1. Introdução
A humanidade, enquanto “excelência própria do homem”[1], exterioriza-se pela razão, pelas percepções afetivas e emocionais e também pelos valores.
O homem torna-se humano na medida em que age conforme valores capturados do mundo da vida ou consolidados em função de sua história pessoal, pela influência de determinado período histórico ou pelo senso comum.
Os valores encarnados em vida são ao mesmo tempo singulares, em relação a cada homem que toma como referência determinado valor, e plurais, considerada sua influência no conjunto da sociedade[2].
O valor, enquanto maneira de ser, identifica o caráter e as próprias escolhas do homem em relação à vida[3]. Isso significa que o ato de vontade do homem se expressa no mundo dos fatos conforme determinado valor, ocorrendo, naquele momento e ao mesmo tempo, como contraponto à sua esfera pessoal, um valor negativo ou antivalor. Pode-se afirmar, então, que a essência do homem, enquanto ser humano, é revelada por meio dos valores capitaneados em sua vida cotidiana.
O valor é, portanto, concomitantemente criação e recepção do homem enquanto inquietante ser de cultura. Na medida em que o homem cria o mundo ele recebe cultura e transmite cultura, projetando e refletindo valores. Assim, o valor é pura expressão de vida[4].
Em função da fecunda importância do tema, o valor destaca-se, enquanto teoria, nas concepções filosófica e jurídica. O valor, enquanto objeto de estudo da Filosofia dos Valores, desenvolveu-se nos primórdios do pensamento clássico de maneira incipiente, mas sem qualquer sistematização, passando a consolidar-se enquanto Teoria dos Valores, alcançando status epistemológico, na contemporaneidade[5].
2. A utilização do vocábulo “valor” na linguagem contemporânea
O estudo do vocábulo valor requer a apreensão de seu significado usual, explicitado na linguagem cotidiana, mas também daquele de caráter técnico e filosófico.
Lalande explica que o epíteto valor é empregado tanto no sentido abstrato de “algo ter valor”, como também no sentido concreto, ou seja, de “algo ser um valor”[6].
O autor pondera que o conceito de valor, enquanto palavra da linguagem corrente, é de difícil precisão, vez que seu significado é eminentemente flexível, dependente do intérprete e da situação vivificada[7].
A definição do valor, enquanto objeto de estudo, pode ser apreendida em dois planos distintos, porém complementares. O primeiro deles, subjetivo, enfoca os sujeitos que são capazes de valorar as coisas. O segundo plano, de caráter objetivo, destaca o conteúdo dos valores.
Sintetizado: subjetivamente, o valor reflete a característica das coisas de serem “[…] mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais comumente, por um grupo de sujeitos determinados […]”. Como exemplo, destaca-se a nobreza enquanto valor estimado pela aristocracia[8]. Objetivamente e a título categórico, o valor seria “[…] a característica das coisas que consiste em merecerem elas mais ou menos estima”. Objetivamente, mas a título hipotético, seria “[…] a característica das coisas que consiste em satisfazerem elas certo fim […]”, como, por exemplo, o valor documental das obras de arte[9].
O uso técnico da palavra valor foi atribuído, num primeiro momento, à economia política, que destacou nos bens materiais a qualidade econômica correspondente aos “valores de uso” e aos “valores de troca”.
Adam Smith[10] estabeleceu teorização própria, distinguindo o valor de troca do valor de uso. O primeiro refere-se às “[…] mercadorias consideradas do ponto de vista da capacidade que elas têm de satisfazer as necessidades humanas […]” e o segundo, às mercadorias “[…] na proporção em que são trocadas umas pelas outras”[11].
Smith considera o trabalho determinante do valor de troca, ou seja, a quantidade de trabalho empregada deve suportar a demanda pretendida, recompensa pelo esforço humano empregado. Esclarece, todavia, que nem sempre o trabalho como valor de troca corresponde exatamente ao valor da mercadoria comercializada ou possibilita a realização plena das necessidades humanas (fatores que enalteceram o caráter individualista da economia liberal, diga-se de passagem)[12].
