João Vitor Borges Milhomem
Professor Orientador: Wellington Gomes Miranda
Resumo: Com os avanços da biotecnologia, os casais que desejavam ter filhos, mas estavam impossibilitados por alguma razão, hoje são capazes. Diversas são as técnicas de reprodução assistida, que dão essa oportunidade para o casal. Diante desses avanços, que proporciona a ocorrência de fatos e atos nunca antes imaginados, cabe ao Direito acompanhar as consequências dessas mudanças na sociedade. A inseminação artificial é uma das técnicas de reprodução assistida, e vem sendo bastante utilizada por aqueles que desejam ter filhos. Ocorre que a falta de regulamentação no Direito brasileiro gera questionamentos a respeito dos direitos sucessórios dos advindos por meio de inseminação artificial homóloga post mortem, principalmente no que diz respeito a sucessão legítima dos mesmos. Frente a isso, o presente trabalho tem por objetivo avaliar os aspectos do ordenamento jurídico atual, analisando os princípios e direitos fundamentais, que são de grande importância no Direito pátrio, com o intuito de encontrar alternativas para possíveis resoluções de litígios. Assim sendo, parte-se do método de abordagem dedutivo, utilizando de pesquisa bibliográfica e documental, como técnicas de pesquisas. Para a construção do presente trabalho acadêmico, utiliza-se como métodos procedimentais, o método sistêmico e monográfico, analisando a atuação do sistema jurídico acerca do objeto em estudo e descrevendo os aspectos que levaram ao surgimento de tal situação sociojurídica. Percebe-se, portanto, a relevância do trabalho para o discurso acadêmico ao se buscar a possibilidade destas pessoas tratadas no estudo terem seus direitos sucessórios garantidos.
Palavras-chave: Inseminação artificial. Sucessão. Herdeiro. Direitos sucessórios.
Abstract: With the advances of biotechnology, the couples who wanted to have children, but were unable for some reason, are capable today. Several are assisted reproduction techniques, which give the couple this opportunity. Faced with these advances, which provides for the occurrence of facts and acts never imagined before, it is up to the Law to monitor the consequences of these changes in society. Artificial insemination is one of the assisted reproduction techniques, and it’s been widely used by those who want to have children. It so happens that the lack of regulation in Brazilian law generates questions about the rights of the followers to inheritance by means of an artificial homologist post-mortem insemination, mainly with regard to the legitimate succession of these rights. In the light of this, the aim of this work is to assess the aspects of the current legal system by analyzing the fundamental principles and rights, which are of great importance in national law, in order to find alternatives to possible dispute settlements. Thus, the deductive approach is based on bibliographic and documentary research as research techniques. For the construction of this academic work, the systemic and monographic method is used as procedural methods, analyzing the legal system’s actions on the subject under consideration and describing the aspects that led to the emergence of such a socio-legal situation. The relevance of the work for academic discourse is therefore perceived by looking for the possibility of these people treated in the study having their inheritance rights guaranteed.
Keywords: Artificial insemination. Succession. Heir. Rights of inheritance.
Sumário: Introdução. 1. A sucessão no direito pátrio: Aspectos doutrinários e legais. 2. As espécies de sucessão. 3. A capacidade sucessória. 4. A sucessão dos concebidos por fecundação artificial homóloga post mortem do autor da herança. 5. A inseminação artificial homóloga post mortem. 6. A concepção e o surgimento do sujeito de direitos. 7. A abrangência dos efeitos sucessórios para os concebidos após a morte do autor da herança. 8. O posicionamento jurisprudencial diante da omissão do legislador. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Em decorrência das inovações na ciência e na biotecnologia, o modelo familiar atual não é como de tempos atrás. O instituto familiar foi se alterando e novos rumos foram sendo tomados. Com isso, novas formações de relações familiares foram ocorrendo e exigem do Direito uma resposta adequada a garantir os direitos e deveres nestes casos.
A inseminação artificial, método utilizado para a reprodução, vem levantando debates e gerando curiosidade, devido aos efeitos gerados por este mecanismo. Vale destacar que pode ser realizado de maneira que se utilizem os sêmens ou óvulos de doadores anônimos, bem como o próprio casal pode usar dos seus, para que seja realizado o procedimento, sendo neste caso, a criança é gerada como se por processo natural fosse.
Nesse contexto, surgem os questionamentos na esfera do Direito acerca dos direitos sucessórios dos que nascem pelo processo de inseminação artificial homóloga depois da morte, em especial em relação à garantia dos direitos de suceder à legítima do seu genitor. Portanto, com a mudança nas formações familiares recentes, ainda há uma lacuna decorrente da ausência de legislação específica que regule sobre o tema, surge à problemática do filho, concebido após a morte do seu genitor, vir a ter os seus direitos sucessórios limitados ou até mesmo negados. De que maneira devem ser observados os direitos sucessórios do herdeiro concebido por inseminação artificial homóloga post mortem?
Para o desenvolvimento deste estudo, serão analisadas as normas jurídicas, o entendimento das doutrinas, jurisprudências e assim, idealizar a possibilidade de o filho concebido por inseminação artificial depois da morte do genitor ser herdeiro legítimo necessário. Tem-se como objetivo também identificar os atos e processos que envolvem a reprodução assistida e como isso surte efeito no Direito, de forma que mantenha a adequação aos princípios e normas jurídicas, bem como o apontamento da necessidade de se criar legislação específica para tratar do tema.
Antes de adentrar aos aspectos sucessórios dos concebidos por meio de fertilização artificial, faz-se necessário levantar a premissa dos dispositivos legais acerca da sucessão no Brasil. O sistema sucessório não é algo privativo a esse século. Sua existência e aplicabilidade vêm desde os tempos mais antigos, com o intuito de dar continuidade à família, e, ainda, à religião. Acontece que, com o passar dos anos, a sociedade vai sofrendo transformações e novos ideais vão ganhando força em determinadas épocas. Nesse contexto, é notória a necessidade de o Direito modificar-se para uma melhor adequação, e, assim, suprir os anseios de seu povo.
