O trabalho: entre sofrimento e necessidade

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Resumo: Breve ensaio sobre o trabalho à luz da Sociologia do Trabalho e o seu paradoxo de sofrimento e necessidade.

Esse ensaio visa equacionar alguns aspectos do trabalho, visto como elemento central na vida dos indivíduos, e é possível determinar que o trabalho traga em seu âmago o paradoxo  de sofrimento e de necessidade, de tal sorte que não podemos eliminá-lo, então, nos resta transformá-lo, quando possível, diante das adversidades.

No pós-fordismo, hoje, na organização do trabalho, vigora o modelo das organizações hipermodernas que, segundo Heloani (2011, p. 113) possui as principais características: gestão pelo inconsciente; modelo de infantilização; controle à distância (implícito/explícito) e gestão do conhecimento.

Conforme Foucault (apud BRANDT; HELOANI; FERNANDES, 2014, p. 102): “O homem não cessou de se construir a si mesmo. Tampouco o trabalho parou de se reinventar em função das mudanças sociais e econômicas”.

Nesse contexto, é a lição de Danièle Linhart (2007, p. 42):

“A ambivalência que caracteriza a relação de todos com o trabalho pode ser resumida em duas fases:

● Não se pode viver sem trabalho: o trabalho dá sentido, valor ao tempo livre e à vida.

● O trabalho impede de viver, de aproveitar a vida; ele estraga a vida; não se tem tempo suficiente para viver.”

Com a globalização, as expectativas mudam em relação ao Estado que se torna incapaz no seu papel de regulador entre a economia funesta e a sociedade cujo destino se encontra intimidado. Os cidadãos esperam uma solução, mas os políticos a ofertam tão somente as de ordem econômica. Daí os sentimentos da sociedade explodem atravessados por forças contraditórias, quando a economia, por si própria, acaba por se jogar contra a sociedade, de modo que o “domínio contábil” passa a se sobrepujar ao pensamento político. (GAULEJAC, 2007, p. 263, 264 e 267).

Esse quadro leva os cidadãos a uma desilusão, pois a política não é mais portadora de esperança, ela não encarna mudança ou uma perspectiva melhor para a sociedade, o sonho de uma sociedade melhor, do estar junto e poder exaltar os valores democráticos adormecidos. (GAULEJAC, 2007, p. 276).

Assim, previa Gramsci (apud HELOANI, 2011, p. 37): “novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida”.  As novas tecnologias impregnam a subjetividade operária, na tentativa de controlar a percepção do trabalhador. “As práticas de seleção e treinamento reafirmam explicitamente esse espaço pedagógico de adestramento dos corpos no interior da empresa. O ritmo e a maximização do uso do tempo são apresentados como “assistência” e “auxílio” ao trabalhador para desempenhar melhor sua tarefa. Ao mesmo tempo, esse espaço se direciona para implicitamente extrair e manter a maior intensidade de trabalho possível. A maior intensidade de trabalho está relacionada, por sua vez, à modelização da subjetividade dos trabalhadores, em particular à atenção e à percepção”. (HELOANI, 2011, p. 37 e 38).

Frente a esse astucioso método, é natural que a flexibilidade cause ansiedade: as pessoas não sabem que riscos correrão e quais serão compensados, quais caminhos deverão seguir. Hoje se usa a flexibilidade como maneira de constatar a maldição da opressão do capitalismo. (SENNETT, 2006, p. 09 e 10). Como disse o historiador E. P. Thompson, no capitalismo moderno os empregados “sentem uma distinção entre o tempo do patrão e o seu ‘próprio’ tempo.” (apud SENNETT, 2006, p. 43).

Esse tempo dado ao trabalhador, um tempo compressivo, acarreta a fadiga, o esgotamento do corpo que são necessárias para as regras da economia, mas insuficientes para a alienação pela organização do trabalho. A alienação é obtida e mais fácil de ser adquirida por operários cansados, como no final do ano, após as férias, e no final de semana. A alienação é uma verdade clínica que, no trabalho manifesta-se sobre a forma de um conflito em que o desejo do trabalhador fica oprimido frente à imposição do patrão. (DEJOURS, 2015, p. 178 e 179).

