Os crimes e as penas na obra de Beccaria

Resumo: Cesare Bonesana, dito Beccaria, escreveu obra de formidável repercussão política, Dos Delitos e das Penas, na qual, no auge do Iluminismo, abordou, dentre outros temas, o princípio da legalidade, das penas cruéis e da personalidade da pena. Mais reconhecida pela abordagem da tortura, sua obra foi um importante marco que exerceu grande influência na transformação da justiça penal de diversos países


Sumário: 1. Introdução. 1.1. Iluminismo. 1.2. Beccaria e seu livro. 2. Os crimes. 2.1. Princípio da legalidade. 2.2. A proposital obscuridade ao tratar dos crimes de lesa-majestade e religiosos. 3. As penas. 3.1. Pena de morte e proporcionalidade da pena. 3.2. O princípio da personalidade. 4. O uso da tortura. 5. Conclusão.


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1. Introdução


1.1. Iluminismo


Movimento de idéias  com origem no século XVII, mas difundido no século XVIII, o chamado de “século das luzes”, o Iluminismo (tradução da palavra alemã Aufklärung) tem como objetivo principal estabelecer a soberania da razão sobre a autoridade e os preconceitos. Embora com caráter heterogêneo e de influência eclética, visava destruir a tirania nas suas mais variadas formas.[1]


 Contrapondo-se às principais características da Idade Média, ainda presente na Idade Moderna, como o excessivo poder clerical, a teologia como único caminho à verdade, a superstição, a ignorância e o despotismo, o Iluminismo foi a era da razão. Os pensadores iluministas preconizaram uma sociedade mais racional e humana, por não mais ser concebível crenças e instituições, que não se sustentassem pela força da razão e que servissem de degradação aos seres humanos.[2]


Os filósofos iluministas produziram severas críticas ao cristianismo como possuidor da verdade absoluta, acusado de promover a superstição,[3] o fanatismo e intolerância de credos, com a conseqüente perseguição. Não pouparam a igreja por ter gerado inúmeros atos de violência, notadamente as Cruzadas e a Santa Inquisição.


O cristianismo foi ainda criticado por gerar um dos grandes males políticos daquela época: o despotismo. Não mais se aceitava  a legitimidade divina dos monarcas, tampouco os privilégios aristocráticos e do clero. Defendendo a liberdade como valor supremo, os philosophes tinham como objetivo, colocar freios no abuso de poder.


No campo jurídico , o Iluminismo preconizou a existência de um direito natural, o qual estabelecia que o homem tem desde eras primitivas um núcleo de direitos relacionado à dignidade inerente a todo ser humano (status naturae), independentemente dos motivos que levaram o homem a viver em sociedade. Assim, ficam estabelecidos os direitos individuais inatingíveis pela sociedade.[4] Na visão iluminista, o homem deixa de ser meio e passa a ser o fim da sociedade.[5]


Os pensadores políticos do Iluminismo, tiveram notável influência de dois filósofos do século XVII, Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704).


Dentre os filósofos iluministas, pela grande influência sobre a obra de Beccaria, cumpre destacar Montesquieu e Rousseau.


Montesquieu (1689-1755), em O Espírito das Leis (1748), começa por traçar uma nova definição de lei, que não poderia ser entendida como expressão da vontade divina, rompendo com a confusão existente entre a política e a teologia. Estuda a natureza do governo, a monarquia, a república e o despotismo, tendo cada um como princípio norteador, respectivamente a honra, a virtude e o medo. E, finalmente, define a teoria pela qual é mais conhecido, o princípio da separação dos poderes, segundo o qual o poder deve ser separado em três funções dotadas de igualdade: executivo, legislativo e judiciário.[6]


Rousseau (1712-1778), principalmente com Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755) e o Contrato social (1762), foi um dos autores mais importantes do século das luzes. Em Discurso…, Rousseau faz um histórico da transformação do homem, de seu surgimento em estado de liberdade até a servidão humana, a opressão do mais fraco pelo mais forte. Já no Contrato social, o escritor traça uma forma de ação política, preconizando um pacto social para, após o homem ter perdido sua liberdade natural, estabelecer a liberdade civil. Soberano é o povo, que pode impor ao governante a chamada vontade geral. Rousseu, posteriormente, tornou-se o filósofo da Revolução Francesa.[7]


Por sua vez, Voltaire (1694-1778), embora não tenha sido um pensador sistemático, foi grande polemista e propagandista das idéias iluministas contrárias ao arbítrio. Não há notícia de que tenha influenciado Beccaria. Contudo, há profunda relação entre ambos. Voltaire havia chamado a atenção de toda a Europa para o grave erro judiciário que foi a condenação à morte, pelo suplício da roda, de Juan Calas. Durante o escândalo da condenação de Calas, chega na França o livro de Beccaria, tendo Voltaire publicado o Comentário sobre o livro dos Delitos e das Penas em consigna seu apoio entusiasmado. Segundo Zaffaroni, a campanha de Voltaire no episódio Calas e o livro de Beccaria desestruturaram o sistema penal vigente.[8]


Foi nesse ambiente de efervescência intelectual que Beccaria produziu sua obra Dos delitos e das penas.


