Os paradigmas de Kuhn e o campo de Bourdieu: fundamentações filosóficas para a Hermenêutica Jurídica

Resumo: A história dos métodos científicos, enquanto matrizes do patrimônio científico-cultural humano, está intimamente relacionada às concepções de ciência ou ideais de cientificidade desenvolvidos ao longo do tempo. O texto traz aportes teóricos filosóficos para a compreensão dos movimentos e horizontes na ciência, como universalidade, e na ciência da hermenêutica jurídica, como reflexos. Pretende-se mostrar o conceito de paradigma como motor e modelador da produção científica. O conceito de paradigma é visto sob a ótica de Thomas Samuel Kuhn. Pretende-se, também, mostrar o panorama constitutivo da produção científica, com seus movimentos dimensionalizados pela ótica de Pierre Bourdieu e sua teoria do campo científico. O objetivo maior do texto é afirmar que a produção científica é delineada por paradigmas; tais paradigmas são oriundos de relações de forças presentes na Academia. A hermenêutica jurídica, enquanto ciência, no seu passado, presente e f uturo, encontra-se do cruzamento de tais forças e compreendê-las é dar fundamentos sólidos ao que se proponha o cientista hermeneuta.


INTRODUÇÃO


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A história dos métodos científicos, enquanto matrizes do patrimônio científico-cultural humano, está intimamente relacionada às concepções de ciência ou ideais de cientificidade desenvolvidos ao longo do tempo. O cientista elabora e orienta o desenvolvimento de seu trabalho levando em conta as concepções de ciência ou os ideais de cientificidade que possui.


O presente texto traz aportes teóricos filosóficos para a compreensão dos movimentos e horizontes na ciência, como universalidade, e na ciência da hermenêutica jurídica, como reflexos. Pretende-se mostrar o conceito de paradigma como motor e modelador da produção científica. O conceito de paradigma é visto sob a ótica de Thomas Samuel Kuhn.


Pretende-se, também, mostrar o panorama constitutivo da produção científica, com seus movimentos dimensionalizados  pela ótica de Pierre Bourdieu e sua teoria do campo científico.


O objetivo maior do texto é afirmar que a produção científica é delineada por paradigmas; tais paradigmas são oriundos de relações de forças presentes na Academia. A hermenêutica jurídica, enquanto ciência, no seu passado, presente e futuro, encontra-se do cruzamento de tais forças e compreendê-las é dar fundamentos sólidos ao que se proponha o cientista hermeneuta.


A hermenêutica é a teoria, a arte, a ciência, a técnica da interpretação. Ela apregoa que a verdade é fruto de uma interpretação. Sendo uma teoria que ensina, através de metodologias, como interpretar textos, também é, como filosofia, um posicionamento diante do problema do ser e da compreensão que dele possamos ter. Do texto ao ser; da metodologia à ontologia. A hermenêutica como ontologia caracteriza o ser com a lingüisticidade, com a temporalidade e espacialidade.


A Hermenêutica Jurídica, como ciência jurídica, tem por objetivo, com o emprego de métodos específicos, interpretar e, através da doutrina, construir o Direito em qualquer de suas manifestações.


È oportuno esclarecer, de início, que as expressões hermenêutica jurídica e interpretação jurídica não são sinônimas. A doutrina faz distinções em relação ao significado técnico de ambos os termos. Pedro dos Reis Nunes categoricamente faz a distinção entre as expressões, atribuindo à interpretação a noção de técnica, enquanto que à hermenêutica associa à idéia de ciência, no seu dizer, a ciência de interpretação das normas jurídicas.


A interpretação é momento de contato direto do intérprete com a norma jurídica, ocorre quando o operador do Direito procura encontrar, por meio de técnicas específicas, qual o real conteúdo e significado da norma jurídica. Por outro lado, a hermenêutica jurídica é a ciência formada pelo conjunto sistêmico de técnicas e métodos interpretativos.


