O tempo (d)no processo: considerações sobre a sumarização da cognição no Processo Civil brasileiro sob o enfoque dos princípios institutivos do processo no Estado Democrático de Direito

Resumo: Por meio de uma abordagem jurídico-compreensiva e com apoio na experiência do direito italiano propõe uma reflexão sobre a importância do tempo adequado para a cognição no processo de conhecimento frente ao impacto das reformas legislativas implementadas para celeridade processual. Ao final conclui-se que as causas da demora da prestação jurisdicional no Brasil não estão na legislação processual em si mas na estrutura material deficitária do Poder Judiciário e no fenômeno da jurisdicionalização da cidadania. No entanto conclui-se que as medidas propostas para solução do problema estão prevalentemente focadas em alterações da lei processual em especial na supressão de importantes etapas do debate e do amadurecimento das questões trazidas pelas partes em desrespeito aos princípios democráticos que regem o processo supressões essas tendentes a retirar do processo de conhecimento sua aptidão para servir de instrumento de legitimação do provimento jurisdicional.

Palavras-chave: Processo Civil. Tempo. Celeridade Processual. Reformas Legislativas. Estado Democrático de Direito.

Abstract: Throughout a comprehensive approach and based on the experience of Italian Law System this article proposes a reflection on the importance of adequate time for cognition in civil process against the impact of legislative reforms implemented to speed legal procedures. At the end it is concluded that the causes of delays in adjudication in Brazil are not focused in law procedures itself but in the judiciarys deficient material structure and the phenomenon of "citizenship jurisdictionalization" in Brazil. However the methods used to solve the problem are predominantly focused on law changes in particular on suppression of important steps in maturation of legal debate in the process which is contrary to democratic principles that rule civil process and may eliminate its ability to serve as an instrument to legitimize the jurisdictional provision.

Keywords: Civil Procedure. Time. Procedural speed. Law Reforms. Democratic Law State.

Sumário: Introdução; 1 Processo e procedimento no Estado Democrático de Direito; 2 Tempo (d)no processo; 3 Importância do respeito ao tempo do processo para uma cognição constitucionalmente adequada; 4 Sumarização da cognição em tensão com o papel legitimador do processo para o provimento jurisdicional; 5 Tendências de sumarização da cognição nas reformas do Código de Processo Civil o Art. 285-A; 6 Celeridade como princípio na CR/88 e no Direito Comunitário Europeu A Calendarização do processo na Itália; Conclusão; Referências

Introdução

O presente artigo visa a uma reflexão sobre a importância do tempo adequado no processo de conhecimento, contrastando-o com o impacto das reformas legislativas implementadas para uma maior celeridade processual sobre os princípios institutivos do processo[1].

1 Processo e procedimento no Estado Democrático de Direito

De todas as teorias concebidas para conceituar o processo a que prevalece e congrega o maior número de adeptos é aquela que o caracteriza como relação jurídica processual[2].

Ocorre que a aceitação do processo como relação jurídica implica a adoção de suas consequências lógicas, quais sejam: as partes no processo seriam sujeitos de direitos/poderes e de suas correspondentes obrigações/sujeições. O conceito tradicional de direito subjetivo é o poder de exigir condutas de outrem, as quais, se não cumpridas de forma espontânea, podem ser obtidas coercitivamente pelo próprio titular do direito (em casos excepcionais) ou, via de regra, por meio do Poder Judiciário (direito de ação).

No entanto, a consequência mais perigosa dessa opção teórica é a posição de supremacia epistemológica em que o juiz é colocado no processo, em detrimento das outras partes processuais.

Segundo Madeira (2009, p.105-111), nessa posição, o juiz desfrutaria de uma cognição privilegiada para conhecimento e solução do conflito, em decorrência de supostas qualidades intelectuais e psíquicas, superiores às das outras partes e, de resto, de toda a comunidade, as quais lhe permitiriam a apreensão, a decodificação e a aplicação do “justo”, do “correto”, do “adequado”, valores esses hauridos de uma sociedade contemporânea, que, sendo complexa e acêntrica, não mais compartilharia valores absolutos.