1.2. Beccaria e seu livro


Cesare Bonesana, Marques de Beccaria, nasceu em Milão em 15 de março de 1738, filho do Marquês Giovanni Saverio.[9]


Beccaria ficou amigo de Pietro — embora fosse dez anos mais novo — e de Alessando Verri, em cuja casa se realizavam reuniões de jovens para discutir e conhecer as obras do filósofos franceses. Fundaram, então, a Accademia dei Pugni, com grande força entre os anos de 1761 a 1764, cujo objetivo — confirmado pelo nome — era o de combater as idéias conservadoras vigentes.[10]


Em 1764, com 25 anos publicou apocrifamente Dei delitti e delle pene, obra que veio a marcar indelevelmente o pensamento jurídico penal.


Beccaria teve grande influência dos irmãos Verri, notadamente de Pietro,[11] bem como das obras de Montesquieu e Rosseau, especialmente daquele.[12]


A influência dos Verri foi grande. Sabe-se que foram Alessandro e Pietro que redigiram a resposta ao Frei Angelo Fachinei, que publicara o texto Note ed osservazioni sul libro intitolado “Dei delitti e delle pene”, no qual Beccaria é acusado de atentar contra a religião e a soberania.[13]


Nos encontros intelectuais da “Academia dos Punhos”, Beccaria toma conhecimento da crueldade do sistema penal então vigente, por meio dos relatos de Alessandro, que ocupava o cargo de “protetor dos encarcerados”.[14] Ademais, as pesquisas para a redação de Observações sobre a tortura, terminado em 1777 e publicado apenas em 1804,[15]   já eram feitas por Pietro, tendo sido consultadas por Beccaria — de fato, este não realizou qualquer pesquisa para a redação de seu opúsculo. Impressionado pelo relato e sempre estimulado pelos Verri, Beccaria escreveu seu livro, segundo Calamandrei, “mais por um sentido de revolta humana do que por profundo interesse científico”.[16] O tema que o celebrizou, foi como uma excursão dos assuntos que se constituíam seu interesse cotidiano. Por isso se afirma que sua obra não derivou de investigações, mas de um ímpeto de revolta.[17]


Ocorre que, após ter ele viajado à Paris, onde foi reconhecido por toda a ilustração francesa[18], houve o rompimento entre Beccaria e os irmãos Verri. A partir de então, Alessandro e Pietro passaram a atacar Beccaria em suas correspondências, sempre com ácidas críticas a sua obra e a sua pessoa. Impressiona o teor das críticas feitas pelos irmão Verri, relatadas por Calamandrei, que as define como “trinta anos de maledicentes correspondências”. Este autor, ao analisar as missivas, conclui que a verdadeira razão do rompimento é o êxito do livro. [19]


Talvez em razão da difamação epistolar, muito se discutiu sobre o valor e a autenticidade da obra que abordamos, tendo alguns autores chegado a afirmar que os verdadeiros autores de Dos Delitos e das penas seriam os irmãos Verri. Todavia, a autenticidade da obra é certa: foi Beccaria quem a escreveu. Isso foi admitido inclusive pelos irmãos detratores, tendo Pietro escrito: “O livro o fez Beccaria; qualquer pessoa que tenha sentido do estilo, tem de compreender que não é meu.”[20] Além disso, Pietro redigiu moção, em 1796, sugerindo fosse erguido um monumento de reconhecimento ao “imortal Beccaria”, que já havia falecido.[21]


Quanto à originalidade, é inegável que Beccaria não inovou, teoricamente, nas idéias defendidas. Todavia, há que se ter consciência da verdadeira dimensão de seu livro.


O grande valor da obra de Beccaria, é que o sistema penal do antigo regime é o objeto único de seu livro, ao contrário de Montesquieu, que o trata apenas em alguns capítulos de sua obra geral, e de Voltaire que ataca o sistema penal em casos concretos, como na defesa de Juan Calas.[22]


Dos delitos e das penas não é um livro de dogmática penal, ou um comentário sobre o direito penal objetivo; não é, propriamente, obra de um intérprete da lei, mas uma análise crítica e valorativa, do sistema penal vigente; o autor não faz interpretação dos significados do direito penal positivo, e sim ataca a sua iniqüidade. Beccaria fez, portanto, uma obra política, sem pretensões acadêmicas, mas com o intuito de persuadir, de convencer. A relevância de seu livro é menos filosófica e jurídica que política. [23]


Além disso, sem embargo das influências de Pietro Verri, há que se perguntar, como fez Calamandrei, por que, se as idéias são tão pouco originais, por que coube precisamente a Beccaria, escrevê-las?[24] O fato é que ele soube muito bem retratar, com veemência, a indignação dos ilustrados, contra a situação do sistema penal vigente. Eis o seu mérito.


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Seu opúsculo foi um poderoso e eficaz panfleto[25] contra o sistema penal vigente. Eficaz, porque, mercê de sua grande repercussão,[26] exerceu influência direta nas reformas penais.


