Os princípios da supremacia do interesse público e da moralidade como norteadores da atuação discricionária (poder discricionário) da administração pública

Resumo: A Administração Pública, de uma forma genérica, é um conjunto de pessoas, recursos e meios organizados para gestão de bens, valores e interesses coletivos. A sua atuação é definida pela Lei, entretanto, na omissão ou inexistência de Lei ou mesmo quando esta expressamente determine, pode a Administração Pública se utilizar do chamado “poder discricionário”, que lhe confere certa margem de escolha no cumprimento das atividades que lhe são próprias. Desse poder de escolha, por vezes entendido como um princípio, surgem certos desvios que conduzem, indubitavelmente, a desequilíbrios na Administração Pública e prejuízos à sociedade. Além disso, existem certos princípios que norteiam sua atuação, complementando a “vontade da lei”. Tais princípios podem e devem auxiliar na condução das atividades da Administração Pública, sempre objetivando o interesse coletivo. No presente trabalho se destacam os princípios da moralidade e da supremacia do interesse público como principais fontes de auxílio à atuação discricionária da Administração Pública.[1]

Palavras-chave: moralidade, discricionariedade e supremacia do interesse público. 

Abstract: Public administration, in a generic way, is a group of people and resources organized for management, values ​​and collective interests. Its performance is defined by the law, however, the omission or lack of law or even when it expressly determintes, the Administration can use what it used to call "discretion power", which gives some room for choice in the performance of its activities. This “power of choice”, sometimes considered as a principle, there are some deviations that lead to imbalances in public administration, bringing damage to society. Besides, there are certain principles that guides its actions, complementing the "will of the law." These principles can be used and should assist the conducting activities of public administration, always aiming the collective interest. In this examination we intend to detach the principles of morality and the primacy of public interest as major sources of aid for the discretionary actions of public administration.

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Keywords: morality, discretionary and primacy of public interest.

Sumário: Introdução. 1. Princípios norteadores da Administração Pública. 2. Moralidade administrativa e supremacia do interesse público sobre o privado. 3. Poder discricionário. 4. Os princípios da moralidade e da supremacia do interesse público como condutores do poder discricionário. 5. Definição de Políticas Públicas pela observância dos princípios: as escolhas da Administração Pública. Considerações finais. Referências. Anexos.

INTRODUÇÃO

O Direito Administrativo, assim como outros ramos do Direito, é norteado por princípios que tem o objetivo de equilibrar os direitos da coletividade em face do poder do Estado/Administração Pública.

Considerando-se as necessidades do coletivo, o Estado/Administração Pública deve pautar sua atuação por tais princípios, a fim de que se obtenham resultados satisfatórios ao desenvolvimento cada vez maior da sociedade organizada.

Neste sentido, é imperioso se observar que os princípios acima aludidos, devem se constituir em guias da Administração Pública quando da sua efetiva ação em prol da coletividade.

Dentro desse aspecto, ressalta-se que, não raras vezes, a Administração Pública, antes de efetivar sua atuação, se vê prostrada diante de dúvida quanto a escolha da forma de proceder no caso concreto, dúvida esta causada muitas vezes pela omissão da Lei. Isso porque nem sempre a Lei revê todo o tipo de situação ou toda a forma de atividade pela qual deve se basear a Administração Pública na execução de suas atividades.

Por isso é que dentro dos próprios princípios norteadores está inserido o da “discricionariedade”, que confere à Administração Pública certa margem de escolha na sua atuação ou na forma de execução de suas atividades, observando-se sempre os demais princípios, especialmente o da “legalidade” (subsunção à Lei).

Entretanto, dentro desta perspectiva, seria possível se pensar em hierarquia de princípios? Mais do que isso, poderia algum princípio se sobrepor ou nortear a atuação da Administração Pública de forma preponderante quando esta toma uma decisão discricionária (baseada no Poder Discricionário que lhe é conferido)? Os princípios da supremacia do interesse público e da moralidade poderiam ter um efeito conclusivo sobre a atuação discricionária da Administração Pública em suas atividades?

