Os pressupostos constitucionais do contraditório e da ampla defesa nos processos administrativos fiscais

O contraditório e a ampla defesa em nosso ordenamento jurídico trata-se de uma cláusula pétrea, disposta no art. 5º, LV da CRFB/88[1], que nos diz:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)


LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;(…)”


Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2] esclarece em breves linhas sobre tais princípios, mostrando que:


“O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. Exige: 1- notificação dos atos processuais à parte interessada; 2- possibilidade de exame das provas constantes do processo; 3- direito de assistir à inquirição de testemunhas; 4- direito de apresentar defesa escrita


Como bem esclarece Gilmar Ferreira Mendes[3], o contraditório e a ampla defesa não se constituem em meras manifestações das partes em processos judiciais e administrativos, mas, e principalmente uma pretensão à tutela jurídica.


Insere-se nesta tutela, assim como visto na doutrina alemã a pretensão à tutela jurídica (Anspruch auf rechtliches Gehör), os direitos de informação, de manifestação e o direito em ver seus argumentos devidamente apreciados.


José Afonso da Silva[4] em brilhantes linhas nos ensina que o devido processo legal está baseado em três princípios, quais sejam: o acesso à justiça, o contraditório e a plenitude de defesa.


Ora, em se falando de devido processo legal, trazemos à tona se haveria de fato um processo administrativo fiscal, ou apenas um mero procedimento. Caso tratar-se de mero procedimento fica afastada por simples dedução a observância do devido processo legal, amordaçando o credor perante o Fisco, o que sem dúvidas caracterizaria uma absurda injustiça. A fim de mitigar tal questão, sábias foram as linhas escritas por Carrazza[5], que com clareza de raciocino ensina que:


“Indubitável, portanto, que, mesmo em procedimento administrativo-tributário deve ser garantido aos acusados o direito à ampla defesa antes de serem tomadas, contra eles, quaisquer medida sansonatórias.”


Gilmar Ferreira Mendes[6] a respeito da obediência de tais princípios ainda complementa o raciocínio defendido:


“Sob a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que os princípios do contraditório e da ampla defesa são assegurados nos processos administrativos, tanto em tema de punições disciplinares como de restrição de direitos em geral.”


O contraditório é um dos princípios mais antigos e está intrínseco na própria concepção de direito, alguns autores remetem seu nascimento ao Rei Salomão em seus julgamentos relatados em escritos bíblicos. Loïc Cadiet, citado por Nestor José Foster[7], cita um velho dito no mundo jurídico que diz: “ quem ouve um sino, ouve apenas um som”, referindo-se aos julgadores que se atentam aos argumentos de apenas um dos lados da demanda.


A consagração da defesa em âmbito administrativo teve com propulsor o caso Téry, em 1913. Tal caso leva como nome o de um professor de filosofia, funcionário público, acusado por falta disciplinar. Neste ocorreu pela primeira vez a expressão de defesa clara e obedecida, sendo marco para os direitos das defesas perante as jurisdições administrativas daquele país, influenciando uma gama de outros Estados, inclusive o Brasil, que apesar de não contar com um sistema de um Tribunal Administrativo, como na França, incorporou em seu ordenamento alguns princípios de defesa em esfera administrativa surgidos do leading case citado.


As pretensões às tutelas jurídicas inerentes à defesa em esfera administrativa mostram seu caráter ainda mais essencial quando vislumbrado os processos administrativos fiscais. Apesar dos princípios do contraditório e da ampla defesa terem um maior fomento na esfera judicial, processos penais e até mesmo no que tangem os inquéritos policiais (ainda que este último seja cercado de intermináveis discussões doutrinárias e jurisprudenciais não pertinentes à nossa pesquisa), é certo que em se tratando de dívidas tributárias os efeitos causados pela não observância dos citados princípios são extremamente danosos ao devedor. Assim ressalta Foster[8]:


“Justamente no campo tributário é essencial que seja reconhecido o direito ao contraditório, ainda mais do que o campo simplesmente administrativo, pois não existe meio mais perigoso de opressão do príncipe sobre os cidadãos do que os impostos (…)”


O autor[9] ainda completa, afirmando com exatidão que:


“Se, no campo dos procedimentos tributários de caráter administrativo, o princípio do contraditório fosse plenamente acatado e diuturnamente praticado, haveria grande desafogamento na esfera judiciária.”


1. Contencioso Administrativo
 
O sistema de justiça administrativa existe sob duas modalidades, a de auto controle, nascida com a Revolução Francesa, e adotada principalmente naquele país, sendo propriamente um contencioso administrativo; e a de jurisdição una (una Lex), adotada no Brasil por influência Inglesa, onde haverá apenas coisa julgada em esfera judicial.


