Os princípios constitucionais da administração e os atos “secretos” do Senado

Resumo: O presente artigo visa analisar a prática de atos secretos pelo Senado Federal, confrontando-os com os princípios que regem a Administração Pública e com a lei de improbidade administrativa. Busca-se verificar se tais atos podem ser punidos nos termos da Lei 8429/92, bem como a possibilidade de responsabilização dos agentes políticos por tais condutas, a fim de contribuir para a construção de um verdadeiro Estado de direito.


Palavras-chave: publicidade, improbidade administrativa, princípios, atos secretos


Abstract: This article aims to examine the practice of secret actions by the Senate, comparing them with the principles of public administration and the administrative law of dishonesty. Try to verify that such acts can be punished under Law 8429/92, and the possibility of accountability of politicians for such conduct, to contribute to the construction of a genuine rule of law.


Keywords: advertising, improbity management, principles, secret acts


Sumário: 1. Introdução. 2. Os princípios constitucionais da Administração Pública. 3. A responsabilização por improbidade administrativa. 4. Conclusão.


Introdução


Nas últimas semanas, a população brasileira foi surpreendida pela divulgação, por meio de veículos de imprensa, de uma série de atos administrativos, em grande parte referente a nomeações e desligamento de agentes públicos, praticados pelo Senado Federal, de forma sigilosa. Tal revelação, sem precedentes após a redemocratização e entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, revela a fragilidade do regime democrático nacional e do Estado de Direito brasileiro.  Ditames claros da Constituição Federal foram ofendidos por um dos Poderes do Estado, de maneira disfarçada, com nítido intuito de ocultar da população as verdadeiras intenções dos responsáveis, que se mostram indiferentes às normas relativas à legalidade e a moralidade administrativa.


Insta esclarecer, em primeiro lugar, que todos os Poderes Estatais possuem função administrativa, vez que todos contratam e desligam servidores, realizam licitações e assinam contratos, entre outras atividades tipicamente administrativas. Dessa forma, encontram-se todos vinculados aos princípios constitucionais da Administração, expressamente arrolados no artigo 37 da Carta Maior, quais sejam, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Conforme assinala Celso Antonio Bandeira de Mello (2004, p.842) a violação principiológica é a mais grave forma de ilegalidade pois viola não apenas um específico mandamento obrigatório, mas todo o sistema normativo, representando insurgência contra todo o conjunto de valores fundamentais  e corrosão às estruturas mestras do ordenamento. É justamente essa conclusão que levou o legislador ordinário, nos termos do artigo 11 da Lei 8429/92, a caracterizar, como ato de improbidade administrativa os violadores de princípios da Administração Pública, impondo graves sanções que prevêem, entre outras, a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos dos responsáveis.


Esse artigo se propõe a analisar os chamados atos “secretos” do Senado Federal sob a perspectiva dos princípios constitucionais da Administração Pública para, posteriormente, averiguar a possibilidade de punição dos responsáveis por improbidade administrativa.


2. Os princípios constitucionais da Administração Pública


As tão propaladas notícias que relatam a prática de atos sigilosos de nomeação de servidores, em geral aparentados com agentes políticos, de forma secreta, ofendem todos os princípios constitucionais da Administração Pública, e não podem permanecer impunes, sob pena de gerar um grande descrédito a todas as instituições envolvidas e à própria efetividade da Constituição Federal.


Primeiramente, já destoa de um Estado democrático de direito a existência e admissão de atos secretos ou sigilosos, tão característicos de regimes de exceção. O princípio da publicidade administrativa exige a ampla divulgação de todos os atos da Administração Pública, ressalvados apenas os que digam respeito à segurança do Estado e da sociedade, a fim de possibilitar uma transparência de gestão e o controle dos atos praticados pelos agentes públicos. É por meio da divulgação dos atos da Administração Pública que a população pode verificar se a condução do Estado está em conformidade com os valores expressos na Constituição, bem como evitar a prática de atos abusivos. Os atos revelados pela imprensa demonstram o intuito de não mostrar à população a existência de certas nomeações, justamente pelo fato de serem arbitrárias, de ofenderem os ditames constitucionais, razão pela qual foram mantidos em sigilo, ofendendo um dos princípios mais importantes para a manutenção do Estado democrático de direito, ou seja, o princípio da publicidade.