No que tange, mais especificamente, à aplicação de verbas públicas, oriundas especialmente da arrecadação de tributos da coletividade, quais são os princípios norteadores da Administração Pública?

Dentro dessa temática, se já imbuída do Poder Discricionário que lhe é conferido, advindo do princípio da discricionariedade, poderia a Administração Pública sopesar sempre, colocando acima outros princípios, em especial o da supremacia do interesse público e o da moralidade para executar suas atividades?

Os referidos questionamentos se fazem presentes e necessários, especialmente no período corrente, quando já iniciados trabalhos e atividades para organização da Copa de 2014, evento esportivo a nível mundial que será sediado no Brasil e que está demandando gastos públicos de grande monta. Também são pertinentes os questionamentos quando se verifica, diariamente, a precariedade da saúde pública e de outras áreas de interesse para a sociedade e grande relevância ao indivíduo, em detrimento do investimento em setores ou áreas que poderiam ser relegadas a um segundo plano. Exemplo disso, e que será colacionado no anexo deste trabalho, é que recentemente um município gaúcho despenderia cerca de R$ 170.000,00 (cento e setenta mil reais) para pagar o cachê de um músico, para que este fosse patrono da feira do livro daquela localidade.

 Ora, a utilização de verbas públicas para estes tipos de eventos ou contratações, podem e devem ser questionadas à luz dos princípios norteadores da Administração Pública, em especial os da supremacia do interesse público e da moralidade, a fim de limitar o Poder Discricionário da Administração Pública nestas questões.

Em várias partes do país se observam uma série de deficiências na área da saúde pública e da educação, apenas para citar dois exemplos. Em contrapartida, investimentos em áreas secundárias como as citadas acima deixam claro que se relega à Administração Pública uma atuação desprovida de ponderação moral, quando a Lei é omissa e lhe confere certa margem de decisão.

As ponderações e questionamentos acima aduzidos são o que impulsionam o presente trabalho, que procurará perquirir sobre o assunto, buscando na Lei, doutrina e jurisprudência o melhor entendimento, a fim de procurar sanar, pelo menos em parte, as referidas dúvidas.

O presente trabalho ocupar-se-á, especialmente, dos princípios da supremacia do direito público sobre o privado e da moralidade administrativa como princípios norteadores necessários da atuação da Administração Pública, especialmente quando se trata da efetiva execução dessa atuação através do uso do poder discricionário que lhe é conferido, na execução de políticas públicas. A questão é de suma importância tendo em vista, especialmente, a gestão de dinheiro público, fornecido pelos cidadãos à Administração na forma de tributos, cujo retorno esperado é a execução de serviços que desenvolvam cada vez mais o bem estar coletivo.

Impende referir que o poder discricionário é limitado e residual, surgindo tão somente após a efetiva observância da Lei (princípio da legalidade), quando existente pequena “margem de escolha” à Administração Pública quanto à realização de determinada atividade.

Para a autora Maria Zanella Sylvia Di Pietro[2], trata-se de poder que não existe de forma autônoma, sendo consequência ou atributo de outros poderes da Administração.

A questão fundamental que se coloca e a qual se pretende desenvolver no presente trabalho é a necessidade de orientação da Administração Pública pelos citados princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da moralidade quando do exercício do Poder discricionário, este oriundo de outro princípio, o da discricionariedade, na efetivação de políticas públicas, mormente quando a Administração Pública se depara com a questão da aplicação de dinheiro público na área de lazer em detrimento da área da saúde.

O tema é pertinente porque visa a perquirir as questões observadas pela Administração Pública quando necessária a manifestação do seu Poder discricionário que, ainda que limitado pelo princípio da legalidade (subsunção à Lei), tende a revelar certos desvios e abusos por parte da Administração Pública, ante à margem de escolha que desse Poder advém.  

Para tanto, o objetivo precípuo deste trabalho é demonstrar que na prática há necessidade de que a Administração Pública, além de observar a Lei, verifique os princípios norteadores de sua atuação e pondere sobre eles, especialmente no que diz respeito ao uso do seu Poder Discricionário, quando houver omissão legal ou o próprio dispositivo conferir à Administração Pública certa margem de escolha no efetivo exercício de suas atribuições.