Por essa razão, apesar de identificar o trabalho como a “moeda de troca original” do sistema de produção, ressalta a possibilidade de o sistema capitalista desvirtuar a correspondência entre o valor trabalho e o preço das mercadorias[13].
A teoria econômica de Smith valoriza o trabalho como meio de aquisição de riqueza pelos homens. O trabalho é identificado, pois, como motor do capitalismo inserido no marco do Estado Liberal de Direito.
Em síntese, conforme visto, o valor de uso corresponde à utilização objetiva real que o homem faz de determinado objeto[14]. Por exemplo, a prestação de serviços domésticos exterioriza um valor de uso, na medida em que o empregador doméstico não terá qualquer finalidade lucrativa com o serviço ofertado. Na realidade, ele será beneficiado pelo conforto e pela praticidade que o serviço doméstico objetivamente apresenta para si e para sua família.
Já o valor de troca expressa o bem que em determinado grupo social e em função de certo contexto histórico-econômico pode ser negociado como mercadoria, considerada certa unidade de preço[15]. Seria a hipótese, por exemplo, do trabalho de um empregado em minas de subsolo. Sua força de trabalho, empregada na extração do minério, é incorporada ao valor de venda do bem no mercado. Nesse sentido, o trabalho prestado exterioriza um valor de troca, na medida em que é necessário para complementar o ciclo do processo produtivo capitalista, gerando lucro para o empregador.
A partir do primeiro uso técnico do vocábulo ele irá transportar-se para outras áreas do conhecimento, com destaque para a linguagem e teoria filosóficas contemporâneas.
Para Hessen, no conceito de valor existe sempre a referência ao sujeito que valora, visto ser essa relação natural e indissociável, o que não significa que o sujeito seja a medida dos valores. É o que explica: “Valor é sempre valor para alguém. Valor – pode dizer-se – é a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um sujeito dotado com uma certa consciência capaz de a registrar” [16].
Segundo García Máynez, “[…] os valores são estruturas de uma esfera ética ideal”[17]. Essa esfera ética, por ser ideal, está sedimentada no infinito do tempo do mundo do ser.
No campo da Filosofia do Direito é importante salientar que o valor pré-existe à norma jurídica, por isso integra o campo do ser e não do dever-ser. É por essa razão que o valor é considerado necessariamente a expressão de um dever-ser ideal. Nesse sentido, predomina no pensamento jurídico fundando na teoria dos valores, o consenso de que toda norma jurídica é a manifestação objetiva de determinado valor humano.
Complementando o raciocínio, Hessen esclarece que apesar de todo o dever-ser fundar-se num valor, a recíproca não é verdadeira, do que resulta que “não é o dever-ser que nos dá o fundamento do valor; é o valor que nos dá o fundamento do dever-ser”[18]. Ou seja, valores são sentidos que a razão atribui, o que faz surgir a norma jurídica objetivada em certo suporte de valor.
O valor é, portanto, uma realidade que pode estar presente ou não no campo da normatividade (seja religiosa, moral ou jurídica, por exemplo). O ingresso do valor no campo da normatividade, enquanto seu sustentáculo e referência, dependerá do ato de vontade humana, o que significa que nem todo valor estará regulamentado.
Caso haja a regulamentação jurídica, como sustenta Vilhena, significa que o ordenamento jurídico procura, através da norma jurídica, prestigiar e valorizar determinado interesse, assegurando-lhe ampla tutela[19].
Quando o valor torna-se um valor jurídico significa que ele foi regulamentado pelo ordenamento jurídico, podendo o operador do Direito, inclusive, utilizar-se da coerção para protegê-lo[20].
Hessen examina o fenômeno da realização dos valores, identificando-o como algo de ideal, pertencente à esfera do ser ideal e que pode penetrar na esfera do real, assumindo existência no mundo dos fatos. Ao encarnar existência, o valor toma algo como suporte. Para melhor explicar o sentido da realização dos valores, exemplifica dizendo do valor estético, que se converte em existencial no quadro do pintor, ou do valor ético, presente na ação do homem virtuoso, e assim sucessivamente[21].