Tal situação criaria um “espaço do soberano”, conceituado por Madeira como o “espaço discursivo indemarcado e não-fiscalizável” (2009, p.24), o que é incompatível com o paradigma[3] de Estado Democrático de Direito, na acepção oferecida por aquele autor, citando Rosemiro Pereira Leal como “espacialidade jurídica aberta por uma auto-oferta normativa de fiscalidade procedimental a todos”, não se propondo a uma inclusão social pela vontade de uma autoridade inexplicavelmente sensível às desigualdades e às diferenças.”

Portanto, a teoria do processo como relação jurídica processual é incompatível com um dos marcos teóricos deste trabalho, o qual concebe o processo como “instituição constitucionalizada, formada pela conjunção dos princípios jurídicos da ampla defesa, isonomia, contraditório, visando a assegurar “o exercício, reconhecimento ou negação de direitos alegados e a sua definição pelos provimentos nas esferas Judiciária, Legislativa e Administrativa (…) O Processo (…) constitui referente lógico-vinculante de exercício, aplicação e interpretação dos direitos assegurados no texto legal, eis que possibilita a “estabilização do princípio do discurso pela demarcação teórica dos critérios da formação da vontade jurídica” (MADEIRA, 2009, p.38-39)

2 Tempo (d)no processo

Tanto para a Física, quanto para a Filosofia[4], o tempo não é entidade absoluta e imutável, imune a influências externas e a diferentes percepções. Por outro lado, ele é inafastável e o seu fluir deixa marca indelével em tudo. Portanto, o processo – como qualquer outra realidade – não pode ser indiferente ao tempo.

A tese central deste trabalho é a existência de dois tempos distintos: o tempo no processo – “dentro” do processo, que será chamado tempo intraprocessual; e o tempo do processo – “fora” do processo, doravante chamado tempo extraprocessual.

O tempo intraprocessual é a dimensão necessária e suficiente ao debate, à prova e à cognição[5] adequada, plena e exauriente, do mérito no processo de conhecimento. Por outro lado, o tempo extraprocessual, no sentido de tempo inautêntico[6], é a dimensão da espera da sociedade contemporânea – tecnológica, de massas e consumista[7] – pela prestação jurisdicional[8].

Rosemiro Pereira Leal (2009 p.288-289) também destaca a existência de duas dimensões de tempo processual: a cronológica-procedimental e a teórica “O ponto temático de processo e tempo suplica (…) mediação linguistico-discursiva pela teoria do procedimento processualizado e, não, (…) pelo tempo de uma retórica celeridade-garantista por um prodigioso pensar jurisdicional (…). A renúncia ao tempo cronológico-procedimental não afeta a teoria do direito democrático, porquanto mesmo as transações e desistências de direitos pressupõem o estar permanente no thema linguístico-discursivo (tempo teórico) do devir processualizado” (destaques do original).

Nos próximos tópicos, tentar-se-á provar que a diferença de percepção desses dois tempos (tempo intra e extraprocessual) vem causando uma pressão por resultados da sociedade sobre a função estatal legislativa, que resulta na série de reformas na lei processual tendentes à sumarização da cognição no processo de conhecimento.

3 Importância do respeito ao tempo no processo para uma cognição constitucionalmente adequada

A teoria neoinstitucionalista do processo compreende o processo como a articulação dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, estruturantes do discurso democrático[9]. Sua adoção tem como consequência o reconhecimento da importância da maximização das oportunidades de argumentação e produção probatória durante o processo. Portanto, para essa teoria, uma decisão não deve ser necessariamente rápida – rapidez entendida aqui no sentido de medida do tempo inautêntico, mas deve necessariamente ser legítima.