“É preciso compreender que as resistências individuais ao prazer acompanham resistências coletivas, no centro das quais se encontram, precisamente, as ideologias coletivas de profissão. (…). “A liberdade não se dá” dizem “ela se conquista”. O mesmo acontece com relação à organização do trabalho. É provável que não exista solução ideal e que, aqui como em tudo mais, seja, sobretudo, a evolução a portadora de esperança. Considerando o lugar dedicado ao trabalho na existência, a questão é saber que tipo de homens a sociedade fabrica através da organização do trabalho. Entretanto, o problema não é, absolutamente, criar novos homens, mas encontrar soluções que permitiriam pôr fim à desestruturação de um certo número deles pelo trabalho.” (DEJOURS, 2015, p. 181).

O resultado da economia alimenta, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. O capitalismo de curto prazo corrói o caráter das pessoas, sobretudo as qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e que dá a cada um  senso de identidade sustentável. (SENNETT, 2006, p. 27). “Não há mais longo prazo desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento.” (SENNETT, 2006, p. 33).

As condições de tempo no capitalismo resultaram um conflito entre caráter e experiência, a vivência do tempo desconjuntado ameaçando a capacidade das pessoas de dar nova forma a seus caracteres em narrativas amparadas. O que é singular hoje, é que a incerteza existe mesmo sem qualquer desastre anunciado; ela está presente nas práticas cotidianas do novo capitalismo. (SENNETT, 2006, p. 32 e 33).

O trabalho acontece sempre em três mundos. No mundo objetivo, físico, que tem como critério a validade da ação e sua eficácia. No mundo social, das relações sociais, para o bom desempenho de uma produção, gerenciar ao mesmo tempo as relações entre as pessoas. No âmbito social, o critério da ação é o justo ou o injusto, o bem ou o mal. Por último, um terceiro mundo, o subjetivo, pois todo trabalho é vivido afetivamente por quem o faz. O trabalho nunca é neutro com relação à subjetividade. Ele constrói a identidade e a saúde ou destrói a identidade e cria a doença. No mundo subjetivo, o critério da ação é a autenticidade. (DEJOURS, 1999, p. 82 e 83).

O trabalho não pode ser considerado somente como fonte de produção e de resultados, mas também em seu sentido de atividade humana. Os seres humanos não são coisas e como tal há no próprio fundamento humano uma aspiração de se construir como um sujeito, ligado aos outros em um desejo de realização (GAULEJAC, 2007, p. 289). Além disso, o indivíduo precisa ser reconhecido como sujeito de direito, igual a qualquer outro “em direito e em dignidade”, conforme enuncia o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. (GAULEJAC, 2007, p. 291).

Essas proteções jurídicas dão ao trabalhador suporte para ser sujeito. E ser sujeito de direito é uma das condições necessárias para afirmar-se como sujeito sócio histórico e como produtor da sociedade e das organizações as quais pertence, ao confrontar com a alteridade e poder contribuir com o bem comum. (GAULEJAC, 2007, p. 292).

A colaboração e a criatividade humana acha sua fonte nas formas de organização que permitem a cada um de seus membros desenvolverem suas potencialidades próprias e respeitar aos outros, ou seja, a empresa não representa um fim em si mesmo. A gestão deveria preocupar-se com aquilo que “faz sociedade”. (GAULEJAC, 2007, p. 292).

“O trabalho é o que permite, é o que organiza o encontro com o outro. Ele constitui uma ocupação. É um meio de lutar contra a monotonia da vida, de encher o vazio, de passar o tempo.” (LINHART, 2007, p. 43). É por isso que ele interessa à Sociologia, à Psicologia e outras Ciências; a ausência de trabalho em nossa vida seria uma angústia; ele dá sentido ao tempo e à vida. Não se trata de canalizar a energia libidinal para a lógica de lucros e de interesses, mas para objetivos do bem comum e de bem estar, em que estar junto venha a ser mais importante do que o interesse pessoal.

As organizações intervêm nas contradições constantes dos grupos sociais internos e externos que delas participam, e os dirigentes fazem o papel de agentes mediadores, encobrindo ou ocultando as contradições que surgem.

 “As organizações desenvolvem a dominação psicológica (manipulação do inconsciente) sobre os seus trabalhadores. Elas modelam a fundo as estruturas de personalidade, pois se tornam máquinas de prazer e de angústias, oferta e retirada do amor. A organização torna-se o lugar privilegiado da identificação, da projeção e da introjeção. É com ela que os trabalhadores mantêm relações infantis de submissão e revolta. Trata-se, pois, de uma alienação explorada pela organização do trabalho, pelo jogo da motivação e do desejo. Uma alienação no sentido psiquiátrico, também, de substituição da vontade própria do sujeito pela do objeto”. (PIOLLI, 2010-2011, p. 174). O trabalhador acaba por confundir seus desejos e suas vontades de maneira tal que a vontade da organização vem a sobrepor e prevalecer, ao invés de prevalecer a sua vontade. Trata-se de uma alienação paralisante pela ideologia organizacional, efeito esse resultante das políticas de recursos humanos e gestão de pessoas.