Na seara jurídica, os valores asseguram suporte de eticidade à norma jurídica válida. Ou seja, toda norma jurídica protege algum valor, mesmo que indiretamente. Por exemplo, o dispositivo constitucional que assegura o direito pacífico de greve, manifesta em si o “direito de resistência”[22], valor fundado na reivindicação pacífica das coletividades inseridas no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Deve ser esclarecido, ainda, que os valores jurídicos “[…] condicionam e fundamentam os fins almejados pela norma e que, por isso mesmo, fundam o dever de realizá-los”[23]. Certamente, a Justiça é o melhor exemplo de algo que é valioso para o Direito e que, portanto, deve-ser[24].
Enfim, o valor expresso em uma norma jurídica reflete o ato de vontade regulamentado de que aquele significado axiológico participe da realidade da vida, de onde curiosamente vem a sua gênese. Esse é o caminho percorrido pelos valores entre o mundo do ser e do dever-ser: naturalmente transitório, destacando no seu âmago um imponderável vislumbrar.
3.Características dos valores
Reale sistematiza as características centrais dos valores e que serão a seguir expostas, com amparo em sua doutrina[25].
O valor é sempre bipolar, já que a compreensão do que seja valoroso sustenta, necessariamente, a sua antítese, o que não é valoroso. É por essa razão que os “[…] valores positivos e negativos se conflitam e se implicam em processo dialético” [26].
Assim, a valoração de determinado objeto implica na formulação inevitável de um paradoxo: ao se identificar o valor do belo surge, como referência oposta, o sentido do feio; do útil, o sentido de inútil; do bom, o sentido de mau e assim sucessivamente.
Os valores também se implicam reciprocamente, “[…] no sentido de que nenhum deles se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais”[27]. Como exemplo, tem-se os valores da liberdade e do emprego, enquanto trabalho formal. Explicando: no sistema capitalista contemporâneo não há como se pensar na relação empregatícia que não seja realizada por um obreiro livre (o valor trabalho formal depende do valor liberdade e vice-versa). Ou seja, a relação de emprego exterioriza a necessidade da presença de um trabalhador livre, apesar de juridicamente subordinado ao tomador quanto ao modo de prestação dos serviços.
Os valores também revelam, em si, a característica da historicidade, na medida em que se destacam no tempo e em função do tempo histórico. Além disso, não é possível que se percam ou se esterilizem no cotidiano da vida, em razão de sua inexauribilidade. Isto quer dizer que o valor, mesmo que não seja da preferência de um homem ou de um grupo social, mesmo que não seja regulamentado pelas vias legais, ainda assim existe em toda a sua plenitude no mundo do ser, vez que inesgotável. Especificamente naquela situação normativa é que não se revelará, dada a força das circunstâncias ou em razão das preferências exteriorizadas pelo processo legislativo.
Os valores são incomensuráveis, já que não existe padrão de medida formalmente fixado e que seja capaz de compará-lo com outros objetos.
O valor deve expressar certo sentido ou referibilidade, uma vez que sua adoção reflete o posicionamento do homem em sociedade, conforme determinado fim[28]. Além de ser uma referência de conduta, o valor também se revela como uma escolha do próprio homem, daí seu sentido de preferibilidade[29].
A preferência por determinado valor em detrimento de outro pode criar, mesmo sem qualquer hipótese de rigidez, uma ordem de escalonamento, ordenação preferencial ou hierarquia entre os valores. De toda forma, esse processo será apenas estimativo, em razão da impossibilidade de se demarcar, com clareza, qual é o valor preponderante da sociedade. Aliás, o próprio sentido de preferência inerente aos homens livres é dinâmico, flexível e, muitas vezes, até mesmo imprevisível (o que comprova, mais uma vez, a impossibilidade de se determinar qualquer critério rígido para a escala de valores).
Afonso explica que a pluralidade de valores aferíveis no mundo do ser implica a necessidade de que o homem realize permanentes processos de escolha em relação aos valores que serão regulamentados pela via jurídica. Ainda sustenta que a pluralidade de valores não os torna relativos em si mesmos. Há preservação de sua essência, em toda a integralidade. O que ocorre, no campo do Direito, é a formação de uma hierarquia de valores objetivados em normas jurídicas segundo escalas de preferência, “[…] que variam na história, com a variação do ethos”[30].