Para André Cordeiro Leal[10], ao juiz caberia elaborar o texto da decisão (ele seria o escriturário da decisão), mas ele deverá fundamentar-se na consideração de todos os argumentos e provas produzidos pelas partes. Daí porque decisão não é só do juiz, mas também das partes. Portanto, é na linguagem compartilhada do debate processual, que se afasta a violência no Direito.

A violência no Direito é a desconsideração da alteridade crítica; é a opressão instrumentalizada pela técnica/tecnologia[11] que impede a criação da consciência crítica indispensável à concretização da cidadania. A violência, portanto, é o “não querer saber do outro”, o que seria fortemente incrementado pela sumarização da cognição processual, se realizada em desrespeito aos princípios institutivos do processo.

A definição de Freitas e Freitas (2009, p.679) de um tempo razoável do processo vem ao encontro das teses expostas acima. Confira-se: “Compreende-se tempo razoável à duração do processo, como aquele em que não se tolera dilações indevidas e supressões das garantias constitucionais em prol de uma aceleração imposta sob justificativas antidemocráticas, geradoras de insegurança jurídica, em prejuízo ao real entendimento de tempo razoável, qual seja, o dever de prestação do serviço público jurisdicional pelo Estado a partir da garantia de um processo cujos atos sejam realizados nos prazos fixados nas normas de direito processual pelo próprio Estado.”

4 Sumarização da cognição em tensão com o papel legitimador do processo para o provimento jurisdicional

A vivência pautada no tempo inautêntico pela sociedade tecnológica contemporânea tem influência na produção dos saberes. Eles deixam de visar ao esclarecimento, para tornarem-se meios de produção de bens consumíveis ou, até mesmo, instrumentos de dominação.

Com relação ao saber jurídico (dogmática jurídica), Ferraz Júnior destaca a tensão da pressa tecnológica sobre o tempo razoável para a produção do conhecimento. O tempo, sob a ótica da sociedade de consumo, é visto como um mal a ser neutralizado, mesmo que tal ideologia não esteja explícita no discurso “O saber dogmático contemporâneo, como tecnologia em princípio semelhante às tecnologias industriais, é um saber em que a influência da visão econômica (capitalista) das coisas é bastante visível. A idéia do cálculo em termos de relação custo/benefício está presente no saber jurídico-dogmático da atualidade. Os conflitos têm de ser resolvidos juridicamente com o menor índice possível de perturbação social: eis uma espécie de premissa oculta na maioria dos raciocínios dos doutrinadores” (destaque no original) (2007 p.86)

Sobre os efeitos negativos da pressa tecnológica no discurso e na prática processuais, confira-se, por todos, as incisivas críticas expostas por Freitas e Freitas: “O subterfúgio das discussões que têm em seu centro o tempo como responsável pela lentidão processual, torna-se evidente. Num estratagema falho, muitas vezes fomentador de reformas superficiais, distanciam-se da realidade do problema, dificultando-lhe a solução. A morosidade não estaria ligada ao processo (ou procedimento), mas sim à ineficaz, e muitas vezes desestruturada, prestação da atividade jurisdicional monopolizada pelo Estado-juiz.” (2009 p.678)

5 Tendências de sumarização da cognição nas reformas do Código de Processo Civil – o Art. 285-A

De todas as reformas legislativas do Processo Civil tendentes à sumarização da cognição no processo de conhecimento a mais marcante é, sem dúvidas, o acréscimo do Art. 285-A ao Código de Processo Civil.

Essa é a principal razão do enfoque do presente trabalho estar na análise desse dispositivo. Diz o texto: “Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. (Incluído pela Lei nº 11.277, de 2006)” “§ 1o Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. (Incluído pela Lei nº 11.277, de 2006) § 2o Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso. (Incluído pela Lei nº 11.277, de 2006)

O dispositivo introduzido pela Lei nº 11.277, de 7/2/2006, cria uma série de medidas questionáveis em sua constitucionalidade[12].