No Brasil, o contencioso administrativo sempre foi matéria confusa, e mal formulada pelo legislador, ora vislumbrando sua existência, ora arrancando do ordenamento. Tal situação fora agravada com o período de ditadura militar (1964-1984), onde foram afastadas as tendências estrangeiras e criando discussões doutrinárias acerca da possibilidade da instauração de um contencioso administrativo.


Com relação às questões tributárias e fiscais, tal celeuma tornou-se mais aparente com o advento da Emenda Constitucional 7/77, onde alterava o artigo 203 da Constituição vigente, dado-lhe a seguinte redação:


Art. 203. Poderão ser criados contenciosos administrativos, federais e estaduais, sem poder jurisdicional, para a decisão de questões fiscais e previdenciárias, inclusive relativas a acidentes do trabalho (Art. 153, § 4º)


Segundo José Fernando Cedeño de Barros[10], tal emenda, somada a anterior emenda 1/69 trouxe duas correntes. Doutrinas que entendiam que haveria uma dualidade jurisprudencial, e outras, majoritárias, que defendiam que deveria haver o exaurimento obrigatório da esfera administrativa para que houvesse acesso ao judiciário.


Tal matéria teve sua discussão encerrada com o advento da Constituição cidadã de 1988, que assegurou o livre acesso ao judiciário, mitigou a existência de um contencioso administrativo propriamente dito e cobriu de garantias os processos administrativos.


Contudo ainda que não seja o sistema Frances, onde existe propriamente um contencioso administrativo, com a instauração até mesmo de Tribunais Administrativos, o sistema adotado pelo Brasil, a medida que prevê pressupostos próprios ao processo em esfera administrativa, sendo entre esses os próprios conceitos de defesa e contraditório; comporta uma espécie de contencioso administrativo, ainda que pouco formalizado, o que respalda o devido processo legal nas demandas administrativa.


2. O Contraditório e a Ampla Defesa nos Processos Administrativos Fiscais


Com o fundamento de que se constitui mero procedimento os atos que ensejam a inscrição em dívida ativa, muitos julgadores e doutrinadores se esquivaram da obrigatoriedade de submeter tal ato a pressupostos inerentes à defesa do devedor. Contudo, como já esclarecido no decurso de nossa pesquisa, o próprio legislador originário tratou de por fim a tal impasse. O autor de Barros[11] garante que:


“(…) o respeito integral aos enunciados do art.5, LIV e LV, fará com que desapareçam as prevenções contra o processo administrativo, preservando os três vetores básicos que sugerem a vigência de todos os valores jurídicos harmoniosamente combinados entre si: (i) a busca da verdade;(ii) o respeito ao homem; (iii) a proteção a ordem social.”


A garantia da Ampla defesa é intimamente ligada ao contraditório, sendo quase simbiótica tal relação. Tal garantia, como leciona Nelson Nery Costa [12]trata-se da oportunidade de contestar as acusações imputadas, tendo como origem o direito anglo-americano com o due processo of Law e incorporado em nossa Carta Magna pelo já citado artigo 5, LV, onde expressamente se incluí os processos administrativos.


Quanto à proximidade entre os princípios estudados Costa[13] nos diz que:


“O direito de ampla defesa exige a bilateralidade, determinando a existência do contraditório. Entende-se, com propriedade, que o contraditório está inserido dentro da ampla defesa, quase que com ela confundido integralmente, na medida em que uma defesa não pode ser senão contraditória, sendo esta a exteriorização daquela.”


Carrazza[14] em especial, quanto a obrigatoriedade de conferir aos Processos Administrativo Fiscais o caráter dialético, contrapondo antítese e síntese, para que se chega a uma solução justa, destaca logicamente o direito de defesa, onde todo contencioso tributário deve propiciar ao contribuinte  uma tutela contra possíveis violações da administração publica e concluí enfatizando:


“Queremos deixar gravado, ainda, que em todo e qualquer processo administrativo-tributário que possa resultar dano jurídico, uma restrição ou sacrifício de direito deve ser proporcionada ao contribuinte a possibilidade de defesa eficaz, aí compreendidas a defesa técnica (com presença, pois, de advogado) e, especialmente, a dupla instância administrativa, que vai ensejar uma discussão mais isenta do caso.”