Com efeito, a tortura foi abolida em diversos Estados: Rússia, em 1766, com a reforma penal empreendida por Catarina II; Áustria, em 1776, por ordem da imperatriz Maria Teresa; França, em 1780, por ordem de Luís XVI; no reinado de José II, por seu decreto de 11 de setembro de 1789; na Toscana, por meio da reforma penal de Pedro Leopoldo, em 1786, em cujo preâmbulo, se vê incontestável influência de Beccaria.[27]


Todavia, embora seja inegável a influência de Beccaria e dos ilustrados, não se pode olvidar que os iluministas não foram teóricos herméticos, alheios ao que se passava a seu redor; ao contrário, eram atormentados pela dura realidade social.[28] Ou seja, havia um clima social[29] propício, de modo que tais reformas penais não são fatos isolados e tampouco meramente decorrentes da obras dos iluministas, nem de Beccaria. Havia uma tendência generalizada, um convicção predominante em toda a Europa.[30]


Apesar do êxito de seu livro, Beccaria, após, sua publicação não mais se dedicou ao tema. Conformando-se com um emprego de  catedrático de economia política ou ciências fiscais.[31]


2. Os crimes


2.1. Princípio da legalidade


O sistema penal vigente ao tempo de Beccaria tinha como característica a ausência de uma sistemática e de uma tipificação dos delitos, posto que vigorava a casuística. As leis penais traziam casos concretos incluídos debaixo do  nomem juris, podendo o juiz adequar, extensivamente, as condutas análogas aos casos concretos descritos na norma. Inexistia a determinação da pena aplicável ao delito, deixando-a ao alvedrio do magistrado. Assim, os juízes dispunham de grande margem de arbítrio na aplicação da lei.[32]


Beccaria condena esse sistema, propondo o princípio da legalidade, ainda que sem intitulá-lo assim.


Como decorrência do § II, Da origem das penas e do direito de punir, no qual adota a teoria do contrato social, já no início do próximo parágrafo, se conclui que apenas as leis — elaboradas pelo legislador — podem fixar as penas aplicadas aos delitos.


Dessa forma, procura limitar o poder arbitrário do magistrado, que jamais poderá extrapolar — “sob qualquer pretexto de zelo ou de bem público” — os limites legais.


Ademais, preconiza que a lei deve ser abstrata e genérica —portanto, não casuística — e que a um terceiro órgão, caberá a análise da subsunção do fato a norma. Nesse tema, é nítida a influência de Montesquieu, com sua teoria da separação dos poderes.


Beccaria chega a sustentar, no § IV (Da interpretação das leis), a absoluta impossibilidade de que a lei seja interpretada. “Nada existe de mais perigoso do que aquele axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei.” Para que se evite a incerteza do direito e o arbítrio, ao juiz caberia apenas um “silogismo perfeito”, de dizer se há adequação entre a conduta e a lei geral e abstrata.


É bem verdade que soa um tanto absurdo a proibição de interpretar a lei. Trata-se, todavia, de um excesso historicamente compreensível, tendo-se em vista o arbítrio generalizado existente em sua época.[33] Visava, ao tolher o arbítrio judicial, evitar a incerteza do direito. Com isso, a liberdade individual ficava protegida diante do poder estatal.[34]           


Beccaria defendeu no § V (Da obscuridade das leis), a necessidade de que a legislação não fosse obscura, evitando a interpretação e possibilitando que o homem do povo compreendesse o exato alcance da norma. Não poderiam, pois, as leis serem escritas em latim, língua só conhecida dos cultos. Conhecendo melhor a lei, menos pessoas do povo, praticariam delitos.


2.2. A proposital obscuridade ao tratar dos crimes de lesa-majestade e religiosos


“Pretendi defender a humanidade sem me converter em seu mártir.” Com essa frase, Beccaria justifica o cuidado com alguns temas, para evitar que no afã de defender suas idéias sofresse ele como mártir.[35]


Utiliza-se da obscuridade e de frases em duplo sentido, principalmente, nos §§ XXVI (Dos crimes de lesa-majestade) e XXXVII (De uma classe particular de crimes).


Ao tratar dos delitos de lesa-majestade a própria concisão do parágrafo comprova sua cautela para evitar ser considerado insubmisso.


Sob o título de “uma classe particular”, o autor alude aos crimes religiosos. Aqui, Beccaria esquiva-se de emitir sua opinião, sob a desculpa de que os pecados deverão ser objetos de estudos teológicos.


Embora descreva de modo direto a execução nas fogueiras, o que indica sua opinião contrária, resta claro o intuito de não polemizar e contrariar os interesses da igreja.[36]


Ressalte-se que tal cautela não era excessiva, mas tampouco foi suficiente para evitar que o Tribunal do Santo Ofício proibisse, por édito de 20 de junho de 1777, a obra de Beccaria.[37]


3. As penas


3.1. Pena de morte e proporcionalidade da pena


3.1.1.     A pena de morte é combatida, no § XVI, por três razões: ilegitimidade, inutilidade e desnecessidade.[38]


Para sustentar a ilegitimidade da pena de morte, Beccaria baseia-se na teoria do contrato social.[39] Se para viver em sociedade, o homem cede uma cota de sua liberdade individual, renuncia um direito natural, jamais o homem poderia renunciar aquele direito essencial que é a vida.


Para sustentar a irrenunciabilidade da vida, Beccaria pergunta como pode a sociedade arrogar-se o direito de tirar a vida, se nem mesmo a própria pessoa pode renunciar a ela, uma vez que se pune o suicídio.


A pena, desse modo, poderia, unicamente, atingir aqueles direitos renunciáveis, dos quais não faz parte a vida.


Embora Beccaria defenda que a vida é irrenunciável, admite ele, hipóteses excepcionais em que a pena de morte é aceitável, por absoluta necessidade, em franca contradição com o exposto. Assim, são duas as possibilidades: quando o condenado mesmo punido, privado de sua liberdade, permanece com relações, ameaçando o poder constituído, tornem necessária a execução; quando se predomina a anarquia, em detrimento das leis e a morte seja o único freio a inibir a prática dos delitos.[40]


O segundo argumento de Beccaria contra a pena de morte, como já dissemos, é o de sua inutilidade e desnecessidade.