No início do comando do artigo, exclui-se liminarmente o direito de ação/defesa do réu, impossibilitando-o de, por exemplo, contestar, reconvir, ou, até mesmo (por que não?), submeter-se à pretensão do autor. Sob o argumento da alta produtividade da função jurisdicional, trata-se o réu como sujeito de capacidade diminuída, tolhendo-o, portanto, do direito de “estar em juízo” – um dos mais importantes atributos decorrentes da sua condição de cidadão.

Ainda sobre o cerceamento do direito de ação de réu, ressalte-se que o permissivo do § 2º não supre esse cerceamento, tendo em vista que, em segundo grau de jurisdição, apesar de a cognição poder ser, em tese, plena, a produção de provas é limitada.

No comando do artigo, positivou-se a prática forense da “sentença clonada”. Essa prática, que deveria ser banida do mundo jurídico, encontra-se hoje albergada pela lei, o que é lamentável. Em países verdadeiramente democráticos, como, por exemplo, a República Federativa da Alemanha, é inadmissível a sentença que não considere em sua fundamentação todas as particularidades do caso concreto e todos os argumentos produzidos pelas partes no processo, o que implica, é claro, haver partes processuais – sem autor e réu, por óbvio, não há partes processuais.

Infelizmente, a sumarização de que ora se trata, a que é feita às custas da qualidade da prestação jurisdicional e em desrespeito aos princípios institutivos do processo, não ficou limitada à lei processual.

Hoje, a pressa tecnológica também já manifesta seus efeitos deletérios na jurisprudência da mais alta corte do país, aquela à qual incumbe a guarda da Constituição da República.

Para efeito meramente ilustrativo, segue transcrição de questão de ordem em julgado recente do Supremo Tribunal Federal, no qual os princípios da confiança, da publicidade, da não surpresa e do tempo adequado cedem ao argumento da celeridade “(…) Preliminarmente, o Min. Marco Aurélio apresentou questão de ordem no sentido de que seria preciso observar o interregno de 48h entre a inclusão do processo na ‘pauta’ anunciada no sítio do STF e a sessão de julgamento, no que fora acompanhado pelo Min. Luiz Fux. Reputavam surpreender o litigante a inserção de processo na aludida ‘pauta’ na véspera da respectiva sessão, porque prevaleceria no Supremo prática distinta. O Tribunal, no entanto, deliberou que (…) a criação de mecanismos adicionais de exigências causaria maiores dificuldades ao que já estabelecido. Ponderou, também, a extrema sensibilidade da sistemática da repercussão geral e que a credibilidade desta dependeria fundamentalmente de haver a pertinente análise em tempo adequado. (…) o Plenário não poderia ficar subtraído de sua autoridade de julgar temas para os quais habilitado por conta de divulgação informativa no sítio da internet. (…) Tendo em conta esses fundamentos, rejeitou-se, por maioria, a questão de ordem e iniciou-se o exame do feito.” (RE 650851 QO/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 14.12.2011) (destaques nossos)

Até mesmo o parecer ministerial, obrigatório em habeas corpus, foi dispensado pelo Supremo Tribunal Federal, em nome da celeridade processual “POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO DA AÇÃO DE ‘HABEAS CORPUS’.- Mostra-se regimentalmente viável, no Supremo Tribunal Federal, o julgamento imediato, monocrático ou colegiado, da ação de ‘habeas corpus’, independentemente de parecer do Ministério Público, sempre que a controvérsia versar matéria objeto de jurisprudência prevalecente no âmbito desta Suprema Corte. Emenda Regimental nº 30/2009. Aplicabilidade, ao caso, dessa orientação.” (HC 109.544-MC/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO) (destaques nossos)

6 Celeridade como princípio na CR/88 e no Direito Comunitário Europeu – a “Calendarização” do processo na Itália

A celeridade na prestação jurisdicional, hoje positivada no Art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), a rigor, já decorria dos princípios constitucionais originários, mas a reverência do brasileiro pelo texto escrito, concreto, palpável exigiu do poder constituinte derivado mais um “enxerto” em um texto constitucional já extremamente prolixo.

