Os direitos fundamentais

Um
resumo seqüencial dos direitos fundamentais, posicionando-os historicamente e
levando em conta os ciclos que lhes são inerentes, de forma global, pode ser
visualizado pelas seguintes etapas: 1 – uma pré-história, que se estende até o
século XVI; 2 – uma fase intermediária, que se liga ao período de elaboração da
doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; 3 – a
fase de constitucionalização, que se inicia em 1776, com as sucessivas
declarações de direitos dos novos Estados americanos.

As
idéias relacionadas às liberdades fundamentais, ensejadoras dos direitos
fundamentais como hoje vistos, têm sua base na seguinte idéia, resumida por
Otfried Hoffe:

“As
liberdades fundamentais devem definir para cada ser humano certos espaços de liberdade,
em que não devem intervir os outros e no qual pode fazer e deixar de fazer o
que bem lhe parece. Para que tais espaços de liberdade se tornem realidade,
cada um deve saber exatamente até onde alcançam e onde terminam; e o saber
correspondente deve ser comum a todos, já que as liberdades fundamentais
somente se realizam através da renúncia à liberdade por parte de todos” (HOFFE,
2001: p. 366-67).

Trata-se
de uma proteção não só contra a interferência indevida de outro particular em
nossas vidas, bens ou interesses, mas também uma barreira para evitar abusos e
ingerências de parte do próprio Estado e entes organizados.

A
verdade é que a justiça sem um mandato coletivo para o exercício da coerção não
se torna uma realidade, porque não consegue existir com efetividade e bom
direcionamento. Daí surge a idéia do contrato social.

E
o respeito a tal mandato é incondicional e a ofensa a ele grave, pois nas
palavras de Otfried Hoffe:

“…os
poderes do Estado não existem por própria perfeição de poder, mas graças à
renúncia do direito daqueles que são primeiros e originários os aliados no
direito. Somente porque são vantajosas para cada um deles as renúncias à
liberdade que fazem parte das liberdades fundamentais e porque cada um deles
assim se situa melhor diante da hipótese se um poder coletivo é responsável
pelas liberdades fundamentais, por isso e somente por isso os poderes do Estado
são legítimos. Hobbes simbolizou a pretensa carta branca do Estado na figura do
Leviatã” (HOFFE, 2001: p. 393).

As
normas jurídicas, portanto, com o consentimento de todos e visando proteger os
anseios, reivindicações e interesses gerais, regulamentam o convívio em
sociedade, e as constitucionais estão no topo da pirâmide de nossa ordem legal.
O ordenamento jurídico existe levando em consideração as relações necessárias
que surgem da natureza dos fatos e valores em jogo.

Louis
Assier-Andrieu, ao tratar da ordenação humana e do conteúdo das leis,
posiciona-se:

“As
mais variadas causas governam a ordem dos homens: o clima, o relevo, a
economia, a demografia, as idéias religiosas e, enfim, elemento fundamental, o
“espírito geral da nação” determinam a fisionomia das regras da vida humana e,
como esses fatores mudam de um lugar para outro, de uma cultura para outra, é
legítimo que as leis mudem. Essa é a primeira das grandes novidades. Quem a
expressaria melhor do que seu próprio autor…”As leis são as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas” (ASSIER-ANDRIEU, 2000: p. 101).

De
tais relações, que confirmam o tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale,
emergem as normas jurídicas fundamentais, a resguardar aqueles direitos
chamados fundamentais, especialmente estabelecidos na Constituição Federal, com
o fito de guardar a unidade e a harmonia do direito e da ordem social e legal,
além de proteger os bens da vida mais importantes à coexistência em sociedade.

Conforme
Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“A
supremacia do Direito espelha-se no primado da Constituição. Esta, como lei das
leis, documento escrito de organização e limitação do Poder, é uma criação do
século das luzes. Por meio dela busca-se instituir o governo não arbitrário,
organizado segundo normas que não pode alterar, limitado pelo respeito devido
aos direitos do Homem.

