poder, haja vista que o estado mental da cegueira deliberada possui características híbridas, produto não somente do conhecimento, mas também da inconsciência.
O dilema interpretativo que se monta para tornar-se possível a teoria em tela é bastante confuso e complexo, resultando numa cadeia de inferências duvidosas que, ainda segundo Kaenel (1993, p. 21-22), podem diluir o direito penal. Em vernáculo: “Juízes e jurados ficam sem escolha senão impor ao menos certo grau de objetividade no alcance da vontade do réu. Essa indeterminação permite uma interação solta entre os planos objetivo e subjetivo em que o buscador do fato possa encontrar ou não algum desejo de resultado ao caso dado.”
Feitas as devidas considerações acerca da teoria do avestruz, é imperioso estabelecer uma ponte com a teoria do domínio do fato, cerne do presente artigo. Para tanto, verifica-se que a adoção desta sistematização teórica pelos ministros do Supremo Tribunal Federal procedeu-se como se deliberadamente cega fosse. Isso porque, conforme explanado nas demais subseções deste artigo, o domínio – ora da vontade, por intermédio do aparato organizado de poder, ora funcional – atribuído a José Dirceu funcionou como uma fórmula mágica, capaz de configurar a autoria, ainda que num cenário de escassez probatória.
Por conseguinte, a teoria do domínio do fato, haja vista que fora aplicada em distorção dos moldes originais e submersamente ao que se entende por responsabilidade penal objetiva, tornou-se igualmente perigosa.[43] À vista disso, não há alternativas possíveis senão, sobre ela, se aplicar as mesmas críticas formuladas à teoria da cegueira deliberada.
Acoplando-se os casos de desconhecimento intencional dos elementos típicos ao conceito de dolo, se estaria a colocar num mesmo patamar o que Bottini (2013) aduz por comportamentos normativa e ontologicamente distintos. Seriam igualmente dolosas as condutas perpetradas por quem efetivamente desejava o resultado e aquelas em que sequer apresentou-se ciência do risco, uma vez que buscou óbices à desconstrução de sua ignorância. Diante disso, o mesmo autor observa que “Ainda que ambos sejam reprováveis, caracterizar os dois da mesma forma sobrecarrega o instituto do dolo e afeta a proporcionalidade na aplicação da norma penal.” (BOTTINI, 2013).
Com efeito, não apenas decisões pautadas na teoria do avestruz ou na equivocada utilização da teoria do domínio do fato, mas também diplomas vigentes no Brasil que possibilitem a aplicação de uma responsabilidade penal objetiva devem ser palco de críticas, como ocorre com a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e contra a Corrupção. A primeira foi ratificada junto à Secretaria Geral da ONU em 2004 e promulgada pelo decreto 5.015/2004, cujos artigos 5º e 6º prevêem a inferência do conhecimento e da intenção do agente mediante critérios objetivos. A segunda, por sua vez, foi ratificada em 2005 e promulgada pelo decreto 5.687/2006, dispondo o mesmo em seu artigo 28. Transcreve-se: “Artigo 28 – Conhecimento, intenção e propósito como elementos de um delito – O conhecimento, a intenção ou o propósito que se requerem como elementos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção poderão inferir-se de circunstâncias fáticas objetivas”.
Diante de todo o exposto, apesar da teoria da cegueira deliberada ser empregada ainda de forma bastante incipiente em solos pátrios, bem como inexistentes posicionamentos conclusivos do Superior Tribunal de Justiça e do próprio Supremo Tribunal Federal, cabe à academia submetê-la a aprofundadas discussões. Apenas assim se fará factível a necessidade de seu afastamento, tal qual é devido quando em se tratando da aplicação errônea da teoria do domínio do fato.
Ratifique-se, uma vez mais, que a teoria arquitetada por Claus Roxin, não tem o fito de condenar por meras presunções e nem mesmo o condão de afastar a imprescindibilidade da prova relativa à culpa. Não se trata, pois, de uma construção processual. Como bem esclarece Greco e Leite (2013), a teoria “[…] não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela.”