Mas, existiria alternativa possível ao modelo de busca de celeridade processual, que não por meio da sumarização da cognição? Acredita-se que sim.

Nassif (2010) relata a experiência do direito comunitário europeu, mantendo seu foco na Itália, após a promulgação da Lei n.º 89, de 24/3/2001, conhecida como “Lei Pinto” (de autoria do deputado Michele Pinto).

Existem duas inovações da Lei Pinto que mereceram especial atenção da autora. A primeira delas prevê o direito à indenização dos danos causados pela demora na prestação jurisdicional. Segundo Nassif (2010, p.46), de 2001 a 2006, o Estado italiano pagou 41,5 milhões de euros em indenizações pela demora na prestação jurisdicional, o que, ainda segundo a autora, tem pressionado o Estado italiano a investir na organização do poder judiciário local. A segunda e mais intrigante inovação é a que se chamou de “calendarização do processo”. Trata-se da obrigação de o juiz fixar um calendário programático para as audiências.

Nassif afirma que a calendarização “consiste no ponto crucial para um dos elementos de verificação sobre se a duração do processo foi razoável ou não, para efeito de responsabilização do Estado” (2010, p. 53).

A calendarização “consiste basicamente na necessidade de o juiz, quando admitir os pedidos de instrução do processo, fixar o tempo deles, indicando o calendário das audiências, as quais não poderão ser postergadas, exceto por gravíssimos motivos.” (2010, p. 54)

A experiência da Itália exemplifica como é possível haver mecanismos de controle da demora excessiva do processo sem que seja necessária a sumarização da cognição. Seja estabelecendo severas multas ao Estado pela demora na prestação jurisdicional – o que faz com que resulte ser mais econômico ao poder público investir na estrutura do Poder Judiciário do que indenizar o jurisdicionado, seja por meio da definição de marcos temporais para a realização de atos processuais pelo juiz da causa.

No tópico anterior, tomou-se o Art. 285-A do Código de Processo Civil brasileiro como referência para uma reflexão sobre a forma como a celeridade processual vem sendo implementada no Brasil. No presente, narrou-se a experiência da Itália no controle do tempo adequado da prestação jurisdicional.

Entende-se que o contraste fundamental entre os dois modelos encontra-se na diferença do nível de maturidade das instituições democráticas nos dois países. Na Itália, existe uma clareza maior da importância do processo como mecanismo de legitimação e de controle popular das funções públicas. No Brasil, ao contrário, entende-se que não houve ainda uma assimilação suficiente de tal papel.

O modelo italiano de controle do tempo do processo visa a sanar as causas da demora, implementando reformas de melhoria de estrutura material para o poder judiciário ser mais eficiente e determinando ao juiz uma autolimitação temporal da atuação judicial no processo. Ao que tudo indica, na Itália, o modelo democrático de processo resta incólume.

No Brasil, ao contrário, sumariza-se a cognição em desrespeito aos princípios institutivos do processo. Da forma com que estão sendo implementadas as reformas legislativas no Brasil, fica claro que o foco está nas consequências, e não nas causas do problema da demora na prestação jurisdicional[13].

Conclusão

Na linha de defesa do presente trabalho, as causas da demora da prestação jurisdicional no Brasil não estão na legislação processual, mas na estrutura material deficitária do Poder Judiciário e na jurisdicionalização da cidadania[14], que sobrecarrega o Poder Judiciário com uma litigiosidade não resolvida por outras instâncias sociais ou estatais. No entanto, constatou-se que as medidas implementadas para solução desse problema estão prevalentemente focadas nas consequências do problema, por meio de alterações da lei, com a supressão de importantes etapas processuais, em desrespeito aos princípios institutivos do processo e tendentes a retirar dele sua aptidão de servir de instrumento de legitimação do provimento jurisdicional.