Inspirado em Helvetius, Beccaria sustenta suas críticas com base no critério de utilidade social, com isso, visa também esquivar-se de uma discussão teológica, circunscrevendo-se no campo político — trata-se menos de falar em justiça e mais em utilidade social. Não lhe convém dizer que a crueldade dos suplícios e da execução é injusta, mas sim que é inútil, desnecessária, não cumprindo qualquer função social.[41]


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Ainda estava presente a idéia, oriunda da Idade Média, de que a pena significava a retribuição do mal pelo mal. A pena confundia-se com a idéia religiosa de expiação, os suplícios tinham a finalidade de expurgar o pecado do condenado.[42]


Essa concepção Beccaria destrói, de modo sucinto, ao afirmar que “a finalidade da pena não é o de atormentar e afligir a um ser sensível, nem o de desfazer um crime já cometido.” (§ XV, Da suavidade das penas) O autor defende a idéia de que a pena deve ter um caráter preventivo,[43] de evitar que outros, ou que o mesmo delinqüente, se encoraje diante da impunidade a praticar outro delito. Conforme aponta Calamandrei, não mais se pune porque se pecou, mas sim pune-se para que não se peque.[44]


3.1.2.  Correlato ao tema pena de morte, é o § XXIII (Da proporção entre os crimes e as penas), razão pela qual são abordados no mesmo item.


A pena de morte era aplicada para uma vastidão de delitos. Por isso, Beccaria ataca a desproporção entre a pena e o crime. Se houver a previsão de uma mesma pena de morte para delitos de lesividades diversas, não será feita distinção, pela população, entre a gravidade de tais delitos.[45]


Em razão da grande quantidade de delitos apenados com a pena de morte, segundo Valiente, não havia qualquer proporcionalidade  entre delitos e as penas.[46]


É bem verdade que a pena de morte, prevista para os mais variados crimes,[47] parece, em princípio, equiparar delitos de menor danosidade social àqueles que mais seriamente lesionam a sociedade. Todavia, nesse ponto, é necessária uma reflexão. Embora se possa falar na desproporção entre os delitos e a severidade das penas aplicadas ­— na medida em que a pena de morte era por demais severa para certos delitos mais leves — não nos parece correto falar em absoluta falta de proporcionalidade, por dar a impressão de inexistência de gradação entre as diversas modalidades de execução da pena de morte.


O próprio Valiente aponta que, em razão da freqüência com que era prevista a pena capital, “su aplicación revestía diversas formas, como último intento de aterrorizar eficazmente a los ciudadanos, reservando las formas más dolorosas para los delitos más graves.” [48]


Para criar uma distinção entre a danosidade social dos diversos delitos apenados com a pena capital, conforme leciona Foucault, é que se utilizava os suplícios. Assim, quanto mais grave fosse o crime, maior a intensidade do suplício, com maior sofrimento do réu, de modo a demonstrar a maior reprovabilidade do delito.[49]


Não nos parece acertado, em vista da existência dos suplícios e de sua finalidade, falar em absoluta ausência de proporcionalidade das penas. A maior crueldade na execução dos crimes mais graves, comparadas à execução dos delitos menos graves, tornava as penas, de certo modo, proporcionais.


3.2. O princípio da personalidade


Atualmente considerado como um truísmo do direito penal, o princípio da personalidade da pena, segundo o qual apenas sob a pessoa do delinqüente deve recair a punição, não vigorava no sistema penal das monarquias absolutas. A pena poderia atingir os descendentes do condenado, com a pena de infâmia.[50] Beccaria atacou tal possibilidade.


Beccaria, no § XXXV (Do suicídio e dos emigrantes), preconiza a necessidade de que a pena não passe da pessoa do condenado. Deduz-se do texto que o suicídio era punido de duas formas, ou sobre o corpo do suicida ou atingindo-se os seus bens, que por via reflexa atinge seus familiares. Assim, define como “injusta e tirânica” as penas que não sejam “meramente pessoais”.


No § XVII (Do banimento e dos confiscos), o autor também desaprova a pena de confisco, por atingir  inocentes quais sejam os familiares do condenado, levando-os a prática de novos delitos.


No § XXX (Dos furtos), Beccaria defende que ao furtador deveria ser prevista uma pena meramente pecuniária. Contudo, como tal classe de delitos é, em regra, praticado pelos despojados, uma sanção pecuniária atingiria também os familiares. Embora aqui não se trate exatamente do princípio da personalidade da pena, já que recairia apenas uma conseqüência indireta sobre os familiares, é nítida a preocupação do autor em evitar que ao se punir a falta de um, se atinja toda a sua família. Aqui, além disso, se mostra uma preocupação racional.


3.3. A função simbólica e a racionalidade da pena


No § XXXV, Beccaria, ataca o que poderíamos chamar de função simbólica da pena. Assim, nenhuma lei que não tenha força suficiente para vigorar, tornando-se insubsistente, deverá ser promulgada, devendo-se evitar as leis inúteis. De modo que se não é possível desestimular quem deseja subtrair a própria vida, não há lógica em considerar o suicídio como delito. Assim, a lei não deve ser apenas um indicador moral da sociedade, simbolizando as condutas inadequadas, mas deve ter utilidade.