“O descompasso entre o que se deseja e o que está instituído, entre as potencialidades do trabalhador e as possibilidades objetivas de desenvolvê-las ou utilizá-las, é gerador de tensões, conflitos e sofrimento psíquico. O bloqueio da energia profissional ou seu subemprego, em função da rigidez ou mesmo das imposições da organização do trabalho, é fonte do sofrimento psíquico ou mesmo do adoecimento do trabalhador” (PIOLLI, 2010- 2011, p. 176).

O trabalho apesar de ser fonte de necessidade, ele nos traz sofrimento e a única possibilidade que temos é transformar esse sofrimento, já que não podemos eliminá-lo. Seus efeitos são poderosos sobre o sofrimento psíquico, pode levar a pessoa à loucura, ou pode também contribuir para subverter o sofrimento e transformá-lo em prazer, resultando ora patogênico, ora estruturante.  (DEJOURS, 1999, p. 16).

“Trabalhar, na verdade, é não apenas exercer atividades produtivas, mas também ‘conviver’. Assim, uma organização do trabalho racional deve antes de tudo preocupar-se com a eficácia técnica, mas deve também incorporar argumentos relativos à convivência, ao viver em comum, às regras de sociabilidade, ou seja, ao mundo social do trabalho, bem como argumentos relativos à proteção do ego e à realização do ego, ou seja, à saúde e ao mundo subjetivo”. (DEJOURS, 2003, p. 62).

Considerando, como pondera Gaulejac:

“Os homens não podem trabalhar e viver sem dar sentido a sua ação. O homem racional que procura otimizar seus recursos e defender seus interesses por meio de comportamentos estratégicos é um homem amputado de suas paixões, de suas capacidades imaginativas e principalmente amputado da necessidade de dar sentido a sua existência. A ordem simbólica é a expressão dessa necessidade”. (Gaulejac, 2007, p. 294).

O que importa não são os resultados esperados da ação, porém a ação em si e como ela é realizada, pois no mundo da gestão tudo deve servir a alguma coisa, ainda que o próprio sentido se torne paradoxal. Quando se pretende um fim, depois de atingi-lo, deixa de ser um fim. É o caso de querer ser o número um; não tem sentido no tempo, é um objetivo transitório, atingido, perde o sentido. Depois de atingido, o objetivo inicial se torna sem sentido. (GAULEJAC, 2007, p. 296).

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Pretende-se da gestão a coerência entre os objetivos almejados e os meios disponíveis para a prática. Espera-se da gestão essa coerência que faz falta nas empresas gerencialistas entre o “vivido e o conceito, entre o prescrito e o realizável, entre a cifra e o que ela mede”. “A discussão coletiva, o confronto dos pontos de vista, permitem dar novamente sentido à ação, avaliar sua pertinência, pôr novamente regulação em um mundo ameaçado pelo caos.” (GAULEJAC, 2007, p. 297).

A questão da demanda do trabalho é central numa análise; escutar o sofrimento e os anseios do trabalhador é primordial. O sofrimento na maior parte das vezes está ligado à deterioração das condições de discussão e de incompreensão. As estratégias defensivas podem atenuar o sofrimento, mas se funcionarem bem as pessoas podem deixar de sentir o sofrimento e se entregarem à alienação, entendendo que o sofrimento passou, pode deixar de pretender mudança. “O único caminho que dá acesso à realidade das contribuições e da inteligência operária é a palavra, ou a narração feita pelos operários, porque são eles, certamente, os únicos que conhecem a realidade do trabalho, ninguém mais” (DEJOURS, 1999, p. 175).

 A existência social de cada um se revela na profundidade da subjetividade, o sentido de existir, os ganhos dos empregos necessários para a existência.