Maria Helena Diniz afirma tratar-se a hermenêutica da “teoria científica da arte de interpretar”. Ou seja, o conjunto de princípios e normas que norteiam a interpretação é uma ciência: a hermenêutica.


Discute-se muito, hoje em dia, sobre o tema dos paradigmas da ciência. Sob a influência de Thomas Samuel Kuhn, empreendem-se hoje muitas tentativas de valorizar, no âmbito das ciências sociais e do Direito, aquilo que ele diz a respeito dos paradigmas das ciências.


Se confrontarmos, os dois domínios do saber, o das ciências positivas e o do Direito, salta à vista uma problemática fundamental, pois esses dois domínios do saber não são unívocos. É por analogia do que se diz em ciências que se fala de paradigmas em Direito.


O Direito, com efeito, é um domínio do saber muito diverso do das ciências positivas. E isso por duas razões fundamentais. A primeira razão é porque o saber no Direito é um saber de elementos qualitativos, enquanto que o saber das ciências positivas é essencialmente quantitativo. Por ser quantitativo, o instrumento fundamental do conhecimento científico é a medida, no sentido unívoco.


O saber no Direito se move noutro nível, no nível qualitativo, precisamente porque se trata do homem, do ser. O conhecimento do homem não pode ser limitado aos procedimentos quantitativos das ciências positivas. Portanto, é preciso apelar para outro tipo de conhecimento, para o conhecimento daquela dimensão do real que escapa às considerações de medida, que não pode ser imediatamente mostrada aos nossos olhos, mas que somente pode ser entendida.


O homem, por exemplo, por aquilo que lhe é mais próprio, não pode ser imediatamente visto, tocado, mostrado. Vêem-se, isso sim, as manifestações de seu ser mais profundo; aquela dimensão do ser que produz tais manifestações não é imediatamente visível. Essa dimensão, tão importante e decisiva, não aparece nos procedimentos das ciências positivas. O Direito não pode deixar de levar em conta essa dimensão do ser do homem.


A segunda razão porque o saber em Direito é diverso do saber das ciências positivas reside no modo de os dois saberes progredirem no tempo. O saber das ciências positivas progride por substituição de paradigmas. Os paradigmas decorrentes da mecânica de Newton foram substituídos pelos paradigmas decorrentes da teoria da relatividade. Esse tipo de progresso é também de ordem quantitativa e a cultura atual tem dificuldade de admitir outro tipo de progresso.


Não obstante o progresso do saber em Direito não acontecer por substituição de paradigmas, é, contudo, um verdadeiro progresso. Ele acontece por aprofundamento e por conquista pessoal em cada geração. A inteligência aqui não progride por troca de paradigmas, mas por crescimento intensivo, com crescente veemência e profundidade. Por outro lado, cada geração é solicitada a refazer o caminho da compreensão dos grandes temas, sempre perenes, que dizem respeito ao homem.


Destarte, o Direito se encontra entre os fenômenos culturais ou realidades significativas, chamadas coisas do espírito, sendo que seu objeto de conhecimento difere radicalmente dos fenômenos físicos. Quanto aos métodos científicos, pode-se afirmar que os fenômenos físicos são explicados, ao passo que os culturais são compreendidos. As leis físicas, como sínteses de uma dada experiência, exprimem só o que é, aquilo que efetivamente acontece. Por outro lado, as leis morais não recebem as suas verdades das condutas que intentam regular, porque não expressam aquilo que é, mas apenas aquilo que deve ser.


Assim, por ser fenômeno cultural, do domínio do qualitativo e, em conseqüência, por progredir por aprofundamento, é que o saber em Direito se distingue do saber em ciências positivas que é um saber quantitativo que progride por substituição ou troca de paradigmas. Por se distinguirem grandemente esses dois saberes, é que, ao falarmos de paradigma em Direito, há que se fazer uma importante transposição de significados. Se não tivermos esse cuidado, corremos o risco de falsearmos o problema.