No § XX (Da certeza e infalibilidade das penas. Das graças), Beccaria defende que o freio inibitório da criminalidade não é a crueldade da pena, mas a certeza de sua aplicação. Uma pena severa aliada à esperança da impunidade não desestimula a prática do crime.


A idéia vigente era de que o crime iguala-se ao pecado, que a violação da norma penal ofende a Deus. Assim, a punição é a imposição de uma justa vingança contra aquele que desobedeceu os preceitos divinos.[51]


Beccaria rechaça tal concepção religiosa,[52] mística, procurando impor sempre a racionalidade, por meio de um argumento lógico. É bem verdade que ele não abandona a emoção ao mencionar a tortura, ou a punição, valendo-se  de adjetivos constantes como cruel e atroz.  No entanto, a emoção serve para sensibilizar sobre o sofrimento dos réus e a razão serve para demonstrar a inutilidade e desnecessidade de tal dor.


O autor afasta sumariamente qualquer idéia vindicativa, valendo-se apenas do utilitarismo. A pena tem um fim definido, caracterizado pela prevenção geral e especial, e para atingir esse objetivo, é preciso encontrar uma pena que seja útil e necessária.


Não atingirá a prevenção, a simples previsão de uma pena cruel. Tal objetivo será melhor alcançado com a certeza da aplicação da pena mais suave dentre as aptas para alcançar o fim proposto.


Como exemplo de racionalidade, confira-se o § XXX (Dos furtos). Há um argumento racional para se estabelecer qual a pena mais adequada. Se a causa dos crimes patrimoniais está na miséria de nada adianta punir o delinqüente — com uma sanção pecuniária, que seria a mais indicada — empobrecendo-o ainda mais, pois isto premiria à prática de um novo delito. A pena — embora pudesse satisfazer um sentimento vindicativo — exerceria uma função meramente simbólica, ficando vazia de utilidade. Vale dizer, a pena não deveria servir para penitenciar o agente, ao contrário, deveria solucionar um problema com origem eminentemente social.


Ademais, Beccaria defende que deve-se preferir evitar os crimes em vez de puni-los.


Como critério para definir a magnitude do delito, ao contrário do pecado, é estipulado a danosidade social, sem importar a dignidade da vítima.[53]


4. O uso da tortura


Beccaria aborda o tema da tortura no § XII, o segundo mais extenso e considerado como o mais contundente de sua obra.


O uso da tortura, conforme aponta Foucault, não era desmedido: “cruel, certamente, mas não selvagem”. Ao contrário, havia uma série de regras que detalhavam o tormento, seja estipulando a duração, seja definindo os instrumentos utilizados.[54] Enfim, não se tratava de um massacre praticado descriteriosamente pelo verdugo.


Basta que se confira, por exemplo, a Constitutio Criminalis Theresiana, na qual há a descrição minuciosa e cuidadosa das formas de aplicar a tortura, coibindo a imaginação e a vontade dos magistrados, que ficavam adstritos aos métodos estabelecidos na lei.[55]


A confissão feita sobre tortura deveria ser ratificada, posteriormente, para que tivesse validade. Se não feita a ratificação, o réu poderia ser submetido a nova sessão de tortura, por duas ou três vezes, dependendo da legislação.[56]


Há, segundo Foucault, uma espécie de ajuste entre o réu-torturado — chamado paciente — e o juiz, uma espécie de disputa: se o réu suportar, o juiz não poderá fazer uso das provas já amealhadas.


No sistema de provas do século XVIII, a culpabilidade do réu não era vista de modo dualista: ou culpado ou inocente. Na medida em que se reuniam elementos probatórios, por menores que fossem, o réu ia se tornando um pouco culpado. Tendo contra si algum indício, o réu já era merecedor de um pouco de punição. Assim, a tortura tinha um duplo papel, era o começo da punição para o réu que já era um pouco culpado e era o método para se obter a prova da integralidade da culpa. Por isso, quem fosse submetido a tortura e não confessasse, não era considerado inocente, mas parcialmente culpado e tinha sido parcialmente punido.[57] Assim, justificava-se a previsão legal do uso da tortura.


Na sua abordagem sobre a tortura, Beccaria não argumenta sobre a pesquisa de casos concretos, mas de modo genérico e por princípios. Ao contrário de Pietro Verri, que em suas Observações sobre a tortura usou como pano de fundo, para demonstrar a inaceitabilidade da tortura, o caso dos untores de Milão.


Verri relata que em 1630, naquela cidade, uma grande peste dizimou dois terços da população, colocando a cidade a mercê de salteadores que se aproveitavam da catástrofe. É compreensível o estado de alarma a que estava sujeita toda a população de Milão. Chega, então, à cidade um despacho do rei Felipe IV, informando que quatro homens foram vistos saindo de Madrid, com ungüentos para provocar a peste. Com isso, disseminou-se a idéia de que a peste era criada artificiosamente por médicos, com intenção de cobrar por suas consultas.[58]


Nesse clima de comoção social, por ter sido visto andando próximo ao muro, em dia de chuva, foi acusado de espalhar peste através de ungüentos Guglielmo Piazza, sendo, então, submetido à tortura.


Verri, descreve com detalhes os tormentos impostos contra o “paciente”, demonstrando a pesquisa feita para a composição do livro, inclusive com a transcrição dos gritos, registrados pelo escrivão.[59] Após dois dias de interrogatório, acusa o barbeiro  Gian Giacomo Mora. Este também submetido à tortura, confessou. Foram ainda acusados Gian Stefano Baruello[60] e outros réus.


