Resumo:O presente estudo visa analisar os efeitos da recuperação judicial, que é instituto do Direito Empresarial, especificamente sobre os créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios futuros, a partir da aplicação do §3º, do artigo 49, da Lei nº 11.101/05, que regula a recuperação judicial e extrajudicial de empresas, bem como o processo de falência de empresários e sociedades empresárias. Para isso, serão analisadas as perspectivas doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema, considerando os efeitos do enquadramento ou não dos créditos desta qualidade à previsão legal. O presente trabalho foi estruturado de modo a permitir, de início, uma visualização panorâmica de todos os institutos que permeiam a discussão, sejam aqueles próprios do Direito Empresarial, sejam aqueles típicos do Direito Civil, e, após, um estudo de todos os posicionamentos sobre a questão no âmbito doutrinário e nos mais importantes tribunais do país.
Palavras-chave: Recuperação judicial. Efeitos. Cessão fiduciária. Direito creditório. Crédito extraconsursal.
Abstracts:The present study aims to analyze the effects of bankruptcy, which is the institute of business law, specifically on the credits secured by fiduciary assignment of future receivables from the application of paragraph 3º of Article 49 of Law No. 11.101/05, which set forth the judicial and extrajudicial recovery of companies as well as the bankruptcy proceedings of singular entrepreneurs and companies. For this, will be analyzed the doctrinal and jurisprudential perspectives on the topic, considering the effects of frame or not frame those credits of this legal provision. The present work was designed to enable, at first, a panoramic view of all the institutes that permeate the discussion, are those typical of business law, are those typical of civil law, and, after, a study of all positions on the issue under doctrinal and most important courts in the country.
Keywords: Bankruptcy. Effects. Fiduciary assignment. Credit Right. Priority credit.
1.Introdução
A comumente chamada Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas – Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, editada em substituição ao Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, inseriu no sistema de resolução insolvências brasileiros institutos inovadores, com destaque para a recuperação judicial de empresas, orientada pela compreensão global de que uma legislação falimentar que se pretende eficaz deve tutelar os direitos e interesses dos agentes que a ela se submetem diretamente, mas também dos sujeitos que integram a cadeia produtiva da atividade econômica desenvolvida por aqueles agentes, como os trabalhadores, os fornecedores e as instituições financeiras que a financiam.
Com efeito, propõe-se a Lei 11.101/05 a harmonizar e equilibrar os interesses dos empresários e sociedades empresárias em colapso, que se socorrem da recuperação judicial, considerando sua finalidade precípua de viabilizar a superação da crise econômico-financeira que eventualmente os acometa, com os anseios de seus credores, tendo em vista que as bases econômicas contratadas anteriormente à crise assim o foram com apoio nas previsões legais que asseguram o resgate dos créditos.
Nesse contexto, insere-se exceção legal, trazida pelo artigo 49, §3º, daquele diploma legal, pelo qual se determina que o credor titular de posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis terá seu crédito afastado dos efeitos da recuperação judicial, prevalecendo os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.
Reduzindo ainda mais o raio de ação do presente trabalho, anseia-se abordar, neste momento, questão polêmica e controvertida no direito falimentar, que se cinge à aplicação da exceção legal supracitada aos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios. Isto é, pretende-se a análise do tratamento dispensado aos créditos protegidos por tal garantia no âmbito do processo de recuperação judicial.
Para atingir esse fim, necessário se faz o exame do histórico legislativo do direito falimentar no Brasil, com vistas a determinar a direção da evolução deste ramo jurídico. A partir da legislação atual, resta imprescindível dissecar o instituto da recuperação judicial, observando sua natureza jurídica, os princípios que a regem e seus efeitos, até que, enfim, consiga-se uma interpretação finalística do §3º, do artigo 49, da Lei nº 11.101/05, suficiente a entender os argumentos favoráveis e contrários a sua aplicação aos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis. Do mesmo modo, justifica-se a digressão legislativa realizada nesta oportunidade, que tem início no surgimento do instituto da alienação fiduciária e chega a termo com a edição da Lei nº 10.931/04, que permitiu a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito.
Vale, ainda, considerar as influências econômicas de uma legislação falimentar cuja interpretação tenda excessivamente para a proteção dos interesses da recuperanda e daquela que prioriza em excesso os anseios dos credores. Limitando-se ao tema ora estudado, o que se busca é medir as consequências econômico-social-cultural da adoção das posições antagônicas referentes à classificação do crédito garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios como extraconcursal. Há de se consignar que os impactos econômicos são diretos e sensíveis, sobretudo na política de concessão de créditos, com implicacões sobre o valor e o volume do crédito disponível no mercado brasileiro.
As eventuais conclusões a que esse trabalho chegar decorrem de uma análise crítica, conjunta e comparativa, da doutrina que aborda o tema e da orientação jurisprudencial adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
2. Direito falimentar brasileiro
2.1. Histórico legislativo
O Brasil, por ocupar posição colonial em relação ao Estado Português, teve seu direito consubstanciado nas Ordenações do Reino. A primeira delas foi a Ordenação Afonsina, mais tarde revista por D. Manoel, passando a se chamar Ordenações Manoelinas, onde predominavam os princípios do Direito Romano, reproduzindo, através da falência, o direito estatutário italiano, o qual submetia o devedor a rigor excessivo.
Acerca deste momento histórico, Rubens Requião[1] assim esclarece:
“As Ordenações Afonsinas revistas por ordem Del Rei D. Manuel, em 1521, passando a se denominar Ordenações Manoelinas, regulavam também o concurso de credores, que ocorria quando o patrimônio do devedor não bastava para solver todos os seus débitos. Prevalecia, entretanto, ainda o princípio do primeiro exeqüente, dada a influência do antigo direito visigótico.”
Em 1603, surgiram as Ordenações Filipinas, que abrangiam a Espanha e Portugal e influenciaram diretamente a aplicação do direito no Brasil, principalmente devido ao crescimento das atividades mercantis na colônia. Nessa fase, sendo o devedor condenado por sentença que transitasse em julgado, iniciava-se a execução e penhora de seus bens. Caso não houvesse bens suficientes a responder pela totalidade da dívida, ele seria recolhido a cárcere privado até que a adimplisse, cabendo-lhe a opção de fazer a cessão de seus bens em troca da liberdade.
Segundo as lições de Amador Paes de Almeida[2], eram impostas ao devedor culposo penas que variavam do degredo até a pena de morte, mas para aqueles que não agiram com culpa, era dado tratamento diferente. Nesse sentido, as Ordenações Filipinas, Livro LXVI, §8º, assim dispunha:
“E os que caírem em pobreza sem culpa suas, por receberem grandes perdas no mar, ou na terra em seus tratos e comércios lícitos, não constando de algum dolo, ou malícia, não incorrerão em pena alguma crime. E neste caso serão os autos remetidos ao Prior Cônsules do Consulado, que os procurarão concertar e compor com seus credores, conforme o seu regimento.”
Como se observa da conjuntura supracitada, desde a Antiguidade, nota-se a necessidade de se estabelecer normas com o fim de estimular os devedores a adimplir suas obrigações. Nas palavras de Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn[3], inicialmente a adimplemento forçado recaía sobre a pessoa do devedor, que se tornava escravo do credor pelo tempo necessário ao pagamento da obrigação, da dívida. Essa alternativa de estímulo ao cumprimento das obrigações transformou-se, em seguida, em execução de bens do devedor o que, em sociedades capitalistas, constitui modalidade para tentar inibir o inadimplemento”.
Com o crescimento da necessidade de se tutelar o direito de crédito e o aprimoramento dos mecanismos que servem a essa finalidade, surge o direito falimentar, cuja legislação, recebida de Portugal, só passou a vigorar no Brasil após a Proclamação da República, quando se passou a aplicar também a lei das nações civilizadas e o Código Napoleônico de 1.807. Logo após, no ano de 1.850, foi promulgado o Código Comercial, que dedicou a sua terceira parte às “quebras”, inaugurando assim, a primeira fase histórica desse instituto no direito brasileiro e que se estenderia até o advento do regime republicano.
Junto com o advento da República, surgiu a necessidade de elaborar nova regulamentação sobre o instituto da falência, o que se deve, em grande parte, aos novos anseios morais trazidos no bojo do regime republicano. Isto posto, o Governo Provisório optou por revogar as disposições sobre falências do Código Comercial através do Decreto nº 917 de 24 de outubro de 1.890. Nesse momento, o estado de falência passou a ser caracterizado por atos ou fatos previstos expressamente na lei e na impontualidade do pagamento da obrigação mercantil líquida e certa.
Essa nova espécie legislativa trouxe esperanças de conter a corrupção recorrente no âmbito mercantil, sendo considerada um marco para o direito comercial em matéria falimentar, ainda que, segundo a leitura de Ricardo Negrão[4], apesar de introduzir meios preventivos à decretação da falência, como a concordata preventiva, a moratória, a cessão de bens e o acordo extrajudicial, a legislação não teve grandes méritos.
Ainda na esteira das críticas sofridas pelo Decreto nº 917, Miranda Valverde[5] ensina que:
“A mudança brusca do sistema falimentar; a facilidade que tinham os devedores de afastar a decretação da falência, pelo emprego dos meios preventivos; a autonomia excessiva dos credores, e, sobretudo, o afastamento do sistema na aplicação da lei, pelo cancelamento dos princípios que a inspiraram, concorreram para o descrédito desse decreto.”
Com a finalidade de acabar com a fraude existente no período do Decreto nº 917/1890, principal responsável pelo descrédito da legislação, surgiu a Lei nº 859 de 16 de agosto de 1.902. Sua missão precípua era vedar os abusos decorrentes da impunidade cujos beneficiários eram os devedores, bem como as vantagens excessivas franqueadas pela norma anterior aos credores. Contudo, a referida lei não atingiu o alcance esperado, além de cometer retrocessos apedrejados pela maioria dos estudiosos do tema, como se observa dos comentários de Carvalho de Mendonça[6]:
“A idéia de síndicos nomeados pelas Juntas Comerciais deu na prática funestos efeitos; sacrificou a reforma. Os quarenta síndicos do Distrito Federal foram alcunhados de ‘Ali-Babás', alusão ao conhecido conto ‘Ali-Babá e os quarenta ladrões'. Entre outras inovações estava a exclusão quase completa do Ministério Público do processo, fato que gerou severas críticas. Tal foi o clamor gerado por esta reforma que alguns Estados baixaram legislações próprias em algumas matérias.”
Diante dessas e outras duras críticas recebidas, promulgou-se a Lei nº 2.024, de 17 de dezembro de 1.908, que trouxe inovações essenciais ao aperfeiçoamento do direito falimentar brasileiro, dentre elas: a impontualidade como caracterizadora da falência; a enumeração das obrigações cujo inadimplemento denota a falência; o alinhamento dos chamados atos falimentares, sob a influência do Direito Inglês; a supressão da concordata amigável, admitida somente a judicial; a conceituação dos crimes falimentares e inclusão de regra a respeito do procedimento penal que passou a correr em autos apartados e, a partir do recebimento da denúncia (àquela época pronúncia) perante o juiz criminal; e o direito de escolha de um até três síndicos, conforme o valor da massa, aos maiores credores.
Seguindo a marcha das mudanças sensíveis testemunhadas no período pós Primeira Guerra Mundial, surgiu a necessidade de revisar alguns pontos da Lei nº 2.024/08 que não se adequavam à evolução comercial que ocorrera. Nesse contexto, promulgou-se a Lei nº 5.746/1929, de autoria do professor Waldemar Ferreira, sem que houvesse grandes diferenças entre as duas espécies normativas. Para o professor Mauro Penteado, citado por Francisco Satiro[7], a Lei n° 5.746/1929 fora criada para vedar as fendas que a legislação anterior criara, sem alterar-lhe o sistema, ou como asseverou seu relator, na Câmara dos Deputados, aperfeiçoá-la “no seu maquinismo, e naqueles pontos em que o aparelho mostrou não funcionar com a devida precisão”. Como inovações, se é que assim pode ser chamado, introduziu a diminuição do número de síndicos de três para apenas um e instituiu a porcentagem sobre os créditos para a concessão da concordata.
Em 21 de outubro de 1.943, novo anteprojeto foi apresentado, agora elaborado por uma comissão composta pelo Ministro da Justiça, Alexandre Marcondes Filho, transformando-se futuramente no Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1.945. Essa nova legislação teve como novidade a extinção da figura do liquidatário; o fim da subordinação da concessão da concordata preventiva à vontade dos credores; a abolição das Assembleias dos Credores, diminuindo a influência destes, reforçando os poderes dos magistrados; e a concordata (preventiva e suspensiva) deixou de ser um contrato, para ser um benefício concedido pelo Estado, através do Juiz ao devedor infeliz e honesto. Instaurou-se, também, a marcha paralela do processo falimentar com o processo criminal.
O Decreto-Lei nº 7.661 sofreu, posteriormente, muitas alterações, principalmente no que concerne às concordatas e à classificação dos créditos e recursos cabíveis. Atualizou-se, também, no tocante à reorganização econômica da empresa e a sua manutenção no meio social. Desse modo, a Falência deixou de ser um mero instrumento de liquidação com o encerramento das atividades empresariais. Houve uma preocupação maior com a função social da empresa frente à sociedade, o que já apontava para a criação de mecanismos novos e mais eficiências para preservar a empresa, reconstruí-la, sem deixar, contudo, de proteger o direito de crédito.
Por fim, rendendo-se à tendência natural, influenciada pela nova revolução comercial resultante da Segunda Guerra Mundial, de manter ativa a fonte produtora e os postos de trabalho, bem como contribuir para o aquecimento da economia nacional, promulgou-se, em 09 de fevereiro de 2005, a Lei n 11.101, legislação falimentar atualmente vigente.
2.2. As inovações trazidas pela Lei nº 11.101/05.
Preliminarmente, deve ser destacado que o novo direcionamento para o sistema falimentar brasileiro trazido pela Lei nº 11.101/2005 há muito já era idealizado e proposto pelos mais ilustres doutrinadores, que defendiam uma legislação capaz de gerar progresso econômico e social, reestruturando as empresas em crise e não as liquidando.
Já em 1974, Rubens Requião[8] alertava para a necessidade de transformações que garantissem aos credores a par condicio creditorum[9], mas que, principalmente, trouxessem mecanismos de sobrevivência da empresa, em prol do interesse social e dos próprios credores da empresa. Dessa forma, o enfoque legal passaria das causas da falência ou dos bens que responderiam pelo passivo para as possibilidades de recuperação da empresa.
Pontuava o mencionado mestre que:
“(…) o escopo final do instituto falimentar não é outorgar ao Estado a função de assegurar a realização da par condicio creditorum entre os credores, como sustentava o pensamento clássico. Mais do que a igualdade entre os credores na liquidação falimentar do patrimônio do devedor, muito mais do que a segurança do crédito – pontos de vista respeitáveis na doutrina antiga -, é o saneamento da atividade empresarial que constitui a finalidade primeira do instituto da falência, nas concepções modernas de atuação judicial do Estado.”