“Longe de se opor, subjetividade e objetividade se conjugam. Valor de uso (utilidade funcional), valor de troca (interesse pecuniário), valor simbólico (instância de significação) devem-se combinar. Cada um é totalmente necessário para fundar uma aliança que permite a passagem da guerra para a paz, da desconfiança à confiança, da concorrência para a colaboração, da competição para a solidariedade. A dimensão simbólica é a base a partir da qual as relações sociais se constroem. O símbolo é um modo de selar um acordo entre os homens, de aceitar significações comuns”. (GAULEJAC, 2007, p. 298).

O universo da gestão prima pelo interesse, pelo enriquecimento, pela utilidade, pelo mérito individual e pela estratégia. Ela transmuda relações humanas em relações comerciais, cidadãos em clientes e políticos em provedores. A empresa precisa do capital, do trabalho e do mercado para se expandir. O gerenciamento deve mediar esse serviço e avaliar as expectativas da empresa e de trabalhadores para que sejam satisfeitas de tal sorte que as lógicas de ação entrem em sinergia e garantam uma mediação equilibrada. (GAULEJAC, 2007, p. 301).

Para tal, precisamos evoluir para uma atuação maior dos sindicatos em nível mundial, continental e nacional. Mais do que garantir o mínimo social, é preciso valorizar as empresas que defendem a proteção de seus empregados, visto a necessidade de reequilíbrio das relações entre o trabalho e o capital. (GAULEJAC, 2007, p. 302).

Ressalte-se que não pode existir desenvolvimento harmonioso, quando o aumento do lucro é pago com a diminuição dos salários e uma redução dos efetivos, e que a melhoria dos produtos e dos serviços é paga por eliminação dos consumidores não solvíveis, em que as vantagens adquiridas de alguns trabalhadores geram a precariedade e exclusão de outros. A gestão precisa estar reconciliada com a sociedade. (GAULEJAC, 2007, p. 306).

Ocorre que a gestão tem transformado o humano em um recurso explorável assim como o são os recursos financeiros, as tecnologias e as matérias-primas. A gestão entre o capital e o trabalho, tende as mobilizar o segundo em prol dos interesses do primeiro e subordinar as funções da empresa à lógica financeira, enfim, a gestão tornou doente nossa sociedade. A finalidade é aplicar ao ser humano instrumentos para gerenciar coisas, transformar cada indivíduo em trabalhador e cada trabalhador em instrumento das necessidades da empresa. Por meio desse processo, grande parte de sua energia psíquica é captada pela empresa, que a transforma em força de trabalho a serviço do lucro financeiro. “Assistimos ao triunfo da racionalidade instrumental diante da razão, da inteligência comutativa – a do cálculo – sobre a inteligência compreensiva – que produz sentido.” (GAULEJAC, 2007, p. 308).

Para o trabalhador, o único projeto que subsiste é o de ganhar. “A partir do momento em que o sucesso se mede em termos financeiros, em que o reconhecimento e a existência sociais não têm mais um outro valor a não ser o monetário, o registro simbólico perde sua substância humanista. Entra-se em um mundo sem limites, que exacerba a onipotência, o narcisismo e a inveja, gerando uma corrida para frente ilusória e destrutiva. Tudo à imagem dos mercados financeiros, que instauram um jogo cuja finalidade é uma competição perpétua, motor principal da guerra econômica. (…). A cultura da ansiedade torna-se a norma: medo de jamais fazer o suficiente, de não estar à altura, de não preencher seus objetivos, de se tornar alvo de atenção, de perder seu emprego. O esgotamento profissional e o estresse são moeda corrente. A distância crescente entre as recompensas esperadas e as retribuições efetivas favorece um contexto de assédio generalizado[1]. A desagregação dos coletivos e a individualização das relações no trabalho contribuem para “psicologizar” as causas do sofrimento induzido pela pressão do sempre melhor”. (GAULEJAC, 2007, p. 309-310).

Nas empresas o estresse, a ansiedade, o esgotamento profissional são tratados individualmente em seus efeitos psíquicos ou psicossomáticos, com psicólogos e psiquiatras, resolvendo, desse modo, às violências das relações que ela desencadeia. O desemprego, o estresse não é problema para a empresa, cabe aos trabalhadores assumir seu fardo psicológico e financeiro. (GAULEJAC, 2007, p. 310). As empresas que praticam esse gerenciamento agem como se fossem totalmente isentas das consequências, é como se ela não fosse à causa dos estragos que os trabalhadores viessem a sofrer.