Foram todos condenados a morte com suplícios.[61] Posteriormente, a casa do barbeiro Mora foi destruída e no lugar foi erguida a chamada coluna infame, com dizeres em latim.[62]


Este breve relato sobre o livro de Pietro Verri tem o objetivo de demonstrar o seu método. Este autor partiu de um caso concreto, verídico, e chegou a uma doutrina geral. Assim, talvez, se confirme a assertiva de Rivacoba, segundo a qual o instrumento mais poderoso e decisivo para as transformações do século das luzes, foi o argumento emocional, sentimental.[63] De fato, não há como conter a comoção diante da descrição dos tormentos impostos aos “untores”, seus gritos lancinantes; os suplícios com que se executou a pena de morte. Tudo isso, sabendo-se que se tratavam de inocentes, já que nem crime houvera.


Beccaria, por sua vez, baseou-se em informações genéricas que lhe davam Pietro e Alessandro, como já dito. Além do mais, Beccaria escreveu um livro mais amplo, abordando todo o sistema penal, enquanto Verri, escreveu apenas sobre a tortura.


Beccaria inicia o parágrafo sobre a tortura, dimensionando o tema: falará sobre a tortura propriamente dita, ou seja a que ocorre enquanto se desenvolve o processo, diferenciando-a, por conseguinte do suplício.[64]


Propõe o dilema: ou o crime é certo ou incerto. Afasta-se, assim, da idéia existente, exposta por Foucault e já mencionada, que havia uma culpa parcial. 


O autor insiste que a possibilidade de se atormentar um inocente é freqüente e inevitável, tendo em vista que, se a maior parcela da população é cumpridora da lei, maior é a chance de se atormentar um inocente.


Sustenta que o sofrimento imposto não é o caminho para a busca da verdade, mas apenas se comprova a resistência física do atormentado.


Compara a tortura com as provas de fogos, das quais aquela é derivada. 


A dor do tormento faz, muitas vezes, com que a pessoa, para libertar-se do sofrimento imediato opte pela confissão. “Este é o meio seguro para absolver os delinqüentes de constituição resistente e condenar aos inocentes fracos e debilitados.”


Aponta que o resultado da tortura não tem nenhuma relação com a verdade, mas indica apenas a resistência física do atormentado.


O culpado está sempre em melhor situação que o inocente, pois este só tem a perder. Ou confessa e é condenado pelo que não fez ou não admite a falsa confissão e sofre com a reiteração dos tormentos.


Segundo Beccaria, o alto valor atribuído à confissão deve-se à confusão abusiva com preceito religioso, consistente na confissão dos pecados.


Logo, Beccaria combate a tortura demonstrando, racionalmente, sua inutilidade, sua ineficácia para a obtenção da verdade. Embora use expressões com o fito de sensibilizar, de comover, a força deste parágrafo está em sua racionalidade. Demonstrando ser ineficaz, não há como se manter a cruel prática da tortura.


5. Conclusão


A obra de Beccaria representa todo um movimento intelectual que não mais aceitava um sistema destituído de racionalidade. Seu livro foi de suma relevância para desestruturar o sistema penal então vigente, foi uma obra política de grande repercussão, na qual se demonstrou que o sistema penal deve ter como critério a utilidade, renegando toda forma de violência institucional que não seja útil e necessária.


 


Bibliografia

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Valiente, Francisco Tomás y. La tortura en España, 2ª edição, Barcelona: Editorial Ariel, 1994.

Verri, Pietro. Observações sobre a Tortura, trad.: Federico Carotti, São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Zaffaroni, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Parte General, tomo II, Buenos Aires: Ediar, 1987.

 

Notas:

[1] Binetti, 1995, pp. 605/606.

[2] Perry, 1999, p. 296.

[3] Como exemplo de superstição, Verri menciona que, no caso dos ungüentos pestilentos de Milão, em 1630, alguns torturados não suportaram os horrores da tortura e morreram. Suas mortes foram atribuídas, por Ripamonti, cronista da época, não à tortura, mas ao demônio: “os imputados durante as torturas tinham sido estrangulados pelo demônio.” (Verri, 1992, p. 67)

[4] Binetti, 1995, pp. 606/607.

[5] Rivacoba, 1977, p. XLII.

[6] Albuquerque, 1991, pp. 113-120.

[7] Nascimento, 1991 ,pp. 194-198.

[8] “un escándalo y um panfleto sirvieron para quebrar un dique tremendo, asentado sobre os siglos de crueldade institucionalizada.” (Zaffaroni, 1987, p. 84)

[9] Valiente, 1994, p. 145.

[10] Valiente, 1994, p. 146. Rivacoba, 1977, p. XX.

[11] Valiente, 1994, p. 146.

[12] Valiente, 1994, p. 148.

[13] Zaffaroni, 1987, p. 87. Valiente, 1994, p. 147.