Outra visão progressista e, por consequência, crítica era sustentada por Nelson Abrão[10]. Segundo seu entendimento, a antiga legislação falimentar focava sistematicamente no comerciante individual, atingindo de modo secundário às sociedades mercantis, apesar de, à época da promulgação do referido diploma, já se ter noção do seu valor social e, por conseguinte, preocupação com a preservação da atividade empresarial.
Nesse sentido, leciona: “Ora, legislando-se para o indivíduo, evidentemente não se tem a visão da importância do organismo economicamente organizado, e que se sobrepõe à pessoa física de seu titular ou titulares, que é a empresa”.
Em 1991, ante a crise econômica mundial que assolava o Brasil e impedia seu crescimento, Jorge Lobo[11] constatava que o caminho para erguer o País era aquele que evitasse a falência e preservasse as empresas, como fonte geradora de renda, emprego, impostos e divisas. A manutenção dos postos de trabalho asseguraria o poder de compra da população, movimentando a economia nacional e pondo fim à crise.
Todavia, o mecanismo consagrado pelo diploma falimentar anterior – a concordata – havia passado a funcionar como ato preparatório da falência, utilizado pelo empresário de má-fé para protelar a declaração de quebra e conseguir tempo para desviar bens e fraudar credores. Diante de tal realidade o autor lembra meios práticos e eficazes para resgatar empresas em situação de crise:
“Quando uma empresa está precisando de ‘socorro’ devido a problemas financeiros ou passa por dificuldades gerenciais em virtude da sucessão de controlador ou de incompatibilidade entre sócios, as técnicas de aquisição e fusão, respectivamente acquisition e merger em inglês, e, ainda, a de join venture, em inglês literalmente ‘união de risco’, podem ser a saída para a ‘crise’. (…) Quando um empresa não mais tem condições de se autofinanciar, quer pelo aporte de recursos dos próprios sócios, quer pela capitalização através de novas ações ou debêntures; quando uma empresa não mais consegue financiamento bancário, por representar um grande risco, somente o auxílio estatal pode salvá-la.”
Como se observa, o Professor Jorge Lobo alinhava-se aos grandes doutrinadores do direito falimentar, bradando a necessidade de criação de novos mecanismos dedicados à salvação da empresa em crise, reconhecendo ser esta, em suas palavras, a “mola propulsora do progresso econômico e social”.
No mesmo sentido era o posicionamento adotado por Paulo Fernando Campos Salles de Toledo[12]. Segundo o professor da Universidade de São Paulo e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a preocupação precípua que deveria nortear o legislador quando da elaboração da nova lei de falências (atual Lei nº 11.101/2005) deveria ser no sentido da preservação da empresa.
Asseverava o autor que, diverso das legislações estrangeiras mais modernas, que se centravam na preservação da empresa como diretriz principal, a realidade legal do Brasil não pensava a empresa como unidade econômica socialmente útil e que, por essa característica, deveria ser salvaguardada. Nesse sentido, “a solução não está em fechar empresas, fechando toda uma porta que pode ser importante para um determinado setor da economia. As empresas, portanto, dentro da concepção mais atual, devem ser, sempre que possível e sempre que viáveis, preservadas”
Com efeito, ainda durante a vigência do Decreto-lei nº 7.661/45, estabeleceu-se na doutrina empresarial um consenso no sentido de que a preservação da empresa deveria ser a ideia nuclear da legislação falimentar que se sucedesse, facilmente explicado pelo reconhecimento do valor social que a empresa representa no mundo contemporâneo.
Nesse ambiente jurídico, a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas trouxe importantes inovações ao regime pátrio de resolução das insolvências, dentre as quais se destacam, a título exemplificativo, a eliminação da concordata suspensiva; a possibilidade de rápida realização do ativo prioritariamente em bloco; a exigência de um valor mínimo para que o credor requeira a falência do devedor; e a alteração da ordem de classificação dos créditos; e o tratamento singular e diferenciado às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.
Ao rol de inovações deste novo ordenamento, inclui-se, ainda, a eliminação de qualquer risco de sucessão tributária, previdenciária e trabalhista, para o empresário ou grupo corporativo que adquirir o fundo de comércio ou o estabelecimento comercial da empresa falida, previsto no artigo 141, inciso II, do diploma falimentar[13].
Em virtude da alteração no âmbito tributário, verificou-se a necessidade de modificações na legislação tributária, uma vez que, possivelmente, com a nova classificação no quadro de credores na falência, o Estado precisaria se adequar à nova lei. Nesse cenário, em 09 de fevereiro de 2005, foi sancionada e publicada a Lei Complementar nº. 118/2005, que altera e acrescenta dispositivos à lei nº. 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, e dispõe sobre a interpretação do inciso I do art. 168 da mesma Lei.
Através da lei nº 118/2005, foi inserido o § 3º no artigo 150-A do Código Tributário Nacional, determinando que Lei específica disporia sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. No entanto, ainda tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 245/04, de autoria do Senado Federal, que se refere ao “Programa de Recuperação Fiscal Federal”, visando o parcelamento especial para devedores que tenham iniciado Plano de Recuperação Judicial.
Foi acrescentado, ainda, com a edição daquela espécie legislativa, os parágrafos 1º, 2º e 3º[14] ao artigo 133 do Código Tributário Nacional, estipulando novas regras sobre empresas em processo de falência ou de recuperação judicial. Com estas alterações o investidor terá mais segurança para adquirir ativos de determinada sociedade em alienação judicial, sem que possa ser, futuramente, responsabilizado por dívidas fiscais existentes.
A negociação que ocorre no âmbito da recuperação judicial ou falência não se vislumbra em relação aos créditos de titularidade do Estado, que não pode por em risco seu crédito. Nesse contexto, a Lei nº118/05 inclui os artigos 191 e 191-A no Código Tributário Nacional, que assim estabelecem:
“Art. 191. A extinção das obrigações do falido requer prova de quitação de todos os tributos.
Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.”
Não obstante ser inconteste a importância evolutiva que podemos atribuir a essas novas regras e meios de favorecimento ao reerguimento do empresário e sociedade empresária em crise, as modificações que tornaram a Lei nº 11.101/05 deveras inovadora se referem aos institutos da Recuperação Judicial e da Recuperação Extrajudicial de empresas, sendo aquela tratada de maneira mais detida nos próximos capítulos do presente trabalho.
Acerca do instituto da Recuperação Extrajudicial que, repita-se, não se pretende abordar com rigor neste trabalho, revelam-se pontuais, e suficientes para a exposição que ora se vislumbra, as lições trazidas por Thomas Benes Felsberg[15]:
“Com a aprovação da nova lei, o devedor passa a ter condições especiais para pagar suas dívidas, além de poder convocar seus credores para negociações e elaboração do plano de reestruturação. A mudança representa um enorme avanço, propiciando condições adequadas à recuperação de empresas. A recuperação extrajudicial é um acordo celebrado entre o devedor e seus credores no âmbito privado, que deve ser homologado judicialmente quando da adesão de todos os credores ao plano ou de pelo menos três quintos de cada classe de credores sujeitos ao plano.”
Como se observa, pode-se afirmar, em linhas gerais, que a Recuperação Extrajudicial é um acordo entre o devedor e os credores, a fim de negociar as dívidas da empresa. Para a referida busca conjunta de solução para a crise financeira, a empresa não precisa atender a nenhum dos requisitos subjetivos trazidos pela Lei n 11.101/05. Acordando a devedora e os credores, firmam os instrumentos de renegociação das dívidas e assumem, por livre manifestação volitiva, a obrigações que, espera-se, impliquem a superação da crise empresarial.
Por outro lado, caso seja necessária a homologação judicial do plano de recuperação extrajudicial, o que ocorre normalmente quando os termos do acordo de renegociação das dívidas não são aprovados por unanimidade pelos credores[16], o empresário ou sociedade empresária deve preencher alguns requisitos subjetivos e objetivos estabelecidos pela Lei de Falências e Recuperação de Empresas.
3. A recuperação judicial
3.1 Conceito
O legislador cuidou de trazer a definição do instituto da recuperação judicial como a possibilidade que tem o devedor de superar a situação de crise econômico-financeira, a fim de possibilitar a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, de sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Segundo as lições de Lídia Valério Marzagão[17], depreende-se da conceituação legal que a adesão dos credores às medidas preventivas de recuperação de empresas é de salutar importância, passando estes a ter papel de destaque no procedimento da recuperação judicial, na medida em que assentirão expressamente, em assembleia geral de credores, sobre as condições propostas no plano de pagamento apresentado pelo devedor.
Na esteira no mesmo entendimento, Sérgio Campinho[18] esclarece que:
“A recuperação judicia, segundo perfil que lhe reservou o ordenamento, apresenta-se como um somatório de providências de ordem econômico-financeiras, econômico-produtivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de uma empresa possa, da melhor forma, ser reestruturada e aproveitada, alcançando uma rentabilidade auto-sustentável, superando, com isso, a situação de crise econômico-financeira em que se encontra seu titular – o empresário -, permitindo a manutenção da fonte produtora, da empresa e a composição dos interesses dos credores (cf. art. 47).”
Tal conceito, extraído do artigo 47 da Lei nº 11.101/05, elucida, portanto, que as motivações da mudança da legislação falimentar, principalmente no tocante à criação da recuperação judicial e extrajudicial, busca preservar o interesse coletivo da sociedade.
3.2. Princípios fundamentais.
Antes de analisar a recuperação judicial, faz-se mister dedicar algumas linhas à exposição dos princípios fundamentais do novo mecanismo falimentar, sobretudo porque através destes princípios se materializam os objetivos colimados pelo legislador quando da elaboração da norma, cujo conhecimento é essencial para compreender a funcionalidade do instituto.
Como se clamava, o princípio da preservação da empresa se destaca consideravelmente no novo sistema de insolvências empresariais. Em razão da função social da empresa, a sociedade mercantil e o empresarial individual devem ser preservados sempre que possível, uma vez que é fonte geradora de riqueza, emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento do País. É esse o princípio que sustenta a criação dos institutos da Recuperação Judicial e Extrajudicial de empresas. Sua existência pode ser aferida com maior propriedade da simples leitura do artigo 47, da lei nº 11.101/05, que assim dispõe:
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Tal orientação principiológica justifica-se pela necessidade de começar a enxergar a empresa como organismo vivo que é, com importância social fundamental, por constituir instrumento de produção, ocupação e distribuição de riqueza e ferramenta do progresso econômico-social-cultural. Sob essa ótica, não se pode permitir que empresas economicamente viáveis deixem de contribuir com geração de renda e empregos em função de obstáculos que uma legislação falimentar eficaz seja capaz de fazê-la superar.
Nesse sentido, associado ao princípio da preservação da empresa, exsurge o princípio da função social da empresa. Necessário é, ab ovo, trazer o conceito de função social, segundo as lições de Liliane Socorro de Castro[19]:
“Podemos entender a função social como um conjunto de direitos e deveres, que atingem a atividade a que estão relacionados, como por exemplo, o exercício da propriedade, o contrato e a empresa, e impõem um dever ao exercente dessa atividade, como o proprietário, o contratante e o empresário.”
Extrai-se, portanto, que o empresário e a sociedade empresária possuem obrigações e deveres a serem cumpridos para satisfazer a função social da atividade econômica por eles desenvolvida. Obrigações estas cuja tentativa de enumerar seria inviável, e até prejudicial, mas que podem ser compreendidas como atividades desempenhadas por eles que tornem sua relação com a comunidade em que estão inseridos o mais harmoniosa possível.
Para que o conceito se torne mais concreto, interessante se faz o exercício de imaginar o contrário do que se propõe, ou seja, como seria a empresa que não cumpre sua função social. Exemplifica Felipe Alberto Verza Ferreira[20] que uma empresa descumpre sua função social quando:
“(…) faz uso da prática da concorrência desleal, que exerce sua atividade de modo gravoso ao meio ambiente, aquele que não observa a segurança e a saúde de seus funcionários e clientes, aquele que sonega ou deixa de recolher os impostos e direitos trabalhistas, aquele que pratica atos de ingerência, entre outros tantos motivos.”
Assim, este princípio, esculpido expressamente no artigo 47 da Lei nº 11.101/05, revela um dos motivos que justificam a tendência do sistema de resolução de insolvências vigente em preservar a existência das companhias viáveis, enquanto personagens econômicos e sociais ativos: o incentivo ao cumprimento da função social da empresa.
Por outro lado, mas não menos importante, observa-se o princípio da proteção dos interesses dos credores como informativo do sistema falimentar brasileiro, expresso no mesmo artigo 47 da Lei nº 11.101/05. Nesse sentido, ampliou-se a participação dos credores no processo de recuperação judicial, reduzindo drasticamente a interferência do juízo.
Daí porque a própria concessão da recuperação judicial, cumpridas as exigências da legislação falimentar, é resultante da aprovação – tácita, sem apresentação de objeções, ou expressa, em assembleia geral de credores – do plano apresentado pelo devedor, conforme artigo 45 do diploma supracitado, restando ao magistrado a faculdade de conceder a recuperação com base em plano que não obteve aprovação em Assembleia Geral de Credores, na exceção do art. 58, § 1° da lei 11.101/2005.
Assim, temos que o credor deixou de ser um mero agente passivo, começando a atuar de maneira intensa e permanente no processo de recuperação do devedor. Houve uma considerável ampliação das atribuições da Assembleia Geral de Credores, que passou a deliberar sobre todas as questões da recuperação judicial, tais como a aprovação, rejeição ou modificação ao plano de recuperação e a constituição do Comitê de Credores, quando na lei anterior deliberava apenas sobre formas de realização do ativo do falido.
No sentido de estabelecer uma conexão lógica entre os princípios da preservação da empresa e da proteção do interesse dos credores, o ilustre magistrado Manoel Justino Bezerra Filho[21] cria uma espécie de relação de consequência entre eles, afirmando o seguinte:
“(…) a Lei, não por acaso, estabelece uma ordem de prioridades na finalidade que diz perseguir, ou seja, colocando como primeiro objetivo a ‘manutenção da fonte produtora’, ou seja, a manutenção da atividade empresarial em sua plenitude tanto quanto possível, com o que haverá possibilidade de manter também o ‘emprego dos trabalhadores’. Mantida a atividade empresarial e o trabalho dos empregados, será possível então satisfazer os ‘interesses dos credores”.
Nesse contexto, há de se ressaltar o papel da jurisprudência dos Tribunais na aplicação e harmonização dos princípios ora tratados. Isso porque a matéria falimentar é eminentemente interdisciplinar e de ordem prática, o que exige um grande exercício interpretativo do julgador para aplicar as regras trazidas pela lei às mais variadas e inovadoras demandas sociais que surgem com a evolução dos mercados, sopesando os princípios a ela incorporados, de modo que convivam em harmonia servindo à finalidade precípua do instituto da Recuperação Judicial.
3.3 Natureza.
Com a criação da Recuperação Judicial, pela Lei nº 11.101/05, surge importante discussão doutrinária acerca da natureza jurídica do instituto: se prestação jurisdicional do Estado, de caráter contencioso, ou de caráter contratual, tendo em vista as possibilidades de aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pela recuperanda pela Assembleia Geral de Credores.
O professor Jorge Lobo[22] considera a Recuperação Judicial um “ato complexo”, podendo ser analisada sob várias óticas, abrangendo um ato coletivo processual, um “favor legal” e uma obrigação ex lege.
Ato coletivo processual porque as manifestações de vontade do devedor, através da petição inicial, e dos credores, declaradas tácita ou expressamente nas oportunidades em que a lei lhes concede tal direito, combinam-se de forma a originar uma vontade unitária, homogênea, sob a direção e fiscalização do Poder Judiciário.
Favor legal porque garante à recuperanda, atendidas as condições previstas em lei, o saneamento de sua crise econômico-financeira, possibilitando a manutenção da fonte produtora e do emprego dos trabalhadores, o respeito ao interesse dos credores e o estímulo à atividade econômica, conforme prevê o artigo 47 da Lei nº 11.101/05.
Por fim, trata-se de obrigação ex lege porque, uma vez concedida, implica novação dos créditos anteriores ao pedido e vincula o devedor e todos os credores, sem prejuízo de suas garantias, nos termos do artigo 59, da LRF.
Sobre o tema, Isabel Candelário Marcías[23] faz importante advertência acerca da complexidade do instituto que ora se aborda. Salienta a doutrinadora que a recuperação judicial possui natureza mista, abrangendo fatores contratuais, processuais e sociais. Noutras palavras, o plano de recuperação judicial resulta de um ajuste entre o devedor e seus credores, o que evidencia seu caráter contratual, mas somente se aperfeiçoa mediante prestação jurisdicional no sentido de conceder o “favor legal”, a partir da qual surgirão situações jurídicas novas, confirmando o caráter processual do instituto. Por fim, o caráter social advém, segundo a autora, da necessidade de o plano expor e justificar o nível e perspectiva de emprego, bem como as condições sociais para manter a atividade empresarial, o que o transforma em verdadeiro contrato social.
Quanto à natureza contratual da Recuperação Judicial, é inconteste a sua existência, ainda que não exclusivamente, no instituto, o que pode ser aferido em diversos dispositivos contidos na legislação falimentar. Note-se:
“Art. 35. A assembléia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre:
I – na recuperação judicial:
a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor; b) a constituição do Comitê de Credores, a escolha de seus membros e sua substituição; c) (VETADO); d) o pedido de desistência do devedor, nos termos do § 4o do art. 52 desta Lei; e) o nome do gestor judicial, quando do afastamento do devedor; f) qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores.”
“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.”
“Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei.”
Por outro lado, ainda que se pareça contraditório, posto que alguns respeitáveis doutrinadores não admitem a existência de um “negócio jurídico processual”, pois às partes não é dado dispor sobre os efeitos dos atos que praticam no processo, que tem caráter público, não se pode fechar os olhos à existência de uma nítida natureza processual que disputa lugar na análise do instituto recuperatório.
A própria Lei nº 11.101 evidencia fortes traços processuais na recuperação judicial quando traz a figura da petição inicial, em seu artigo 51, e seus requisitos substanciais, no artigo 48; quando regulamenta o procedimento a que se submete a recuperação judicial, no Capítulo III, da Seção IV; quando autoriza a oposição dos credores ao plano oferecido pelo devedor, através da figura processual da objeção, nos termos do artigo 55, e ao valor e classificação do crédito trazido pelo edital de credores, através de sua impugnação judicial, nos molde do artigo 8º e 13; sem falar na possibilidade de o juiz aprovar o plano de recuperação judicial ainda quando os credores não o tenham feito, conforme consta no artigo 58, §1º, do diploma.
Corroborando essa exegese, explica Waldo Fazzio Júnior[24] que:
“Diz a LRE que a recuperação judicial é uma ação. Ação de conhecimento da espécie constitutiva acrescente-se. Inaugura uma nova conjuntura jurídica, modificando a índole das relações entre o devedor e seus credores e, bem assim, entre o devedor e seus empregados. Para não dizer, entre devedor e a atividade empresarial que exerce .”
Vale observar, inclusive, que foi nesse aspecto onde se produziram as grandes inovações da Lei nº 11.101/05. É em sua natureza processual que a recuperação judicial mais se diferencia de suas antecessoras históricas.
Pode-se dizer, portanto, que a recuperação judicial é instituto complexo, composto por fases onde, ora se sobrepõe sua natureza contratual, ora se sobrepõe sua natureza processual. Ou, ainda, nas palavras de Sérgio Campinho[25]:
“ o instituto da recuperação judicial deve ser visto com a natureza de um contrato judicial, com feições novativas, realizável através de um plano de recuperação, obedecidas por parte do devedor, determinadas condições de ordens objetivas e subjetivas para sua implementação.”
3.4. Objeto e Finalidades
Quanto ao objeto e finalidades da Recuperação Judicial, a doutrina é bastante uníssona, tendo em vista que a Lei nº 11.101/05 traz, de forma clara e objetiva, os fins a que serve o instituto, sem deixar margens para maiores questionamentos e consequentes interpretações.
O artigo 47 do referido diploma legal dispõe que:
“A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Dissecando o dispositivo, pode-se dizer que o instituto da Recuperação Judicial tem por objeto a reestruturação das atividades empresariais, o saneamento do estado de crise econômico-financeira e o consequente reerguimento do empresário ou da sociedade empresária, com vistas a evitar sua falência.
Nesse sentido, ponderam Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn[26], aos disporem sobre o assunto: “Sanear, aqui, significa equacionar o evento que gera dificuldade para a manutenção da atividade tal como originalmente organizada a fim de preservar os negócios sociais, a manutenção dos empregos e, igualmente, satisfazer os direitos e interesses dos credores.”
Acerca das finalidades do instituto, entendendo-as como a destinação do reerguimento empresarial diante da crise, Jorge Lobo[27] as divide em dois grupos: a recuperação judicial tem por finalidades imediatas a preservação dos negócios sociais, a continuidade do emprego e a satisfação dos direitos e interesses dos credores e, por finalidades mediatas, estimular a atividade empresarial, o trabalho humano e a economia creditícia.
3.5. Principais efeitos.
Durante o curso da ação de recuperação judicial, alguns efeitos decorrem desse instituto, efeitos estes que ora tem origem no texto legal, com ocorrência obrigatória, ora são provenientes da aplicação das considerações legais ao caso concreto, com a ponderação de princípios, objetivos e finalidades do arcabouço legal que rege o tema. Necessário considerar, ainda, que os efeitos da recuperação judicial também se dividem de acordo com o período de seu nascimento: alguns são oriundos de um primeiro momento processual, o deferimento do processamento da ação de recuperação judicial (art. 52, da Lei n 11.101/05), e outros surgem a partir da concessão da recuperação judicial (art. 58, da Lei n 11.101/05), após a aprovação do plano apresentado pelo devedor.
Inicialmente, é válido tratar de um efeito, que poucos autores abordam, por sua excepcionalidade, mas que merece espaço neste trabalho. Trata-se de efeito que decorre do simples ajuizamento da ação de recuperação judicial. Os artigos 95 e 96, inciso VII, da Lei nº 11.101/05[28], interpretados conjuntamente, determinam que o pedido de recuperação judicial, apresentado no prazo da contestação de pedido de falência preexistente, impede que esta seja decretada, ou seja, suspende o pedido falimentar.
Dissecando o referido efeito, Fábio Ulhoa Coelho[29] elucida:
“ para que importe a suspensão do pedido de falência, o pedido de recuperação judicial deve ser apresentado durante o prazo da contestação. Se a apresentação é posterior, enquanto não tiver sido proferido o despacho de processamento da recuperação judicial, a suspensão não se verifica.”
Noutro giro, a suspensão dos pedidos falimentares nos termos supramencionados é efeito legal que sofre duras críticas de parte da doutrina especializada no assunto. Ocorre que tal efeito propicia o uso indevido do instituto recuperatório. Em outras palavras, graças a essa sistemática qualquer empresário ou sociedade empresária que ocupe a posição de devedor, mesmo que ainda não tenho obtido o benefício da recuperação, pode obstruir a regular tramitação dos pedidos de falência ajuizados por seus credores, com o intuito exclusivo de retardar o cumprimento de suas obrigações. Nesse sentido, se posiciona novamente Fábio Ulhoa Coelho[30]: “Quando a intenção é unicamente retardar o cumprimento das obrigações passivas, a previsão legal da suspensão do pedido de falência pelo simples ajuizamento da recuperação judicial presta-se à concretização da fraude.”
Outro importante efeito da recuperação judicial, e talvez um dos mais relevantes, é a suspensão das ações e execuções em trâmite contra o requerente do pleito recuperatório. Tal efeito decorre do artigo 52, inciso III, da Lei nº 11.101/05, que assim dispõe:
“Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato: (…) III – ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, na forma do art. 6o desta Lei, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações previstas nos §§ 1o, 2o e 7o do art. 6o desta Lei e as relativas a créditos excetuados na forma dos §§ 3o e 4o do art. 49 desta Lei”
Este dispositivo soluciona alguns pontos ensejadores de calorosas discussões existente no antigo sistema de resolução de insolvências. O primeiro deles refere-se à competência para processar as ações ou execuções contra o devedor. Nesse sentido, apesar do conceito de juízo universal[31], a Lei nº 11.101/05 deixa claro que aquelas ações suspensas permanecerão no juízo de origem, não há declínio de competência para o juízo recuperatório.
Acerca do tema, Manoel Justina Bezerra Filho[32] afirma que:
“(…) ao determinar a suspensão das ações e execuções, deixa desde logo claramente fixado que os autos permanecerão na Vara na qual já estão. Portanto, nesse aspecto, ficam superadas as antigas discussões relativas à competência em tais casos e, se tais ações vierem a prosseguir futuramente, terão seu andamento ante o mesmo juiz perante o qual já se encontravam.”
Outro ponto relevante da suspensão ora examinada é sobre quais ações ela recai. Isto é, quais ações, excepcionalmente, não se suspendem em face do deferimento do processamento da recuperação judicial do devedor. O inciso III, do artigo 52, da Lei nº 11.101/05 é bastante pontual ao estabelecer as exceções a este feito da recuperação judicial. Não são suspensas, portanto, as ações que demandam quantias ilíquidas (artigo 6º, §1º), as ações trabalhistas até a fixação do valor devido (artigo 6º, §2º), as execuções fiscais (artigo 6º, §7º) e as execuções promovidas por credores absolutamente não sujeitos à recuperação judicial, quais sejam os titulares de créditos derivados de antecipação aos exportadores, o proprietários fiduciários, o arrendador mercantil e o vendedor ou promitente vendedor de imóvel ou bem cujo contrato contenham cláusulas de irrevogabilidade ou irretratabilidade ou com reserva de domínio (artigo 49, §§3º e 4º).
Deve-se esclarecer, ainda, que a suspensão aqui tratada é temporária, tendo seu termo final determinado nos termos da lei falimentar. Nesse sentido, o artigo 6º, §4º, da Lei nº 11.101/05, determina que:
“Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.”
Ainda que não haja previsão legal nesse sentido, resta logicamente evidente que também faz cessar esse efeito a aprovação e homologação do plano de recuperação judicial, uma vez que, a partir deste momento, opera-se a novação dos créditos sujeitos à recuperação judicial (outro efeito que adiante será tratado de forma mais detida), cessando a sua exigibilidade e, portanto, levando à extinção das ações e execuções neles fundadas.
Todavia, não obstante a preocupação do legislador em enfatizar o caráter improrrogável do prazo de suspensão das ações e execuções contra a recuperanda, o Superior Tribunal de Justiça[33] vem mitigando a aplicação do §4º, do artigo 6º, da Lei 11.101/05, com suporte no princípio da preservação da empresa, sempre que a sociedade obedecer aos comandos impostos pela legislação e não estiver, direta ou indiretamente, contribuindo para a demora na aprovação do plano por ela apresentado.
Outro efeito da recuperação judicial, este decorrente da homologação do plano de recuperação judicial, é a novação dos créditos anteriores ao pedido recuperatório. Tal efeito tem previsão legal expressa no artigo 59, da Lei nº 11.101/05, que assim dispõe: “o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei”.
Acerca do instituto, incluído no título do Código Civil referente ao adimplemento e extinção das obrigações, seu artigo 360 determina que ocorre novação, dentre outras hipóteses, quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior.
Em importantes considerações acerca do instituto, aduz Nelson Rosenvald[34] que:
“A novação é uma interessante modalidade de extinção de obrigações em virtude da constituição de uma nova obrigação que venha ocupar o lugar da primitiva. Nesta espécie de pagamento indireto, percebemos que em único ato, uma nova dívida assume a posição de outra, que desaparece. Via de consequência, a novação envolve a ideia de substituição de uma obrigação, pela intenção das partes de novar, manifestada mediante acordo, cessando o vínculo anterior com a aquisição de novo direito de crédito. O mesmo ato jurídico que ceifa uma obrigação é o gérmen para o brotar de outra.”
A priori, todos os credores anteriores ao pedido recuperatório se sujeitam aos termos do plano de recuperação judicial homologado em juízo e, por consequência, são atingidos por esta novação. Nesse contexto, note-se que ainda os que se opuseram ao plano e votaram pela sua rejeição em assembleia geral de credores devem acatar os termos aprovados pela maioria dos credores, que substituirão àqueles originalmente pactuados com o devedor.
A novação estabelecida na legislação falimentar é limitada em seus efeitos, haja vista que não se estende aos coobrigados, fiadores e demais obrigados de regresso do devedor, nos termos do §1º, do artigo 49, da lei nº 11.101/05. Observe-se a tal posição é reiterada pelo artigo 59 quando faz ressalva expressa ao mencionar que a novação se dá “sem prejuízo das garantias”.
Outra característica peculiar da novação que ocorre nesta hipótese é sua condicionalidade. Nessa direção são as lições de Fábio Ulho Coelho[35]:
“As novações, alterações e renegociações realizadas no âmbito da recuperação judicial são sempre condicionais. Quer dizer, valem e são eficazes unicamente na hipótese de o plano de recuperação ser implementado e ter sucesso. Caso se verifique a convolação da recuperação da recuperação judicial em falência, os credores retornam, com todos os seus direitos, ao status quo ante.”
O que se quer dizer é que a novação ocorrida com a aprovação e homologação do plano de recuperação judicial opera sob verdadeira condição suspensiva. Isto é, o crédito anterior ao pedido recuperatório é substituído por nova dívida delimitada no plano sendo de plano extinto. Todavia, o descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano acarreta convolação da recuperação judicial em falência e reconstitui os direitos e garantias dos credores nos termos originalmente contratados, como eram antes de operada a novação[36].
Assim, o efeito novador ocorrido no curso do processo de recuperação judicial é limitado e condicionado, operando-se somente em relação ao devedor principal e sustentando-se enquanto as obrigações estipuladas são devidamente cumpridas.
3.6. Classificação dos créditos
A legislação falimentar, para fins de composição e deliberação em assembleia geral, dividiu os credores em 3 (três) classes. A primeira delas é composto pelos detentores de créditos trabalhistas, incluídos aqui tanto os titulares de créditos derivados da legislação trabalhista quanto aqueles titulares de créditos que derivam de acidente de trabalho. A segunda classe abrange os créditos com garantia real, ou seja, aqueles em que a satisfação do direito do credor encontra-se garantida por todo o parte do patrimônio do devedor. Por fim, a última classe é composta por todos os outros credores que não se encaixam nas duas anteriores, que são os titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados.
É possível, entretanto, que um mesmo credor, pelo mesmo crédito, pertença a duas classes distintas na recuperação judicial. Isso porque, diferente dos titulares de créditos trabalhistas e de acidente de trabalho, que votam em conjunto como integrantes da classe I, os titulares de créditos com garantia real votam como integrantes da classe II até o limite do bem dado em garantia e, pelo restante do crédito que exceda àquele valor, com os credores integrantes da classe III, conforme determinação legal do §2º, do artigo 41, da Lei nº 11.101/05[37].
É necessário elucidar que o objetivo da divisão dos credores em classe com vistas à deliberação e votação em assembleia geral é formar vontades convergentes sem distorções entres os interesses particulares de cada credor. A ausência da referida divisão levaria à prevalência dos interesses daqueles credores de maior volume creditório em detrimento dos demais, o que é evitado pelo atual sistema, considerando que o plano deve ser aprovado em todas as classes – ressalvada a hipótese de cram down[38].
O que se quer dizer é que os interesses de um credor com garantia real, por exemplo, nem sempre são conciliáveis com os de um credor quirografário, principalmente se for considerado que no caso de falência este provavelmente não receberá seu crédito e, por isso, tende a se comportar de maneira mais maleável durante as deliberações assembleares. Dessa forma, caso os credores não fossem divididos em classes e um credor com garantia real detivesse crédito expressivo na recuperação, a aprovação do plano seria mais difícil, prejudicando o interesse de outros credores, para os quais a falência não seria interessante.
Considerando a coerente finalidade desta distribuição de credores, parta da doutrina, encabeçada por Fábio Ulhoa Coelho[39], desfere duras críticas á inclusão dos credores quirografários e dos titulares de privilégios numa mesma classe. Segundo o autor, este credores deveriam pertencer à mesma classe dos credores com garantia real, tendo em vista que possuem preferência na falência que por ventura se siga e, por isso, tendem a ser menos receptivos à alterações, novações ou renegociações de seus créditos no âmbito da recuperação judicial.
Vale ressaltar, por zelo, que a divisão da assembleia geral de credores em classes é medida que serve apenas ao momento do cômputo de votos. Durante a deliberação sobre os temas que compõem a pauta da assembleia, qualquer credor possui direito a voz, ainda que a matéria discutida não deva ser votada pela classe à qual pertence.
Existem, ainda, aqueles créditos que, por determinação legal, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, não se inserem no concurso de credores para o recebimento do que lhes é devido. Esse crédito a doutrina denominou extraconcursal.
4. A cessão fiduciária de direitos creditórios em garantia no âmbito da recuperação judicial
4.1. Os créditos que não sofrem os efeitos da recuperação judicial.
Na sistemática atual da recuperação judicial os credores da empresa insolvente participam ativamente do processo, em especial porque são estes mesmos que aprovam ou rejeitam o plano. Nessa ótica, o artigo 49 da lei falimentar é preciso quanto à abrangência dos efeitos da recuperação judicial ao determinar que “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”.
É notório que a recuperação judicial abrange diversos créditos. Tal amplitude justifica-se pela importância, para o devedor, de seu plano de recuperação atingir a maior parte possível do seu passivo. Os credores submetidos à recuperação deverão negociar com o devedor de forma que o plano eventualmente aprovado contemple minimamente os anseios de todos e, assim, tenha êxito em sua finalidade. Justifica-se, também, pelo objetivo precípuo da recuperação judicial, qual seja a solução da crise econômico-financeira da empresa devedora, tendo em vista que quanto mais créditos forem alcançados pela recuperação, mais créditos serão novados e negociados de modo a atender à solução da crise.
Se por um lado é interessante para o devedor a maior abrangência possível da recuperação judicial em relação ao seu passivo, para o credor a sujeição de seus créditos ao plano se mostraria, em um primeiro momento, a melhor solução. Isso porque, a empresa que perde a solvência perde também a capacidade de cumprir suas obrigações da forma que foram originalmente assumidas. Assim, sujeitando-se aos efeitos da recuperação judicial, a possibilidade de satisfação integral dos interesses dos credores desaparece, passando-se a visar à minimização das perdas. Sobre o tema, leciona Alexandre Motonaga[40]:
“A plena satisfação de seus interesses somente ocorreria se a empresa não estivesse em um processo desse tipo, ou seja, estivesse pagando seus credores e trabalhadores de forma pontual a integralmente. Porém, como isso não está ocorrendo (pagamentos das obrigações de forma pontual e integral), o que significaria maximizar os interesses, o objetivo passa a ser outro: minimizar as perdas.”
Todavia, não obstante a abrangência do atual modelo de recuperação judicial de empresas, há determinados créditos que não se submetem a este instituto. O que se objetiva com essa exclusão é estimular determinados agentes, cuja importância para a manutenção da atividade econômica é patente, a contratar com os agentes mercantis, por meio da garantia de que seu crédito não será afetado por eventual crise financeira que as torne insolvente.
Inicialmente, por interpretação a contrário sensu do caput do artigo 49, da Lei nº 11.101/05, conclui-se que os credores cujos créditos se constituíram posteriormente à distribuição do pedido de recuperação estarão excluídos dos efeitos do benefício. A regra assim disposta tem a finalidade de garantir o acesso do devedor ao crédito e viabilizar o objetivo maior que é a recuperação da empresa.
Nesse sentido, acrescenta João Bosco Cascardo de Gouvêa[41] que a exclusão legal prevista no artigo supracitado faz sentido, pois do contrário ninguém concederia crédito, ou mais crédito, a um devedor em situação de crise econômico-financeira para depois receber seus haveres no regime de recuperação judicial.
Além dos créditos tributários, consoante disposto no artigo 6º, §7º, c/c artigo 57, ambos da Lei nº 11.101/05, também não se sujeitam aos efeitos da recuperação a importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (artigo 49, §4º, c/c artigo 86, inciso II, da Lei nº 11.101/05) e os créditos do proprietário fiduciário de bens móveis e imóveis, do arrendador mercantil, do proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias e os créditos de proprietários em contrato de venda com reserva de domínio (artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101/05).
Existe, porém, atualmente, acalorada discussão jurisprudencial acerca da sujeição ou não ao plano de recuperação judicial dos créditos decorrentes da cessão fiduciária de direitos creditórios futuros oferecidos em garantia na obtenção de empréstimos bancários. O cerne da questão está na operação de mútuo bancário garantida pela comumente chamada “trava bancária”, utilizada maciçamente pelas instituições financeiras.
4.2. O tratamento legal dispensado aos créditos garantidos por alienação fiduciária de bens móveis e imóveis e aquele dado aos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios no âmbito da recuperação judicial.
No âmbito do Direito Falimentar, sobretudo no que diz respeito ao tratamento dos diversos créditos que constituem o passivo de empresário ou sociedade empresária em recuperação judicial, vislumbra-se uma controvérsia que, atualmente, ocasiona intensos debates na doutrina e nos tribunais, qual seja: a cessão fiduciária de crédito é ou não atingida pela determinação do artigo 49, §3º da Lei nº 11.101/05, que afasta os créditos decorrentes da propriedade fiduciária de bens móveis e imóveis do raio de ação dos efeitos da recuperação judicial.
Merece ser esmiuçado, inicialmente, o referido dispositivo legal:
“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(…)
§ 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. (G.N)”
Partindo da análise da letra fria da lei, a celeuma se resolve com a investigação detalhada com vistas a entender se a cessão fiduciária de crédito pode ser considerada propriedade fiduciária ou não. Essa investigação, inevitavelmente, tem como ponto de partida o estudo dos institutos da alienação fiduciária e da cessão fiduciária, com a finalidade de observar se suas características intrínsecas justificam a exclusão de ambos ou somente do primeiro da recuperação judicial.
Numa sociedade de consumo, o crédito é um poderoso combustível da economia, responsável por manter a atividade empresarial e o poder de compra do consumidor. Ocorre que o custo do crédito disponibilizado no mercado é diretamente proporcional à segurança do credor quanto à sua recuperação. É neste contexto, portanto, que surgiu o instituto da alienação fiduciária em garantia, inserido no ordenamento jurídico pátrio pela Lei nº 4.728/65, posteriormente alterada pela Lei nº 10.931/04, que regula a alienação fiduciária no âmbito exclusivo do mercado financeiro.
Todavia, a alienação fiduciária somente ganha os contornos de instrumento facilitador da obtenção de crédito a partir da edição do Decreto-lei nº 911/69. Ampliando a extensão do instituto, que passou a englobar os bens imóveis, surgiu a Lei nº 9.514/97, que “dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel”. Com a reforma do Código Civil, o ordenamento jurídico passou a disciplinar, através do artigo 1.361 e seguintes, a chamada propriedade fiduciária. Concluindo a positivação da alienação fiduciária em garantia, editou-se a Lei nº 10.931/04, que contempla a possibilidade de crédito ser objeto de alineção fiduciária em garantia.
A fim de esclarecer o tratamento conferido pelo Código Civil e pelas leis extravagantes ao instituto da propriedade fiduciária, Cezar Peluso[42] traz as seguintes lições:
“Pode-se afirmar a atual coexistência de triplo regime jurídico da propriedade fiduciária: o Código Civil disciplina a propriedade fiduciária sobre coisas móveis infungíveis, quando o credor não for instituição financeira; o art. 66-B da Lei n. 4.728/65, acrescentado pela Lei n. 10.931/04, e o Decreto-lei n, 911/69 disciplinam a propriedade fiduciária sobre coisas móveis fungíveis e infungíveis quando o credor fiduciário for instituição financeira; a Lei n. 9.514/97, também modificada pela Lei n.10.931/04, disciplina a propriedade fiduciária sobre bens imóveis, quando os protagonistas forem ou não instituições financeiras
A respeito do referido instituto, vale destacar as preciosas lições de Orlando Gomes[43]:
Alienação fiduciária em garantia é o negócio jurídico pelo qual o devedor, para garantir o pagamento da dívida, transmite ao credor a propriedade de um bem, normalmente retendo-lhe a posse direta, sob a condição resolutiva de saldá-la. Salvo disposição em contrário, na alienação fiduciária de coisa fungível e na cessão fiduciária de direitos sobre móveis ou títulos de crédito, realizadas no âmbito do mercado financeiro e de capitais, a posse do bem dado em garantia é integralmente transmitida ao credor e proprietário fiduciário. Nessa hipótese não há, portanto, o desdobramento da posse em direta e indireta, que comumente caracteriza a alienação fiduciária em garantia.”
No mesmo sentido, aduz Maria Helena Diniz[44], tecendo algumas considerações acerca da propriedade fiduciária, que “o devedor de empréstimo obtido junto ao credor transfere a este, em garantia, a propriedade de determinado bem ou de determinado crédito de sua titularidade”.
O Código Civil, por sua vez, traz no artigo 1.361 uma tentativa de conceituar o instituto quando dispõe que “considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. Todavia, a doutrina majoritária sobre o assunto tece duras críticas ao dispositivo legal por não disciplinar, como deveria, a propriedade fiduciária de todos os bens, mas unicamente a dos “móveis infungíveis”.
Na formação do negócio jurídico de alienação fiduciária figuram obrigatoriamente duas partes: a fiduciante e o fiduciário. Aquele transfere a este a domínio resolúvel e a posse indireta da coisa alienada, independente da tradição efetiva do bem. O fiduciante passa, então, a ser o possuidor direto e depositário do bem com todos os encargos de responsabilidade que lhe couberem. Acerca da resolubilidade da propriedade fiduciária, esclarece Arnaldo Rizzardo[45]:
“Tem-se, no contexto do negócio fiduciário, a propriedade resolúvel, porquanto a transferência visa, como razão de ser, garantir a concessão de um crédito, o qual, uma vez satisfeito, faz retornar a propriedade ao alienante-devedor. Daí a nota fundamental da resolubilidade. A expressão ‘propriedade resolúvel’ justifica-se porque fica desconstituída logo que desaparecer a obrigação que garantia, tornando para aquele que a transferiu. Há uma alienação fiduciária, isto é, feita em confiança, em que as partes seguem com fidelidade a condição de se resolver ou desconstituir uma vez satisfeita a dívida que originou a sua criação. Por isso a utilização do nome ‘alienação fiduciária’, e também ‘alienação fiduciária em garantia’, porque estabelecida para garantir um crédito.”
Na esteira do mesmo entendimento, são as lições de Ricardo Negrão:
“O domínio definitivo encontra-se sob condição resolutiva, daí por que a lei utiliza a expressão ‘domínio resolúvel’, visto tratar-se de domínio que jamais será pleno, nem tampouco definitivo. O credor possui uma propriedade restrita e transitória, enquanto não ocorrer a condição resolutiva. A condição resolutiva é uma garantia ao devedor: paga a dívida, ele readquire o pleno domínio sobre a coisa adquirida.”
Os posicionamentos acima colacionados estão em inteira sintonia com o disposto no Código Civil que, em seu artigo 127, estabelece que “se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.”
Esclarecidos alguns pontos acerca do objetivo e funcionamento da alienação fiduciária em garantia, passa-se à análise do instituto da cessão fiduciária de direitos creditórios, o que deveras interessa ao presente trabalho.
Segundo Fábio Ulhoa Coelho[46], define-se a cessão fiduciária de direitos creditórios como “o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante terceiros (‘Recebíveis’) em garantia do cumprimento de obrigações”.
Como já dito, o ordenamento jurídico pátrio, recentemente, contemplou a possibilidade de créditos também serem objeto de alienação fiduciária em garantia. Com a vigência da Lei nº 10.931/2004, que reformou a Lei nº 4.728/65, permitiu-se a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e a indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor e se consolidam na pessoa do credor fiduciário.
