Resumo: o preso tem o direito/dever de exercer atividade laboral no período em que está privado da liberdade de locomoção. Contudo, a exclusão deste trabalhador das regras protetivas da Consolidação das Leis do Trabalho e as baixas remunerações concedidas demonstram-se como indevidas restrições ao patrimônio jurídico de tais indivíduos. A presente faina contenta-se com o levantamento de questões acerca do atual tratamento dispensado aos obreiros carcerários em cotejo com a sua (in)constitucionalidade e frontal desrespeito aos direitos fundamentais de segunda geração.
Palavras-chave: trabalhador carcerário; exploração; inconstitucionalidade.
Abstract: the prisoner has the right / duty to perform work activities in the period in which it is deprived of freedom of movement. However, the exclusion of worker protective rules of the Consolidation of Labor Laws and the low pay given to demonstrate how to undue legal restrictions on the assets of such individuals. This toil is satisfied with raising questions about the current treatment of prison staff by comparison to their (un) constitutionality and front disregard the fundamental rights of the second generation.
Keywords: prison labor; exploration; unconstitutionality
Sumário: 1. Aspectos Introdutórios 2. Remuneração/ Contraprestação Pecuniária 3. Direitos/Deveres do Preso e a Imposição de Trabalho Forçado 4. Conclusões. Referências bibliográficas.
1. Aspectos Introdutórios
Em decorrência do cometimento de um crime e o desenvolvimento do processo penal, o cidadão pode vir a ter a sua liberdade de locomoção restringida em função de sentença transitada em julgado, como forma de prevenção e/ou retribuição[1] a ser feita pelo injusto mal cometido, podendo ser submetido ao cumprimento da sanção penal em um regime fechado, semi-aberto ou aberto. Para os objetivos da presente pesquisa, terá importância principal a análise do tratamento dispensado àquele que foi imposta uma pena de reclusão e que esteja cumprindo-a em estabelecimento penal fechado. É possível que a um condenado venha a ser imposta uma pena em regime aberto ou semiaberto, contudo, não convém, ab initio, ao interesses deste trabalho analisar tais possibilidades.
Em decorrência desta privação da liberdade de ir, vir e ficar, tem sido amplamente difundido o entendimento de que o trabalho não é somente um direito do indivíduo que se encontra privado de tal direito por conta do cometimento de uma conduta delituosa, mas, também, um dever a ser cumprido pelo preso. O uso de mão de obra carcerária não se encontra vedado, sendo, muito pelo contrário, estimulado pelo atual ordenamento jurídico pátrio, uma vez que se fazem presentes alguns dispositivos em que se pode constatar e corroborar o quanto afirmado.
Todavia, é ululante o intento não só expiatório e retributivo dessas medidas impositivas de “trabalho forçado”[2] que têm sido coativamente impostas aos condenados de camada social menos abastada[3]; é facilmente perceptível a presença de uma insustentável situação de exploração onde a força laboral desses indivíduos tem sido alvo de uso fácil e com baixa remuneração de empresas que se instalam em presídios e penitenciárias.
Conclusão outra não há de que tal situação finda por ferir de morte o princípio da proteção que, segundo Maurício Godinho Delgado[4], é “uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro –, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.”. Desta forma, o indivíduo, em tese, merecedor de uma maior proteção e tutela, posto já esteja com sua esfera de direitos restringida, tem recebido um tratamento muito mais gravoso e menos protetivo do que aquele que tem intocada a liberdade de locomoção, sendo uma diferenciação que não poderia ou deveria ser permitida, diante de normas constitucionais e celetistas positivadas.
Por fim, será alvo de severas críticas neste artigo a incompatibilidade material de determinados dispositivos normativos presentes tanto no Código Penal quanto na Lei de Execução Penal; além disso, evidenciar-se-á o desvirtuamento interpretativo que foi feito ao artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal, demonstrando que há, hodiernamente, uma forma velada e exploratória de trabalho forçado, disfarçada em um sistema remuneratório aquém do que é assegurado ao trabalhador externo aos sistemas penitenciários. À guisa de conclusão, haverá a análise da desarrazoada exclusão do obreiro carcerário do sistema protetivo da Consolidação das Leis do Trabalho. É o que se passa a explorar a seguir.