4 CONCLUSÃO
Isto posto, apresentam-se as seguintes considerações finais:
a) a teoria do domínio do fato consiste numa das expressões doutrinárias formuladas para a conceituação da autoria, sendo Hans Welzel quem primeiro assim a concebeu, integrando-a à doutrina da ação finalista. Contudo, foi Claus Roxin seu maior sistematizador nos formatos mais conhecidos na atualidade e cujas lições foram, recorrentemente, mencionadas durante o processo do mensalão;
b) nos ensinamentos de Roxin, o domínio do fato é observado sob três perspectivas distintas, quais sejam, o domínio da ação, o domínio da vontade e o domínio funcional do fato;
c) por domínio da ação entende-se a realização própria do tipo penal por aquele que age dolosa e livremente. Com o domínio da vontade, por sua vez, abarca-se o sujeito por detrás daquele que realiza propriamente a ação executiva, o denominado autor mediato. Por fim, detém o domínio funcional do fato quem, partilhando de um plano comum e em divisão de tarefas, domina o acontecer em cooperação com os demais coautores;
d) a autoria mediata pressupõe o domínio da vontade e se observa sob três vieses: do erro, da coação e do aparato organizado de poder. Por intermédio da coação, ao executor direto falta liberdade decisória, recaindo sobre o sujeito de trás o domínio do fato. Imergindo outrem numa situação de erro, por outro lado, o processo de formação de sua vontade resta viciado, de forma que o sujeito de trás apresenta maior grau de domínio sobre o acontecer delitivo. E, finalmente, tem-se o domínio da organização quando observado o poder do sujeito de trás no comando da execução criminosa, a ser realizada por sujeitos absolutamente responsáveis e inespecíficos (fungíveis), tendo em vista que é a própria estrutura de poder organizada (e dissociada do Direito) que lhe garante o resultado almejado. Disso, ressalte-se que, conforme o entendimento roxiniano, a configuração da autoria mediata não exclui a possibilidade de haver, concomitantemente, a autoria imediata do executor direto;
e) o domínio funcional do fato (coautoria) é reconhecido por Roxin apenas quanto à contribuição relevante dentro de um plano global voltada à fase executiva, ainda que não seja exteriorizadamente observada no momento e local da execução. Nos atos preparatórios não se observaria propriamente o domínio do acontecer causal, mas tão somente espécies de influência psicológica dos executores (participação);
f) o Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia contra os quarenta réus do mensalão, atribuiu a José Dirceu a posição de chefe do organograma delituoso, o classificando como detentor do domínio funcional do fato. Nessa construção, o Parquet parece entender que recai sobre aquele, efetivamente, o domínio da vontade e não a coautoria, o que, frise-se, é fundamentado essencialmente por sua mera condição de chefia, em plena desatenção aos ensinamentos de Roxin, para quem a ocupação de cargos de poder jamais poderá pressupor domínio do fato;
g) o STF condenou Dirceu pelos delitos de formação de quadrilha e corrupção ativa mediante a adoção da teoria do domínio do fato, repetindo, por quase a totalidade de seus ministros, a impropriedade sugerida da peça acusatória. Observou-se expressa confusão dos conceitos de domínio da vontade (autoria mediata) e domínio funcional (coautoria), bem como completa deturpação do que preconiza Roxin quanto à incorreção de se imputar a alguém determinado delito pelo simples ocupar de uma posição hierarquicamente superior;
h) foi a teoria do domínio do fato utilizada pelo STF como se possuísse as mesmas distorções apresentadas pela teoria do avestruz, de maneira a condenar deliberadamente e traçar um caminho perigoso pelas sinuosas curvas de uma responsabilização penal objetiva;
i) a teoria do domínio do fato não exime a necessidade de provas da ordem emanada, em se tratando de autoria mediata por domínio da organização, assim como da contribuição relevante de cada coautor na fase executiva, em se tratando de domínio funcional.
Nesse desiderato, pautando-se a acusação e o acórdão eminentemente no cargo de chefia ocupado por Dirceu e valendo-se ambas de arcabouço probatório raso e pouco consistente, como os depoimentos antagônicos de Roberto Jefferson[44], há de se entender pela insuficiência de provas em relação aos fatos imputados a José Dirceu, sendo de rigor concluir que, se o domínio pressupõe a existência fática, a teoria do domínio do fato não poderia ser aplicada e, como assim o foi, é de nítida desvirtuação.
Mesmo que ultrapassada a discussão acerca da insuficiência probatória, não seria possível jamais conferir a Dirceu a autoria delitiva por suposta observância do domínio da organização, haja vista que os demais integrantes do esquema criminoso eram sujeitos específicos, dotados de qualidades especiais e, portanto, ausente sua fungibilidade. Em derradeiro, somente se faria possível apostar na existência de domínio funcional do fato por José Dirceu, desde que – não se olvidando por um instante sequer – provada não apenas a materialidade, mas sua concreta autoria.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A cegueira deliberada no julgamento da Ação Penal 470. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-30/direito-defesa-cegueira-deliberada-julgamento-acao-penal-470#_ftn4_8778>. Acesso em: 2 nov. 2013.
Informações Sobre o Autor
Larissa Gomes Ucha
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Salvador UNIFACS.