TEORIA DOS PARADIGMAS


A obra de Thomas Samuel Kuhn representa um discurso que privilegia os aspectos históricos e sociológicos na análise da prática científica. Suas idéias são consideradas por muitos críticos como sendo relativistas. O relativismo é a tese de que a verdade ou a avaliação de uma teoria, de uma hipótese ou de algo mais amplo (paradigma, sistema conceitual ou mesmo todo o conhecimento) é determinada por um ou mais fatores ou variáveis: período histórico, interesse de classe, linguagem, raça, sexo, nacionalidade, cultura, convicções pessoais, enfim, por qualquer fator psicossocial, cultural ou pelo sistema de conceitos utilizados. Para o relativismo, todos esses fatores seriam uma barreira intransponível para a objetividade.


A teoria central de Kuhn é que o conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo, opera por saltos qualitativos. Os saltos qualitativos preconizados por Kuhn, ocorrem nos períodos de desenvolvimento científico, em que são questionados e postos em causa os princípios, as teorias, os conceitos básicos e as metodologias, que até então orientavam toda a investigação e toda a prática científica. O conjunto de todos esses princípios constituem o que Kuhn chama paradigma.


Num sentido lato, o paradigma kuhniano refere-se àquilo que é partilhado por uma comunidade científica, será uma forma de fazer ciência, uma matriz disciplinar. Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade de juízo em assuntos profissionais. Em sentido particular, o paradigma é um exemplar; é um conjunto de soluções de problemas concretos, uma realização científica concreta que fornece os instrumentos conceptuais e instrumentais para a solução de problemas.


O paradigma é uma concepção de mundo que, pressupondo um modo de ver e de praticar, engloba um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação; noutro caso, o conceito é utilizado para significar um conjunto de realizações científicas concretas capazes de fornecer modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica.


A força do paradigma é tanta que ele determina até mesmo como um fenômeno é percebido pelos cientistas, toda a investigação é realizada dentro e à luz do paradigma aceito pela comunidade. O paradigma indica à comunidade o que é interessante investigar, como levar a cabo essa investigação, impondo como que um sentido ao trabalho realizado pelos investigadores e limitando os aspectos considerados relevantes da investigação científica. A força de um paradigma explicaria por que as revoluções científicas são raras.


Para Kuhn, a força de um paradigma viria mais de seus exemplares do que de suas leis e conceitos. Isto porque os exemplares influenciam fortemente o ensino da ciência. Eles aparecem nos livros-texto de cada disciplina como exercícios resolvidos, ilustrando como a teoria pode ser aplicada para resolver problemas. São, comumente, as primeiras aplicações desenvolvidas  a partir da teoria, passando então, a servir como modelos para a aplicação e o desenvolvimento da pesquisa científica. Os estudantes são estimulados a aplicá-los na solução dos problemas e também a modificar e estender os modelos para a solução de novos problemas. Assim, o paradigma que o cientista adquiriu durante a sua formação profissional fornece-lhe as regras do jogo, descreve-lhe as peças a utilizar e indica-lhe o caminho ou objetivo a atingir. Os exemplares são, portanto, a parte mais importante de um paradigma para a apreensão dos conceitos científicos e para estabelecer que problemas são relevantes e de que modo devem ser resolvidos. Desse modo, eles determinam o que pode ser considerado uma solução cientificamente aceitável de um problema, ajudando a estabelecer um consenso entre os cientistas e servindo como guias para a pesquisa.