Há, de toda forma, uma categoria axiológica a ser considerada fundamental, condicionante de todo o devir histórico, que é o ser humano “[…] visto como valor ou fonte espiritual de toda a experiência axiológica” [31].
A pessoa humana, enquanto “valor-fonte”, deve condicionar todas as formas de convivência juridicamente ordenadas. E quando se destaca o ser humano, importa frisar que a referência a ser considerada é a do homem enquanto gênero humano. Desse modo, os valores capitaneados em sociedade e, muitas vezes revelados objetivamente pela norma jurídica, são consolidados na perspectiva do homem, buscando-se, nesse sentido, uma opção totalizante da essência humana e de sua história.
4. O trabalho enquanto suporte de valor
Afonso revela que os valores são pura essência, constituem a natureza mais genuína de um ser, independentemente da concretização de sua existência[32]. Isso significa que “essência” e “existência” não se confundem, mas apenas se entrelaçam quando o valor, enquanto qualidade material, toma como depositário as coisas, os bens, os seres ou as pessoas, que passam a ser o seu suporte[33].
Como exemplo de suporte de valor destaca-se toda e qualquer atividade humana. Como o trabalho é atividade humana, materializada em obrigação de fazer, ele também é suporte de valor[34].
Em razão da confluência de movimentos no mundo do ser, os valores mudam constantemente de suporte, o que não significa que desapareçam quando há mudança dos métodos de interpretação ou de seus destinatários. Afinal, os valores prolongam-se no tempo, enquanto essência da vida[35].
Exatamente por serem essência da vida é que os valores apresentam-se em sentido bipolar. Há uma metamorfose dinâmica no sentido do valor enquanto qualidade material, por isso mesmo é que existem valores considerados positivos ou negativos.
Como exemplo, tem-se o trabalho como depositário de valor. Se o trabalho for penoso, insalubre ou perigoso, o valor apreendido é negativo; caso o trabalho seja realizado em condições dignas, possibilitando que o trabalhador se reconheça na sua condição humana por meio de sua identidade social, tem-se um valor positivo. Perceba-se: o suporte é o mesmo, o trabalho; o que varia é a sua qualificação.
Conforme visto, em certo sentido o trabalho é suporte de valor, por isso é identificado de diversas maneiras, dependendo do ponto de vista de quem analisa e de quem é agraciado por ele. Assim, poderá ser valorizado como digno/indigno; lícito/ilícito; formal/informal; estável/instável; seguro/perigoso e assim sucessivamente.
O sentido do valor trabalho revela-se tanto pelo sujeito trabalhador, como pelo momento histórico vivenciado. Em outras palavras, o trabalho determina a própria valorização do sujeito que labora. Então, é possível que, em sociedade, se valorize de maneiras distintas o trabalhador empregado, o trabalhador autônomo, o trabalhador estagiário, entre outros (o que não quer dizer, diga-se de passagem, que o Direito deva identificar essa diferenciação de valores como um critério de exclusão).
Scheler estabelece as relações entre “juízo de valor” e “juízo de dever-ser”. O primeiro, mais abrangente, pode ser regulamentado ou não. Por exemplo, não há possibilidade de se obrigar qualquer homem a sentir amor, confiança ou amizade por alguém, por exemplo. Esses valores simplesmente são. Não existem em função de cobranças jurídicas, econômicas, morais ou pessoais. Enquanto essência, eles estão no âmago da vida, assegurando-lhe abundância.
É preciso compreender que, para Scheler, todo dever é fundado em valores, o que não significa que os valores estejam fundados nos deveres. Como aliás já foi dito, os valores, enquanto essência, apresentam-se a priori à existência do dever-ser.
O “dever-ser ideal” refere-se a uma obrigação ideal, mas que não é exigida normativamente. Já o “dever-ser normativo” refere-se a um comando específico e imperativo imposto pela norma.
Para Scheler tudo que é positivamente valioso deve existir (deve-ser), o que significa que o dever-ser normativo deve estar relacionado aos valores positivos. No mesmo sentido, tudo que é negativamente valioso não deve existir (deve não-ser), ou seja, quando a norma expressa imperativamente uma constrição, na realidade ela se revela enquanto expressão de um não dever-ser, referindo-se a um valor negativo[36].