2. Remuneração/Contraprestação pecuniária
Tendo em vista o labor prestado pelo encarcerado e a evidente constatação da aplicabilidade do texto normativo da Consolidação das Leis do Trabalho aos indivíduos presos, será demonstrado que o dispositivo da Lei de Execução Penal (art. 28, § 2º[5]) não deve ser aplicado, posto que seja inconstitucional. Desta forma, resta claro que devem gozar os obreiros presos de alguns dos direitos do trabalhador comum, inclusive assegurando a eles um patamar salarial mínimo imperativo.
Impõe-se ao condenado a obrigação de laborar para que possa fazer jus a alguns benefícios carcerários, mas não se tem como considerar consentâneo com mandamentos constitucionais a exclusão do trabalhador carcerário do regime protetivo previsto na Consolidação das Leis do Trabalho. Não há motivos para que o indivíduo que cometeu uma conduta prevista em lei como crime seja excluído de um sistema protetivo tão benéfico e importante ao cidadão. Não estaria sendo uma indevida restrição posta a tal sujeito? O sujeito já se encontra encarcerado, privado de sua liberdade de locomoção, “obrigado” a laborar e ainda é excluído do sistema protetivo da CLT[6]. Não seria isso mais do que uma dupla, mas sim uma tripla apenação à sua conduta típica, ilícita e culpável praticada?
Um preso, por exemplo, que labore em um estabelecimento carcerário produzindo bolas de futebol, por que motivo não se encontra submisso aos mandamentos protetivos indisponíveis e irrenunciáveis previsto na Consolidação das Leis do Trabalho? Basta lembrar que “empregado é toda pessoa natural que contrate, tácita ou expressamente, a prestação de seus serviços a um tomador, a estes efetuados com pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade e subordinação”[7].
Diante desta conceituação, percebe-se que o §2º, do artigo 28, da Lei de Execução Penal, traz uma restrição à liberdade de locomoção que não deve encontrar respaldo doutrinário nem constitucional, estando completamente descolado da realidade circundante quando confrontado com o atual Estado Democrático e Constitucional de Direito que se faz instaurado. Sobre o tema, é de grande relevância o quanto asseverado por Figueiredo Dias[8]:
“[…] ao Estado cumpre satisfazer, de proporcionar as condições de existência comunitária, assegurando a cada pessoa o espaço indispensável de realização livre da sua personalidade. Só isto pode justificar que o Estado furte a cada pessoa o mínimo indispensável de direitos, de liberdade e garantias para assegurar os direitos dos outros e, com eles, da comunidade.”
Portanto, estando presentes os cinco elementos fático-jurídicos da relação de emprego, que se consubstanciam em pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade, subordinação ao contratante e prestação por pessoa física, não há o que justifique a exclusão do trabalhador carcerário do regime protetivo da Consolidação das Leis do Trabalho e de todo o seu regramento benéfico e indisponível. Conforme é cediço, não é porque cometeu um crime e está com a liberdade de locomoção restringida que serão castrados demais direitos da pessoa presa, em consonância com o disposto no artigo 38, do Código Penal Brasileiro, devendo ser conservados todos os direitos além daqueles que não sejam atingidos pela perda da liberdade ou impostos pelo texto constitucional.
Sobre o tema, não se pode olvidar que um dos efeitos do édito penal condenatório é a suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da sentença. Contudo, este é um efeito direto estabelecido pela Carta Magna, artigo 15, inciso III, in verbis: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;”.
Tal dispositivo pode ser alvo de críticas, mas não lhe pode ser imputada a pecha de inconstitucional, pois decorrente do trabalho do poder constituinte originário. Ressalte-se ser este o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal[9] e que o quanto defendido por Otto Bachof[10] é doutrina amplamente minoritária (possibilidade da existência de inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias).
Além disso, não se assegura ao trabalhador preso a retribuição devida, uma vez que, costumeiramente, tem retribuição aquém do que se assegura aos demais trabalhadores, sendo apenas garantido que serão remunerados mediante prévia tabela e não poderá tal valor ser inferior a 3/4 do salário mínimo[11]. Percebe-se, pois, que tal dispositivo, também, não se encontra consentâneo com mandamentos constitucionais, que não impõem nenhuma condição ou situação para que não seja assegurado o direito ao salário mínimo, conforme se depreende do disposto no artigo 7º, inciso IV, da Lei Fundamental:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;” (Grifou-se)
Assim, pode-se concluir que outro absurdo sedimentado nesta legislação é considerar que o preso deverá ser ressarcido em tabela prévia, não podendo receber menos do que 3/4 de salário mínimo. O que, aparentemente, seria uma norma de proteção a tais sujeitos é, em verdade, um dispositivo segregador e claramente exploratório, uma vez que não há razões justificadoras para que o trabalhador carcerário não receba o mesmo de um empregado que não se encontra privado de sua liberdade de locomoção. Desta forma, pode-se, chegar à tranquila ilação de que este dispositivo é flagrantemente inconstitucional, por violador não só do artigo 7º, inciso IV, como também o princípio da isonomia, em sua vertente meramente formal. Nem se faz necessário recorrer a tal princípio usando da verdadeira igualdade, que é a material, posto que nem mesmo pode ser considerado que a vertente formal seja devidamente respeitada.