O desenvolvimento da ciência madura processa-se em duas fases, a fase da ciência normal e a fase da ciência revolucionária. Na maior parte do tempo, delimitado pelo paradigma, o cientista se ocupam com o que Kuhn chama ciência normal. A ciência normal é a ciência dos períodos em que o paradigma é unanimemente aceito, sem qualquer tipo de contestação, no seio da comunidade científica. Nesta fase da ciência normal, o cientista não procura questionar ou investigar aspectos que extravasam o próprio paradigma, limita-se a resolver dificuldades de menor importância que vão permitindo mantê-lo em atividade e que possibilitam simultaneamente revelar a sua engenhosidade e a sua capacidade na resolução dos enigmas. Os problemas científicos transformam-se em enigmas com um número limitado de peças que o cientista – qual jogador de xadrez – vai pacientemente movendo até encontrar a solução final. Aliás, a solução final, tal como no enigma, é conhecida antecipadamente, apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteúdo e do processo para a atingir.


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É evidente que o cientista, nas suas primeiras tentativas, pode cometer falhas, o que é perfeitamente natural, no entanto, tal fato é sempre atribuído à sua falta de preparo ou inépcia. Isto significa, que as regras fornecidas pelo paradigma e o próprio paradigma, não podem ser postas em dúvida, já que o paradigma é o sentido de toda a investigação e o próprio enigma a investigar não existiria sem ele.


No decurso da ciência normal, ao cientista normal pode suceder que o problema de que se ocupa, não só não tem solução no âmbito das regras em vigor, como tal fato não pode ser imputado à falta de preparo ou inépcia do investigador. Na busca de soluções, uma subdivisão de cientistas pode desenvolver um trabalho de exploração da área que viola as expectativas paradigmáticas surgindo, então, negociações entre os distintos grupos de cientistas, encerrando-se quando há um reajuste no paradigma. Esta é a circunstância na qual a crise se instaura dentro de um processo íntegro e em crescimento, sendo assimilada.


Esta crença exacerbada no paradigma demonstra-nos que o trabalho do cientista exprime uma adesão muito profunda ao paradigma. É evidente que uma adesão deste tipo não pode ser posta em dúvida ou ser abalada levianamente. A própria comunidade, na sua prática quotidiana, vai reforçando essa adesão a todo o momento.


No caso de um processo em declínio, pode haver intensificação da crise e desintegração do paradigma. A desintegração ocorre quando o número de incongruências se torna cada vez mais significativo, a dificuldade em solucioná-las aumenta consideravelmente e o cientista confronta-se com incongruências de impossível solução à luz do paradigma. O efeito cumulativo deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de crise. Incapaz de lhe dar solução, o paradigma existente começa a revelar-se como a fonte última dos problemas e das incongruências, e o universo científico que lhe corresponde converte-se a pouco e pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado corretamente.


Já outro paradigma se desenha no horizonte científico e o processo em que ele surge e se impõe constitui a revolução científica e a ciência que se faz ao serviço deste objetivo é a ciência revolucionária. O novo paradigma irá redefinir os problemas e as incongruências até então insolúveis, dando-lhes uma solução convincente, e é neste sentido que ele se vai impondo junto da comunidade científica.


Durante uma revolução científica ocorrem mudanças radicais: mudanças no significado do conceito; na forma de ver o mundo ou de interpretar os fenômenos e nos critérios para selecionar os problemas relevantes, nas técnicas para resolvê-los e nos critérios para avaliar teorias. De tais mudanças decorre a incomensurabilidade. Kuhn defende a tese de que é impossível justificar racionalmente nossa preferência por uma entre várias teorias: é a tese da incomensurabilidade.


A tese da incomensurabilidade sustenta que, frente a duas ou mais teorias rivais, capazes de explicar os mesmos dados, não é possível avaliar e decidir qual delas apresenta a melhor explicação sendo impossível justificar racionalmente a preferência por uma delas. Kuhn sugere que a aceitação de uma teoria não é determinada apenas por critérios lógicos ou por evidências experimentais e sim pela capacidade de persuasão de seus proponentes.


Diante da dificuldade de uma escolha entre teorias ou paradigmas, não é de se estranhar que Kuhn dê a entender que a aceitação do novo paradigma não se deva apenas  a recursos lógicos ou a evidências experimentais, mas à capacidade de persuasão ou à propaganda feita pelos cientistas que defendem o novo paradigma. Na falta de argumentos e critérios objetivos de avaliação esta aceitação ocorreria através de uma espécie de conversão de novos adeptos ou então, à medida que aqueles que se recusam a aceitar o novo paradigma fossem morrendo.