É certo que o Direito de nada valeria se não tivesse efetividade e não conseguisse acompanhar as transformações de sua sociedade. Com isso, percebe-se que jamais o Direito dos tempos atrás seria o mesmo aplicado atualmente, tendo em vista que as necessidades já são outras. Nader (2014, p. 101), em uma definição real, conceitua Direito como “um conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os critérios de justiça”. O Direito, portanto, vem regulamentar, da melhor maneira, a conduta das pessoas, estabelecendo os limites para os homens em sociedade, buscando o convívio e bem-estar de todos.
Para um melhor entendimento, ele é sistematizado, dividido através de normas que apresentam características normativas e princípios comuns, facilitando a sua aplicação e estudo. A maior de suas divisões é em relação ao Direito Público que vem a ser aquele em que predomina o interesse público e o Direito Privado que diz respeito à regulamentação das relações entre as pessoas, permanecendo a igualdade entre as partes.
Um dos ramos do Direito Privado, o Direito Civil tem como principal norma legal a Lei nº 10.406, de 2002, que institui o Código Civil brasileiro vigente. Na estrutura deste código destaca-se o Direito das Sucessões, localizado no Livro V, nos artigos 1784 a 2027, do Código Civil (CC). Gonçalves (2012, p. 18) cita Eduardo de Oliveira Leite que acredita ser inquestionável:
“a importância das sucessões no direito civil. Porque o homem desaparece, mas os bens continuam; porque grande parte das relações humanas transmigra para a vida dos que sobrevivem, dando continuidade, via relação sucessória, no direito dos herdeiros, em infinita e contínua manutenção da imagem e da atuação do morto, em vida, para depois da morte”.
O Direito das Sucessões tem fundamental importância para o Direito Pátrio, tendo em vista a necessidade de proteção ao patrimônio deixado pelo de cujus (falecido) e sua disponibilidade a quem lhe é de direito. Segundo Diniz (2015, p. 17) “o direito das sucessões vem a ser o conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio de alguém, depois de sua morte, ao herdeiro, em virtude de lei ou de testamento”. Desta forma, o direito sucessório vem regular a transferência do patrimônio deixado pelo falecido. Logo, a morte da pessoa natural, seja ela real ou presumida, é necessária para essa transferência de bens.
O Direito Sucessório vem desde os tempos da Grécia e de Roma, onde os bens eram apenas passados pela linha masculina, ou seja, a herança se transmitia ao primogênito varão. Somente com a Revolução Francesa se aboliu o privilégio da masculinidade, bem como o direito de progenitura, passando-se a iniciar a linha sucessória com os herdeiros, e na falta deles, com os sucessíveis.
Eram considerados herdeiros, segundo o Código Napoleão, os filhos e descendentes, os ascendentes e colaterais privilegiados (pai, mãe, irmãos, irmãs e os descendentes destes), e os demais ascendentes e seus colaterais (a princípio até o 12º grau, posteriormente até o 4º grau apenas). Já os sucessíveis eram os filhos tidos como naturais, o cônjuge sobrevivo e o Estado (GONÇALVES, 2012, P. 19).
O Direito Sucessório esteve presente desde os tempos antigos, e no decorrer dos anos veio se modificando para atender às necessidades do povo, contribuindo para o Direito Sucessório brasileiro atual. Por exemplo, o Princípio de Saisine, presente no atual ordenamento jurídico, é de origem medieval, nascido do direito costumeiro parisiense, tendo sido adotado também pelo direito português.
Esse princípio estabelece que a abertura da sucessão, a transmissão do domínio e a posse da herança se dão no momento da morte do autor dela. No Código Civil Brasileiro de 1916, ele esteve presente no art. 1.572 do mencionado instituto jurídico, e no Código Civil de 2002, ora vigente, no art. 1.784. Desta forma, percebe-se que as modificações sofridas pelo Direito Sucessório influenciaram e contribuíram para as normas que são aplicadas atualmente.
No Brasil, além de estar regulamentado no Código Civil, o sistema sucessório abrange também disposições normativas em outros sistemas e até mesmo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como em seu art. 5°, XXX, quando garante o direito à herança do indivíduo. É válido destacar que, segundo Guimarães (2013, p. 399), herança é o “patrimônio passivo e ativo ou a totalidade dos bens deixados pelo de cujus, assim como direitos e obrigações, que se transmitem aos seus sucessores”. Essa transferência é processada desde o momento da morte do de cujus, pois é quando se considera aberta a sucessão, segundo o Princípio de Saisine, como explicado anteriormente.
Uma importante modificação no ordenamento jurídico, que foi acolhida pelo Direito Sucessório, é a prevista no art. 227, § 6º da Constituição Federal, o qual estabelece igualdade entre os filhos nascidos ou não da relação do casamento, e por adoção, derrubando qualquer discriminação legal ou social entre eles. Acolhendo essa disposição legal, o Código Civil, em seu art. 1.834, dispõe que “os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes”.
Apesar de, erroneamente, o legislador utilizar a palavra “classe” nesse artigo, a intenção foi proibir qualquer discriminação baseada na origem de parentesco.
2. AS ESPÉCIES DE SUCESSÃO
A norma do artigo 1.786 do Código Civil estabelece que “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”. Esse diploma legal divide o processo de sucessão em duas espécies, sendo elas a sucessão legítima (presente no artigo quando diz que a sucessão se dará por lei) e a sucessão testamentária (que seria a “disposição de última vontade”).
O legislador, no art. 1.829 e ss. do Código Civil, disciplinou acerca da sucessão legítima. Trata-se de transmissão da herança aos herdeiros legítimos, quando não há testamento, especificados no art. 1.829, seguindo uma ordem preferencial chamada de ordem de vocação hereditária. Essa ordem obedece a um grau de parentesco, segundo a qual são herdeiros aquelas pessoas com vínculo de sangue ou forte vínculo de afinidade.
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
Segundo Gonçalves (2012, p. 32), “a sucessão legítima representa a vontade presumida do de cujus de transmitir o seu patrimônio para as pessoas indicadas na lei, pois teria deixado testamento se outra fosse a intenção”. Logo, presume-se que se o de cujus quisesse alterar a ordem sucessória, teria feito testamento para tal. O cônjuge passou a ser incluído no rol dos herdeiros necessários, previsto no art. 1.845, por meio do Código Civil de 2002.
Desta forma, a sucessão legítima passou a ser a espécie de sucessão mais utilizada no Brasil, pois se diminuiu a quantidade de testamentos que tinham como objetivo beneficiar o cônjuge sobrevivente. Os colaterais serão chamados a suceder, caso não haja descendentes, ascendentes e até mesmo cônjuge sobrevivente, até o quarto grau de parentesco, com sustentáculo no art. 1.839 do Código Civil.