Sobre o tema da remuneração do obreiro encarcerado, relevantes as palavras de Julita Lengruber[12]:
“Se a obrigatoriedade do trabalho e a previsão de uma remuneração pelo mesmo são requisitos importantes para a preparação do preso para o retorno à sociedade, consciente de sua utilidade e valor, a exploração do trabalho dos presos com uma retribuição irrisória pode, ao contrário, fortalecer seu animus delinquendi.” (Grifos no original)
Além de afrontoso ao thelos do texto constitucional por violador da isonomia, não se pode esquecer que a Consolidação das Leis do Trabalho, artigo 5º assegura que “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”. Malgrado o dispositivo possa ter sido idealizado e incluído no corpo deste diploma normativo como forma de proteger a mulher – que à época passava por dificuldades para assegurar e consolidar direitos de igualdade com o sexo masculino, tal como hoje se está a batalhar pela equiparação do preso ao obreiro comum –, é possível aplicá-lo aos indivíduos que prestem um mesmo serviço e que recebam um percentual injustificadamente menor e não sejam protegidos pela CLT, somente por terem cometido um crime e estarem restritos de sua liberdade de locomoção em um estabelecimento prisional.
Não se está querendo dizer que o trabalhador preso deve estar submetido a todo o regramento da CLT, uma vez que, por exemplo, seria absurdo considerar possível que fosse permitido ao obreiro o descanso semanal remunerado. É mister ressaltar que da mesma forma que nem todas as disposições da CLT se aplicam totalmente a todos os empregados/trabalhadores, o mesmo irá acontecer com o obreiro preso. Assim, apenas as normas compatíveis com o seu labor é que poderão vir a ser aplicadas, e não aquelas que se mostrem absurdas ou inoportunas. O que não se pode permitir é uma flagrante violação à isonomia, destratando de forma desarrazoada um trabalhador que também merece guarida e proteção.
Nesta toada, não mais condiz com o atual estágio de desenvolvimento histórico e social permitir que dois indivíduos executem uma mesma função ou trabalho e sejam remunerados de forma diversa, tendo, inclusive, a chancela e autorização estatal para tanto, por intermédio de previsão legal evidentemente inconstitucional, que finda por imprimir mais uma indevida e cruel restrição a um indivíduo que já se encontra em uma posição de maior fragilidade e hipossuficiência.
Como considerar que o trabalho do condenado irá assegurar dignidade à pessoa do preso se não recebe, em contrapartida, uma remuneração digna? Diante dessas constatações, questiona-se a constitucionalidade dos citados dispositivos, uma vez que o mero cometimento de um crime e o encarceramento não justificam que outras e graves medidas sejam impostas a um cidadão, pois não se pode olvidar que o preso conserva todos os seus direitos que não sejam atingidos pela sentença penal condenatória prolatada. É mister sempre recordar que:
“O direito penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade (e à ‘autonomia’) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais”.[13] (Grifos no original)
Conclui-se, portanto, que a forma de contraprestação ao trabalho efetuado por obreiros encarcerados é uma retribuição violadora da isonomia, uma vez que a mesma função ou trabalho exercidos nas mesmas condições estão sendo remuneradas de formas diversas.
Por exemplo, se uma fábrica[14] de calçados é instalada dentro de uma penitenciária, o funcionário preso irá ser remunerado com uma quantia a menor do que recebe um indivíduo que trabalhe na mesma empresa fora do estabelecimento prisional. Esta é uma dupla restrição e punição a este sujeito, pois já se encontra com a sua liberdade de locomoção restringida e ainda não é adequada e devidamente remunerada pelo seu trabalho despendido, ferindo de morte o thelos protetivo do direito obreiro.
3. Direitos/Deveres do Preso e a Imposição de Trabalho Forçado
Inicialmente, é de precípua importância reiterar que o indivíduo que cumpre uma pena restritiva de liberdade não poderá ter o seu patrimônio jurídico violado além das devidas restrições a serem impostas na sentença penal condenatória[15], pois deve ser evidenciado que “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”[16].