 

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Notas:
 
[1] A abordagem metodológica deste trabalho será jurídico-compreensiva, ou jurídico-interpretativa, ou seja, aquela que se utiliza do procedimento analítico de decomposição de um problema jurídico em seus diversos aspectos, relações e níveis, mas que não se limita à mera descrição, por envolver opções teóricas e juízos valorativos por parte do pesquisador/autor. Como fontes de informação serão utilizadas preponderantemente fontes formais (diretas), complementadas por fontes informais (indiretas), ambas em abordagem secundária (GUSTIN; DIAS, 2006, p.29-31). O trabalho pauta-se por dois marcos teóricos. O primeiro deles é o conceito fazzalariano de processo: espécie do gênero procedimento, no sentido de atividade preparatória de um ato final imperativo – o provimento estatal. A marca especificadora do processo em relação ao seu gênero (procedimento) é a oportunização de participação simétrica e em contraditório às partes interessadas na construção do provimento (GONÇALVES, 1992, p.68). O segundo marco teórico é o conceito de processo na teoria neoinstitucionalista do processo, que o conceitua como complexo normativo constitucionalizado e garantidor dos direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia das partes e também como mecanismo de controle e de legitimação da atividade estatal (André Cordeiro LEAL, 2002, p.88-90). Definidos os marcos teóricos do presente trabalho, é necessário mencionar a existência de outra corrente doutrinária, atualmente majoritária, que concebe o processo como a relação jurídica estabelecida entre as partes e o juiz, tendo, como consequência, a existência de posições de direito/poder às quais correspondem posições de dever/sujeição, quer seja nas relações estabelecidas entre as partes, quer seja – mas principalmente – nas relações estabelecidas entre as partes e o juiz. Sob um outro enfoque, essa mesma corrente doutrinária defende que o processo é um instrumento à disposição do juiz para a realização da jurisdição. Como instrumento, o processo deve visar à concretização de determinados fins políticos, econômicos, éticos, sociológicos ou pedagógicos, que estão além do Direito, sendo, portanto, metajurídicos (DINAMARCO, 2009). Para essa corrente doutrinária, o procedimento decairia de seu status de atividade técnica preparatória e legitimadora do provimento para ser apenas “a soma dos atos do processo, vistos pelo aspecto de sua interligação e combinação e de sua unidade teleológica” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2001, p.321), portanto mero rito.
Destaca-se que essa vertente – aqui usada como estado da arte – não se presta a servir de parâmetro teórico do presente trabalho por se contrapor a uma acepção democrática de processo como instrumento legitimador das decisões judiciais. Ressalte-se que esse antagonismo não decorre simplesmente do fato de se buscar atingir objetivos metajurídicos com o processo (instrumentalidade do processo), tendo em vista que, não só o juiz, mas as partes também podem agir no processo com objetivos estratégicos (NUNES, 2008). O problema da teoria instrumentalista jaz na centralidade conferida ao juiz no ato de cognição e no não oferecimento de estruturas aptas a possibilitar a construção compartilhada, democrática e isonômica do provimento.

[2] Esse é o entendimento de Cintra, Grinover e Dinamarco (2001, p.282).

[3] O conceito de paradigma adotado neste trabalho é o de matriz kuhniana. De acordo com Coutrim (2006), o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), físico e filósofo da ciência, desenvolveu sua teoria acerca da história da ciência entendendo-a, não como um processo linear e evolutivo, mas como sucessão de paradigmas que se confrontam entre si. Paradigma seria, então, conjunto de normas e tradições dentro do qual a ciência se move durante um determinado período e em certo contexto cultural. Em sua obra “A estrutura das revoluções científicas”, Khun sustenta a tese de que a ciência desenvolve-se durante certo tempo a partir da aceitação, por parte da comunidade científica, de um conjunto de teses, pressupostos e categorias que formam o seu paradigma. Em determinado momento, porém, o paradigma altera-se, provocando uma revolução que abre caminho para um novo tipo de desenvolvimento científico. Segundo esse autor, ocorre uma reorientação da visão científica, na qual os elementos de um problema são inseridos em novas relações.