A aparente razão de ser de tal conduta demonstra o intuito de violar mais dois princípios constitucionais da Administração Pública: a impessoalidade e a moralidade. Por impessoalidade entende-se que a prática de atos pela Administração Pública não deve ter por objetivo beneficiar ou prejudicar pessoas determinadas. Trata-se de uma variação do princípio da isonomia, que assegura o tratamento igualitário àqueles que se encontram em situação de igualdade. Assim, a não divulgação de atos que nomeiam para cargos públicos parentes de agentes políticos viola o referido princípio, vez que se percebe, de forma nítida, a intenção de favorecimento a pessoas certas. Tal conduta ofende, consequentemente, o princípio da moralidade administrativa, que assevera a necessidade de uma conduta ética, honesta por parte da Administração Pública. A relação entre o Estado e o administrado deve basear-se na sinceridade de propósitos e na boa fé, de modo a proteger a “confiança, valor fundamental no Estado de Direito, uma vez que oferece a vedação total a toda atuação contrária à conduta reta, normal e honesta que cabe desejar no tráfego jurídico, assegurando também os efeitos jurídicos esperados justificadamente pelo sujeito que atuou de boa fé” (MODESTO, 2002, p.7).


Condutas como as aqui narradas, violadoras de tantos princípios da Administração Pública, são claramente ilícitas, vez que não expressamente autorizadas por lei. Ofende-se a legalidade administrativa e a própria necessidade de uma atuação eficiente. Isso porque resultados só são obtidos por meio de condutas direcionadas ao interesse público, transparentes e morais e não por atos “secretos”, praticados com intuito de ludibriar a população e favorecer certos indivíduos em detrimento da coletividade.


Percebe-se, portanto, a gravidade das condutas praticadas pelo Senado Federal, capazes de violar todos os princípios constitucionais da Administração Pública. Esse tipo de gestão administrativa é inadmissível e não pode permanecer impune. Ato caracterizado como improbidade administrativa, deve ser tratado como tal e receber as sanções previstas na legislação.


3. A responsabilização por improbidade administrativa


Não resta dúvida de que a prática de atos sigilosos pela Casa representante dos Estados no Congresso Nacional é ato de improbidade administrativa. O artigo 11, IV da Lei 8429/92 caracteriza como tal aquelas condutas que violem os princípios da Administração Pública, notadamente os que neguem publicidade aos atos oficiais. As penas, previstas no artigo 12 da Lei 8429/92, independem de eventuais sanções penais, civis ou administrativas previstas em legislação específica e incluem o ressarcimento integral do dano, se houver; a perda da função pública; a suspensão dos direitos políticos e o pagamento de multa. A aplicação dessas sanções a todos os envolvidos é o maior anseio da população brasileira.


Ressalte-se, no entanto, que existe o risco de impunidade para os envolvidos. Isso porque o Supremo Tribunal Federal já decidiu que os agentes políticos não respondem por improbidade administrativa, com o argumento de que tal categoria de agentes deve responder apenas por crime de responsabilidade, posicionamento esse altamente questionável.


O artigo 1º da Lei 8429/92 determina que ela se aplica a todos os agentes públicos. Este conceito é a mais ampla forma que se pode conceber para designar genericamente os sujeitos que servem o Poder Público (MELLO, 2004, p.226). Abrange todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às pessoas da Administração Indireta, incluindo os agentes políticos, os servidores públicos, os militares e os particulares em colaboração (DI PIETRO, 2006, p.499). O próprio legislador esclarece o conceito, no artigo 2º, afirmando que agentes públicos são os que exercem, ainda que sem remuneração, por eleição, nomeação ou qualquer forma de investidura, mandato, cargo, função ou emprego na Administração direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados ou Municípios. O artigo 3º da Lei 8429/92 estende a responsabilização por improbidade àqueles que, mesmo não sendo agentes públicos, concorreram, induziram ou se beneficiaram do ato. Tais dispositivos não deixam qualquer dúvida sobre a possibilidade de responsabilizar todos os envolvidos na prática de atos “secretos”, por improbidade administrativa, sejam eles agentes públicos ou beneficiários.


A análise conjunta do artigo 37, §4º  e do artigo 52, parágrafo único da Carta Maior demonstra que em nenhum momento a Constituição Federal vedou a incidência da responsabilização por improbidade administrativa aos agentes políticos. Ao contrário, é texto expresso que a responsabilização por crime de responsabilidade é independente das demais sanções judiciais cabíveis, sendo o mesmo válido para a improbidade administrativa. Ora, se as infrações são distintas em sua natureza, se as sanções não se equivalem e a Constituição Federal não proíbe a cumulação de punições diversas quando uma conduta configura, ao mesmo tempo, ilícito civil, penal e administrativo, não há qualquer razão para se afastar os agentes políticos da responsabilização por improbidade administrativa.