Diante disso, não há como conciliar o referido com alguns dispositivos presentes na Lei de Execução Penal, em que resta clara a cominação forçada de trabalhos a indivíduos que se encontrem em cumprimento de pena restritiva de liberdade. Pode-se chegar à tranquila ilação de que a imposição de labor como um dever a ser cumprido pelo executado deve ser tida como uma desproporcional restrição aos seus direitos, uma vez que a própria Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLVII, alínea “c”, assegura que: “não haverá penas: c) de trabalhos forçados”.
Há quem sustente que a imposição de mão-de-obra como um dever[17] do preso não fere o retrocitado dispositivo constitucional. Todavia, este é um posicionamento frágil e que não resiste a maiores investidas, uma vez que não se pode aceitar que o trabalho seja um dever imposto e o seu descumprimento redunde em cometimento de falta grave, ou que resulta na possibilidade de regressão de regime de cumprimento de pena. Com isso, cria-se uma aparente ilusão de que o condenado dispõe de liberdade quanto ao exercício ou não de trabalho no período em que está em cárcere. Não é, pois, o que pode ser verdadeiramente constatado. Passa-se, então, a analisar, detida e criticamente, alguns dispositivos da na Lei de Execução Penal (LEP, Lei 7.210, de 1984):
“Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.
Art. 39. Constituem deveres do condenado: V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas”; (Grifou-se)
É mister ressaltar que o descumprimento desse dever imposto redunda em falta grave que trará sérias repercussões ao tratamento que será dispensado ao encarcerado, muitas delas dificultando e restringindo direitos que seriam obtidos, como a progressão de regime carcerário e perda dos dias remidos, caso não se enquadrasse a conduta de não trabalhar como espécie de falta grave, é o que se percebe da leitura da LEP:
“Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;
Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei.” (Grifou-se)
A imposição de reprimenda ao descumprimento do dever de trabalho, com a regressão de regime carcerário e a perda de dias remidos[18] pelo labor anteriormente prestado é, inclusive, posicionamento coevo e pacífico dos principais Tribunais Superiores, conforme se depreende das seguintes decisões e de existir súmula vinculante[19] sobre o tema:
“A natureza jurídica da regressão de regime lastreada nas hipóteses do art. 118, I, da Lei de Execuções Penais é sancionatória […]. A regressão aplicada sob o fundamento do art. 118, I, segunda parte, não ofende ao princípio da presunção de inocência ou ao vetor estrutural da dignidade da pessoa humana. Incidência do teor da Súm. vinculante 9 do STF quando à perda dos dias remidos. (HC 93.782, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 16-9-2008, Primeira Turma, DJE de 17-10-2008)[20] (Grifou-se)
EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. REGIME SEMI-ABERTO. TRABALHO INTERNO. DESCUMPRIMENTO. FALTA GRAVE. CARACTERIZAÇÃO. REGRESSÃO. PERDA DOS DIAS REMIDOS. POSSIBILIDADE. I – Tendo em vista que questões suscitadas pelo impetrante, consistentes na nulidade dos procedimentos administrativos em razão do descumprimento de prazos, no argumento de que só haveria uma falta grave ao invés de duas – vez que uma estaria absorvida pela outra – e na inconstitucionalidade da imposição de trabalho interno consistente em realização de faxina – por configurar pena de trabalhos forçados – não foram apreciadas pelo e. Tribunal a quo, fica esta Corte impedida de examiná-las, sob pena de supressão de instância (Precedentes). II – O apenado, no cumprimento de pena privativa de liberdade em regime semiaberto, deve submeter-se a regras de disciplina previstas nos diplomas normativos que regem a execução penal, incluindo-se em seus deveres o exercício satisfatório do trabalho interno (LEP, artigos 31 a 35), em atividades de manutenção do estabelecimento prisional, não ficando a seu alvedrio o momento e a forma como será realizado. III – Constitui falta grave a recusa, pelo apenado, à execução de trabalho interno regularmente determinado pelo agente público competente, ex vi dos artigos 39, inciso V, e 51, inciso III, da LEP. Writ parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado”.[21] (Grifou-se)
Diante de tais decisões resta claro que é possível cogitar que se tenha, atualmente, uma forma dissimulada e implícita de trabalhos forçados, uma vez que o indivíduo que não labore no ambiente carcerário ficará apenado, estando evidente o caráter abusivo e desnecessário desta norma impositiva de uma indevida e gravosa intervenção no patrimônio jurídico do sujeito em cumprimento de pena privativa de liberdade. É quase teratológico o teor da supracitada decisão, uma vez que, conforme decidido acima, o preso não poderá se escusar de cumprir serviços de faxina, por exemplo, pois isto é algo que dispensaria a sua aquiescência, restando obrigatório que em atividades de manutenção do estabelecimento não fique “a seu alvedrio o momento e a forma como será realizado”.