De outro modo, a sucessão testamentária está prevista a partir dos arts. 1.857 e seguintes, do CC. O testador deve cumprir as determinações e formalidades legais e não poderá dispor de totalidade de seus bens, restando a ele metade da herança para dispor livremente, conforme determina o art. 1.846, que prevê pertencer “aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”. Assim, aos descendentes, ascendentes e ao cônjuge (herdeiros necessários), é garantida metade da herança do de cujus.
Acerca do tema de sucessão testamentária, doutrina Venosa (2015, p. 126), que:
O testador estatui herdeiros testamentários, ao lhes atribuir uma porção fracionária ou percentual da herança, ou legatários, ao lhes atribuir bens certos e determinados do patrimônio. O herdeiro é sucessor universal, quer provenha da ordem legal, quer provenha da vontade do testador. O legatário é sucessor singular, e só virá a existir por meio do testamento.
Como se vê, há dois tipos de sucessores na sucessão testamentária. Eles são classificados quanto aos efeitos. O considerado herdeiro testamentário é o sucessor a título universal e o legatário vem a suceder a título singular, pois legado é um bem (ou vários bens) especificados na herança. Como relação prática da diferença entre esses sucessores, Venosa (2015, p. 11) aduz ainda, que:
O legatário não tem a posse que detém o herdeiro com a abertura da sucessão. Como regra geral, o legatário necessita pedir ao herdeiro a entrega da coisa legada. O legatário, salvo disposição expressa do testador, não responde pelo pagamento das dívidas do espólio, atribuição dos herdeiros. O herdeiro responde pelas dívidas do de cujus, na proporção de seu quinhão.
Com os exemplos citados por Venosa, vê-se, portanto, que o herdeiro apresenta direitos e deveres mais abrangentes que os legatários, lembrando que no ordenamento jurídico pátrio o herdeiro e o legatário podem coexistir no mesmo testamento. Já a sucessão legítima será sempre a título universal, pois será transmitida aos herdeiros a totalidade ou uma fração da herança, seguindo as disposições legais.
O testamento é ato personalíssimo e solene, devendo obedecer às normativas para que tenha efeito. Um dos requisitos de validade é a capacidade do testador. Considerando os artigos 1.857 e 1.860 do Código Civil, toda pessoa capaz, com discernimento e entendimento do que o ato representa, e com vontade de fazê- lo, tem capacidade para testar.
A capacidade civil do indivíduo não se confunde com a capacidade sucessória. A primeira trata-se da aptidão de obter direitos e, ainda, cumprir deveres impostos pelo ordenamento jurídico. Já a segunda, é a legitimidade para se tornar herdeiro ou legatário de uma herança. Ocorre que, nem toda pessoa capaz juridicamente será legítima. Gonçalves (2012, p. 93) aduz que a “capacidade não se confunde com legitimação. Esta é a aptidão para a prática de determinados atos jurídicos, uma espécie de capacidade especial exigida em certas situações”. Assim, uma pessoa pode não ser legítima, mesmo sendo capaz juridicamente.
O art. 1.798 do CC dispõe que “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Logo, a regra geral é de que só quem tem capacidade para suceder são as pessoas que estejam vivas, na época da abertura da sucessão (que se dá quando ocorre a morte do de cujus) sendo consideradas exceções, as que ainda não nasceram, mas já estão concebidas, respeitando, desta forma, o direito do nascituro.
Gonçalves (2012, p. 53) cita Silvio Rodrigues para conceituar nascituro, que para ele se trata de:
Ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. A lei não lhe concede personalidade, a qual só lhe será conferida se nascer com vida. Mas, como provavelmente nascerá com vida, o ordenamento jurídico desde logo preserva seus interesses futuros, tomando medidas para salvaguardar os direitos que, com muita probabilidade, em breve serão seus.
Para que o direito do nascituro fique resguardado, a mulher que o gerar pode solicitar a nomeação de um curador. Essa capacidade do nascituro é condicional ao seu nascimento. Portanto, se o feto nascer morto, a quota da herança a ele destinada será retornada ao monte sucessório. Na sucessão testamentária, o Código Civil, em seu art. 1.799, elenca outros possíveis sucessores capazes, como se vê:
Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
No que se refere aos filhos ainda não concebidos, a lei dá o prazo de dois anos para que se concebam, caso contrário, os bens a ele reservados retornarão aos herdeiros legítimos, salvo disposição diversa em testamento (art. 1.800, §4º). Percebe-se, que o ordenamento brasileiro abordou uma hipótese em que o filho ainda não foi concebido, sendo, portanto, uma exceção aos legítimos a suceder, visto que a regra é o herdeiro estar concebido quando da abertura da herança.
O testador pode deixar seus bens, ainda, às pessoas jurídicas, podendo já ter sido criadas ou cuja criação seja determinada pelo testador, ou seja, que ainda não tenha sido regularizada. Nesse sentido, Coelho (2012, pp. 514-515) afirma que:
Apenas no caso da fundação, atribui a lei capacidade sucessória à pessoa jurídica ainda não regularizada. A fundação, recorde-se, nasce da afetação de um patrimônio a determinadas finalidades. (…) No caso de instituição por testamento, porém, a regularização da pessoa jurídica testamentária só poderá ser feita, evidentemente, após a morte do instituidor. A fundação instituída em disposição de última vontade é a única hipótese de pessoa jurídica com capacidade sucessória não dependente de prévia regularidade (BRASIL, Lei 10,406, 2002, art. 1.799, III).
A fundação criada por meio de testamento é, portanto, uma exceção aceita pelo ordenamento jurídico pátrio. Acerca da capacidade para suceder, o art. 10, § 2º da Lei nº. 4.657/1942, que institui a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), determina que “a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder”, ou seja, a lei que regulamentará a capacidade dos sucessores é a vigente no domicílio do herdeiro ou legatário. Tal determinação é necessária nos casos em que houver conflito de normas internas e estrangeiras.
Outro dispositivo importante para o estudo é o art. 1.787 do CC, que estabelece ser a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão quem a regulará, ou seja, nenhuma lei anterior ou posterior à morte do de cujus poderá alterar as disposições vigentes na abertura da sucessão.