[4] HAWKING e MLODINOW (2005) relatam que, de Aristóteles a Isaac Newton, o tempo foi considerado uma entidade absoluta. Porém, no início do século XX a noção de tempo como algo absoluto e invariável ruiu sob os auspícios da teoria geral da relatividade, defendida primeiramente por Albert Eistein em 1915. Para essa teoria, tempo não pode ser tomado de forma separada do espaço. Ao contrário, deve ser combinado com ele, numa entidade chamada espaço-tempo que influenciará e sofrerá influência de duas outras realidades físicas, quais sejam: a velocidade/aceleração e a gravidade. Em decorrência dessa teoria, é possível concluir que tempo pode ser acelerado ou retardado de acordo com a influência da velocidade/aceleração e da gravidade sobre ele, num mecanismo descrito como “curvatura do espaço-tempo”, de modo que a percepção da sua fluência variará de observador para observador, a depender das condições da velocidade/aceleração e/ou do campo gravitacional em que se encontrem. Enfim, para a teoria da relatividade, até hoje não refutada no plano supra-atômico, o tempo é relativo e cada indivíduo pode ter sua própria medida de tempo, a depender de onde esteja (de sua posição em um campo gravitacional) ou de como esteja se movendo (de sua velocidade e aceleração). Também no plano filosófico, o tempo pode ser considerado relativo, na medida da individualidade humana. O filósofo Martin Heidegger dedicou parte de sua obra à compreensão do tempo. Segundo Cruz (2011), pela teoria heideggeriana, o tempo não é originalmente uma entidade fora do homem; não é, tão pouco, algo interior ao homem. O tempo é o seu poder-ser, ou seja, o horizonte das suas possibilidades como ser humano. A teoria heideggeriana afirma existirem duas acepções de tempo: o tempo autêntico e o tempo inautêntico. O que se faz com o tempo, o que é ter tempo e o que é viver o tempo dependerão da acepção em que ele é considerado. O tempo autêntico é o viver no horizonte das possibilidades do ser. Nesse sentido, a dinâmica da vida não é demarcada pelo presente, pelo agora ou pela sucessão de instantes, mas pelo que é possível ao homem realizar. Na acepção do tempo autêntico, viver o tempo ou o ter tempo significam realizar constantemente o que pode completar o ser enquanto humano. Por outro lado, o tempo inautêntico configura-se no momento em que o homem abandona as suas possibilidades e distancia-se de seu poder-ser mais próprio. O tempo inautêntico, esse sim, é calculado em horas, dias, meses e anos – demarcações técnicas da vida – sendo o tempo dimensionador de perdas.

[5] Kazuo Watanabe, citado por Madeira (2009, p.121), distingue dois planos de cognição – o horizontal e o vertical. O plano horizontal diz respeito à extensão ou amplitude da apreciação do trinômio condições da ação-pressupostos processuais-mérito da causa, o que resultaria numa cognição plena ou numa cognição limitada. O vertical, por outro lado, refere-se à profundidade da análise desses elementos, distinguindo-se, portanto, uma cognição sumária de uma cognição exauriente (destaques do original).

[6] Vide definição de tempo inautêntico na parte final da nota 5.

[7] Ferraz Júnior desfere crítica severa à sociedade de consumo. Para o autor, na lógica da sociedade de consumo, tudo o que não serve ao processo vital é destituído de significado. Até o pensamento torna-se mero ato de prever consequências e só nessa medida é valorizado. O Direito, nessa lógica de consumo, torna-se instrumento de atuação, de controle, de planejamento e a ciência jurídica um mero “saber tecnológico” (2007, p.27-28).