Aplicando a teoria axiológica de Scheler ao trabalho enquanto suporte de valor, é possível formular uma relação entre o valor positivo do trabalho digno e o negativo do trabalho degradante e precário. Em síntese: o Direito deve regulamentar toda e qualquer relação de trabalho que se revele digna. Essas relações devem existir no campo da normatividade jurídica (deve-ser). Em contrapartida, o Direito não deve tolerar as relações de trabalho que não sejam capazes de dignificar o homem, como, por exemplo, o trabalho escravo. Por serem negativamente valiosas, essas relações de trabalho não devem existir (deve não ser).
Resta saber, portanto, quais são os parâmetros para que uma relação de trabalho seja considerada digna, afinal, somente essa modalidade de trabalho deve existir para o Direito e, em especial, para o Direito do Trabalho.
5. O Trabalho Digno enquanto suporte de valor
O eixo teórico, ora formulado, parte do pressuposto de que o trabalho, enquanto direito universal fundamental, deve fundamentar-se no referencial axiológico da dignidade humana.
A formulação de conceito que seja atual sobre a dignidade do ser humano é uma das tarefas mais tortuosas apresentadas pelas doutrinas filosófica e constitucional contemporâneas[37]. Conforme explica Sarlet, não há consenso e, acima de tudo, definição universal sobre a temática, a não ser o entendimento de que a dignidade revela a própria condição humana, apresentando-se no gênero humano sem fronteiras.
Apesar dessa constatação, o autor propõe formulação jurídica para a dignidade da pessoa humana, destacando, todavia, que por ser o tema vago e impreciso, seu conceito encontra-se em permanente processo de construção e desenvolvimento[38]. Nesse sentido, disserta:
“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a ‘qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos’”[39].
O conceito apresentado procura destacar a dignidade enquanto qualidade intrínseca do ser humano, o que por si só indica os atributos de irrenunciabilidade e de inalienabilidade, que lhe são inerentes. É o que explica Sarlet: por ser a dignidade uma qualidade de todo e qualquer ser humano, não há como existir pretensão de se ter concedida dignidade. Parte-se do pressuposto de que ela é subjacente ao homem, à sua condição humana[40].
Importante ressaltar, como faz o autor, que a dignidade não pode ser concedida, eis que já pertence ao homem enquanto ser humano, o que não significa dizer, ressalte-se, que ela não deva ser protegida e reconhecida. Assim, tem-se que a dignidade não pode ser retirada do homem, porque é condição intrínseca ao ser humano; todavia, considerada a dinâmica concreta é que se deve admitir que ela poderá ser violada[41].
Dada a possibilidade de sua violação é que Sarlet identifica a dignidade como “limite e tarefa do Estado e da comunidade”[42].
Neste mesmo contexto é importante esclarecer que a proteção e a promoção da dignidade apresentam-se em relação à pessoa concreta e individualmente considerada e não quanto à sua mera abstração. O que não quer dizer que o homem não deva respeitar a dignidade do outro. Por isso mesmo é que a dignidade também é reconhecida em sua dimensão intersubjetiva[43].
Com efeito, a defesa de uma construção normativa objetiva que possa ao mesmo tempo promover e proteger a dignidade da pessoa apresenta-se como diretriz calcada na segurança jurídica, elemento introjetado no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Reitera-se, mais uma vez, que para se ter dignidade não é preciso necessariamente se ter direitos positivados, visto ser a dignidade uma condição intrínseca do homem. De toda forma, quanto à sua proteção, reconhece-se que o Estado, pela via normativa, desempenha função singular em favor de sua manutenção.
A Constituição Federal de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, “[…] reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”[44].
Na realidade, como bem explica Delgado, o texto constitucional vai além, vez que reconhece o direito social ao trabalho “como condição da efetividade da existência digna”[45]. Por essa razão é que o valor social do trabalho é fundamento da República Federativa do Brasil (art.1º, IV, CF/88); a ordem econômica deve assegurar a todos existência digna, pautando-se na valorização do trabalho (art. 170, CF/88) e a ordem social deve ter como base o primado do trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça social (art. 193, CF/88).