 Contudo, apesar de não haver nenhum debate em torno da existência da dupla instância administrativa, verificam-se por parte da Administração inúmeros entraves que afastam o contribuinte do exercício de sua defesa em duplo grau em sede administrativa. Indubitavelmente a principal delas está presente nos depósitos infundados exigidos como pressuposto para a instauração de recurso. É gritante que tão exigência caracteriza cerceamento de defesa, sendo o entendimento de grande parte da doutrina e também da jurisprudência, para elucidar a questão extraímos ementa do TRF1, citado por Carrazza[15]:


“Ementa: Administrativo – Recurso – Depósito – IBAMA – Constitucional, art. 5,LV.


A exigência de depósito como pressuposto de conhecimento de recurso administrativo implica cerceamento de defesa, postergando o princípio constitucional da ampla defesa (Constituição de 1988, art. 5, LV) – TRF1, REO 93.01.26690-3-GO,rel. Juiz Tourinho Neto, j. 18.12.1995,DJU-2 25.1.1996,p.2.562.”


Nas defesas Administrativas Fiscais, diferentemente dos processos disciplinares, que em questão pacificada pelo STJ na Súmula 343, tem como imprescindível a defesa técnica elaborada por um advogado; os processos administrativos fiscais não vislumbram tal formalidade, podendo o contribuinte ter sua defesa assistida ou não por um advogado em esfera administrativa.


Apesar da não obrigatoriedade da defesa técnica, não há como afastar do contribuinte em processos administrativo-tributário o direito do contribuinte em ter seus direitos básicos resguardados, como o direito de defesa que agasalha o contraditório e o próprio direito de tomar conhecimento dos fatos que lhe são imputados, pois os desconhecendo, como poderá instruir sua defesa? Carrazza[16] assim concluí sobre o tema:


“Se o contribuinte desconhece as razões determinantes do lançamento, bem assim os elementos em que ele se apóia, não terá como exercer efetivamente seu direito de defesa, ainda que este lhe venha posteriormente ser reconhecido, sob o aspecto formal.”


Outro não é o entendimento jurisprudencial sobre o tema, tendo como principais acórdãos proferidos pelo STJ os de relatoria do Ministro Luiz Fux, o qual citaremos um, como segue:


“Ementa: Tributário. Processo administrativo fiscal. Lançamento. Notificação. Necessidade. Tributo sujeito a lançamento de oficío. Nulidade de Execução Fiscal.


1.Ampla defesa e o contraditório,corolário do devido processo legal, postulados com sede constitucional, são de observância obrigatória tanto no que pertine aos ‘acusados em geral’ quanto aos ‘litigantes’, seja em processo judicial, seja em processo administrativo. 2. Insere-se nas garantias da ampla defesa e do contraditório a notificação do contribuinte do ato de lançamento que a ele respeita. A sua ausência implica a nulidade do lançamento e da Execução Fiscal nela fundada.” (RESP.n. 478.853/RS, j. 10.6.2003, 1ª Turma, Publ. DJ. 23.6.2003, p. 259).


Visto isso, fica claro que o exercício da defesa do contribuinte em esfera administrativa consiste em várias nuances, que não unicamente uma manifestação perante à Administração, onde deverá haver a relação entre os princípios e pressupostos aqui mostrados mediante os casos concretos colacionados das jurisprudências dos Tribunais Federais e Superiores Tribunais do país.


 


Notas:

[1] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em 21 de junho de 2011.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 20ª edição, São Paulo, Atlas, 2007, p. 367.

[3] Mendes, Gilmar Ferreira ,Curso de direito constitucional,4ª ed.,São Paulo,Saraiva, 2009, p.592

[4] DA SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo,24ª ed., São Paulo, Malheiros,2005, p.189

[5] CARRAZZA, Roque Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário,25ªed – São Paulo, Malheiros, 2009, p. 464

[6] MENDES, Gilmar Ferreira, Op. Cit., p. 602

[7] FOSTER, Nestor José, Direito de Defesa,1ª ed., São Paulo, LTR, 2007, p. 235-236

[8] Ibdem,p. 246

[9] Ibdem, p. 246

[10] BARROS, José Fernando Cedeño de, Aplicação dos Princípios Constitucionais no Direito Tributário, 2ª ed., Barueri, Manole,2004, p.84

[11] Ibdem, p. 65

[12] COSTA,Nelson Nery, Op. Cit., p. 15

[13] Ibdem, p. 15

[14] CARRAZZA, Roque Antônio, Op. Cit.,p.458-459

[15] Ibdem, p. 460

[16] Ibdem, p. 465

Informações Sobre o Autor

Silvia Campos Paulino

Graduada em Direito pela Universidade do Grande Rio/RJ, especialista em Direito Público e Tributário pela Universidade Cândido Mendes/RJ, advogada militante nas áreas cível e tributária.


Equipe Âmbito Jurídico

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