A
Declaração de 1789 exprime essa idéia no art. 16: ‘A sociedade em que não
esteja assegurada a garantia dos direitos (fundamentais) nem estabelecida a
separação de poderes não tem Constituição”(FERREIRA FILHO, 2005, p. 3).

Os direitos fundamentais, normas jurídicas
positivas constitucionais que são, devem ser vistos como a categoria instituída
com o objetivo de proteção à dignidade, à liberdade e à igualdade humanas em
todas as dimensões. O termo fundamental, é certo, deixa clara a
imprescindibilidade desses direitos à condição humana e ao convívio social.

De acordo com a precisa lição de Ingo Wolfgang
Sarlet:

“Os direitos fundamentais, como resultado da
personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos
(daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e
organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da
Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado
pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado
constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir
da forma mais contundente no período que sucedeu à Segunda Grande Guerra)
certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da
ditadura e do totalitarismo” (SARLET, 2005: p. 70)

Classificar direitos como fundamentais significa
tirá-los da esfera de disponibilidade do legislador ordinário, agregando-lhes
força, imperatividade absoluta, cogência e garantia tão intensas, que não é
mais possível qualquer restrição, limitação, flexibilização ou não incidência
deles.

Inexiste norma constitucional completamente
destituída de eficácia, apesar da inescondível presença de uma graduação de
carga eficacial das mais diversas normas constitucionais. No entanto, quando se
fala em direitos fundamentais, referida carga eficacial deve ser vista, tida e
realizada de modo integral.

A diferença entre direitos e garantias repousa na
circunstância de que estas não resguardam bens da vida propriamente ditos, tais
como a liberdade, a propriedade, a segurança, mas sim fornecem instrumentos ou
caminhos jurídicos aos indivíduos para exatamente garantir referidos direitos.

As garantias, por conseguinte, são os veículos, os
meios, os modos, as formas que conferem eficácia aos direitos fundamentais; são
direitos de ordem processual, permissões para ingressar em juízo para obter uma
medida judicial com uma força específica ou com uma celeridade não encontráveis
nas ações ordinárias.

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes
Júnior tecem a seguinte consideração ao abordar o tema:

“Rui Barbosa foi um dos primeiros a abordar a
questão. Disse que da leitura do texto constitucional poder-se-iam separar as
disposições declaratórias, que estariam a imprimir existência legal aos
direitos reconhecidos, das disposições assecuratórias, que atuariam na proteção
desses direitos fundamentais, limitando o poder (…)

Logo, para diferenciar direitos de garantias,
a interpretação do texto constitucional deve ter em foco o conteúdo jurídico da
norma, se declaratório ou assecuratório, e não a forma redacional empregada”
(ARAUJO, 2003, pp. 86-87)

A bem da verdade, feitas as distinções acima e sem
o intuito de estabelecer o caos, é possível assinalar que os direitos são
garantias, e que as garantias são direitos.

Das características relacionadas aos direitos
fundamentais, importa elencar:

1 – Historicidade: têm eles caráter histórico como
qualquer direito, ou seja, se formos rebuscar suas origens, encontraremos uma
cadeia evolutiva, no pico da qual eles se situam.

2 – Universalidade: são destinados a todos os seres
humanos, indistintamente, constituindo uma preocupação geral da humanidade.

3 – Individualidade, que não se contrapõe à
universalidade, pois está relacionada ao fato de que cada pessoa é um ente
perfeito e completo, mesmo que considerado de forma isolada e ainda que se leve
em conta a gregariedade inerente ao ser humano.

4 – Limitabilidade: não são absolutos, porque podem
ocorrer situações em que o exercício de um direito fundamental coloca o seu
titular em choque com quem exerce um outro direito fundamental, havendo então
uma colisão de direitos, resolvida não pelo aspecto da validade, mas sim pela
preponderância de um ou outro direito, de acordo com as peculiaridades do caso
concreto. A contraposição de direitos fundamentais igualmente valiosos se
resolve, por conseguinte, através daquilo que se denomina relação de
precedência condicionada.

5 – Concorrência: os direitos fundamentais podem
ser acumulados num mesmo titular, ou cruzar-se vários deles.

6 – Irrenunciabilidade: os indivíduos não podem
deles dispor. É possível que deixem de exercer alguns dos seus direitos
fundamentais, mas não renunciar a eles.

Ainda seguindo os passos de Luiz Alberto David
Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior, no que concerne à especial proteção que
nossa Constituição Federal de 1988 outorgou aos direitos fundamentais, foram
ressaltados os seguintes aspectos:

“a) nível singular de proteção de suas normas,
exteriorizada pela inserção de seus dispositivos na Constituição, o que implica
um processo mais gravoso de reforma e, desse modo, um dever de compatibilidade
vertical entre o conjunto legislativo ordinário e a sua textura normativa;

b) direitos e garantias individuais, como espécie
dos direitos fundamentais, erigidos em limites materiais à própria competência
reformadora, conforme enunciado no art. 60, § 4º, IV, da Constituição;

c) comando de aplicabilidade imediata de seus
preceitos, nos termos do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal”. (ARAUJO,
2003, pp. 92-93)

De modo sucinto, pode-se classificar os direitos
fundamentais em três gerações já conhecidas pela doutrina, somada a mais uma
que surge, ou seja:

1 – primeira geração: direitos individuais e
políticos, de defesa do cidadão contra a indevida intromissão estatal, devendo
o Estado atuar de tal modo que se abstenha de se imiscuir na vida particular
dos cidadãos, tais como os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à
igualdade perante a lei, completadas por um leque de liberdades, tais como as
de expressão coletiva (liberdades de imprensa, de expressão, de manifestação,
de reunião e de associação), bem assim pelos direitos de participação política,
tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva;

2 – segunda geração: direitos sociais, econômicos e
culturais para a satisfação das necessidades mínimas relacionadas à dignidade
dos indivíduos, exigindo uma atuação positiva do Estado, ou seja, assistência
social, saúde, educação, trabalho e as chamadas liberdades sociais, que são a
liberdade de sindicalização, o direito de greve, às férias e ao repouso semanal
remunerado, a garantia de um salário mínimo e a limitação da jornada de
trabalho;

3 – terceira geração: são direitos de titularidade
difusa, ligados à solidariedade e fraternidade (direito à paz, do consumidor,
ao desenvolvimento econômico, à comunicação, ao meio ambiente saudável, direito
à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural);

4 – finalmente, de quarta geração: são os
denominados direitos à democracia, à informação, ao pluralismo, o direito de
ser diferente (que não pode servir de escusa à intolerância de outros
direitos), a biotecnologia, a bioengenharia, direito ao exercício da plena
cidadania.

A classificação ajuda historicamente e o propósito
de sistematização e facilitação do entendimento é sempre válido. No entanto, há
de se ter cuidado com formalismos e a vontade constante de se reconhecer novos
direitos fundamentais, o que pode ser nocivo, de conformidade com a resumida
análise de Ingo Wolfgang Sarlet:

“No que diz com o reconhecimento de novos direitos
fundamentais, impende apontar, a exemplo de Perez Luño, para o risco de uma
degradação dos direitos fundamentais, colocando em risco o seu “status jurídico
e científico”, além dos desprestígio de sua própria “fundamentalidade”. Assim,
fazem-se necessárias a observância de critérios rígidos e a máxima cautela para
que seja preservada a efetiva relevância e prestígio destas reivindicações e
que efetivamente correspondam a valores fundamentais consensualmente
reconhecidos no âmbito de determinada sociedade ou mesmo no plano universal”
(SARLET, 2005: p. 62)

De relevo anotar que se utilizou o termo “geração”,
ao invés de “dimensão”, ao classificar os direitos fundamentais, sem a
conotação que alguns constitucionalistas pretendem lhe dar, isto é, fugindo da
idéia de uma geração de direitos substituindo a outra, mas sim com a convicta
conclusão de que as categorias de direitos se complementam e se harmonizam.