Este entendimento pautado no ser humano enquanto centro convergente de direitos, porque fim em si mesmo, deve orientar inclusive as relações de trabalho e seu correspondente: o Direito do Trabalho.
No desempenho das relações sociais, com destaque para as relações trabalhistas, deve ser vedada a violação da dignidade, o que significa que o sistema de valores a ser utilizado como diretriz do Estado Democrático de Direito não poderá se revelar utilitarista. Deverá, em contrapartida, concentrar-se no ser humano enquanto pessoa.
Reportando-se à doutrina de Kant, Salgado esclarece a orientação de que o homem, enquanto sujeito de liberdade, não pode ser considerado meio, mas apenas fim em si mesmo. Sendo assim, sua valoração faz-se não pela utilidade, mas sim pela sua qualidade de ser humano. E é em função de sua condição humana que o homem tem o direito de participar da riqueza social, provendo suas necessidades espirituais e materiais básicas[46].
O trabalho não violará o homem enquanto fim em si mesmo, desde que prestado em condições dignas. O valor da dignidade deve ser o sustentáculo de qualquer trabalho humano. Por esta razão é que se defende a tese de que, pelo menos, os direitos trabalhistas alçados à qualidade de indisponibilidade absoluta sejam assegurados a todo e qualquer trabalhador. Onde o direito ao trabalho não for minimamente assegurado (por exemplo, com o respeito à integridade física e moral do trabalhador, o direito à contraprestação pecuniária mínima), não haverá dignidade humana que sobreviva.
Se existe um direito fundamental, deve também existir um dever fundamental de proteção. Quando o Direito utiliza-se da regulamentação jurídica significa, antes de tudo, que ele servirá como suporte de valor para proteger o homem em seus direitos.
Ressalte-se que apesar de o Direito do Trabalho demarcar precisamente sua seara de proteção (qual seja, a relação de emprego e, por expressa determinação constitucional, as relações de trabalho avulsas), isso não significa que deva ser compreendido como uma área jurídica estanque e, portanto, isenta de reformulações. Pelo contrário, para que seja sempre dinâmico e condizente com a realidade, torna-se necessário que seu objeto de investigação seja permanentemente investigado e reinterpretado.
Inspirado nessa premissa é que se propõe uma reconstrução jurídica da proteção ao trabalho, por meio da introdução de nova fundamentação à seara justrabalhista, baseada na orientação filosófica de que todo trabalho digno deve ser efetivamente protegido pelo Direito do Trabalho.
Se o trabalho é um direito fundamental, deve pautar-se na dignidade da pessoa humana. Por isso, quando a Constituição Federal de 1988 refere-se ao direito ao trabalho, implicitamente já está compreendido que o trabalho valorizado pelo texto constitucional é o trabalho digno. Primeiro, devido ao nexo lógico existente entre direitos fundamentais (direito fundamental ao trabalho, por exemplo) e o fundamento nuclear do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana. Segundo, porque apenas o trabalho exercido em condições dignas é que é instrumento hábil a construir a identidade social do trabalhador.
Ao se reconhecer o trabalho digno como valor e direito fundamental é também necessário torná-lo viável.
Conforme já explicitado, e apesar de seguir na contramão da proposta mais comum de exaltação da autonomia privada nas relações de trabalho para se atender às exigências do capital, considera-se que é função estatal proteger e preservar o valor do trabalho digno por meio da regulamentação jurídica.
Mas a regulamentação jurídica proposta deve ser objetiva e direta, visando ao aperfeiçoamento do Direito do Trabalho, o que significa, reitera-se, que pelo menos os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta devem ser assegurados a todo e qualquer trabalhador. Nesse sentido é que se defende o papel do Direito em reconhecer toda e qualquer manifestação do valor trabalho digno, ou seja, o Direito do Trabalho deve considerar todas as formas de inserção do homem em sociedade, que se façam pelo trabalho e que possam dignificá-lo.
Portanto, os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta[47] devem ser considerados patamar mínimo para a preservação da dignidade do trabalhador. É essa a diretriz fundamental para a legitimação da universalidade do Direito do Trabalho no contexto jurídico contemporâneo.
6. Os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta no Direito do Trabalho brasileiro: precisando conceitos
É necessário estabelecer, expressamente, quais são, no caso brasileiro, os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta capazes de assegurar ao trabalhador o patamar civilizatório mínimo do direito fundamental ao trabalho digno[48].
Entende-se que os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta estão previstos em três grandes eixos jurídicos, positivados pelo Direito do Trabalho brasileiro. Vale dizer que os eixos de proteção, a seguir analisados, são necessariamente complementares e interdependentes. De toda forma, na eventual hipótese de conflito, aplicar-se-á o diploma jurídico mais favorável ao trabalhador, aquele que possa garantir-lhe as melhores condições de trabalho, nos termos da Teoria do Conglobamento[49].
Há que se enfatizar, ainda, que tais eixos jurídicos não se revelam apenas para a defesa do cumprimento das necessidades vitais de sobrevivência do trabalhador. Na realidade, revelam em seu conteúdo um prisma ético, já que exaltam o homem em sua condição valorosa e superior de ser humano, o que significa, em outra medida, o direito de viver em elevadas condições de dignidade.
O primeiro eixo, de amplitude universal, refere-se aos direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta estabelecidos nas normas de tratados e convenções internacionais (inclusive da OIT) ratificadas pelo Brasil.
Referidos instrumentos internacionais destacam um patamar civilizatório universal de direitos para o ser humano trabalhador, reconhecendo o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis para que possa levar uma vida digna. Asseguram, especialmente, o direito à remuneração que promova a existência digna do próprio trabalhador e de sua família; o direito à segurança e higiene no trabalho; a proteção ao trabalho e ao emprego; o direito a períodos de descanso e ao lazer; o direito à limitação razoável das horas de trabalho, tanto diárias como semanais; o direito à remuneração dos feriados; o direito de greve e o direito de os trabalhadores organizarem sindicatos e de se filiarem ou não a eles.
O segundo eixo dos direitos de indisponibilidade absoluta dos trabalhadores está previsto na Constituição Federal[50], marco jurídico da institucionalização dos Direitos Humanos no Brasil.
No entender deste artigo, quando o art. 7º, caput, da Constituição Federal de 1988, elenca direitos constitucionais trabalhistas ele o faz para todo e qualquer trabalhador e não apenas para os empregados urbanos e rurais. É claro que a concessão dos direitos constitucionais trabalhistas será assegurada a cada trabalhador conforme a possibilidade da própria estrutura de trabalho estabelecida, o que não significa a defesa de discriminações, mas pelo contrário, o respeito às diferenças estruturais que se estabelecem no mundo do trabalho.
Finalmente, o terceiro eixo de direitos de indisponibilidade absoluta está presente nas normas infraconstitucionais como, por exemplo, na Consolidação das Leis do Trabalho, que estabelece preceitos indisponíveis relativos à saúde e segurança no trabalho, à identificação profissional, à proteção contra acidentes de trabalho, entre outros.
Respeitados os três grandes eixos jurídicos dos direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta, o trabalho se revelará pelo prisma da dignidade, sendo valorizado em sua perspectiva ética, “critério essencial da vida humana”[51].
Considerado o prisma da dignidade do trabalho é que o homem trabalhador revelará a riqueza de sua identidade social, exercendo sua liberdade e a consciência de si, além de realizar, em plenitude, seu dinamismo social, seja pelo desenvolvimento de suas potencialidades, de sua capacidade de mobilização ou de seu efetivo papel na lógica das relações sociais[52].
É o valor da dignidade, portanto, essencial para o trabalho humano sob qualquer uma de suas formas e em qualquer processo histórico. Por meio de sua projeção é que o homem redimensiona-se enquanto ser humano pleno, apesar de entregue à inexorabilidade do tempo da vida.
Doutora em Filosofia do Direito pela UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Professora Adjunta de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da UFMG. Professora colaboradora da Divisão de Assistência Judiciária da UFMG. Autora de obras na área trabalhista. Advogada.
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