É responsabilidade da empresa “gerenciar” as consequências desse funcionamento e aliviar os estragos que ela acarreta. Gaulejac ressalta a importância da empresa em resguardar “esses estragos”:

“A gestão deveria oferecer-nos instrumentos tão adequados, para avaliar esses custos sociais e psíquicos, quanto aqueles que ela criou para avaliar os benefícios e as perdas financeiras. Essa preocupação seria o sinal de que ela não é mais uma ideologia a serviço do poder dominante, mas uma ciência a serviço do interesse geral.” (GAULEJAC, 2007, p. 232-233).

O debate sobre o cerco moral pôs às claras a intensidade do mal-estar no mundo do trabalho, vez que o cerco moral constitui procedimentos repetidos tendo como efeito a degradação das condições de trabalho, comprometendo a saúde e o futuro profissional. O sucesso do livro de Marie-France Hirigoyen (1998) serviu como esclarecedor desse sofrimento social e psíquico. (GAULEJAC, 2007, p. 223).

Como bem esclarecem Roberto Heloani e Eduardo Pinto e Silva: “A violência é compreendida como eminentemente socioinstitucional e é relacionada ao processo de corrosão dos vínculos sociais e exacerbação do individualismo, assim como às mudanças do sistema produtivo e às novas formas de gestão e organização do trabalho que, sob o discurso do reconhecimento da subjetividade[2], a instrumentalizam.” (BRANDT; HELOANI; FERNANDES, 2014, p. 65).

A pressão e o excesso no trabalho resulta na forma de esgotamento devido ao esforço demasiado de maneira a desencadear o conhecido burn out. “O aparelho psíquico fica então como um elástico demasiadamente esticado, como se não pudesse relaxar”. Outro problema experimentado por trabalhadores é o work addicts, uma dependência doentia por trabalho, a pessoa apresenta os mesmos sintomas dos drogados. (GAULEJAC, 2007, p. 218).

Isso ocorre em consequência da ideologia gerencialista que apresenta o fator qualidade como motor de sucesso de todas as ações, mas para tal se utiliza de um discurso movido pela linguagem da insignificância, ou seja, uma linguagem que encoberta a evidência e desestrutura as significações e o senso comum. Nesse discurso compressivo, o trabalhador é levado às suas próprias misérias. (GAULEJAC, 2007, p. 75 e 91).

Ao difundir e exigir o slogan da “qualidade total” são cada vez mais numerosos os incidentes que comprometem a qualidade do trabalho e a segurança das pessoas e das instalações. Sendo assim, surgem conflitos difíceis de esconder as péssimas condições de higiene, erros na administração de cuidados médicos, fatos que exigem premente denúncia por parte do trabalhador.  (DEJOURS, 2003, p. 43).

Os trabalhadores são os mais indicados para encontrar as soluções, oferecer sugestões para aprimorar a organização do trabalho, que sempre pressupõe ajustes; é preciso reinventar uma outra organização a partir da organização  prescrita. (DEJOURS, 1999, p. 168-169).

Com a globalização e a intensa tecnologia microeletrônica, o número de empregados diminui, mas o capital não tem como prescindir do trabalho humano, e embora a empresa neocapitalista trabalhará com a gestão de dominação psicológica, ela terá que harmonizar uma autonomia dos trabalhadores para propulsionar o setor de produção. (HELOANI, 2011, p. 102).

Nessas tecnologias microeletrônicas as empresas se utilizam do ardil e procuram se aproveitarem do savoir faire dos trabalhadores, de tal forma que eles se aproveitam das virtudes dos trabalhadores, como atenção, persistência e dedicação, num processo de incorporação como se fosse produto da organização, numa retomada em que esse encontro afetivo “empresa-mãe” (protetora) se identifica com o trabalhador no plano representativo, de forma que o trabalho se subordina ao capital nas dimensões: afetiva, subjetiva e psicológica. Mas, a segurança é colocada ao lado do capital da empresa controladora para impedir que o trabalho tenha autonomia e desligar-se do seu domínio e assegurá-lo apenas em poucas funções. O capital inibe a maturidade política do trabalho. (HELOANI, 2011, p. 109).

Os empregados têm que se submeter a todas as intempéries proporcionadas pelas organizações, pois a flexibilização coloca os trabalhadores na condição de sobreviventes, que se submetem a qualquer situação para não serem engolidos pelo desemprego, sendo assim, aceitam os tais subempregos, ocupações temporárias e mesmo assim, muitas vezes, se veem obrigados a renunciar de direitos trabalhistas conquistados há anos, como pagamento de horas extras e férias remuneradas. (HELOANI, 2011, p. 117).