Sob outro aspecto, para que tenha legitimidade para suceder é necessário que não seja incapaz para tal. Em outras palavras, é indispensável que o herdeiro ou o legatário não estejam presentes no rol do art. 1.801 do Código Civil, qual seja:
Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:
Acerca dos não legítimos a suceder, Venosa (2015, p. 60) afirma:
A ideia de suspeição está literalmente presente neste artigo. Todas as pessoas aí colocadas estão em posição de alterar indevidamente a vontade do testador, que deve ser a mais livre possível. O art. 1.802 ainda completa essa ação para dispor que são nulas as disposições testamentárias em favor dos não legitimados, ainda que simuladas sob a forma de contrato oneroso ou por meio de interposta pessoa.
Resta claro que os ilegítimos à sucessão são aqueles que estiveram ligados, direta ou indiretamente, à criação do testamento, posição essa que poderia lhes oferecer vantagem testamentária. Considerando tudo que fora explanado, surge o questionamento sobre o embrião: teria ele legitimação para suceder? A legitimidade acerca dos embriões excedentários ou decorrentes de inseminação artificial vem sendo discutida atualmente devido aos avanços científicos e tecnológicos.
O Código Civil ainda não se posicionou sobre o tema, entretanto o Enunciado 267 da III Jornada em Direito Civil entendeu que:
A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança.
O assunto é complexo e divide a opinião de alguns doutrinadores. No decorrer do trabalho serão expostos diversos aspectos a respeito, que ajudarão a compreender o tema, os posicionamentos doutrinários e o que está sendo aceito na prática.
A inseminação artificial é uma das técnicas mais utilizadas atualmente. Ela pode ser heteróloga ou homóloga, diferença já explicada alhures, sendo esta última ponto principal do presente estudo, mais especificamente a inseminação homóloga que ocorre após o falecimento do marido doador do sêmen.
É cediço que o Direito Civil reconhece como filhos os nascidos pelo uso da referida técnica, mesmo que concebidos após a morte do cônjuge. Entretanto, se já são reconhecidos como filhos, por que não se configuram como herdeiros legítimos necessários? Esse é um dos pontos que serão estudados frente aos pensamentos doutrinários, levando em consideração os princípios presentes na Constituição Federal, tendo em vista a falta de legislação específica a respeito.
As técnicas de reprodução assistida, como visto, vieram auxiliar aquelas pessoas que desejam ter filhos, porém, são acometidas pela infertilidade ou esterilidade. Na tentativa de se adequar a essa modernização, o Código Civil inseriu os incisos III, IV, e V ao art. 1.597, presumindo, como nascidos na constância do casamento, os filhos nascidos por meio das técnicas de reprodução assistida.
A inseminação homóloga, a qual utiliza gametas do próprio casal, está prevista no inciso III do mencionado artigo, considerando filho nascido na constância do casamento aquele advindo de fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido. Essa última parte do inciso III considera a possibilidade da inseminação homóloga mesmo que o marido tenha falecido, admitindo-se, portanto, a chamada inseminação póstuma, ou seja, é aquela que ocorre quando se utiliza o óvulo ou sêmen conservado após a morte daquele que o doou.
A Jornada de Direito Civil, que foi realizada no Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2002, interpretou que, para o reconhecimento da paternidade do marido que veio a falecer, seria necessário que:
A mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.
No mesmo sentido, a Resolução nº 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, em sua Seção VIII dispõe que “É permitida a reprodução assistida post- mortem desde que haja autorização prévia específica do (a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”. Ocorre que em diversos casos a mulher tem o desejo de ter um filho do falecido marido, porém não detém dessa autorização escrita. Surgem, portanto os diversos conflitos acerca do tema. O marco que inicia as discussões sobre o assunto ocorreu em 1984, na França, com o famoso caso conhecido como “Affair Parpalaix”.
Alain Parpalaix, após descobrir que estava com câncer nos testículos, e correndo sérios riscos de ficar estéril devido às quimioterapias para o tratamento da doença, depositou seu material genético em um banco de sêmen, para que, após o tratamento, conseguisse ter um filho com sua mulher Corine Richard. Entretanto, após poucos dias de seu casamento, Alain Parpalaix veio a falecer por consequência da doença, antes de conseguirem o sonhado filho (FREITAS, 2008, ONLINE).
Corine foi ao banco de sêmen e solicitou a inseminação com o material genético do marido que havia falecido, e, como o direito francês não havia regulamentado acerca da matéria, teve seu pedido negado. Ela recorreu então à justiça francesa e, após muita batalha, o banco de sêmen foi condenado à entrega do material genético. Porém, com a demora na ação, não se conseguiu realizar a inseminação artificial, pois o material genético não estava mais apropriado para fecundação. (FREITAS, 2008, ONLINE).
Até então o mundo não via possibilidade de um filho ser concebido após a morte de seu pai. Os avanços da ciência fizeram com que aquilo que era considerado impossível, passasse a ser discutido, principalmente no que se refere aos possíveis direitos dos filhos. Após esse caso, discussões foram abertas no mundo inteiro e diversos países começaram a regulamentar acerca dessa espécie de inseminação, conforme destaca Coco (2012, online):
Alemanha e Suécia vedam a inseminação post mortem. Na França, além da proibição da inseminação post mortem, dispõe a lei que o consentimento manifestado em vida perde o efeito. Na Inglaterra, a inseminação post mortem é permitida, mas não se garante o direito à sucessão, exceto se houver documento expresso nesse sentido.
Outro fato semelhante ocorreu em Curitiba-PR, com o casal Kátia Lenerneier e Roberto Jefferson Niels. O casal sonhava em ter filhos quando Niels descobriu que estava com câncer de pele. Por indicação médica e com receio da quimioterapia o deixar infértil, ele decidiu congelar seu material genético. Com a morte do marido, devido ao agravamento da doença, Kátia então solicitou o material genético de Niels e teve seu pedido negado, por não apresentar autorização prévia do marido. Foi então que resolveu buscar judicialmente o seu desejo. A 13ª Vara Cível de Curitiba (PR) concedeu liminar que autorizou Kátia a engravidar com o sêmen congelado do marido. A inseminação foi frutífera e hoje ela tem sua filha.
O juiz entendeu ser presumida a vontade de Niels, por meio de declarações de familiares e amigos. Destaque-se que a filha, chamada Luíza Roberta, teve seu direito à filiação reconhecido, porém, não se sabe acerca dos direitos sucessórios dessa criança. Esse caso ocorrido em Curitiba teve uma grande repercussão nacional, porém, ele não é o primeiro envolvendo a inseminação artificial homóloga post mortem. Ocorre que muitas ações correm em segredo de justiça, o que dificulta o acesso. Outro caso, por exemplo, é o de Eliane Ribeiro de Mello, que era casada com Andrei François de Mello, que veio a falecer em um acidente aéreo em 2007. Em resumo, Eliane pleiteou judicialmente a utilização do material genético do marido, após a sua morte, e teve seu pedido deferido, conforme demonstrado em parte da decisão:
583.00.2008.138900-2/000000-000 – nº ordem 636/2008 – Outros Feitos Não Especificados – Alvará Judicial – ELIANE RIBEIRO DE MELLO
(…)
Assim, inegável que a inseminação póstuma necessita de regras disciplinadoras temporais, éticas e protetivas, sem abandono do direito do pretenso pai de expressar sua vontade quanto a uma possível paternidade póstuma, respeitando a vontade da mãe e o objetivo do casal. Isto posto, defiro o alvará pretendido, para autorizar a autora, Eliane Ribeiro de Mello, a utilizar no tratamento de reprodução assistida, o sêmen criopreservado de Andrei François de Mello, seu falecido marido, armazenado na Clínica Gene – Medicina Reprodutiva, pelo prazo de um ano a contar da retirada deste alvará. Pagas as custas. Expeça-se o alvará e arquivem-se. E alvará à disposição.
O Brasil, diferente de outros países, não apresenta legislação que proíba ou, até mesmo, que permita o uso dessa técnica, o que divide a opinião dos doutrinadores sobre esses questionamentos acerca da filiação dos concebidos post mortem e dos seus direitos hereditários. Alguns doutrinadores apresentam como base para a defesa da inseminação post mortem o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, planejamento familiar e da igualdade entre os filhos, conforme entende Filho (2006, p.23):
A possibilidade de não se reconhecer direitos à criança concebida mediante fecundação artificial post mortem pune, em última análise, o afeto, a intenção de ter um filho com a pessoa amada, embora eventualmente afastada do convívio terreno. (…) Tal perspectiva vai de encontro aos modernos princípios do direito de família, especialmente aos princípios da igualdade de filiação, da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
Já outros doutrinadores que são contra essa técnica, utilizam como embasamento o Princípio da Paternidade Responsável, e acreditam ser irresponsabilidade permitir que a criança já nasça órfã do pai, privando-a assim de ter uma estrutura familiar formada por ambos os pais. É notória a necessidade de uma legislação específica que regule acerca da temática. O Código Civil bem que tentou acompanhar os avanços genéticos quando presumiu como filhos aqueles advindos das técnicas de reprodução assistida, incluindo os provenientes de inseminação post mortem. Entretanto, silenciou no que se refere aos direitos sucessórios dos mesmos, motivo pelo qual é assunto de grandes debates e controvérsias na doutrina.
Após a análise das técnicas de reprodução assistida, surgem questionamentos a respeito de quando é considerado o início da vida ou quando se adquire personalidade jurídica. O Código Civil, em seu artigo 2º, dispõe que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Para adentrar nas discussões que são geradas quanto ao momento do surgimento do sujeito de direitos, é necessário que se entenda o significado da palavra pessoa. Para De Plácido e Silva (2014, p. 1578)
Persona era, primitivamente, a máscara usada pelos atores nas representações teatrais. Dessa forma, dramatis personae eram os representantes ou personagens dramáticos, isto é, os próprios atores. Extensivamente, passou a designar o próprio ser humano, em sua constante representação no cenário da vida, em cumprimento aos ditames da sociedade.
Como se vê, na acepção jurídica, pessoa é o ser capaz de direitos e deveres, bastando que nasça com vida e, assim, adquira personalidade, para que seja considerada como tal (GONÇALVES, 2012, p. 96). Podendo-se verificar que pessoa é sinônimo de sujeito de direitos.
O nascimento com vida acontece quando a criança se separa do corpo da mãe e respira, sendo considerado este o momento em que adquiriu a personalidade. Porém, o Código Civil protege os direitos do nascituro desde a concepção, abrindo assim espaço para questionamentos acerca da personalidade desse ente, chegando até mesmo às discussões envolvendo os embriões oriundos da fecundação in vitro.
O nascituro é o “ente que está gerado ou concebido, tem existência no ventre materno: está em vida intrauterina”, conforme ensina De Plácido e Silva (2014, p. 1433). Para Venosa (2013, p. 142), “o nascituro é um ente já concebido que se distingue de todo aquele que não foi ainda concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo do nascimento, tratando-se de uma prole eventual”. Nesse diapasão, percebe-se que surgiu na doutrina discussão acerca da situação jurídica do nascituro. O debate foi dividido em três teorias, bem explicadas por Gonçalves (2012, p. 96):
Três teorias procuram explicar e justificar a situação jurídica do nascituro. A natalista afirma que a personalidade civil somente se inicia com o nascimento com vida; a da personalidade condicional sustenta que o nascituro é pessoa condicional, pois a aquisição da personalidade acha-se sob a dependência de condição suspensiva, o nascimento com vida, não se tratando propriamente de uma terceira teoria, mas de um desdobramento da teoria natalista, visto que também parte da premissa de que a personalidade tem início com o nascimento com vida; e a concepcionista admite que se adquire a personalidade antes do nascimento, ou seja, desde a concepção, ressalvados apenas os direitos patrimoniais, decorrentes de herança, legado e doação, que ficam condicionados ao nascimento com vida.
Para a teoria natalista, o nascituro não é dotado de personalidade jurídica. Por sua vez, a teoria da personalidade condicional afirma que a personalidade do nascituro está condicionada ao seu nascimento com vida. Já para a teoria concepcionista, que é a corrente majoritária, a personalidade está presente na concepção, ressalvando-se os direitos patrimoniais.
Ocorre que, com os avanços genéticos que vem ocorrendo, surge a problemática no que se refere aos embriões formados por meio de técnicas de reprodução assistida in vitro, que ocorre em laboratório, fora do corpo da mulher. Esses embriões podem ser considerados nascituros e, consequentemente, possuidores de personalidade?
A discussão é grande por parte da doutrina, que divide opiniões a respeito do questionamento. Para Machado (2012), a concepção se dá quando da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, no caso da técnica de fertilização in vitro se dá extracorporeamente, como dito alhures, contudo, sabe-se que o que possibilitará o desenvolvimento do embrião é a sua nidação. Diante dessa afirmação, para alguns juristas, o embrião criopreservado não pode ser chamado de nascituro. Machado (2012, p.79) afirma:
Assim, o embrião somente poderá ser considerado “pessoa” a partir do momento em que for implantado no útero materno. O embrião humano criopreservado, até ser transplantado para o útero materno, não pode ser considerado como nascituro, visto ser o nascituro aquele que está para nascer. Nessas condições, não é o embrião protegido nem tutelado juridicamente.
Entretanto, não é um posicionamento pacificado, alguns doutrinadores entendem o contrário, como Diniz (1995) ao defender que mesmo a vida se iniciando com a fecundação, e a possibilidade de uma vida viável com a gravidez, “que se dá com a nidação, entendemos que na verdade o início legal da consideração jurídica da personalidade é o momento da penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher”.
No mesmo sentido, França (2015, p. 709) argumenta que o considerado nascituro, “mesmo sem ser pessoa, é detentor de direitos, resguardando-lhe a lei faculdades que salvaguardam seus interesses mais inalienáveis. Espera-se que o embrião congelado tenha as mesmas expectativas”. E completa afirmando:
O direito de proteção ao concebido tem dois fundamentos muito importantes: primeiro, mesmo sem a outorga de uma personalidade civil, o embrião tem personalidade especial ou provisória; depois se lhe é reconhecido algum direito, é razoável falar-se em sujeito de direito, dispensando-lhe tutela jurídica. Tem uma certa titularidade de direitos que começa desde a fecundação (…) (FRANÇA, 2015, p. 709).
Diniz (2015, p.64) entende que:
Se, por ocasião do óbito do autor da herança, já existia embrião crioconservado, gerado com material germinativo do de cujus, terá capacidade sucessória, se, implantado num útero, vier a nascer com vida e, por meio de ação de petição da herança, que prescreve em dez anos após a sua maioridade, poderá pleitear a sua parte no acervo hereditário.
A controvérsia gerada é tamanha, que motivou a criação do Projeto de Lei nº 276/2007, que, dentre outras coisas, altera a redação do art. 2º, do Código Civil, incluindo a proteção dos direitos do embrião. A discussão remete ao texto constitucional, que declara como direito fundamental o direito à vida, considerado pressuposto basilar de todos os demais direitos relacionados à pessoa.
O Decreto nº 678/1992, o famoso Pacto de San José da Costa Rica, corrobora com esse entendimento ao dispor que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Portanto, desde a concepção é assegurado o direito à proteção. Acerca do mencionado decreto, Andreazza (2012, online) dispõe:
Precipuamente, é interessante observar que o Pacto considera todo ser humano como uma pessoa. Esta reflexão é interessante, para elucidar a aparentemente interminável discussão em torno da natureza jurídica do embrião humano. Reluta-se em atribuir ao excedentário o status de pessoa. Por outro lado, esquece-se que há no Brasil uma norma com força constitucional que considera como pessoa qualquer membro da espécie humana, sem qualquer distinção de fase de desenvolvimento, por exemplo.
Como se vê, as celeumas são muitas, porém, problema maior diz respeito ao indivíduo oriundo de inseminação artificial post mortem, pois este sequer foi concebido. Não se refere ao nascituro e nem ao embrião criopreservado, temas que geram controvérsia, e sim a uma prole que ainda está por ser concebida.
O Direito Brasileiro regulamentou, no art. 1.799 I do Código Civil, a possibilidade dessa prole eventual ter garantido seus direitos sucessórios caso o testador disponha a respeito. Entretanto, a legislação nada fala acerca dos direitos dos concebidos através dessa técnica de reprodução assistida, salvo a presunção de filiação dita anteriormente.
Por todo o exposto, verifica-se que, mesmo com o intuito de acompanhar os avanços da biotecnologia, as normas brasileiras ainda se encontram ultrapassadas em muitos aspectos. Após a análise das teorias que investigam as personalidades dos entes concebidos e frente a toda essa discussão, o presente trabalho analisará os direitos hereditários dos provenientes de inseminação artificial post mortem.
Como visto no decorrer de todo o trabalho, há diversas controvérsias na doutrina no que se refere aos direitos dos concebidos através de inseminação póstuma. Alguns elementos foram aqui levantados para um melhor entendimento do foco do presente estudo. O Código Civil, em seu art. 1.798, dispõe que são legitimados a suceder aqueles nascidos “ou já concebidos no momento da abertura da sucessão”. Diante deste dispositivo surge a problemática quanto aos direitos hereditários daqueles advindos após a morte do autor da herança, pois, no momento da abertura da sucessão, nem sequer foram concebidos.
O indivíduo nascido por meio dessa técnica, como anteriormente analisado, é considerado filho do casal, pois se encaixa no rol dos filhos presumidos concebidos na constância do casamento, conforme dispõe o art. 1.597, III, CC. Entretanto, o legislador não visualizou os avanços biotecnológicos que vinham ocorrendo nos últimos tempos, e acabou por deixar aberta a questão dos direitos hereditários desses filhos, deixando margem para as mencionadas discussões e controvérsias. Analisando os dispositivos que regulam os direitos hereditários, o art. 1.786 do CC, prevê que “a sucessão dá-se por lei ou por ato de última vontade”. Logo, serão herdeiros legítimos aqueles que a lei determinar como tal e serão herdeiros necessários aqueles a quem o testador nomear.
O legislador, mesmo silenciando quanto aos direitos sucessórios dos filhos advindos através de inseminação póstuma, contemplou com os aludidos direitos a prole eventual de pessoa designada pelo testador, através do art. 1.799, I, do CC, deixando, dessa forma, os próprios filhos à mercê de decisões judiciais para ter reconhecido seus direitos, os quais a lei deveria ter previsto. Diante disso, questiona-se a possibilidade de estender a aludida disposição à prole do próprio testador. Há aqueles que defendem essa possibilidade. Nesse trilho, Gama (2003, p. 732) assevera:
Alguns autores têm sustentado que a parte final do artigo 1.718, do Código de 1916, admite a disposição testamentária em favor de prole eventual própria quando o testador, prevendo a possibilidade de vir a falecer antes da concepção da criança, confecciona seu testamento referindo à prole dele próprio […].