Sobre o tema, é clássico o questionamento levantado pela doutrina acerca de um hipotético caso de um contador que está preso e é submetido a trabalhos na lavanderia da prisão, sendo que a contabilidade do presídio é extremamente defasada e debilitada. Diante do posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, tal absurdo não seria consertado, pois o encarcerado não poderia escolher a forma de prestação de seus serviços. Assim, um indivíduo com formação de nível superior, que poderia contribuir muito mais com o seio social atuando na área contábil do estabelecimento prisional, termina atrapalhando o serviço da lavanderia, pois não tem o mínimo conhecimento nem experiência neste labor.
Assim, a dúvida que fica é: além de ser obrigado a laborar e receber remuneração aquém, também não lhe é dado o direito de escolher a forma ou momento como será prestado o serviço? Conforme explicitado por Maria Alexandra da Silva Monteiro Mustafá[22], pode-se concluir facilmente que há:
“[…] a existência de um cenário de alienação do ser social através do trabalho precário e encarcerador; entendendo que no contexto da totalidade, a ressocialização aparece como uma metodologia,que se vale das teorias existentes para justificar um controle social e a manutenção do status quo. Estas ações possuem como premissas balizais, o exercício do trabalho e a capacitação na educação formal e técnica da população carcerária, fundamentando-se na ideologia capitalista. Dessa forma, a aplicação penal possui endereços certos, colocando sob sua custódia totalitária, uma parcela da população que é vítima da questão social.”
Diante disso, como não considerar que há uma interpretação distorcida da Constituição Federal onde consta que “não haverá penas: de trabalhos forçados”, pois se o indivíduo não labora, não pode progredir de regime e perde os dias remidos? Além disso, como é que tem de cumprir de forma integralmente fechada toda a sua pena e não tem a possibilidade de escolher a forma e momento de cumprimento do trabalho? Não é um mero bis in idem, mas sim uma quádrupla apenação.
Todas estas poderiam até ser consequências jurídicas plausíveis e proporcionais se o preso fosse remunerado e gozasse dos mesmos direitos e garantias que um trabalhador comum. Contudo, esta liberdade não há, sendo severa e arduamente punido diversas vezes.
4. Conclusões
Diante de todo o exposto, pode-se chegar às seguintes ilações:
A. A exclusão do trabalhador carcerário das normas protetivas presentes na Consolidação das Leis do Trabalho é uma indevida restrição ao sujeito que se encontra enclausurado, cumprindo pena privativa de liberdade e tal supressão de direitos deve ser arduamente combatida. Desta forma, percebe-se que o artigo 28, §2º, da Lei de Execução Penal, de 1984, é flagrantemente inconstitucional, sendo razoável concluir pela sua não recepção diante do Texto Magno de 1988.
B. Não há também o que justifique a remuneração aquém percebida pelo obreiro carcerário, sendo facilmente perceptível que, ao concluir pela inconstitucionalidade do anterior artigo da Lei de Execução Penal, deve o preso ser remunerado de acordo com os dispositivos protetivos presentes na Consolidação das Leis do Trabalho, sendo a remuneração consentânea com o trabalho apresentado pelo mesmo.
C. O tratamento dispensado pelos Tribunais Superiores ao preso diante do descumprimento do dever de trabalho tem configurado clara cominação de trabalho forçado, uma vez que não dispõe o encarcerado de liberdade para determinar nem mesmo o momento e forma que o labor será prestado. Além disso, é ululante que tal tratamento afronta o texto constitucional, ferindo o mais comezinho senso de humanidade e isonomia, o que não se coaduna com o estágio de Estado Democrático de Direito vivenciado hodiernamente, devendo ser, portanto, o quanto antes, alterado.
Notas:
[1] Não convém discutir, no presente trabalho, os fins e funções da pena, tema que envolve longos e intermináveis debates, sendo alvo de inúmeras polêmicas e posicionamentos inflamados e apaixonantes.
Informações Sobre o Autor
Daniel Melo Garcia
Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito