Os limites do individualismo e da intervenção do estado na perspectiva liberal

Resumo: Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo, com o objetivo de analisar os limites do individualismo e da intervenção do Estado na perspectiva liberal. Para tanto, será realizada a análise de conteúdo, segundo o entendimento de teóricos ligados ao tema, afim de promover discussões, com vistas a identificar o ideal de liberdade mediante a visão de autores liberais frente à necessidade de intervenção estatal.

Palavras-chave: Individualismo. Liberdade. Intervenção do Estado.

Abstract: It is a theoretical-reflexive essay, with the objective of analyzing the limits of individualism and state intervention in the liberal perspective. In order to do so, content analysis will be carried out, according to the understanding of theoreticians related to the theme, in order to promote discussions, with a view to identifying the ideal of freedom through the view of liberal authors in view of the need for state intervention.

Keywords: Individualism. Freedom. State intervention.

Sumário: 1. Introdução. 2. A intervenção do Estado no pensamento liberal. 3. O individualismo: um elemento de bem-estar ou causa de limitação. 4. Considerações finais.

1 INTRODUÇÃO

O individualismo é uma característica própria da sociedade moderna, haja vista a evolução dos fatores de produção, bem como as profundas transformações vivenciadas com a transição do feudalismo para a sociedade industrial do século XVIII. Tocqueville (2000, p. 123) entende que é “no momento que a sociedade democrática acaba de se formar sobre os escombros de uma aristocracia que esse isolamento dos homens uns dos outros, e o egoísmo que é sua consequência, mais dão na vista”.

De fato, aludidas transformações deram causa a substituição da figura de um Estado absoluto, que regulava todas as áreas da vida do indivíduo a um Estado com poderes limitados, que após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, com a definição dos direitos individuais e coletivos dos homens, o Estado passou a exercer um papel de cumpridor de liberdades negativas, ou seja, foi instituída uma área de não interferência estatal, na qual os indivíduos tornaram-se livres e iguais.

Para a compreensão desse processo evolutivo da sociedade moderna, algumas indagações devem permear este estudo. Por que e em quais circunstâncias surgiu o individualismo? Qual a visão dos principais pensadores modernos acerca da questão do individualismo? Como a perspectiva liberal de intervenção do Estado condiciona a esfera de não interferência?  Qual o papel da liberdade e igualdade no processo de democratização das sociedades modernas?

O objetivo deste ensaio é discutir como o pensamento liberal influenciou o individualismo e a questão da intervenção do Estado na sociedade moderna. Nesse intuito, colacionou-se as leituras de obras basilares acerca das questões então levantadas, tais como “Teoria dos Sentimentos Morais” de Smith (1999), “A Liberdade; Utilitarismo” de Mill (2000), “A Democracia na América” de Tocqueville (2000) e “Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída” de Weber (1980). A leitura das obras foi realizada na tentativa de responder as questões que norteiam a pesquisa, a fim de contribuir com a discussão e compreensão dos limites da intervenção do Estado no pensamento moderno, sobretudo na perspectiva liberal, além da questão do individualismo.  

As vertentes dessas questões alicerçadas em autores modernos são fundamentais para compreensão da presente pesquisa. Todavia, nosso estudo não possui a pretensão de trazer tais respostas, mas apenas a de dialogar sobre essas vertentes, a fim de delinear a forma como aludido tema é tratado na visão moderna e liberal, o que será nosso ponto de partida.

2 A intervenção do Estado no pensamento liberal

O liberalismo fundamenta-se na premissa de que o Estado deve intervir minimamente na esfera social e econômica, cabendo ao mercado esse mister. Todavia, a relação Estado e sociedade é historicamente pautada na dicotomia entre a busca por liberdade face a necessidade de segurança, nesse sentido, Mill (2000, p. 05-06) acredita que “a luta entre a Liberdade e a Autoridade é o traço mais evidente nos períodos históricos com que nos familiarizamos desde cedo, particularmente na Grécia, Roma e Inglaterra”, assim, por liberdade “entendia-se a proteção contra a tirania dos dirigentes políticos”. 

Tocqueville (2000, p. 117), ao tratar da liberdade e igualdade, entende “que os povos democráticos têm um gosto natural pela liberdade (…) Mas têm pela igualdade uma paixão ardente, insaciável, eterna, invencível; querem a igualdade na liberdade e, se não a podem obter, querem-na também na escravidão”.

O papel de um Estado regulador evidencia limitação de liberdade individual, que é pedra angular da doutrina liberal. A elevação do indivíduo a um patamar de centralidade das relações é oriunda da modernidade, e de fato o individualismo colaborou para o surgimento e implementação desse sistema de regulação.

Mill (2000, p. 7) ainda nos revela que foi progresso da humanidade quando esta percebeu que o poder dos governantes devia ser limitado aos interesses dos governados, pois “veio um tempo de progresso das questões humanas, porém, quando os homens deixaram de julgar que fosse uma necessidade da natureza seus governantes constituírem um poder independente, opostos aos seus próprios interesses”. Mais à frente, ele ainda ressalta:

“Agora o desejo era de que os dirigentes se identificassem com o povo; que seu interesse e vontade fossem o interesse e a vontade da nação. A nação não precisaria ser protegida contra sua própria vontade. Não havia receio de que se tiranizasse a si mesma. No momento em que os dirigentes fossem efetivamente responsáveis perante à nação, prontamente por ela removíveis, seria possível confiar-lhes o poder para cujo exercício a própria nação ditaria as regras”.  (MILL, 2000, p. 8).      