O período de crise evidencia claramente que o espírito crítico e a audácia na procura da verdade, não são características do cientista. Ao contrário daquilo que era afirmado por Karl Popper, o cientista não passa a vida a pôr em dúvida aquilo que aprendeu, pelo contrário, defende esse patrimônio de um modo insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma redefinição radical do trabalho até então realizado. A imagem do cientista é a de um sujeito profundamente conservador e que procura, a todo custo, resistir à mudança (princípio kuhniano da tenacidade).


TEORIA DO CAMPO CIENTÍFICO


Quando se fala em resistência, se fala em poder, porque há um poder que ataca e um poder que resiste. Alguns estudiosos como Pierre Bourdieu admitem que existe um determinado poder, aqui entendido como relações de força, na produção e reprodução do conhecimento[1].


Kuhn sinaliza tais relações de força quando escreve sobre o processo de substituição de um paradigma por outro.  Nesse processo, segundo ele, entram em jogo fatores mais amplos do que a simples adesão a teorias distintas. Conforme Kuhn, a imposição de determinada teoria em detrimento de outra, não se deve ao mérito científico das teorias. Devemos procurar as causas dessa imposição saindo do círculo das condições teóricas e dos mecanismos internos de validação e procurá-las num vasto panorama de fatores sociológicos e psicológicos. Afirma Kuhn, da necessidade de estudar as relações dentro dos grupos e entre os grupos, sobretudo as relações de autoridade (científica e outra) e de dependência. É necessário também estudar a comunidade científica em que se integram esses diferentes grupos, o processo de formação profissional dos cientistas, o treinamento, a socialização no seio da profissão, a organização do trabalho científico, etc.


A obra de Bourdieu traz sinalizações da prática científica como um dos mundos constituintes do universo social, apresentando todas as características deste. Bourdieu considera que o espaço de produção da ciência, o campo científico, é um campo social como outro qualquer, cheio de relações de força, disputas e estratégias que visam beneficiar interesses específicos dos participantes deste campo.


Os pesquisadores estão vinculados a um determinado campo científico, no qual exercem seu trabalho e suas escolhas científicas (teorias, metodologias, etc), formando uma espécie de comunidade em que compartilham valores, crenças e práticas que lhes são comuns.


No campo científico se dá uma concorrência na busca vantagens específicas, e por interesses também específicos. Este interesse, no dizer de Bourdieu, está embasado por ações e atitudes individuais ou coletivas dos seres humanos que são determinadas por elementos, que vão além de uma simples intenção objetiva e que são adquiridas inconscientemente, dentro do próprio convívio social e são por estes determinados (habitus).


As relações de força vigentes no campo científico, sinalizadas por Kuhn e Bourdieu, possuem um objeto de disputa. O objeto de disputa do campo científico, segundo Bourdieu, é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. Esta autoridade está relacionada, diretamente, ao conhecimento da posição que este agente ocupa nas hierarquias instituídas.


Neste espaço, os agentes estão em constantes lutas e concorrências com o objetivo de manter suas posições adquiridas em lutas anteriores garantidas pelo monopólio da autoridade científica. Diante disso, julgar a capacidade científica de um pesquisador depende da posição que ele ocupa nas hierarquias constituídas.


Bourdieu caracteriza os recursos utilizados pelos cientistas, na troca de novos conhecimentos, pelo modelo fundado na noção de capital. Observa-se dessa forma que o campo científico se estrutura a partir das relações objetivas entre os diferentes agentes que são as próprias fontes do campo não havendo, portanto, razão de existência do campo científico sem os agentes científicos que os compõem. Esta estrutura é determinada pela distribuição de capital científico.