[8] Nesse ponto, é relevante que se destaque o fenômeno da judicialização da cidadania, típico de países como o Brasil, cujo regime democrático é incipiente e no qual se implementou um modelo político neoliberal sem se passar antes por um estágio verdadeiramente social. Segundo Nunes, “Sabe-se que a defesa do reforço do poder judicial visa permitir que os cidadãos busquem respaldo do Estado-juiz na tentativa de obter direitos não garantidos pelo restante do aparato social devido à inoperância da administração pública.” (2008, p.166). Ou seja, a conjuntura política nacional faz com que uma litigiosidade que não encontra pacificação suficiente em outras esferas, estatais ou não-estatais, sejam encaminhadas para solução no Poder Judiciário, o que tem causado um crescimento exponencial do número de ações ajuizadas a cada ano.

[9] Para a teoria neoinstitucionalista do processo, são instituições processuais: a) o contraditório, no sentido da produção de argumentos e contra-argumentos considerados racionalmente pela decisão; b) a ampla defesa, ou seja, o oportunizar ao acusado o acesso aos meios de provas e disponibilizar-lhe o “tempo do pensar”; c) a isonomia, que se concretiza na igualdade dos tempos oferecidos ao “pensar”/ “argumentar” no processo.

[10] Informações verbais extraídas das aulas ministradas por André Cordeiro Leal na disciplina Teoria Geral do Processo do curso de Pós-Graduação em Processo do Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC/PUC Minas – Oferta 28, entre 15/9/2010 e 9/2/2011.

[11] Segundo André Cordeiro Leal (2010/2011), técnica é o fazer ordenado, a aplicação de meios para obtenção de resultados úteis. Ciência, por outro lado, é o saber ordenado, é atividade produtora de “esclarecimento”. No Direito, o objetivo da ciência é ampliar o âmbito de compreensão das palavras, é esclarecer o Direito para que ele não sirva de técnica de dominação, de opressão e de exclusão da alteridade. O saber crítico decorrente da ciência serve a explicitar/esclarecer a violência que o Direito pratica ou permite. As ideias defendidas por André Cordeiro Leal são reforçadas por Ferraz Júnior, que, por sua vez, compreende o Direito como “um fenômeno decisório, um instrumento do poder” e a “ciência jurídica como uma tecnologia” (2007, p.22).

[12] Cite-se, como exemplo, a série de trabalhos produzidos recentemente por especialistas em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC/PUC Minas, citados nas referências do presente artigo.

[13] Por vias distintas e apontando outras causas, o jurista Antônio Cláudio da Costa Machado, em entrevista concedida à Revista Veja (circulação em 30/11/2011), chega às mesmas conclusões do presente trabalho. É interessante notar que o debate sobre quais seriam os mecanismos mais adequados para tratar o problema tempo do processo no Brasil está deixando os círculos acadêmicos para serem expostos nas mídias de massas. É salutar para a cidadania que assim o seja.

[14] Os efeitos da jurisdicionalização da cidadania são ainda mais marcantes nos Juizados Especiais. Santos (2009), com base na experiência dos Juizados Especiais Federais de Belo Horizonte, relata alguns dos seus efeitos negativos: a falta de assistência técnica adequada resulta no ajuizamento de ações ineptas; multiplicam-se os pedidos de tutela antecipada de caráter assistencial; a maior parte das demandas tem o próprio Estado como demandado; a miséria social é fator de pressão psicológica sobre os juízes, que são compelidos a concederem tutelas antecipadas de forma prematura em desrespeitos aos princípios do devido processo legal; o contexto implica a tendência de o julgador em decidir “por equidade”, agindo como “pacificador social” ou “salvador da pátria”. Segundo a autora, tais circunstâncias resultam numa indesejável situação de protagonismo judicial.


Informações Sobre o Autor

Maria Ester Alcantara de Souza

Especialista em Direito Público e em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Analista Processual do Ministério Público da União


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