Nesse caso, havendo inadimplemento ou mora da obrigação garantida, o credor fiduciário aplicará, então, o valor cedido fiduciariamente no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, conforme estabelecido pelo artigo 66-B da Lei nº 4.728/65, com redação dada pela Lei nº 10.931/2004. In verbis:
“Art. 66-B. Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. (…) § 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. (G.N)”
Observe-se que o dispositivo supracitado faz uso da expressão “cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis”. Nesse sentido, segundo o artigo 83 do Código Civil[47], consideram-se móveis para efeitos legais “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”, categoria em que são incluídos, por óbvio, os recebíveis, formalizados em títulos de créditos ou não.
Reforçado o entendimento que classifica os direitos creditórios como bens móveis, edita-se a Súmula 59, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que assim dispõe: “Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária”.
Merece destaque, ainda, as regras trazidas pelos artigos 19 a 20 da Lei nº 9.514/97, que disciplinam os contratos de cessão fiduciária, sobretudo os direitos do credor fiduciante, nos seguintes termos:
“Art. 18. O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida, e conterá, além de outros elementos, os seguintes:
I – o total da dívida ou sua estimativa;
II – o local, a data e a forma de pagamento;
III – a taxa de juros;
IV – a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária.
Art. 19. Ao credor fiduciário compete o direito de:
I – conservar e recuperar a posse dos títulos representativos dos créditos cedidos, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente;
II – promover a intimação dos devedores que não paguem ao cedente, enquanto durar a cessão fiduciária;
III – usar das ações, recursos e execuções, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos e exercer os demais direitos conferidos ao cedente no contrato de alienação do imóvel;
IV – receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente.
§ 1º As importâncias recebidas na forma do inciso IV deste artigo, depois de deduzidas as despesas de cobrança e de administração, serão creditadas ao devedor cedente, na operação objeto da cessão fiduciária, até final liquidação da dívida e encargos, responsabilizando-se o credor fiduciário perante o cedente, como depositário, pelo que receber além do que este lhe devia.
§ 2º Se as importâncias recebidas, a que se refere o parágrafo anterior, não bastarem para o pagamento integral da dívida e seus encargos, bem como das despesas de cobrança e de administração daqueles créditos, o devedor continuará obrigado a resgatar o saldo remanescente nas condições convencionadas no contrato.” (G.N)”
Do panorama legislativo exposto, decorrem algumas conclusões lógicas: a) a alienação fiduciária funciona como instrumento de garantia de crédito, onde o devedor transfere ao credor a propriedade de um bem, sob a condição resolutiva de saldar a dívida; b) o ordenamento jurídico pátrio prevê expressamente a possibilidade de cessão fiduciária em garantia de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito; e c) consideram-se bens móveis os “recebíveis”, por força do artigo 83 do Código civil, haja vista tratarem-se de direitos pessoais de caráter patrimonial.
É necessário, entretanto, identificar qual é a relação existente entre os institutos da alienação fiduciária, cessão fiduciária e propriedade fiduciária. A posição que prevalece na doutrina civilista, encabeçada por Jean Carlos Fernandes[48], é a de que a propriedade fiduciária é gênero do qual a alienação fiduciária e a cessão fiduciária são espécies. Assevera o autor que “alienação fiduciária e a cessão fiduciária são modalidade do negócio fiduciário de constituição de propriedade fiduciária”.
O resultado desta digressão histórica e da análise doutrinária dos institutos revela, portanto, que a alienação fiduciária e a cessão fiduciária representam, essencialmente, o mesmo negócio jurídico e possuem a mesma natureza. Ambos deslocam a titularidade resolúvel de um bem, em garantia de um crédito. A variação terminológica se deve apenas ao fato de que a alienação fiduciária transfere a titularidade de objeto corpóreo, enquanto a cessão fiduciária o bem transferido é incorpóreo (direitos). Isto é, distinguem-se apenas pela materialidade do bem dado em garantia ao credor fiduciário.
Por tal motivo, o §3º, do artigo 49, da Lei nº 11.101/05, deve ser interpretado com vistas a contemplar o credor garantido por cessão fiduciária, de forma a afastar seu crédito dos efeitos da recuperação judicial.
Corroborando esta exegese, são as lições de Melhim Namem Chalhub[49]:
“No que tange especificamente à garantia fiduciária sobre direitos sobre bens móveis e sobre títulos de crédito, a expressão empregada na Lei nº 11.101/2005 – ‘credor titular de posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis’ – deve ser entendida em sentido abrangente, compreendendo os bens corpóreos e incorpóreos, entre eles os direitos sobre bens móveis e os títulos de crédito a que se refere o art. 66B da Lei nº 4.728/65, com a redação dada pelo art. 56 da Lei nº 10.931.2004.”
Também oportuna é a observação de Jorge Lobo[50], que, no tocante ao 3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05, asseverou:
“Destarte, a Lei nº 11.101/2005, ao referir-se, no art. 49, §3º, a ‘proprietário fiduciário de bens móveis, e, no art. 85, a ‘proprietário de bem arrecadado’, abrange tanto o proprietário fiduciário, que adquiriu essa qualidade por força de contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, quanto o proprietário fiduciário, que ostenta essa posição em decorrência de contrato de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, ambos espécies de negócio fiduciário ou ‘venda para garantir’ e institutos de Direito Econômico, que tem a finalidade precípua de servir de instrumentos, a serviço do Estado e dos particulares, do desenvolvimento econômico e social do país, daí serem regulados por princípios jurídicos próprios, que não seguem e ideia de justiça, mas de eficácia técnica, o que explica, justifica e fundamenta a sua exclusão dos processos de recuperação judicial e de falência do devedor-fiduciante. (G.N.)”
Todavia, os respeitáveis argumentos adotados pela corrente que defende que a exceção ao regime da recuperação judicial, trazido pelo §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05, não se aplica ao crédito garantido por cessão fiduciário de direitos creditórios merecem espaço, sobretudo para enriquecer o debate ora proposto.
Como nem sempre se faz justiça com a letra fria da lei, a corrente que restringe a aplicação do referido dispositivo o faz com respaldo principiológico, introduzido na legislação falimentar através do artigo 47, que assim dispõe:
“A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Nos termos analisados durante breve explanação pregressa sobre o tema, o princípio da preservação da empresa, positivado pelo dispositivo supra, é norteador do direito falimentar, de forma que o Estado, por meio do Poder Judiciário, deve dar suporte à empresa com reais chances de recuperação, harmonizando e tutelando os interesses da coletividade. Isso porque, as empresas guardam grande interesse social, como polo produtivo de fomento da economia, já que através delas se consegue distribuir bens e serviços, atendendo à demanda de consumo interno e também para que se fomente o mercado internacional, através das exportações, gerando ao final saldo favorável na balança comercial, essencial para a economia do país.
A Lei 11.101/05, ao regular a recuperação judicial e estabelecer em seu artigo 49 que, excetuadas as hipóteses elencadas nos §§ 3º e 4º, estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, teve por o escopo resguardar a empresa em recuperação, permitindo que a maior parte do passivo possa ser negociada no processo de recuperação judicial.
Agarrando-se nesta finalidade essencial da lei, parcela da doutrina falimentar defende a não inserção dos créditos garantidos por cessão fiduciária na hipótese de exclusão prevista no § 3° artigo 49 da Lei 11.101/200, especialmente porque a Lei de Recuperação Judicial deve ser interpretada à luz do princípio da preservação da empresa, disposto no artigo 47 do mesmo diploma legal, preservando-se o capital de giro da sociedade, a fim de garantir a continuidade da atividade econômica desenvolvida.
O direito creditório futuro da empresa sob o regime de recuperação judicial constitui seu capital de giro, seu faturamento, seu caixa, o resultado advindo de suas operações comerciais. Desse modo, ao tomar a garantia como forma de pagamento, o credor compromete a atividade empresarial já em evidente estado de crise.
Permitir que recebíveis da empresa em crise sejam excluídos do plano de recuperação judicial, sob o fundamento de que a cessão fiduciária promove a alteração da titularidade do direito de crédito futuro e que, por não constituir, naquele momento, patrimônio do devedor, não compõe o ativo da recuperanda, é comprometer o fluxo de caixa utilizando-se de estratégia jurídica para pagar determinadas dívidas de forma prioritária em prejuízo à recuperação pretendida.
A extensão da exceção do §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05, aos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis, nesta visão, subverte o princípio maior instituído na Lei 11.101/2005 que é combater a crise econômico-financeira que se abate sobre o empresário ou sociedade empresária.
Tal posicionamento é encabeçado por Sérgio Campinho[51]:
“A recuperação judicial, segundo perfil que lhe reservou o ordenamento apresenta-se como um somatório de providências de ordem econômico-financeiras, econômico-produtivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de um empresa possa, da melhor forma, ser reestruturada e aproveitada, alcançando uma rentabilidade auto-sustentável, superando, com isso, a situação de crise econômico-financeira em que se encontra seu titular – o empresário -, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego e a composição dos interesse do credores (cf. art. 47).”
Prossegue o autor:
“O nosso entendimento é de que cessão fiduciária de direitos creditórios se submete aos efeitos da recuperação judicial por não estar prevista dentre as exceções capituladas no §3º do artigo 49, seguindo, por isso, o mesmo curso dos créditos em geral, nos termos do caput do indigitado preceito. Isto porque o §3º aponta como exceção o credor titular de posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis. Apesar de os títulos de crédito, em gênero, poderem ser enquadrados na categoria dos bens móveis, o certo é que o legislador, que não se vale de palavras vãs, contemplou a posição de proprietário, que traduz, portanto, a existência de um direito real sobre a coisa. Ora, na cessão fiduciária de direitos creditórios, a posição do credor é a de titular de um direito pessoal e não real. Assim, como a regra do §3º é de exceção, deve ser interpretada de forma restrita.”
Importante frisar este último trecho da lição do ilustre doutrinador, acerca da excepcionalidade da norma, que afasta a incidência da regra em relação a alguns credores. Segundo a corrente que ora se analisa, o privilégio contido no §3º do artigo 49 deve ser interpretado restritivamente, como a boa hermenêutica exige, sendo incabível qualquer forma de presunção, analogia ou ampliação.
Acerca do argumento trazido à baila, referente ao princípio da manutenção da empresa, consigna-se que garantir a entrada de capital no caixa da empresa pode garantir, a curto prazo, a sua sobrevivência, mas não garante a manutenção da sua solvência, uma vez que a desconsideração das garantias conferidas aos credores, sobretudo às instituições financeiras, dificulta futuras parcerias econômicas.
A inviabilização da empresa em colapso deve ser verificada casuisticamente. Isto é, o afastamento da incidência do privilégio do §3º do artigo 49 da Lei 11.101/05 sobre os créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis, que resulta de uma ponderação de princípios, só tem espaço quando, de fato, a apropriação de receitas cedidas em garantia puder levar à falência da empresa.
Desse modo, nos casos em que não se verifica esse risco, tornando inócua a invocação do princípio da preservação da empresa, exsurge um outro argumento que desloca o crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis do §3º para o §5º, ambos do artigo 49 da legislação falimentar, aplicando-se àquele instituto a disciplina relativa ao penhor sobre títulos de crédito.
Isso porque, nesta linha de raciocínio, a titularidade dos direitos creditórios dados em garantia supostamente não sai da esfera patrimonial da cedente – empresa em recuperação, no caso -, relevando sua natureza pignoratícia, posto que a propriedade do bem pertenceria ao devedor, sendo apenas a posse direta transferida ao credor.
Antes de tecer quaisquer comentários a esta posição, impõe-se observar as lições de Melhim Nemem Chalhub[52] acerca da distinção entre os institutos do penhor e da cessão fiduciária:
“Em atenção às distintas conformações patrimoniais da cessão fiduciária e do penhor, a lei dá tratamento diferenciado aos efeitos de cada uma dessas espécies de garantia. Com efeito, no penhor o devedor empenha o crédito e o conserva em seu patrimônio, mas na cessão fiduciária transmite o direito creditório ao cessionário-fiduciário, demitindo-se da titularidade do direito cedido (Lei nº 9.514, art. 18). Dados esses distintos efeitos patrimoniais, na hipótese da recuperação de empresa, se se tratar de créditos empenhados, o produto de sua cobrança será depositado e mantido em conta vinculada (art, 49, §5º), mas se se tratar de crédito cedido fiduciariamente, seu produto será apropriado pelo cessionário-fiduciário, até o limite de seu crédito (art. 49, §3º).”
Desta análise, conclui-se que o penhor e a cessão fiduciária de créditos e títulos de crédito são mecanismos similares, porém, distintos. Enquanto no primeiro transfere-se somente a posse, no segundo há efetiva transferência de propriedade, embora esta seja resolúvel.
São, portanto, garantias estruturalmente diversas e, por isso, dotadas de regimes jurídicos próprios, inconfundíveis. Ora, pelo penhor o devedor empenha os créditos, mas os conserva em seu patrimônio, e essa é a razão pela qual se sujeitam aos efeitos da recuperação. Já pela cessão fiduciária, o devedor-fiduciante demite-se da propriedade e a transmite ao credor fiduciário, e porque estão fora do patrimônio do devedor é que os créditos cedidos não são alcançados pelos efeitos da recuperação judicial.
A fragilidade desta posição está na falta de amparo legal. Sobretudo, porque é incontroverso que a cessão fiduciária de recebíveis transfere ao credor a titularidade do crédito cedido, por força do artigo 18, da Lei nº 9.514/97[53], aplicável ao caso por disposição expressa do §4º, do artigo 66-B, da Lei nº 4.728/65[54], com redação da pela Lei nº 10.931/04, que passa a integrar a sua esfera patrimonial, o que atrai a aplicabilidade o §3º, do artigo 49 do arcabouço legal falimentar à hipótese.
Acerca da transferência da titularidade do crédito dado em garantia para o patrimônio do credor fiduciário, ensina Jorge Lobo[55]:
“(…) cessão fiduciária em garantia de recebíveis é a transferência, limitada e resolúvel, que faz o devedor-fiduciante ao credor-fiduciário, do domínio e posse direta, mediante tradição efetiva, de direitos creditórios oriundos de títulos de crédito próprios e impróprios ou de contratos em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do credor-fiduciário com a liquidação da dívida garantida e a reversão imediata e automática da propriedade ao devedor-fiduciante uma vez satisfeito o débito.”
Invocando os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, basilares do Código Civil pátrio, os adeptos desta corrente aduzem que a disciplina legal da garantia fiduciária no âmbito falimentar orienta o credor quando da contratação, de forma que as bases econômicas do negócio jurídico serão diversas se outras forem as regras acerca do tratamento dos créditos garantidos fiduciariamente na recuperação judicial.