Tocqueville (2000, p.144) ao estudar as entranhas da sociedade norte-americana do século XIX, polarizou sua análise em duas espécie de governo, a saber, a aristocracia e a democracia, evidenciando sua predileção à segunda espécie, embora fosse de raízes aristocráticas, e, ao destrinchar a democratização da referida sociedade, observou que:

“Nos países democráticos, as associações políticas constituem por assim dizer os únicos particulares poderosos que aspiram ordenar o Estado. Por isso os governos de nossos dias consideram esse gênero de associações com  mesmo olhar que os reis da Idade Média viam os Grandes Vassalos da Coroa: sentem uma espécie de horror instintivo por elas e combatem-nas em todo encontro.”

Weber (1997, p. 167) defende que, embora o Estado precise de autoridade para governar, também lhe é necessário a legitimação desse poder, mesmo que seja pelo uso da força: “O Estado é uma associação que pretende o monopólio do uso legítimo da violência, e não pode ser definido de outra forma”. E acerca da intervenção do Estado na sociedade, Weber (1997, p. 37) acrescenta:

Um Estado que deseja basear o espírito das massas de seu povo na honra e na solidariedade não pode esquecer que, na vida diária e nas lutas econômicas dos operários, os sentimentos de honra e solidariedade são as únicas forças morais decisivas para a educação das massas, e que por essa razão deve-se deixar que esses sentimentos se desenvolvam livremente. 

Dessa forma, verifica-se uma mudança essencial das funções do Estado, que, nesse novo paradigma, precisa legitimar-se segundo os interesses dos indivíduos.

3 O individualismo: um elemento de bem-estar ou causa de limitação?

Mill (2000, p . 85-86) foi um exímio defensor da liberdade, defendeu a liberdade de imprensa, de opinião e de discussão, valorizava ainda, as individualidades, entendendo que estas deveriam ser incentivadas e não tolhidas, inclusive definiu a individualidade como “um dos elementos de bem-estar”. No entanto, aludido autor (MILL, 2000, p. 86) estabelece o limite de dano aos outros no exercício das individualidades:

“Atos de qualquer espécie que, sem causa justificável, provoquem dano a outros podem, e nos casos mais importantes em absoluto exigem, ser controlados por sentimentos desfavoráveis e, quando necessário, pela interferência ativa dos homens”.

Já Tocqueville (2000, p. 119) via o individualismo com algumas reservas, afirmando que este “é de origem democrática e ameaça desenvolver-se a medida que as condições se igualam”, todavia, segundo ele “os americanos combateram pela liberdade o individualismo que a igualdade faz nascer, e venceram” (TOCQUEVILLE, 2000, p. 126), inclusive, asseverou que os americanos o combateram por meio de instituições livres, ou seja, as associações civis e políticas, que lhes fornecem uma visão coletiva da sociedade.

Embora Smith (2002, p. 166) acreditasse que a natureza dos homens é egoísta, ele visualizava um paradoxo desta com a benevolência dos indivíduos, exteriorizada pela solidariedade e simpatia com os demais, indagando-se: “se nossos sentimentos passivos são tão sórdidos e egoístas, como ocorre que nossos princípios ativos são tão generosos e nobres?”.      

Weber (1997, p. 49-50) associou o surgimento do individualismo ao desenvolvimento político e social, senão vejamos:

“Quem não riria, então, do temor de nossos críticos de que o desenvolvimento político e social poder-nos-ia trazer “individualismo” ou “democracia” em demasia ou outras coisas semelhantes, e quem não riria também de sua antevisão de que a “verdadeira liberdade” só se manifestará quando a atual “anarquia” da produção econômica e as “maquinações partidárias” de nossos parlamentos forem abolidas em favor de “ordem” social e “estratificação orgânica” — isto é, em favor do pacifismo da impotência social sob a tutela do único poder a que realmente não se pode escapar: a burocracia instalada no Estado e na economia.”

O individualismo é fruto da sociedade moderna e se amolda perfeitamente ao sistema democrático, no qual há liberdade e igualdade de condições para o exercício desimpedido das convicções humanas, que, todavia, devem equalizar sua prática a não incidência de danos os outros indivíduos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado não teve o condão de dirimir as controvérsias acerca do individualismo e da intervenção do Estado no pensamento liberal, porém, objetivou colacionar entendimentos teóricos para promover o aprimoramento do nível dos debates acerca dessa questão.

Mas, podemos constatar que o advento do individualismo é próprio das sociedades modernas, o que está intrinsecamente relacionado a perspectiva de um Estado liberal, no qual os governos precisam trilhar uma área de não interferência no bojo de uma sociedade, cujas bases são a igualdade e a liberdade dos indivíduos.           

    

Referências
MILL, John Stuart. A liberdade; Utilitarismo. Trad. Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. Trad. Lya Luft. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América: sentimentos e opiniões.Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. (Uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária). Trad. Maurício Tragtenberg. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Informações Sobre o Autor

Sara Morgana Silva Carvalho Lopes

Advogada, Pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI)


Equipe Âmbito Jurídico

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