Qualquer agente público, em qualquer esfera governamental, pode ser submetido à tríplice responsabilização caso sua conduta viole preceitos que estejam, ao mesmo tempo, definidos como crime, como ilícito administrativo e ilícito civil. No caso específico dos agentes políticos, a esfera de responsabilização administrativa é substituída pelo sistema dos crimes de responsabilidade, mais compatível com a forma de provimento em cargo público, derivada de processo eleitoral. No entanto, continua intacta a responsabilização civil, onde se enquadra a improbidade administrativa, não havendo como afastá-la sob o argumento de que estaria configurado “bis in idem”. Afinal, para lesões de diferentes naturezas aplicam-se sanções diversas, que podem ser cumuladas. Quer se dê ao crime de responsabilidade natureza penal, quer se opte pela natureza política, estará mantida a possibilidade de incidência concomitante da Lei 8429/92.


Irretocável, portanto, o pensamento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, manifestado na PET 3923, segundo o qual a improbidade visa combater a impunidade na esfera pública sendo diverso o objetivo dos crimes de responsabilidade. Em suas próprias palavras, e referindo-se a improbidade administrativa:


“Buscou-se, com essa normatização, coibir a prática de atos desonestos e antiéticos, tão corriqueiros e tão recorrentes em nossa história político administrativa, aplicando-se aos acusados, atendidos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, as inúmeras e drásticas penalidades previstas na lei – e tão somente elas. Aí reside, aliás, a particularidade dessa nova normatização: a natureza cerrada da tipificação, com penas específicas para cada tipo de conduta desviante.”


Mais adiante, no que tange aos crimes de responsabilidade, assim se coloca o digníssimo Ministro:


“…o objetivo da punição é lançar ao ostracismo político o agente faltoso, especialmente o chefe de Estado cujas ações configurem risco para o Estado de Direito, para a estabilidade das instituições, em suma, um Presidente que por seus atos e ações perde a ‘public trust’, isto é, a confiança da Nação.”


Salienta que os crimes de responsabilidade são punidos apenas com perda do cargo e inabilitação para exercício da função pública por oito anos e continua:


“É que, como bem disse Alexis de Tocqueville, no seu clássico ‘Democracia na América’, ‘o fim principal do julgamento político nos Estados Unidos é retirar do poder das mãos do que fez mau uso dele, e impedir que tal cidadão possa ser reinvestido do poder no futuro.”


Finaliza afirmando que se trata de instituições diferentes: “Distintas e que não se excluem, podendo ser processadas separadamente, em processos autônomos, com resultados absolutamente distintos, embora desencadeados pelos mesmos fatos”.


Não há dúvidas de que a missão atribuída aos Ministros do Supremo Tribunal Federal é dificílima. Cabe a eles a gigantesca responsabilidade de resguardar a Constituição Federal, razão pela qual devem primar por evitar interpretações que destroem o próprio espírito da Carta Constitucional; interpretações que violam os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade justa e alheia a discriminações (art.3ºCF), de modo a impedir ocorrência de injustiças e a perpetuação da impunidade, em nome da Constituição Federal.


O mais recente escândalo nacional é prova viva da necessidade de punição exemplar a agentes públicos, sejam eles agentes políticos ou não, que violem os ditames da Carta Maior e não atuem de forma honesta, rompendo com o dever de probidade. A Lei 8429/92 é o principal instrumento a disposição para punição de agentes descompromissados com o interesse público, devendo ser utilizada sempre que cabível, em atendimento ao determinado pelo legislador constituinte.


4. Conclusão


Em um efetivo Estado Democrático de Direito não se pode permitir a prática de atos violadores de todos os ditames constitucionais acerca de princípios da Administração Pública. Tal tipo de conduta ofende o interesse público, demonstra descaso com a lisura na condução do Estado e deve ser punida de forma exemplar. A improbidade administrativa e suas sanções mostra-se o melhor caminho para isso, de modo que não se pode sustentar uma ideologia arcaica e ultrapassada de que agentes políticos estão imunes à responsabilização por esse tipo de conduta.


O que a população espera é a punição dos responsáveis, sejam eles agentes políticos ou não, de forma a dar efetividade aos valores constitucionais e fortalecer a democracia brasileira que, nos últimos vinte anos, já passou por momentos difíceis, mas soube superá-los, traçando um caminho rumo a sua solidificação e valorização dos ditames arrolados na Constituição Federal.


 


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativo do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 28 de abril de 2009.

BRASIL. Lei 8429/92. Disponível em http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 28 de abril de 2009.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo:Atlas, 2006.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo:Malheiros, 2004.

MODESTO, Paulo. Controle jurídico do comportamento ético da administração no Brasil. Revista Diálogo Jurídico,  Salvador, Centro de Atualização Jurídica, n.13, abril-maio, 2002. Disponível em http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 10 jan. 2008.


Informações Sobre o Autor

Camila Paula de Barros Gomes

Advogada, Professora de direito administrativo da UNITOLEDO. Mestranda em direito, especialista em processo.


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