Apenas para propor uma reflexão sobre o tema, ressalta-se que, enquanto a cessão fiduciária se mostra mais vantajosa para os credores, e isso não se nega, a modalidade do penhor não se mostra proveitosa a nenhum dos personagens da recuperação, uma vez que a empresa em crise continua privada do uso dos recursos, mantidos em conta vinculada, e o credor permanece destituído do direito de receber imediatamente os valores em conformidade com a garantia contratada, pelo que não se capta a intenção da tese: qual seria a finalidade de se reduzir a cessão fiduciária de direitos creditórios à garantia pignoratícia? Que grau de efetividade tal providência agregaria à recuperação da empresa em crise?
Certo é, portanto, que a presente controvérsia, que diz respeito à exclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária da recuperação judicial, extrapola os limites do direito, produzindo efeito relevante no ambiente econômico. Isso porque o instituto é comumente utilizado pelas instituições financeiras quando do empréstimo de recursos financeiros às empresas. Nestas hipóteses as empresas cedem fiduciariamente aos bancos seus créditos com terceiros, e o banco poderá se apropriar destes recebíveis até satisfeito o seu crédito com a empresa.
4.3. Os impactos do direito falimentar no ambiente econômico e a polêmica que envolve a cessão fiduciária de recebíveis.
Diante da característica interdisciplinar do direito falimentar, a existência de uma legislação sólida e eficiente é fundamental para a estabilidade econômica do país. A referida importância descende do fato de que um sistema falimentar que estabelece mecanismos que coordenam os interesses da empresa em crise e de seus parceiros econômicos, naquele momento figurando como credores, resolvendo os conflitos que surgem dessa inteiração, geram resultados positivos sob o ponto de vista econômico.
Todavia, há de ser frisado que a função da legislação falimentar não se esgota no regramento do pós-crise financeira, seja pelo procedimento recuperacional, seja pelo falimentar propriamente dito. O sistema de resolução de insolvência sinaliza aos agentes econômicos os possíveis resultados a serem obtidos e, por consequência, dita as estratégias que deverão ser adotadas na negociação.
Segundo leciona Marcos de Barros Lisboa[56], as empresas e seus gestores tomam suas decisões de investimento e produção em função de suas expectativas de lucros futuros. Quando as estratégias são traçadas em um ambiente de incerteza, não há a possibilidade de se proteger de todo o risco. Nesse cenário, o marco legal falimentar funciona como minimizador dos impactos dessa incerteza, pois aponta aos agentes a forma como serão resolvidos alguns conflitos se a empresa for levada a uma situação de insolvência.
As estratégias de mercado adotadas pelas empresas que compõem a rede econômica nacional oscilam em função dos riscos do negócio. Nesse contexto, a legislação falimentar colabora consideravelmente para a variação dos riscos. Note-se que um ordenamento que prioriza excessivamente a manutenção da empresa, mesmo as inviáveis economicamente, ou ainda aquele que protege em demasia o patrimônio dos administradores nos casos de falência, contribui para a realização de projetos ou investimentos sem as devidas precauções por parte do empresário em face da possibilidade de fracasso. Nesse caso, os riscos dos financiadores aumentam, pois a perspectiva de recuperação dos créditos diminui, e, por consequência, a política de concessão de empréstimos que fomentam a atividade mercantil é recrudescida por prevenção contra os riscos, causando, por exemplo, aumento dos spreads[57] bancários e das taxas de juros.
Por outro lado, a adoção de um diploma falimentar que favorece excessivamente os credores dissemina um temor proporcionalmente exagerado quanto aos empreendimentos rentáveis, inviabilizando o progresso econômico, incluindo-se aqui a geração de empregos e renda. Em outras palavras, a legislação falimentar que não coordena os interesses econômicos que permeiam as atividades comerciais de modo equilibrado cria, de alguma forma, empecilhos ao desenvolvimento econômico
Para fins ilustrativos, vale observar os ensinamentos de Aloísio Pessoa de Araújo[58], que, em uma abordagem econômica das legislações falimentares, aponta diferenças entre alguns modelos legais e suas repercussões. Cita o caso da Lei Inglesa, mais favorável aos credores, onde não existe muito espaço para a reorganização da empresa em crise, e onde a falência com a divisão dos ativos físicos entre os credores é a regra. Lembra, ainda, como isso pode e leva à eliminação de firmas ainda sadias, com alto prejuízo social. Em contraposição, menciona a lei americana, comparativamente mais avançada sob a ótica social. Esta legislação, além dos casos da falência, contempla a reorganização das empresas, estipulando formas de solução das situações de crise. Tal arcabouço legal revela-se mais eficiente, pois cria meios para conservar a empresa em funcionamento, exercendo sua função social, bem como atende aos interesses dos credores que, com a manutenção das atividades comerciais do devedor, tem suas chances de recuperar seu crédito aumentadas. Esse padrão de regramento permite uma sensação de bem-estar no ambiente econômico que colabora para o progresso comercial.
O principio de uma lei de falências é estabelecer, no caso de insolvência do empresário ou da sociedade empresária, como suas obrigações serão quitadas. Tal fato é de suma importância, pois o número de agentes e de forças envolvidas nesse processo é representativo. De um lado, deve-se pensar no passivo trabalhista e considerar os impactos sociais e políticos que surgem no momento da crise da empresa. De outra forma, também é essencial que os bancos e instituições financeiras, responsáveis por financiar boa parte das operações financeiras das sociedades mercantis, possam ter acesso ao patrimônio do devedor, a fim de recuperar seu capital. Além disso, vale lembrar que a lei falimentar também deveria possibilitar a recuperação da empresa e não somente repartir os ativos existentes no momento da falência.
Com efeito, o ordenamento jurídico ideal, sob a ótica falimentar, é aquele que equaliza a proteção dos interesses dos credores e a proteção da atividade empresarial, de modo a fornecer aos agentes da economia um sistema de resolução das insolvências equilibrado, eficiente e seguro. Nesse sentido são os ensinamentos de Marcos de Barros Lisboa[59]:
“Assim, a função da legislação falimentar é a de prover o sistema econômico com um conjunto de regras de coordenação, alinhando incentivos de forma a maximizar o resultado global. Além disso, na medida em que a legislação sinaliza com normas claras que preservem os direitos de propriedade, regulem o cumprimento dos contratos e, em caso de insolvência efetiva, minimizem as perdas, as incertezas são mitigadas, proporcionando maior segurança para a atividade econômica, para as relações comerciais e para o mercado de crédito em particular.”
Um sistema eficiente de falências e de reestruturação de empresas é fundamental para aumentar a produtividade e a estabilidade da economia, reduzindo riscos e custos de todos os agentes econômicos. Nesse contexto, a recente reforma da legislação falimentar pátria refletiu uma das prioridades do Governo e, especialmente, do Banco Central, no sentido aumentar a estabilidade do sistema financeiro, reduzir os riscos bancários e, como conseqüência, contribuir para redução dos juros e spreads bancários e aumentar a oferta de crédito.
Vale lembrar que, especificamente em relação à política nacional de concessão de crédito, as inadimplências que se concretizem definitivamente em não pagamento têm seus riscos já precificados e incluídos no spread bancário. Com isso, a implantação de uma nova lei mais eficiente coopera para a redução do spread, já que os riscos de perda dos créditos concedidos estariam em parte mitigados.
Dessa forma, a regulamentação das falências e recuperações de empresas deve ser pensada levando em consideração os impactos econômicos que dali resultem. Inegavelmente, tais diplomas têm o condão de incentivar ou desencorajar a atividade mercantil, além de definirem as posições adotadas pelos agentes econômicos e afetarem o funcionamento da econômica nacional de forma integrada.
Nesse contexto, pode-se observar que a cessão fiduciária de direitos creditórios em garantia de operações de crédito é estratégia comumente adotadas pelas instituições financeiras com o objetivo de reduzir os riscos do negócio e aumentar as perspectivas de recuperação do crédito concedido. Sobre o instituto de garantia, assevera Eduardo Secchi Munhoz[60] que “a finalidade da criação desse instituto foi claramente a de conferir às instituições financeiras um instrumento mais eficiente para a recuperação de créditos.”
Dada a importância das instituições financeiras ao conceder empréstimos e recursos financeiros que viabilizam a expansão da atividade econômica, é fundamental a existência de mecanismos que incentivem referidos empréstimos, como modo de assegurar a eficácia das garantias dos contratos até em casos de insolvência da empresa tomadora do empréstimo.
Portanto, ainda que a inclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis na exceção trazida pelo §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101//05 coloque as instituições financeiras em situação notadamente privilegiada em relação aos demais credores e, por consequência, crie alguns entraves à reestruturação do devedor em crise, a alta perspectiva de recuperação do capital mutuado, decorrente desta garantia, viabiliza uma política de concessão de financiamentos mais amena, posto que, diminuído o spread bancário, as taxas de juros praticadas reduzem-se proporcionalmente, beneficiando o ambiente econômico como um todo.
Acerca da influência dos instrumentos de garantias de crédito nas políticas bancárias, ensina Lídia Valério Marzagão[61]:
“O spread da taxa de juros está vinculado à taxa de risco e também à inadimplência. Na medida em que o sistema dá proteção legal e jurídica fornecendo os meios para que o direito à propriedade privada esteja suficientemente garantido, como o respeito no cumprimento dos contratos, estará fornecendo meios para o crescimento do capital, fundamental para o país.”
Eduardo Secchi Munhoz[62], por sua vez, apontando o impacto que este sistema tem sobre a concessão de créditos e empréstimos, sugere que a alienação fiduciária e a cessão fiduciária como instrumentos de recuperação de crédito, quando eficientes, apresentam claros reflexos quanto ao custo e volume de crédito disponível no país. Prossegue afirmando que “há dados estatísticos a demonstrar que, historicamente, no Brasil, as menores taxas de juros verificam-se justamente na concessão de empréstimos garantidos por alienação fiduciária”.
A referida interferência econômica deve ser analisada sob a ótica do princípio da preservação da empresa. O que se quer dizer é que a exclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária do raio de ação da recuperação judicial não opera somente em detrimento da empresa em crise e, por conseguinte, em prejuízo do desenvolvimento econômico do país. A garantia fiduciária que se manifesta pela cessão de direitos creditórios, quando exclui o crédito do concurso de credores na recuperação de empresas, viabiliza, indiretamente, a obtenção de empréstimos a juros mais baixos, proporcionais ao risco da operação, diminuído pelo mecanismo. Por conseguinte, a segurança jurídica referente à efetividade desses contratos acessórios de garantia implica a promoção de ambiente favorável ao progresso econômico-social-cultural, que seria freado no caso de ausência deste lastro patrimonial.
De outro modo, sustentam os adeptos dessa tese, a construção de uma orientação no sentido da sujeição dos mútuos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios aos efeitos da recuperação judicial desencadearia uma verdadeira retração no mercado de crédito cumulada com respeitável elevação das taxas de juros praticadas pelas instituições financeiras.
Neste momento, mostra-se válida e, sobretudo, útil uma breve revisão acerca dos efeitos da recuperação judicial que dificultariam o recebimento integral dos créditos mutuados. Como dito, a recuperação judicial submete às suas implicações todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, ressalvadas a exceções legais. Tais créditos, portanto, sofrem o efeito da novação, que se opera a partir da aprovação e homologação do plano de recuperação judicial, verificando-se sua extinção nas condições originais em decorrência da constituição de nova obrigação, cujos termos estão delineados no próprio plano. Ocorre que, em grande parte dos processos de recuperação judicial, os planos apresentados limitam-se à ampliação dos prazos para o pagamento das dívidas e ao hair cut (deságio) que na prática variam de 70% (setenta por cento) a 90% (noventa por cento) sobre o valor da dívida. É visível, destarte, que as soluções propostas, muitas vezes, incapazes até de permitir a reestruturação necessária à efetiva superação da crise, reduzem sensivelmente o valor dos créditos e dissolvem o pagamento desta pequena monta que resta aos credores em longos períodos.
Paralelo a isso, outro efeito que emerge da recuperação judicial e que, de certa forma, complementa aquele supracitado. Refere-se à suspensão das ações e execuções em trâmite contra o devedor e o impedimento ao ajuizamento de novas demandas. Tal previsão justifica-se pela necessidade de garantir que o patrimônio da recuperanda não seja dilapidado pela avalanche de ações que, provavelmente, estão sendo e serão contra ela movidas. Ocorre que, atingido por este efeito, o credor que tenha seu crédito garantido por qualquer mecanismo com essa finalidade, fica este impedidos de exigi-lo judicialmente.
Isto é, inserido na recuperação judicial o crédito garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios, aplica-se a ele a novação decorrente da aprovação e homologação do plano de recuperação, com os deságios e longos parcelamentos de praxe, bem como ficam impedidos os seus titulares de persegui-los de forma diversa, externa ao concurso de credores.
Esse é o cenário, construído pela sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis às balizadas do processo recuperatório, que, segundo a tese ora explicitada, reduz o acesso ao crédito e amplia se o custo no Brasil, dando azo ao aumento progressivo do spread bancário.
Encabeçando teoria diversa, diametralmente oposta à conclusão supracitada, são as lições de Ecio Perin Junior[63] acerca do beneficiamento das instituições financeiras com vistas ao aperfeiçoamento das políticas de crédito, segundo as quais “tal favorecimento tem-se mostrado ineficaz quanto à pretensa redução de juros, proporcionando, em realidade, um maior obstáculo para o êxito de muitos processos de recuperação judicial, colocando em risco o sucesso da própria lei falitária.”
Reforçando a divergência, Elias Katudjan[64], citando o Ministro da Fazenda Guido Mantega, contesta aqueles argumentos e sugere que as instituições financeiras abusam dos spreads por interesses próprios, sob o leviano argumento de querer proteger-se da inadimplência:
“Essas modificações foram introduzidas sob a falsa justificativa de serem necessárias para a redução do spread, pela redução dos riscos resultantes da inadimplência dos tomadores de empréstimos e financiamentos junto a instituições financeiras. Pois bem, cabe, hoje, perguntar: o spread foi efetivamente reduzido como prometido? Deixamos que a resposta seja dada por ninguém menos que o Ministro da Fazenda, Guido Mantega: ‘O bode na sala é o spread. As instituições financeiras dizem que querem se garantir contra a inadimplência, mas abusam. Fora os períodos de crise, quando ela aumenta mesmo, nossa inadimplência é normal. Mas ela é superestimada pelas instituições financeiras.’ Disse mais: ‘O custo financeiro no Brasil continua muito alto. É uma distorção em relação ao que acontece em outros países. A grande anormalidade é que os spreads (diferença entre o custo que o paga na captação do dinheiro e o juro que cobrado cliente) são muito altas no país. O consumidor brasileira paga juros absurdos’ (Entrevista concedido ao Estado de São Paulo de 21/06/2009, no caderno “Economia”, p; B-6).”