[14] O “protetor dos encarcerados”, cargo com que começavam muitos jovens italianos suas carreiras jurídicas, tinha a função de visitar, dar assistência, recolher as queixas dos prisioneiros e fazer sua defesa, quando não tinham recursos. (Rivacoba, 1977, p. XXX)

[15] Dallari, 1992, p. XIV. Provavelmente, Pietro tenha deixado de publicar seu livro em respeito a seu pai, Gabriele Verri, o qual, como Senador da Lombardia e relator do projeto de abolição da tortura, em 1776, deu parecer por sua manutenção, por considerá-la conveniente. Segundo Rivacoba, sustentou, que a tortura não era nem atroz nem freqüente, mas era imprescindível para a confissão e a prova, especialmente entre a gente plebéia, e sua utilidade estava comprovada pelo uso. (Rivacoba, 1977, p. XXIX)

[16] Calamandrei, 1978, p. 23-24. Rivacoba, 1977, p. XXXII.

[17] Calamandrei, 1978, p. 27. Valiente, 1994, p. 146.

[18] Zaffaroni, 1987, p. 87.

[19] Calamandrei, 1987, p. 34.

[20] Carta de 17 de maio de 1780, apud Calamandrei, 1978, p. 38.

[21] Rivacoba, 1977, p. XXIV. Calamandrei, 1978, p. 39.

[22] Valiente, 1994, p. 148.

[23] Luisi, 1991, p. 117, Valiente, p. 149. Agudelo, 1990, p. XXXIII. Ademais, é de se observar a pouca idade de Beccaria, ao escrever sua obra (25 anos), o que, associada à ausência de uma pesquisa mais aprofundada, ao contrário do próprio Pietro Verri, que pesquisou a fundo o caso da coluna infame, e de  Montesquieu, que publicou seu livro na maturidade, após tê-lo escrito por 20 anos. Segundo Zaffaroni, se a obra de Beccaria é política, Montesquieu é o que hoje chamaríamos de sociólogo do direito (Zaffaroni, 1987, 90).

[24] “Porém, esqueceu-se de explicar porque precisamente aquele pequeno livro foi escrito por ele, e não por outro, e por que milagre somente naquelas pequenas páginas a ‘comum mentalidade dominante’ soube encontrar aquela sólida e arrebatadora preemência sem a qual não se fazem as revoluções.” (Calamandrei, 1978, pp. 43-44).

[25] A expressão é usada sem qualquer conotação pejorativa; panfleto pois foi propaganda contra o sistema penal vigente (Zaffaroni, 1987, p. e Calamandrei, 1978, p. XXX)

[26] Foi reeditada sucessivamente na Itália e traduzida para muitas línguas. (Luisi, 1991, p. 116)

[27] Valiente, 1994, pp. 152-153. Rivacoba, 1977, p. XXVIII.

[28] Rivacoba, 1977, p. XII.

[29] Rivacoba, 1977, p. XI.

[30] Rivacoba, 1977, p. XXVII.

[31] Zafaroni, 1987, p. 87. O cargo foi criado no ano de 1768 e Beccaria o assumiu em 1769 (Valiente, 1994, p. 150). “Y al margen de su personal abulia, a pesar de su completo silencio después de 1764, este libro anduvo solo por el mundo, separado de sua autor, con vida propria.” (Valiente, 1994, p. 152).

[32] Valiente, 1994, pp. 157-158.

[33] Calamandrei, nota 23, ao § IV, Beccaria, 1978, p. 114. “Esta posición extrema de Beccaria, quel le hace caer en un positivismo jurídico a ultranza, tiene su explición en el afán de la época de suprimir toda arbitrariedad en la administración de justicia. Por otro lado, no debe considerárselo totalmente equivocado, al menos en un sentido. En efecto: ‘el espíritu de la ley’, tal como se lo entendía a partir de Montesquieu, no era otra cosa que una interpretación sociológica.” (Zaffaroni, 1987, p. 91)

[34] Agudelo, 1990, p. XLI. É clara a influência de Montesquieu: “… os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.” (livro XI, cap. VI)

[35] Calamandrei, 1978, p. 32.

[36] Calamandrei, nota 168, in: Beccaria, 1978, p. 287.

[37] Valiente, 1994, p. 170.

[38] Valiente, 1994, p. 162. Agudelo, 1990, p. L. Em princípio, parece haver uma equivalência entre as expressões útil e necessário. Todavia, útil significa que a pena deve ter como finalidade, a prevenção. É inútil a pena de morte, porque não se atinge o fim almejado. Necessário dá a idéia de relatividade. A pena só será necessária, quando não houver outro meio de se atingir o fim proposto. Desse modo, uma pena poderá ser útil, se cumprir a prevenção, mas poderá ser desnecessária, se o mesmo fim puder ser alcançado com uma pena mais leve. Por isso, “la pena, al par que útil, debe ser necessaria.” (Zaffaroni, 1987, p. 91)

[39] Segundo os autores, o contratualismo no qual se baseia Beccaria, para sustentar essas idéias, não é o de Rousseau, mas de Locke.(Zaffaroni, 1987, p. 92) Segundo Agudelo, Locke “también es contractualista, pero acepta una renuncia solo parcial por parte del ciudadano como una manera de limitar el poder civil.” (Agudelo, 1990, p. LII)

[40] Agudelo, 1990, p. LV.

[41] Calamandrei, 1978, pp. 70-71.

[42] Calamandrei, 1978, p. 74.

[43] Agudelo, 1990, p. XLV. Zaffaroni, 1987, p. 92. Cerezo Mir, 1994, p. 89.