Bourdieu sublinha ainda que a atividade científica se exerce a partir de dois tipos de capital: o institucional e o específico. O primeiro está ligado tanto à ocupação de posições de destaque nas instituições (diretorias, chefias, comissões de avaliação) quanto ao poder sobre os meios de produção (contratos, postos, etc) e reprodução (poder de nomear, construir as carreiras) da ciência. O segundo tipo de capital, o específico, relaciona-se ao prestígio pessoal que repousa quase que exclusivamente no reconhecimento dos pares.


O campo científico é sempre o lugar de uma luta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se apropriarem do produto do trabalho científico que o conjunto dos concorrentes produz pela sua colaboração objetiva ao colocarem em ação o conjunto dos meios de produção científicos disponíveis.


Além disso, o campo científico, enquanto lugar de dominação e monopolização e que acarreta luta por autoridade científica, é delineado por estratégias políticas, de tal forma que não há escolha científica – do campo da pesquisa, dos métodos empregados, do lugar de publicação, ou ainda, escolha entre uma publicação imediata de resultados parcialmente verificados e uma publicação tardia de resultados plenamente controlados – que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico, isto é, a obtenção do reconhecimento dos pares – concorrentes.


Com isto, percebe-se uma tendência dos pesquisadores a se concentrarem em questões que possam trazer um lucro simbólico mais importante. O lucro simbólico faz parte daquilo que Bourdieu denomina de acumulação do capital científico, isto é, uma espécie particular de capital simbólico que significa um reconhecimento concedido pelos pares, no seio do campo. Nessa tendência, o cientista vai acumulando o chamado crédito científico. Assim, os conhecimentos acumulados pelos cientistas são os seus recursos adquiridos, efetuando uma espécie de mercado em troca do crédito científico que pode, posteriormente, ser reinvestido para conseguir mais crédito. No entanto, este bem que o pesquisador produz, que é o conhecimento, não possui muito valor em si mesmo, e sim, quando são valorizados por outros produtores em sua troca. Sua importância depende do reconhecimento que os outros lhes dão.


Esta base da atividade científica lhe dá uma ambigüidade estrutural, de modo que os conflitos intelectuais são também, num certo sentido, conflitos de poder. Toda a estratégia do cientista/pesquisador envolve, ao mesmo tempo uma dimensão política e uma dimensão científica. Refletir sobre a atividade científica implica, na avaliação do autor, sempre a consideração desses dois aspectos, em conjunto.


CONCLUSÕES


A idéia do reconhecimento do modelo epistemológico supostamente linear e exato das ciências naturais como único modelo aceitável foi duramente combatida por diversos setores da filosofia contemporânea. José Ricardo Cunha ressalta a posição de Miguel Reale, que entre nós, já havia advertido sobre o gravíssimo erro de confundir os paradigmas das ciências naturais e humanas. No mundo humano, como os fatos sociais fazem parte da vida, dos interesses e dos fins do pesquisador, este, por mais que pretenda ser cientificamente neutro, não os vê apenas em seus possíveis enlaces causais. Há sempre uma tomada de posição perante os fatos, tomada de posição essa que se resolve num ato valorativo ou axiológico.


Ressalta Cunha, que a hermenêutica ocupa papel de vital importância no âmbito do Direito, pois assegura a função ôntica do sujeito (relativa ao seu estudo, às suas características) na constituição da regulação jurídica, recuperando o teor essencialmente humanístico que deve permear o Direito em todas as suas situações. Diferentemente das verdades naturais que a epistemologia positivista entende, equivocadamente, como verdades universais e necessárias, as verdades jurídicas estão em constante mutação, num devir permanente cadenciado por uma hermenêutica que liga o mundo da vida e o mundo jurídico, o fato e a norma, sujeito e objeto. Nesse dinamismo a tentação das crenças metafísicas e axiomáticas não resiste à necessidade de contínua refundamentação, uma vez que tudo é provisório e precisa, por isso mesmo, ser reafirmado constantemente, sob pena de desaparecer ou se tornar obsoleto.


Do exposto, podemos referir que a grande inovação do discurso kuhniano passa por um lado, pela afirmação de que o desenvolvimento científico não é quantitativo, cumulativo, operando por saltos qualitativos. O progresso consiste na maior capacidade de resolver problemas que as novas teorias apresentam em relação às antigas teorias, incluindo-se aí soluções mais precisas e maior número de previsões de dados empíricos.


Por outro lado, para Kuhn, a escolha entre paradigmas alternativos na solução dos problemas não se fundamenta em aspectos teóricos de cientificidade, mas em fatores históricos, sociológicos e psicológicos, ou seja, numa certa subjetividade e até mesmo numa irracionalidade, que acaba por ter um papel decisivo e fulcral na imposição de determinadas teorias em detrimento de outras. Infere-se daí que a escolha do método hermenêutico pelo pesquisador tem elementos que estão ínsitos no próprio pesquisador.


No contexto delineado por Bourdieu, percebe-se que os conhecimentos produzidos cientificamente se apóiam muito no pesquisador que os produzem e, a princípio, estão intimamente ligados com o interesse, controle e competição entre os próprios cientistas para obter o reconhecimento diante dos seus pares.


O estudo na hermenêutica jurídica é, antes de tudo, um estudo político, deve, por isso, conter delineamentos éticos. O interesse do pesquisador derruba os propósitos científicos se não estiver embasado também por um conhecimento que o limite eticamente, ou seja, ele pode ser positivo para a produção do conhecimento se existir um questionamento constante do fazer científico.  Nesse sentido, a ciência só avança se existe condição para a comunicação entre teorias e interpretações muitas vezes contraditórias, e esse crescimento se dá em razão direta da contraposição dessas teorias ou interpretações. Assim, a possibilidade de escolha entre teorias, pressupõe condições de possibilidade de movimentação entre paradigmas distintos, de experimentação, de “alargamento de visão” e se torna uma questão, além de científica, também ética e política.


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Bourdieu, considerando também fatores históricos, sociológicos e psicológicos apontados, revela que o progresso do conhecimento, no caso das ciências sociais, depende de que se progrida no conhecimento das condições nas quais se produz esse conhecimento, ou seja, é preciso que haja um esforço contínuo no sentido de examinar rigorosamente a relação objetiva e subjetiva do pesquisador com seu objeto. Em outras palavras, efetivar o que está implicado no fato mesmo de ser pesquisador – observador, “estar de fora”, não envolvido vitalmente nas práticas que se trata de estudar e interpretar; e também no sentido de ponderar acerca das conseqüências para a compreensão ou construção do objeto, que resultam da operação dos meios, técnicas, e instrumentos de objetivação que o pesquisador utiliza.


 


Referências

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNADER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1998.

BOURDIEU, Pierre.. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983 b [1976], pp. 122-155 (Col. “Grandes Cientistas Sociais”, vol. 39).

CHAUÍ, Marilena. Convite è Filosofia, São Paulo: Ática, 1994.

CUNHA, José Ricardo. Fundamentos axiológicos da hermenêutica. In: BOUCAULT, C.E.; RODRIGUEZ, J.R. Hermenêutica Plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 309-351.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do direito civil. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 18a Ed, 2002. 469 p.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.

MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

NUNES, Pedro dos Reis. Dicionário de tecnologia jurídica. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 12ª Ed rev amp e atual, 1990. 936 p.

SEVERINO, Antonio Joaquim. A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

 

Nota:

[1] Bourdieu utiliza “poder” no mesmo sentido que Foucault; ele foi aluno e amigo de Foucault e Althusser.


Informações Sobre o Autor

Celia Cristina Muraro

Professora Coordenadora do Curso de Direito da UNYAHNA – BA, Mestre em Educação pela UFMT/IE Cuiabá – MT


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