Dispondo de maneira diversa, Dias (2011, p. 123), entende que os nascidos por meio dessa técnica possuem capacidade para suceder à legítima do seu genitor. Os filhos nascidos através de inseminação artificial post mortem gozam de presunção de filiação. Com a filiação reconhecida, eles se tornam descendentes do autor da herança, passando a figurar, junto aos demais filhos, no primeiro lugar da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, do CC. Sendo, assim, considerados herdeiros legítimos necessários.
O empecilho encontrado por esse entendimento é o Princípio de Saisine, que consiste na transmissão imediata da herança aos herdeiros legítimos e testamentários quando da abertura da sucessão. O diploma nada fala acerca dos direitos sucessórios dos provenientes de inseminação póstuma. Nesse sentido, Dias (2011, p. 123) entende que o Princípio que consagra a igualdade da filiação não aborda exceções “Assim, presume-se a paternidade do filho biológico concebido depois do falecimento de um dos genitores. Ao nascer, ocupa a primeira classe dos herdeiros necessários”.
Nesse contexto, para que não haja a negatória dos direitos hereditários dessa filiação póstuma, é necessário que o falecido deixe autorização expressa da utilização do material genético para inseminação e que permaneça a genitora em seu estado de viuvez, conforme explica Hironaka (2007, p. 71):
Então, supondo que tenha havido a autorização e que os demais requisitos tenham sido observados, admitindo-se, assim, a inseminação post mortem, operar-se-á o vinculo parental de filiação, com todas as consequências daí resultantes, conforme a regra basilar da Constituição Federal, pelo seu art. 226, § 6º, incluindo os direitos sucessórios relativamente à herança do pai falecido.
Como ocorre em tantas outras questões controversas no direito pátrio, também existe nesse caso uma omissão por parte do Poder Legislativo, que gerou um debate acalorado acerca da aplicação dos direitos hereditários a essa prole. Para Albuquerque Filho (2006, p. 12), a doutrina divide-se em três correntes distintas, quando trata dos efeitos da fecundação artificial post mortem. Acerca da primeira corrente, discorre que:
A primeira, que poderíamos denominar de excludente, não reconhece qualquer direito ao filho engendrado, após a morte do genitor, mediante assistência médica, quer no âmbito do direito de família, quer para fins sucessórios. Além disso, os defensores desta corrente entendem que há proibição para realização de tal prática, como acontece em países como a Alemanha e Suécia, que adotam sistemas positivos restritivos, em que se proíbem e sancionam as atuações consideradas socialmente danosas.
Essa primeira corrente é conhecida como excludente justamente por não reconhecer qualquer direito desses filhos nascidos após a morte do seu genitor. Para eles, não se deve reconhecer a filiação, tampouco dar-lhes direitos sucessórios, além de se defender a proibição da realização desta técnica. Argumenta para tanto que o vínculo conjugal se encerra com a morte. Nesse sentido, qualquer prole advinda após a morte do genitor deve ser considerada extramatrimonial. Entretanto, é cediço que não se pode admitir diferenciação entre filhos concebidos na vigência do casamento ou fora dele.
A segunda corrente é chamada de relativamente excludente, uma vez que reconhece a paternidade do filho concebido através da inseminação artificial após a morte do seu genitor, baseada em dispositivos do Código Civil e da CRFB/88. Entretanto, continua por negar-lhe o reconhecimento da condição de herdeiro. Nessa mesma senda, Venosa (2013, p. 163) afirma que:
Os filhos ainda não concebidos somente podem ser aquinhoados por testamento. O ordenamento não prevê qualquer modalidade de sucessão para os nascidos ou concebidos após a morte do autor da herança se não houve previsão no ato de última vontade.
Não é outro o entendimento de Gonçalves (2012, p. 75):
Em princípio não se pode falar em direitos sucessórios daquele que foi concebido por inseminação artificial post mortem, uma vez que a transmissão da herança se dá em consequência da morte (CC, art. 1.784) e dela participam as “pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” (art. 1.798).
Portanto, os doutrinadores que entendem ser essa corrente a de melhor aplicação aceitam que os concebidos por intermédio dessa técnica tenham reconhecida sua filiação. Entretanto, o único meio para que tenham direito à sucessão é a existência de testamento que trate do tema expressamente. Tal entendimento utiliza-se da analogia do art. 1.799, I, do Código Civil. Nesse caso, após a abertura da sucessão concede-se o prazo de dois anos para o nascimento da prole, sob pena de caducidade da disposição testamentária. Ressalta-se a necessidade de que a pessoa indicada no testamento para exercer a função de genitora da prole seja a viúva do testador e que esteja em tal condição. Por fim, a terceira e última corrente, denominada de inclusiva, reconhece integralmente os direitos de família e de sucessão àqueles nascidos por inseminação post mortem.
Os doutrinadores que defendem a utilização desta corrente, entre eles Dias (2011) e Albuquerque Filho (2006), fundamentam, em síntese, no respeito aos princípios da igualdade entre os filhos, do planejamento familiar e da dignidade da pessoa humana. Com a intenção de defender o reconhecimento dos direitos dos nascidos por intermédio da inseminação artificial póstuma, Albuquerque Filho (2006,p. 184) argumenta que:
Assim, em um sistema jurídico como o nosso que reconhece o pluralismo das entidades familiares e a plena liberdade do planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, não se pode admitir norma ou regra restritiva à inseminação artificial post mortem, além disso é perfeitamente possível que o projeto parental se tenha iniciado em vida, dos cônjuges ou companheiros, e venha a se concretizar após a morte de um dos mesmos. A inequívoca manifestação de vontade, fundada no consentimento expresso que tenha deixado o falecido para utilização do material genético deixado para esse fim, legitima e legaliza a inseminação post mortem, fazendo com que os efeitos jurídicos sejam reconhecidos, em sua plenitude, àquele nascido mediante a utilização da pré-falada técnica.