Nesse contexto, defende-se que as instituições financeiras, enquanto agentes fomentadores da atividade empresarial, possuem a faculdade de conceder ou não créditos, conforme prévia avaliação da capacidade financeira do tomador. Desta forma, a possibilidade de inadimplência é inerente à atividade de concessão de crédito, o que impõe a quem recorre aos empréstimos e financiamentos pesados encargos. A remuneração das instituições financeiras já leva em conta tal risco, independente da garantia que lhes seja concedida, da qual somente se valerão quando já concretizada a situação de inadimplência.
À luz das posições divergentes ora expostas, vale lembrar que o sistema de recuperação judicial, na forma construída na Lei nº 11.101/05, deve conciliar interesses opostos, visando sempre a superação da crise econômica. Assim, se por um lado a regra prevista no artigo 49 daquele arcabouço legal sujeita à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, e assim se fez para viabilizar a restruturação da empresa em colapso, por outro lado é necessário conferir segurança jurídica aos detentores de capital, com a preservação das garantias (aqui inserida a cessão fiduciária de direitos creditórios) e a aplicação de normas precisas que as disciplinem, a fim de incentivar a concessão de recursos financeiros a custos menores nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico do país.
4.4. A controvérsia na jurisprudência pátria.
Atualmente, a controvérsia que divide os tribunais do país cinge-se à extraconcursalidade daqueles créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios. O que se discute é a prevalência da interpretação juspositivista da legislação falimentar ou sua exegese principiológica, finalística.
No momento em que as empresas se dão conta de sua situação de debilidade econômico-financeira e recorrem à recuperação judicial, os titulares de créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios futuros fazem valer os termos contratados e as empresas em colapso passam a ter a sua renda comprometida pela prioridade legal estipulada pelo §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05. Esse é o estopim para que a questão chegue aos tribunais e tenha início a celeuma.
Desde o início da vigência da atual legislação falimentar, os tribunais estaduais adotam as mais diversas posições, sem que haja uma uniformização sobre a matéria. A divergência tem lugar, inclusive, dentro de um mesmo órgão, onde cada julgador adota posicionamento próprio, contrários uns aos outros.
Ainda que longe de definir a aplicabilidade da norma ou sua mitigação em relação ao caso concreto, o Superior Tribunal de Justiça, recentemente, proferiu dois acórdãos que marcaram o início da sedimentação de sua orientação jurisprudencial acerca do tema. Ressalta-se, todavia, o cuidado que se deve ter ao falar em orientação jurisprudencial, uma vez que em ambos os julgamentos houve votos divergentes marcando a permanência da instabilidade sobre o assunto, mas que, certamente, outrora fora maior.
O primeiro precedente, julgado em abril de 2013, pela Quarta Turma da Corte Superior, sob a relatoria da Excelentíssima Senhora Ministra Maria Isabel Gallotti, em sessão composta pelo Excelentíssimos Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi, Raul Araújo Filho e Luis Felipe Salomão, tratava-se do Recurso Especial nº 1.263.500/ES[65], interposto pelo Banco Bradesco S/A contra acórdão proferido pela Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, onde figurou como recorrido a Indústria de Móveis Movelar Ltda. – Em recuperação judicial, assim ementado:
“RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DUPLICATAS. INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO DO ART. 49, § 3º DA LEI 11.101/2005. ART. 66-B, § 3º DA LEI 4.728/1965.
1. Em face da regra do art. 49, § 3º da Lei nº 11.101/2005, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial os créditos garantidos por cessão fiduciária.2. Recurso especial provido.”
Em seu voto, a Exma. Ministra Relatora reconheceu a imunidade dos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios face aos efeitos da recuperação judicial do fiduciante. Expõe a ilustre magistrada que os direitos creditórios são direitos pessoais de caráter patrimonial e, por força do artigo 83 do Código Civil, consideram-se bens móveis para efeitos legais. Desse modo, em sua visão, não seria legítimo excluí-los da exceção trazida pelo §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101.
Argumentou-se que a submissão de tais créditos aos efeitos da recuperação judicial, aduzindo que a cessão fiduciária de direitos creditórios não deve ser assemelhada ao penhor de crédito e, por consequência, a ela não se aplica o §5º do artigo 49 daquele diploma, haja vista que aquela opera verdadeira transferência ope legis de titularidade do bem dado em garantia, nos termos do artigo 18, da lei nº 9.514/97, aplicável à hipótese por força do artigo 66-B, §4º, da Lei nº 4.728/65.
Por fim, traz respeitáveis considerações sobre a boa-fé objetiva e a segurança jurídica que permeia a determinação das bases econômicas dos negócios jurídicos, bem como a respeito da importância da referida benesse por conta de seu impacto positivo no Sistema Financeira Nacional, tornando mais amenas as políticas de concessão de crédito e, consequentemente, induzindo a diminuição dos spreads bancários.
Votaram com a Relatora os Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Raul Araújo Filho. O Excelentíssimo Ministro e ilustre comercialista Luis Felipe Salomão, todavia, reservou-se o direito a algumas ressalvas, pelo que divergiu parcialmente da Ministra relatora.
Com efeito, pondera o Ministro que, apesar de ser favorável à inclusão do credor garantido por cessão fiduciária na regra aplicável ao “credor titular da posição de proprietário fiduciário”, deve ser dada atenção especial à parte final do artigo 49 §3º, da Lei nº 11.101 que assim dispõe: “(…) não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.
Assim, vota o julgador no sentido de que o credor fiduciário não se submete à recuperação judicial e, por isso, não pode ser compelido às tratativas do plano nem o bem que lhe foi dado em garantia pode ser utilizado para satisfazer crédito de outros credores. Todavia, não constitui regra a satisfação imediata do crédito assim garantido, devendo ser verificada a sua essencialidade ou não ao funcionamento da empresa com vistas a harmonizar a situação da empresa em crise e as garantias dos credores. Defende o Ministro, portanto, que a realização do crédito através dos recebíveis dados em garantia, neste caso, deve ser chancelada pelo Poder Judiciário e não à revelia do juízo recuperatório, sob pena de tornar inócuo o instituto da recuperação judicial.
Outro recente precedente, julgado também em abril de 2013, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Excelentíssimo Senhor Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em sessão composta pelos Excelentíssimos Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy Andrighi, tratava-se do Recurso Especial nº 1.202.918/SP[66], interposto por Zelepel Indústria e Comércio de Artefatos de Papel Ltda. contra acórdão proferido pela Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde figurou como recorrido o Banco Paulista S/A, assim ementado:
“RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE
FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA".
1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005.
2. Recurso especial não provido.”
Em seu voto, pelo desprovimento do recurso, o Excelentíssimo Ministro Relator assevera que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, a exemplo dos títulos de créditos ou recebíveis, possuem natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando, no entendimento de Sua Excelência, aos efeitos da recuperação judicial, por força do artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101.
Pondera, ainda, o julgador, a respeito de eventual ofensa ao princípio da preservação da empresa, que o intento da lei ao criar a referida exceção é exatamente promover um ambiente propício ao desenvolvimento econômico, em aplauso àquele princípio norteador da recuperação judicial, sobretudo quando a ausência de lastro patrimonial impede o progresso.
Votaram com o relator os Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino. Já a Excelentíssima Ministra Nancy Andrighi, fundada em respeitáveis argumentos, pediu vênia para divergir do voto do ministro relator e dar provimento ao recurso especial, restando, porém, vencida neste julgado.
Para a magistrada, a alienação fiduciária de coisa móvel ou imóvel e a cessão fiduciária de direitos sobre coisa móvel ou títulos de crédito constituem modalidades distintas de negócio fiduciário. Em seu entendimento, a primeira transmite ao credor a posse direta e indireta do bem alienado fiduciariamente, já a segunda atribui-se ao credor a posse direta e indireta apenas do título representativo do direito creditório e não o crédito propriamente dito. Dessa forma, conclui, o §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05, ao utilizar a expressão “proprietário fiduciário de bens móveis e imóveis” contempla apenas os créditos garantidos por alienação fiduciária.
Acerca do impacto da submissão dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis nas políticas de concessão de crédito, Nancy Andrighi sustenta que o aumento dos juros praticados no sistema financeiro se resolve pela intervenção estatal tendente a redução desses encargos e não pela concessão de benefícios desmedidos às instituições financeiras para artificialmente reduzir os custos do crédito no mercado, em detrimento do tomador dos empréstimos.
Em oportunidade ainda mais recente, o Ministro Antonio Carlos Ferreira proferiu decisão monocrática, publicada em 25 de setembro de 2013, nos autos do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 39.962/PA[67], interposto por Banco Safra S/A, onde figurou como recorrido Centrais Elétricas do Pará S/A CELPA – em recuperação judicial, contra acordão proferido Tribunal de Justiça do Estado do Pará que negou provimento ao Agravo Interno manejado, por sua vez, contra decisão que denegou segurança ao Mandado de Segurança impetrado pelo ora recorrente.
Considerou o Ministro relator teratológica a decisão de primeira instância que determinou que as instituições financeiras devolvessem os créditos recebidos em função da cessão fiduciária diretamente à empresa recuperanda, uma vez que os créditos assim garantidos não se subsumem aos efeitos da recuperação judicial, conforme artigo 49, §3º, da lei nº 11.101/05.
Nesse trilho, deu-se provimento ao recursos para “ordenar a exclusão dos recebíveis oferecidos como garantia fiduciária de Cédulas de Crédito Bancário da recuperação judicial” e “determinar a imediata disponibilização ao credor dos valores que lhe foram cedidos na satisfação de seu crédito e que eventualmente se encontrem depositados em juízo”.
Como se observa dos mais atuais precedentes daquela Corte Superior, há uma tendência que aponta sensivelmente na direção do afastamento dos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios dos efeitos da recuperação judicial. Todavia, respeitáveis posicionamentos no sentido contrário, ou apenas mais cautelosos com a aplicação do dispositivo em comento, exsurgiram nesses mesmos julgados, o que evidencia a permanência de instabilidade sobre o tema (mais amena, certamente, mas ainda presente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça) e a necessidade de amadurecimento da questão.
Analisando a questão no âmbito dos pronunciamentos do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, percebe-se que a possibilidade de sedimentar qualquer orientação clara a respeito do tratamento dispensado aos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios na esfera da recuperação judicial evidencia-se ainda mais tímida. O dissenso ocorre não somente entre as Câmaras Cíveis daquele tribunal, mas também entre os desembargadores que compõe uma mesma Câmara, o que denota ampla divergência sobre o tema.
Importante precedente deste E. Tribunal de Justiça, sobretudo por ter sido julgado pelo Órgão Especial, é o Mandado de Segurança nº 0021547-43.2013.8.19.0000[68] impetrado pelo Banco BBM S/A contra ato da Exma. Sra. Desembargadora Relatora do Agravo de Instrumento Nº 0020512-48.2013.8.19.0000, em trâmite na 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e assim ementado:
“MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO DO RELATOR QUE INDEFERE O EFEITO SUSPENSIVO ATIVO AO RECURSO. AÇÃO MANDAMENTAL. CABIMENTO. DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO DO ART. 49, § 3º, DA LEI 11.101/2005. 1. É cabível a ação mandamental em face da irrecorribilidade da decisão que indefere a atribuição de efeito suspensivo ativo a agravo de instrumento. 2. Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. 3. A decisão impugnada que sujeitou o crédito cedido fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial revela-se, assim, conflitante com a Lei nº 11.101/2005, na medida em que o legislador pátrio, ao fomentar o crédito, buscou propiciar melhores condições e negociações calcadas na segurança jurídica para a viabilização do mercado de crédito e das empresas, e não apenas o da recuperanda, mas de todas aquelas que buscam ampliar ou estabilizar suas relações econômicas financeiras, mesmo não estando em processo de recuperação judicial. 4. Daí, e diante da probabilidade de que possa ocorrer lesão grave e de difícil reparação, por literal violação de lei, a razão de deferir-se o efeito suspensivo ao agravo de instrumento nº 0020512-48.2013.8.19.0000.”
Na ocasião, o Excelentíssimo Desembargador Relator do Mandado de Segurança votou no sentido de conceder a segurança, assumindo a exclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios da recuperação judicial. Isso porque, segundo o magistrado, a redação do artigo 18, da lei nº 9.514/07, determina que, mediante contrato de cessão fiduciária em garantia, opera-se a transferência de titularidade dos créditos cedidos ao credor.
Explica, ainda, que esta exceção atende à intenção do legislador de fomentar o mercado de crédito, criando melhores condições de negociação calcadas na segurança jurídica, e afastou acintosamente qualquer similitude que possa ser levantada desta garantia em relação àquela pignoratícia, pelo que não há que se falar em aplicação do artigo 49, §5º, da lei nº 11.101/05.
Merece destaque que, apesar do notório dissenso ainda existente neste E. Tribunal de Justiça a respeito do tema, o referido julgado, nos termos supracitados, atraiu a unanimidade dos desembargadores integrantes daquele Órgão Especial.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, observa-se o Agravo de Instrumento nº 2009.002.34272[69] interposto por Banco Itaú S/A, onde figura como Agravado Modern Sound Música e Equipamentos Ltda., assim ementado:
“DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATOS DE CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. LEI Nº 11.101/05, ART. 49, PARÁGRAFO 3º. A CESSÃO FIDUCIÁRIA, COMO ESPÉCIE DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA, TRANSFERE AO CREDOR FIDUCIÁRIO A PROPRIEDADE DO CRÉDITO, RAZÃO PELA QUAL NÃO PODE ESSE LHE SER INDISPONIBILIZADO, DESTINADO AO PAGAMENTO DE DÍVIDAS ORDINÁRIAS DA EMPRESA EM REGIME DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AINDA QUE A POSSE DO CRÉDITO ESTEJA EM PODER DO DEVEDOR, SUA PROPRIEDADE É DO CREDOR, DAÍ PORQUE HÁ DE SER EXCLUÍDO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. RECURSO PROVIDO.”
Aduz a Ilustre desembargadora que, por maior e mais legítima que seja a preocupação em conferir ao artigo 49, §3º, da lei nº 11.101/05 uma interpretação restritiva, não é possível excluir de sua regra a cessão fiduciária de recebíveis, uma vez que a transferência de titularidade do bem cedido que aqui se opera decorre da lei (artigo 18, da lei nº 9.514/07), atribuindo ao credor-cessionário a propriedade fiduciária dos direitos creditórios e inserindo-o, indiscutivelmente, na exceção daquele dispositivo da legislação falimentar.
Em sentido contrário, todavia, pontuando entendimento de que os créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis devem se submeter à recuperação judicial, é o recente acórdão proferido nos autos do Agravo de Instrumento nº 0045351-40.2013.8.19[70] interposto por HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo, onde figura como Agravado, em face de Targa S/A e Sintagma Empreendimentos e Participações Ltda., assim ementado:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – TRAVA BANCÁRIA – SISTEMA QUE INVIABILIZA O FUNCIONAMENTO DA EMPRESA RECUPERANDA – LIBERAÇÃO – PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA – Trata-se da cessão fiduciária de recebíveis de empresas, a que se denominou de “trava bancária”, pela qual os empréstimos bancários concedidos a sociedades empresárias são garantidos mediante retenção diretamente pelos bancos credores dos valores pagos para a quitação daqueles recebíveis, em ordem a provocar impossibilidade de movimentação financeira das contas dos devedores, até que haja total liquidação do débito. O artigo 49, § 3º, da Lei n° 11.101/2005, elenca os titulares de créditos que escapam aos efeitos da recuperação judicial. Assentada, na hipótese, a configuração dos contratos bancários excepcionados do regime concursal. Negado provimento ao recurso.”
