Ônus da prova penal

“Homo sum; humani nihil a me alienum puto”. – Sou homem; nada que seja humano me é estranho – (TERÊNCIO, escravo romano, autodidata e teatrólogo).

Esta frase acima, que encerra em si um humanismo pungente, sempre nos impactou.

De fato, tanto amor e compreensão dedicados ao ser humano impressiona. Em especial nos duros tempos atuais onde o malefício, a maldade humana insiste em se superar, raiando às margens do inimaginável e desaguando, muita das vezes, suas escaras na Justiça Criminal.

Em momentos assim, rediviva se torna a lição do Des. LUIZ  VIEL:

“Vivemos tempos difíceis e inglórios para a Justiça Penal.

Os crimes clamam, a violência explode, todos querem providências eficazes.

Mas está-se a criar uma espécie de “necessidade” de pena, especialmente nos crimes graves, que pode desaguar em precipitação, desvios, quebra de normas.

Aos Juízes, no entanto, é sempre exigido o trabalho sereno, o exame criterioso, o cumprimento dos ritos, respeito às garantias constitucionais”1.

Observa-se que no caso dos delitos mais graves, denotadores de refinado negror no, ainda assim humano coração, tal necessidade que nos advertia o pranteado Desembargador do Egrégio T.A.P.R., parece se mostrar ainda mais funda e premente.

Estupro de crianças, tráfico em escolas, homicídios crudelíssimos e torturas horripilantes, dentre outros malefícios que o ser humano consegue engendrar, desfilam qual sinistra procissão pelas Cortes de Justiça e, precipuamente para estes e então, a fala de PEREIRA E SOUZA mostra-se atualíssima e de ímpar pertinência:

“Prova é ato judicial, pelo qual se faz certo o juiz da verdade  do delito .

A obrigação da prova do delito

incumbe ao acusador. Na falta dela é o réu absolvido.

Quando há colisão de provas ou resta alguma dúvida a respeito do delito, não deve proceder-se à condenação.

Não bastam para a imposição da pena a prova semiplena, ou os indícios.

´Quando os delitos são mais atrozes, tanto mais plena e clara deve ser a sua prova`”2.

E     por que?

Pelo óbvio. Normalmente sobre tais acusados recaem não só o peso de responder a um processo crime, como também e via de regra, o amplo e irrestrito interesse da Imprensa que, ávida de leitores e vendas, exploram tais fatos e acusados, notadamente na fase policial, expondo e cruamente eviscerando estes e diabolizando aqueles, levando aí de roldão quaisquer princípios garantísticos que se queira antepor, em especial, o da presunção de inocência.

Diante de tal quadro diuturnamente perceptível, seja através dos “bustos falantes” ou seja através da marrom imprensa, inolvidável se torna a magistral posição tomada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal:

A persecução penal, rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.

O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória – o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público”3.

Sabem os operadores do Direito que, na arena de sangue em que costumam se transformar os processos criminais dos acusados daqueles hediondos crimes que há pouco fazíamos menção, esta equilibradíssima posição do E. S.T.F. sofre sérios reveses, cabendo aqui o antiguíssimo ditado de que, na prática, a teoria é outra.

Não o deveria ser, no entanto, e não o é, para aqueles processos que tem em seu comando julgadores comprometidos com o Estado Democrático de Direito e que não estejam saudosos da ainda insepulta era de inquisição em que viveu o nosso País.

Para tais julgadores, e, para os demais operários do Direito,  arriadas e afastadas as velas da emoção fabricada pela mídia, reposto o norte, cumpre a missão de não mais permitirem que se imiscua nos julgamentos a idéia de que prisão na fase inquisitorial seja sinônimo de culpabilidade e condenação.  Cumpre, ainda, que se tenha introjetado o conceito de que acusação penal alguma pode se presumir provada, servindo a instrução como simples vôo solo da Promotoria, onde esta dá como provada aquilo que tem a exclusividade de provar.

E tem que ser assim, caso se queira ter e viver num mundo melhor mais sagrado e respeitoso, onde o Estado, ao combater o crime, não queira igualar-se ao criminoso, numa busca insana de realizar o Direito a qualquer preço.

O Estado, ao dar início à persecução penal, ao por em funcionamento as formidáveis engrenagens que lhe estão a disposição para tal mister, há que se lembrar que tem diante de si um acusado que tem o direito constitucional a ser presumido inocente, pelo que possível não é que desta inocência o mesmo tenha que fazer prova. Resta então a ele (Estado) a obrigação de estar imbuído da idéia que é exclusivamente sua, a responsabilidade de levar a bom termo, com supedâneo em prova lícita e moralmente encartada aos autos, a acusação formalizada inicialmente, sob pena de, em não fazendo o trabalho que é seu, arcar com as conseqüências de um veredito valorado em favor do acusado a proferir o “ non liquet ”. O contrário, da imposição ao acusado de fazer prova de sua inocência, seria a consagração do absurdo constitucional da presunção da culpa, situação intolerável no Estado Democrático de Direito.

Pontuo aqui que quer-se sim e sempre a condenação do culpado de um ilícito penal. Qualquer que seja ele. Mas, grife-se, do verdadeiro culpado. Assim como se quer, com intensidade, a absolvição do inocente. De há muito já foi dito e com muito mais propriedade do que a do subscritor deste (v.g. MALATESTA), que a sociedade perde cada vez que um culpado é indevidamente inocentado e solto às ruas e perde, ainda mais e de inconteste forma, com a condenação de inocentes. Para que a tradicional imagem da Deusa Thêmis verta um de seus pratos em favor do Estado-acusação e contra o réu, há que se ter depositado sobre tal recipiente um valor significativo de provas que venham a superar o peso que inicialmente já consta no prato do acusado, qual seja, a sua presunção de inocência. Sem tal acúmulo de provas, não se atingirá a certeza necessária a prolação de um édito condenatório, não ocorrendo, por conseguinte, a inversão dos pratos da balança nas mãos de Thêmis. Esta imagem supra, com rara felicidade é trazida à lume, ainda com maior vigor, pelo jurista JOSÉ I. CAFFERATA NORES em seu recente artigo La Eficácia de la Investigación Penal en el Estado de Derecho4.

Conforme dito por JOÃO GUALBERTO GARCEZ RAMOS, em sua imprescindível obra: “Certeza da aplicação da lei penal. Eis o valor a ser buscado. E é preciso que fique muito claro: a lei penal se aplica quando o acusado é condenado e também quando é absolvido”5.

E tal certeza só advém quando o Ministério Público arca, na sua totalidade, com o ônus que lhe é exclusivo: Provar inequivocamente autoria, materialidade e todos os elementos do Tipo Penal que inicialmente imputou ao acusado e que quer, com a condenação, imprimir qual signo de Caim, na fronte do réu.

 

Notas:
1- Acórdão do T.A.P.R. in RT 699/368.
2-  Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, pág. 128 a 132, 3ª ed., Lisboa, A. M. DCCCVI.  ( grifo nosso ).
3- S.T.F. – HC nº 73.338-7 – RS, 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 7/11/89, DJU de 14/8/92, p. 12.225. ementa parcial . ( Grifo nosso ).
4 – Revista Brasileira de Ciências Criminais, IBCCRIM, ed. RT, vol. 35, pág. 29.
5- A Tutela de Urgência no Processo Penal Brasileiro, ed. Del Rey, ano 1998, nota do autor .

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Renato de Oliveira Furtado

 

Advogado Criminalista. Professor de Processo Penal da Universidade Estadual de Minas Gerais – Campus Frutal. Membro IBCCRIM

 


 

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