Os efeitos desse processo, articulados ao desemprego estrutural e a gestão flexível do trabalho e da produção, atingiram os laços de solidariedade de classe, fundamentais para que sejam impostos limites à deterioração das condições de vida e trabalho; fundamentais numa perspectiva para além do capital, para que se possa contar com uma sociedade que permita, de fato, resgatar o trabalho como atividade humana prazerosa e criativa. (PRAUN, 2016, p. 176-177).

A natureza embrutecedora do trabalho sob a vigência do regime de acumulação flexível traz à tona o confronto direto entre o discurso gerencial humanizador, de valorização do indivíduo, e a lógica concorrencial e de enxugamento que se vive nas relações de trabalho. Os trabalhadores cada vez mais adoecidos refletem a expressão máxima da violência imposta pela aceleração do ritmo do trabalho como pela pressão desenfreada para o aumento da produtividade. (PRAUN, 2016, p. 67).

A manipulação da classe trabalhadora pela classe dominante, com sucessivos meios de controle econômico e ideológico, é um fato inegável e com toda certeza manipula a subjetividade dos trabalhadores, trazendo-lhes muitos dissabores devido à dominação e a expropriação. Para que haja a dominação é necessário o outro, o mais fraco. É um jogo de poder em que ao mais fraco, resta-lhe a submissão, esta é a regra, embora a dominação seja passível de resistência e conflito. (HELOANI, 2011, p. 174). Essa é a realidade no mundo do trabalho, em que a aceleração do ritmo de trabalho tem acarretado inúmeros acidentes e doenças decorrentes da ação laboral.

Referências
BRANDT, Juan Adolfo; HELOANI, Roberto; FERNANDES, Maria Inês Assumpção (Orgs.). Fundamentos da psicologia das relações de trabalho. 1. ed. São Paulo: Zagodoni, 2014.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. Tradução: Ana Isabel Paraguay; Lúcia Leal Ferreira. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
     . Conferências brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. Tradução: Ana Carla Fonseca Reis. Revisão técnica: Maria Irene Stocco Betiol e Maria José Tonelli. São Paulo: Fundap: EAESP/FGV, 1999.
     . A banalização da injustiça social. Tradução: Luiz Alberto Monjardim. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
FREITAS, Maria Ester de; HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio moral no trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2008. (Coleção Debates em Administração).
GAULEJAC, Vicent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução: Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2007. (Coleção Management, 4).
HELOANI, José Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. 1. ed. 4. reimpr. São Paulo: Atlas, 2011.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.
LINHART, Danièle. A desmedida do capital. Tradução: Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2007. (Mundo do trabalho).
PIOLLI, Evaldo. Sofrimento e reconhecimento: o papel do trabalho na constituição da identidade. REVISTA USP, São Paulo, n. 88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011.
PRAUN, Luci. Reestruturação produtiva, saúde e degradação do trabalho. Campinas: Papel Social, 2016.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução: Marcos Santarrita. 11ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
 
Notas:
[1] “É importante conscientizar a todos sobre o fato de que o assédio moral é algo devastador na vida de um indivíduo, que ele diz respeito a todos nós e que os algozes dos raptos psíquicos nas organizações devem e podem ser punidos sem complacência. Ao fechar os olhos a essa questão, a organização endossa um comportamento que fere o mais sagrado de todos os nossos direitos: o de sermos tratados como ser humano. Esse argumento deveria ser o bastante, porém, o assédio moral é – além de uma questão moral – uma questão econômica e um crime, que deve ser punido exemplarmente. A informação é o seu antídoto mais eficaz e pode ser acessível a todos na organização.” (FREITAS; HELOANI; BARRETO, 2008, p. 45).

[2] “A formação da identidade do sujeito deve estar vinculada de modo necessário à experiência do reconhecimento intersubjetivo; pois sua consideração implica também na ilação de que um indivíduo que não reconhece seu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa tampouco pode experienciar-se a si mesmo integral ou irrestritamente como um tal gênero de pessoa. Para a relação de reconhecimento, isso só pode significar que está embutida nela, de certo modo, uma pressão para a reciprocidade, que sem violência obriga os sujeitos que se deparam a reconhecerem também seu defrontante social de uma determinada maneira: se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir confirmado por ele.” (HONNETH, 2003, p. 78).


Informações Sobre o Autor

Ana Carolina Godoy Tercioti

Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas


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