Qualquer dicotomia que se pretenda estabelecer ou
se possa imaginar, concernente aos direitos fundamentais e suas gerações, deve
ser superada levando-se em conta que são eles indivisíveis e interdependentes.

Distinção que é digna de menção é aquela entre
direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido
material, exposta por Ingo Wolfgang Sarlet:

“De modo geral, os direitos fundamentais em sentido
formal podem, na esteira de K. Hesse, ser definidos como aquelas posições
jurídicas da pessoa – na sua dimensão individual, coletiva ou social – que, por
decisão expressa do Legislador-Constituinte foram consagradas no catálogo dos
direitos fundamentais (aqui considerados em sentido amplo). Direitos
fundamentais em sentido material são aqueles que, apesar de se encontrarem fora
do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância podem ser equiparados aos
direitos formalmente (e materialmente fundamentais” (SARLET, 2005: p. 93).

Além de todos os aspectos antes mencionados, os
direitos fundamentais, normas incorporadoras de determinados valores e decisões
essenciais que são, têm também o propósito de servir, na sua qualidade de
normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva,
como diretriz para o controle de constitucionalidade das leis e demais atos
normativos estatais.

É certo que os direitos fundamentais fornecem impulsos
e parâmetros para a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional.
Têm, pois, importante efeito irradiante.

 

Bibliografia:

ALVES,
José Augusto Lindgren Alves. Os direitos humanos na pós-modernidade. São
Paulo: Perspectiva, 2005.

ARAUJO, Luiz
Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional.
7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

ASSIER-ANDRIEU,
Louis. O direito nas sociedades humanas. Tradução Maria Ermantina
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BASTOS,
Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001.

BOBBIO,
Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 15.
ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES,
Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2000.

BREGA
FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na constituição de 1988: conteúdo
jurídico das expressões. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.

CARVALHO,
José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 6. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

CENEVIVA,
Walter. Direito constitucional brasileiro. 3. ed. São Paulo; Saraiva,
2003.

COMPARATO,
Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.

FACHIN,
Zulmar. Teoria geral do direito constitucional. Londrina: Instituto de
Direito Constitucional e Cidadania, 2006.

FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.

FREITAS
FILHO, Roberto. Crise do direito e juspositivismo:  a exaustão de um paradigma. Brasília: Brasília Jurídica,
2003.

GEBRAN
NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais:
a busca de uma exegese emancipatória. São Paulo: RT, 2002.

GRAU,
Eros Roberto.  O Estado, a liberdade
e o direito administrativo.
Revista crítica jurídica nº 21, Jul-Dez 2002.

HOFFE,
Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do
direito e do Estado. Tradução de Ernildo Stein. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. 

MORO,
Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo:
RT, 2004.

PEIXINHO,
Manoel Messias. A interpretação da constituição e os princípios
fundamentais;
elementos para uma hermenêutica constitucional renovada. 3.
ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.

PERELMAN,
Chaim. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.

REALE,
Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. Saraiva: São Paulo,
2002.

ROTHENBURG, Wlater Claudius. Princípios
constitucionais.
Porto Alegre: Fabris, 1999.

SARLET,
Ivo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005.

VIGO,
Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista
do século XX às novas perspectivas. tradução Susana Elena Dalle Mura. São
Paulo: RT, 2005.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. 3. ed. São Paulo:
Editora Alfa Omega, 2001.


Informações Sobre o Autor

Daniel Marques de Camargo

Advogado em Ourinhos, SP, professor de Introdução ao Estudo do Direito e Direito Processual Civil do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e Mestre em Ciência Jurídica pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), em Jacarezinho, PR


logo Âmbito Jurídico