Assim, para a terceira corrente, considerando os princípios existentes no ordenamento jurídico pátrio, a inseminação artificial homóloga post mortem não deve ser proibida, pois iria de encontro ao que prevê a Constituição da República Federativa do Brasil. Ademais, se os direitos à filiação são permitidos, com expressa manifestação de vontade do marido, os direitos sucessórios também deveriam ser cabíveis. Dias (2011, p. 123), ao debater a temática, complementa as ideias de Albuquerque Filho, ao declarar que:
É difícil dar mais valor a uma ficção jurídica do que ao princípio constitucional da igualdade assegurada à filiação (CF 227 § 6º). Determinando a lei a transmissão da herança aos herdeiros (CC 1.784), mesmo que não nascidos (CC 1.798) e até as pessoas ainda não concebidas (CC 1.799 I), nada justifica excluir o direito sucessório do herdeiro por ter sido concebido post mortem. Sob qualquer ângulo que se enfoque a questão, descabido afastar da sucessão quem é filho e foi concebido pelo desejo do genitor.
A ausência de normas específicas e atualmente aplicáveis acerca da temática faz com que a jurisprudência também sejam rasas. Atualmente observa-se a utilização prioritariamente da resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina pelos Tribunais para julgamento das demandas.
Trata sobre a impossibilidade de se presumir o consentimento do de cujus para a utilização da inseminação artificial homóloga post mortem e orientações para que sejam coletados dados quando da coleta do material genético com relação às possibilidades, como em caso de falecimento do genitor.
Nesse sentido, a jurisprudência:
DIREITO CIVIL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. UTILIZAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR. AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA. IMPOSSIBILIDADE DE SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO DE CUJUS PARA A UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM. RESOLUÇÃO 1.358/92, DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 1. Diante da falta de disposição legal expressa sobre a utilização de material genético criopreservado post mortem, não se pode presumir o consentimento do de cujus para a inseminação artificial homóloga post mortem, já que o princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do sêmen criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse fim. 2. “No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-lo” (a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina) 3. Recurso conhecido e desprovido.
(TJ-DF – EIC: 20080111493002, Relator: CARLOS RODRIGUES, Data de Julgamento: 25/05/2015, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 18/06/2015 . Pág.: 82)
Vale ressaltar que até mesmo a resolução acima mencionada afirma a inexistência de disposição legal. Ainda que esta resolução tenha o intuito de sanar a lacuna deixada pelo legislador com relação à execução ou não do procedimento após o falecimento do genitor, esta falha ainda resta evidente a partir do momento em que ocorre um caso com a realização da inseminação artificial homóloga post mortem sem o devido cuidado e é protocolada uma ação para discutir os direitos de herança do filho concebido após a morte do seu pai.
Nesta senda, a jurisprudência:
APELAÇÃO CIVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE POST MORTEM. EXAME DE DNA COMPROVANDO A PATERNIDADE BIOLÓGICA. PEDIDO DE PETIÇÃO DE HERANÇA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONCOMITANTE AO RECONHECIMENTO DE VINCULO BIOLÓGICO. PLURIPARENTALIDADE. PEDIDO PARA FIXAÇÃO DE ALIMENTOS IMPOSSIVEL. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. O exame de DNA foi preciso ao demonstrar o vinculo biológico entre o autor e o de cujus. Deve ser incluído concomitantemente ao nome do pai socioafetivo, os dados do pai biológico na certidão de nascimento do autor. Conforme o RE 898060, STF, de relatoria do Min. Luiz Fux: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios . O autor é filho biológico e, por conseqüência, herdeiro do de cujus. Não há provas acerca dos bens deixados ou do inventário do de cujus. No que tange aos alimentos, conforme decisão do STJ, o espólio somente tem responsabilidades acerca dos alimentos quando o falecido genitor foi previamente condenado. Nos autos não há provas da fixação ou acordo de alimentos antes do óbito do pai biológico. Os honorários advocatícios devem ser fixados em 20% do valor atualizado da causa ao… representante da parte autora, tendo em vista o grau de zelo do profissional, a importância e a natureza da causa e, o trabalho e tempo exigido pelo profissional. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70072947419, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 22/03/2018).
(TJ-RS – AC: 70072947419 RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Data de Julgamento: 22/03/2018, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 26/03/2018)
No caso acima exposto, foi reconhecido o vínculo biológico, bem como determinada a inclusão do nome do pai biológico na sua certidão de nascimento e reconheceu como herdeiro o concebido por inseminação artificial homóloga post mortem.
A ementa acima citada reconheceu os direitos sucessórios, assim como defendido neste artigo e regulamentação desta temática nos trará uma segurança jurídica para que outros julgamentos também venham a reconhecê-los e não haja conflito entre as jurisprudências em razão da lacuna deixada pelo legislador.
CONCLUSÃO
Mediante o exposto, percebe-se que mesmo que o Direito tente acompanhar os avanços biotecnológicos e sociais, será difícil regulamentar sobre todos os efeitos gerados, como é o caso do tema abordado e, o que se vê nesse caso, é o Conselho Federal de Medicina tentando suprir essa necessidade legislativa por meio de resolução. Entretanto, esta não é suficiente e a falta de uma legislação específica que regule o uso das técnicas de reprodução assistida gera situações de difícil solução, principalmente no que tange aos direitos sucessórios.
Logo, verifica-se que o Código Civil prevê que na sucessão legítima são iguais os direitos sucessórios dos filhos e, como dito, o próprio diploma legal trata como concebidos na constância do casamento os filhos provenientes de inseminação homóloga póstuma, portanto, não há que se falar na exclusão dos seus direitos sucessórios, pois, do contrário, isso desrespeitaria o proclamado no art. 227, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Desta forma, percebe-se que os princípios constitucionais, como por exemplo o Princípio da Igualdade entre os filhos, da Dignidade da Pessoa Humana, do Planejamento Familiar, entre outros, são essenciais para que se assegure o direito à proteção dos direitos fundamentais da criança advinda de fecundação homóloga póstuma, já que no ordenamento jurídico pátrio não há regra proibitiva dessa técnica.
Assim, resta confirmada a hipótese de que a prole advinda por meio de inseminação artificial homóloga post mortem pode sim vir a figurar como herdeira legítima necessária, tomando como base os referidos princípios constitucionais, bem como a presunção de paternidade estabelecida pelo Código Civil.
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