[44] “… não mais ‘punitur quia peccatum’, senão que ‘punitur ne peccetur’.” (Calamandrei, 1978, p. 77) “Para decirlo en brocardos latinos, la teoría de la retribución castiga quia peccatum est, la teoría de la prevención castiga ne peccetur…” (Agudelo, 1990, p. XLVIII)

[45] “Quem ver estabelecida a mesma pena de morte, por exemplo, para quem mata um faisão, para quem assassina um homem, ou para quem falsifica um documento importante, não fará nenhuma distinção entre esses crimes” (Beccaria, 1978, p. 226).

[46] Valiente, 1994, p. 159.

[47] A pena capital era prevista para as “infrações mais fúteis que hoje não passariam com uma multa de pequena importância.” (Calamandrei, 1978, p. 62).

[48] Valiente, 1994, p. 158. “… para restabelecer as devidas proporções, se procurava graduar a pena pelo modo como se infligia a morte e pela variedade e duração das torturas que a precediam ou dos ultrajes com que se perseguia ao cadáver.” (Calamandrei, 1978, p. 62)

[49] Foucault, 1999, p. 31: “O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.” Confira-se, a propósito, a descrição da execução contra José Gabriel Túpac-Amaru e de seu filho Hipólito. Este teve a língua cortada e foi enforcado. José Gabriel teve a língua cortada, depois teve cada um de seus membros atados a quatro cavalos que partiram para direção oposta, com o fim de esquartejá-lo. Comparando-se apenas estas duas execuções, resta claro que há uma maior severidade na pena imposta ao pai, certamente, pela maior reprovabilidade de sua conduta. (Agudelo, 1990, pp. XXII a XXVI)

[50] Confira-se relato de Agudelo, 1990, p. XXVI.

[51] Valiente, 1994, pp. 159-160.

[52] Zaffaroni, 1987, p. 91.

[53] Valiente, 1994, p. 186.

[54] Foucault, 1999, p. 36.

[55] Rivacoba, 1977, p. VIII.

[56] Valiente, 1994, p. 157.

[57] Foucault, 1999, p. 37-38: “Um suspeito que continuasse suspeito não estava inocentado por isso, mas era parcialmente punido.” Compreendendo-se a visão da época, responde-se à indignada interrogação de Calamandrei: “como podiam aqueles pais, depois de haver presidido uma ‘quasteio’ na câmara de torturas, voltar ao fim da tarde para suas casas e sorrir serenamente para os seus filhos” (Calamandrei, 1978, p. 65).

[58] Verri, 1992, pp. 7-9.

[59]  “Ah Senhor, ah São Carlos, se eu soubesse, diria”; “matem-me, matem-me”; “Oh Deus, estou sendo assassinado, não sei de nada, e se soubesse alguma coisa não estaria até agora sem dizer.” (Verri, 1992, pp. 18-21.

[60] Confira-se a descrição de seu interrogatório sob tortura: “Então novamente começou a se contorcer a abrir os lábios cerrando os dentes, e por fim disse: V.Sa. me ajude, Senhor, ah meu Deus! Ah meu Deus!” (Verri, 1992, p. 46)

[61] “… conduzidos numa carroça, sofrendo as tenazes em várias partes do corpo, tiveram a mão decepada, depois, fraturados os ossos dos braços e pernas ficaram entrelaçados vivos sobre as rodas e lá ficaram por umas seis horas, ao cabo das quais foram finalmente decapitados pelo algoz, sendo depois queimados e suas cinzas lançadas ao rio.” (Verri, 1992, pp. 64-65)

[62] “Aqui onde se encontra esta área / eguia-se outrora a barbearia / de Giovanni Giacomo Mora / o qual, tendo feito com Guglielmo Piazza / comissário público da saúde / e outros uma conjuração / enquanto recrudescia uma peste atroz / espalhou por vários lugares ungüentos mortais / e levou muitos à dura morte; / o senado ordenou que ambos julgados inimigos da pátria, / postos numa carreta / torturados primeiro com tenazes ardentes / e amputados da mão direita / fossem submetidos à tortura da roda / e depois de ficarem entrelaçados à roda não restasse vestígio algum de homens tão celerados / fossem confiscados seus bens, / e que suas cinzas fossem lançadas ao rio. / Para que deste fato se conservasse uma imorredoura lembrança, / ordenou que esta casa, oficina do crime, / fosse demolida / e jamais reconstruída no futuro / e se erigisse uma coluna / que há de se chamar infame. / Afastai-vos daqui, afastai-vos, portanto, / ó bons cidadãos, / para que o solo funesto e infame / não vos contamine. / 1º de agosto de 1630.” (Verri, 1992, nota pp. 65-66)

[63] Rivacoba, 1977, p. XI.

[64] A confusão entre os termos é freqüente, o próprio Beccaria usa a palavra suplício com a conotação de tortura. Parece, no entanto, clara e necessária a diferenciação: embora ambos sejam a imposição de dor física, o suplício era aplicado quando da execução da pena de morte. Conforme expusemos atrás, cumpria uma função de agravar a pena capital, para os casos mais graves. Portanto, tortura era meio de prova, suplício pena. “Por tortura não entendo uma pena atribuída a um réu condenado por sentença, mas pretensa busca da verdade por meio dos tormentos.” (Verri, 1992, p. 70)


Informações Sobre o Autor

José Nabuco Filho

advogado em São Paulo, mestre em Direito Penal (Unimep), Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) e de Direito Penal Eleitoral no Curso de Especialização em Direito Eleitoral do Centro Universitário Claretiano


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