Sustenta o relator do recurso, acompanhado pela câmara, que fatores de índole social aconselham a prevalência da intenção da empresa recuperanda de salvar-se do colapso, em detrimento das exigências do capital financeiro. Negou-se, ainda, que a cessão fiduciária de direitos creditórios opere transferência de titularidade de tais direitos, que permanecem na esfera patrimonial da cedente fiduciária, configurando, portanto, verdadeiro penhor de crédito. Como consequência, não há que se falar em imunidade aos efeitos da recuperação judicial, pois o artigo 49, §5º, da lei nº 11.101/05 é pontual ao determinar que créditos com tal garantia se submetem aos ditames da recuperação judicial.
Encampando a mesma interpretação do dispositivo, julgou-se o Agravo de Instrumento nº 0042771-37.2013.8.19.0000[71], sob a relatoria do Desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, interposto pelo Banco Bradesco S/A, onde figura como Agravado Sanerio Contruções Ltda., assim ementado:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE DEFERIU EM PARTE A LIMINAR, LIMITANDO A DENOMINADA “TRAVA BANCÁRIA” A 20% DOS RECEBÍVEIS DA EMPRESA. INCONFORMISMO DO BANCO-CREDOR. PRELIMINAR DE NULIDADE. NÃO ACOLHIDA. DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. A preliminar arguida pelo agravante deve ser rejeitada. Isto porque a simples leitura do decisum ora impugnado revela que o entendimento adotado pelo douto Magistrado singular foi devidamente fundamentado, não havendo em que se falar em violação do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. No mérito, tenho que o presente recurso não deve ser provido. Em consonância com o artigo 49, da Lei nº 11.101/2005, as cessões fiduciárias de direitos de crédito se sujeitam ao regime da recuperação judicial. É pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de se admitir a liberação da “trava bancária” em sede de recuperação judicial, como medida para possibilitar o sucesso da recuperação e preservação da empresa. Multa diária pelo descumprimento da decisão judicial fixada em patamar razoável. Decisão que se mantém. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO NOS TERMOS DO ART. 557, CAPUT, DO CPC.”
Em decisão monocrática, entendeu o ilustre magistrado que a norma insculpida no artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101/05, encerra situação de excepcionalidade, devendo, portanto, ser interpretada restritivamente. Nessa esteira, afasta a existência de propriedade fiduciária quando se está diante de cessão fiduciária de recebíveis, aplicando à hipótese a disciplina das garantias pignoratícias. Ressalta, ainda, que o posicionamento adotado naquela oportunidade compatibiliza-se com o sistema falimentar pátrio, instituído prioritariamente para viabilizar a superação de da crise econômico-financeira das empresas e não para tutelar os interesses particulares das instituições financeiras.
Como se vê, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a questão dos créditos garantidos por direitos creditórios, no âmbito da recuperação judicial, permanece vacilante. Isto é, cada Câmara Cível, cada Desembargador, adota um posicionamento sobre a matéria e a tutela jurisdicional que será alcançada, se favorável aos detentores da garantia ou recuperanda, está entregue à sorte, pelo menos até que o Superior Tribunal de Justiça construa uma orientação majoritária, para onde se vem caminhando timidamente, como relatado .
De modo semelhante, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também não chegou a uma posição inteiramente definida acerca desta celeuma. Todavia, leviano seria ignorar que existe uma notória receptibilidade à interpretação literal, garantista da legislação, com o afastamento dos créditos amparados por cessão fiduciária de recebíveis dos efeitos da recuperação judicial.
Recentemente, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou o Agravo de Instrumento nº 0154564-83.2013.8.26.0000[72], distribuído à relatoria do Desembargador Fortes Barbosa, interposto por Itaú Unibanco S/A, onde figura como agravado Saga Veículos Ltda. E outros, e assim ementado:
“Recuperação Judicial – Determinação de cessação de débitos automáticos – Julgamento de anterior agravo – Cessão fiduciária de crédito – Garantia regularmente instituída – Aplicação do §3º do artigo 49 da Lei 11.101/05 – Súmulas 59 e 62 do TJSP – Créditos extraconcursais – Recurso provido.”
Aduz o magistrado que a natureza das garantias concedidas – cessão fiduciária de direitos creditórios – impede que o crédito a que se vinculam seja incluído no concurso de credores criado pela recuperação judicial. Rechaça também a possibilidade de serem tais recebíveis essenciais à atividade empresarial de tal forma que justifiquem seu retorno à disposição da recuperanda.
Na esteira deste entendimento, esta mesma Câmara Reservada deu provimento ao Agravo de Instrumento nº 0250023-49.2012.8.26.0000[73], por unanimidade, tendo participado da sessão os Desembargadores Pereira Calças, Francisco Loureiro e Maia Cunha, este relator do recurso, que assim ficou ementado:
“Recuperação judicial. Crédito oriundo de contratos de mútuo e de concessão de crédito garantidos por cessões fiduciárias e registrados no RTD em data anterior à do ajuizamento do pedido de recuperação judicial. Propriedade fiduciária configurada, nos termos do art. 1361, CC, e da Súmula 60, TJSP. Crédito que, por força do art. 49, § 3º, Lei nº 11101/05, é excluído dos efeitos da recuperação judicial independentemente da natureza dos bens que foram transferidos ao credor fiduciante. Contratos conhecidos por ACC que não foram incluídos como sujeitos à recuperação. Recurso provido.”
Ainda que, de certa forma, não seja o foco deste trabalho, vale comentar um viés argumentativo recorrente no Tribunal de Justiça Paulista, que tem submetido inúmeros créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis aos efeitos da recuperação judicial, sem, para isso, sequer adentrar às questões próprias do direito falimentar que permeiam a hipótese: trata-se da necessidade de registro do contrato de alienação ou cessão fiduciária.
O artigo 1.361, §1º, do Código Civil[74] é preciso ao determinar que a propriedade fiduciária só se constitui a partir do registro do contrato, celebrado por instrumento público ou partícular, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor. Dessa forma, caso o pedido de recuperação judicial tenha sido ajuizado antes do referido registro, entende aquele E. Tribunal de Justiça que não há propriedade fiduciária constituída, impedido a aplicação do artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101/05, posto que específico para o credor “titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis”.
Nesse sentido, colacionam-se alguns arestos:
“Recuperação judicial. Impugnação de crédito julgada improcedente Garantia fiduciária Ausência do registro previsto no artigo 1361, § 1º do Código Civil, requisito necessário à constituição da propriedade fiduciária – Súmula 60 do TJSP Crédito considerado como quirografário – Recurso desprovido (AI 0088877-62.2013.8.26.0000, Rel. Fortes Barbosa, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 01/08/2013, reg. 06/08/2013).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Cédula de crédito bancário – Instrumento de cessão fiduciária de títulos de crédito em garantia – Propriedade fiduciária que se constitui mediante o registro do título no Registro de Títulos e Documentos – Inteligência do art. 1.361, § 1º, do Código Civil – Súmula nº 60 do E. TJSP – Inexistência de registro anterior ao pedido de recuperação judicial – Recurso não provido. (AI 0267467-95.2012.8.26.0000, Rel. Roberto Mac Cracken, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 01/07/2013, reg. 15/07/2013).”
“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Impugnação da recuperanda, procedente em parte, e do banco credor, improcedente. Recurso do credor. Decisão mantida. CONTRATO DE DESCONTO BANCÁRIO. Crédito que não se amolda a qualquer das hipóteses de exclusão dos efeitos da recuperação judicial, art. 49 §3º da LRF. Contrato bilateral em que remanescem ônus para ambas as partes. MUTUO DUPLICATAS. Propriedade fiduciária que se constitui mediante o registro do título no Registro de Títulos e Documentos. Art. 1361 §1° CC. Inexistência, no caso, de registro anterior ao pedido de recuperação judicial. Súmula n° 62 que deve ser analisada em conjunto com a súmula nº 60 deste TJSP. Crédito, portanto, que se submete à recuperação. Hipótese que também não se amolda à exclusão prevista no art. 49 §3º da Lei 11.101/05. Recurso desprovido. (AI 0273631-76.2012.8.26.0000, Rel. Teixeira Leite, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 21/05/2013, reg. 23/05/2013).
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Adiantamento de Contrato de Câmbio (ACC). Crédito não sujeito à recuperação judicial. Disposição expressa de lei. Artigos 49, §4o e 86, II da Lei no 11.101/05. Desnecessidade, na atual fase do processo, de retorno da quantia à recuperanda para que o banco peça ao magistrado a restituição. Precedente do C. STJ. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Contrato de mútuo com emissão de cédula de crédito bancário e garantia de alienação fiduciária sobre recebíveis da devedora. Inexistência de registro, de natureza constitutiva, da garantia junto ao RTD. Garantia real ineficaz frente à coletividade de credores, consoante pacífico e sumulado entendimento da Câmara Reservada à Falência e Recuperação Judicial. Inocorrência de preclusão ou de coisa julgada, uma vez que o crédito fora inicialmente excluído da moratória sem análise da questão da ineficácia da garantia real da propriedade fiduciária. Correta a determinação de inclusão do crédito do banco agravante na recuperação judicial. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (AI 0236875-68.2012.8.26.0000, Rel. Francisco Loureiro, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 21/05/2013, reg. 22/05/2013).”
Conclui-se, portanto, que o tratamento dispensado aos créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios é matéria nebulosa na jurisprudência, e, provavelmente, assim permanecerá até que o Superior Tribunal de Justiça adote uma posição firme a respeito do tema tornando-se paradigma para os Tribunais Estaduais. De outro modo, a insegurança jurídica sobre o tema perpetuar-se-á.
6. Conclusão
O presente trabalho foi desenvolvido com o escopo de expor o atual cenário do debate envolvendo o tratamento dispensado aos créditos garantidos por cessão fiduciária diante da recuperação judicial do devedor-cedente, através da análise do posicionamento da doutrina e da jurisprudência pátria sobre a hipótese.
A discussão travada a respeito do tema é recente e bastante polêmica, posto que equilibra interesses das empresas em crise, das instituições financeiras fomentadoras da atividade econômica e de todos os credores da recuperanda, sobretudo aqueles trabalhistas, mais vulneráveis no caso de uma eventual falência.
Nota-se que, embora exista uma corrente, viva na doutrina e jurisprudência, que se recuse a atender os interesses particulares das instituições financeiras e defenda, com os mais variados argumentos, a mitigação da disposição legal contida no §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05, em deferência ao princípio da preservação da empresa, a tendência verificada é no sentido contrário.
O Superior Tribunal de Justiça, a passos lentos, além dos acórdãos definitivos que nesta oportunidade se trouxe a conhecimento, tem proferido inúmeras decisões liminares em Recursos Ordinários em Mandado de Segurança e Medidas Cautelares que, apesar de provisórias, marcam o humor da Corte Superior de inclinar-se pela concessão do benefício às instituições financeiras e consequente exclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária do concurso de credores na recuperação judicial.
Ainda que a sedimentação de tal posicionamento pareça inevitável, cumpre aos julgadores e aos profissionais da área jurídica conservar a cautela na aplicação da referida disposição, sob pena de tornar inócuo o instituto da recuperação judicial. Nesse sentido, são de grande valia as ponderações e ensinamentos do Ministro Luis Felipe Salomão, quando inaugurou a divergência no julgamento do Recurso Especial nº 1.263.500/ES.
Segundo o magistrado, embora o credor fiduciário não se submeta aos efeitos da recuperação, e isso não se nega, não lhe pode ser conferida liberdade irrestrita para fazer valer sua garantia indiscriminadamente. Mesmo nesses casos excepcionais, os atos que importem expropriação devem ser controlados pelo Juízo da recuperação, ente apto a verificar se o bem gravado com a garantia fiduciária é ou não essencial à manutenção da empresa em colapso.
Há de ser lembrado, nesse contexto, que este dilema tem consequências que ultrapassam a defesa de teses jurídicas nos tribunais e afetam de forma direta e incisiva o ambiente econômico do país e, por consequência, a vida de cada cidadão brasileiro que depende da empresa, seja pelo emprego, seja pela necessidade coletiva de manter ativa da circulação de bens, serviços e capital.
O que parece ser, portanto, o mais razoável, tanto para garantir a aplicação da lei, quanto para garantir as finalidades nela estampadas, sobretudo concernente à recuperação da empresa e manutenção da estabilidade econômica do país, é a harmonização entre a situação do devedor e as garantias do credor fiduciário, de modo que os recebíveis dados em garantia mediante o instrumento de cessão fiduciária não sejam simplesmente diluídos para o pagamento dos outros credores submetidos ao processo de recuperação judicial, tampouco liquidados extrajudicialmente pelo credor fiduciário na satisfação do próprio crédito, sem a interferência judicial.
Todavia, enquanto a controvérsia permanece viva nos tribunais e não se goza de segurança jurídica a respeito das garantias de crédito e sua aplicabilidade casuística, assume importante relevo a busca de soluções de caráter preventivo, ou seja, antes da crise empresarial. Por parte do devedor, caberia uma tentativa de renegociação da dívida ou substituição de garantias antes do pedido de recuperação judicial, de modo que se evite futura dilapidação patrimonial em meio ao colapso financeiro. De outro modo, às instituições financeiras incumbiria uma análise detida acerca da capacidade financeira do tomador de crédito antes da concessão, bem como uma competente assessoria jurídica que busque garantias juridicamente mais adequadas e que incontroversamente não sejam atingidas pela recuperação judicial.
Por fim, como não poderia deixar de ser, o Estado, por meio do Poder Judiciário, como principal interessado no crescimento da economia e saúde do mercado financeiro, deve assumir papel importante frente à questão, cabendo-lhe a análise criteriosa e cuidadosa acerca da aplicabilidade da exceção trazida pelo artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101/05, sobretudo pela constante necessidade de manutenção e criação de empregos, alicerce do desenvolvimento do País e sustentáculo econômico do Estado Democrático de Direito.
Trazida a discussão à tona e abordada as questões polêmicas que a permeiam, a expectativa é pela adoção de uma posição firme do Superior Tribunal de Justiça que harmonize os interesses conflitantes no âmbito da recuperação judicial e conduza os tribunais estaduais a uma padronização jurisprudencial que resulte na confiança da sociedade quanto aos seus direitos, bem como no estrito conhecimento sobre a exegese das normas formais.
Advogado militante formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC-RIO
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