Intenta-se demonstrar que, com a efetiva observância de outros princípios norteadores, como o da supremacia do interesse público sobre o privado e da moralidade, o princípio da discricionariedade (que confere à Administração Pública o poder de escolha) pode levar sempre ao desejo comum, o que efetivamente a coletividade espera da administração de seus valores, de seus bens e principalmente, de seus direitos.   

1. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

A Administração Pública é o nome dado ao conjunto de bens, órgãos, entidades e pessoas que formam uma estrutura organizacional que detém responsabilidades conferidas pela coletividade à gestão das coisas públicas (valores, bens, interesses). A ela incumbe a gestão dos bens e serviços advindos e destinados à coletividade, a execução de planos que visem à melhor adequação ou organização da sociedade, de forma genérica, é precipuamente vislumbrada na figura do Poder Executivo.

Trata-se de denominação ampla, que abarca “pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer a função administrativa[3], ou seja, à Administração Pública, como o nome refere, cabe à organização das atividades de natureza pública, dirigidas aos cidadãos que formam a coletividade, objetivando a consecução de um fim comum.

Uma vez integrada por pessoas que copõem a citada coletividade e observado que os bens, valores e interesses dessa coletividade devem ser geridos com cautela, a Administração Pública deve observar a Lei como fonte primeira de sua atuação.

A Lei, que insculpe o ordenamento jurídico vigente em nosso Estado, nem sempre prevê todas as situações possíveis, fato que é de se esperar, logicamente, ante à complexidade e constante evolução do comportamento humano.

Assim, quando inexiste Lei para regular determinados assuntos ou quando esta é omissa em determinado ponto, a Administração Pública deve possuir um critério que possa auxiliá-la na concretização de suas atividades, uma vez que esta não pode se omitir de gerir a coisa pública ou de prestar os serviços que lhe são próprios, conforme o que prevê o “contrato social”, na teoria de Rousseau[4].

Para tanto, existem princípios que norteiam a atuação da Administração Pública. Esses princípios são fontes de onde se extraem conhecimentos que possam auxiliar na prática dos atos que são próprios da Administração Pública.

Conforme conceito de Diógenes Gasparini[5], princípios são “conjunto de proposições que alicerçam ou embasam um sistema e lhe garantem a validade (…) se consignados em lei, são normas principiológicas”.

A maioria dos doutrinadores elencam como princípios da Administração Pública os seguintes: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Isso porque tais princípios estão esculpidos expressamente na Constituição Federal, em seu artigo 37 (“a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (…)”).

Outros, entretanto, adicionam outros princípios, como Hely Lopes Meirelles, que fala também nos princípios da finalidade e da probidade. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, elenca, ainda, como princípios que norteiam ou informam a atuação da Administração Pública a supremacia do interesse público, a presunção de legitimidade, a especialidade, o controle, a autotutela e a continuidade dos serviços públicos, a hierarquia, a proporcionalidade, a motivação e a segurança jurídica.

São objeto de estudo mais profundo deste trabalho os princípios da moralidade administrativa e da supremacia do interesse público, este último clamado por Di Pietro, como princípios hierarquicamente relevantes em razão dos demais, hábeis a auxiliar a Administração Pública quando, detentora do Poder Discricionário, for realizar os atos que lhe competem.

Impende destacar que esse Poder Discricionário é um poder conferido à Administração Pública para que possa realizar as suas atividades, sem ter que sempre recorrer à existência de alguma norma para regular determinada situação. Logicamente que as atividades da Administração Pública, uma vez que reflexos dos interesses coletivos, devem sempre obedecer a Lei, entretanto, uma vez que não seria possível o regulamento de toda e qualquer situação, pode-se aferir certo grau de vontade e autonomia à Administração Pública.

Para Di Pietro,

“a discricionariedade, sim, tem inserida em seu bojo a ideia de prerrogativa, ma vez que a lei, ao atribuir determinada competência, deixa alguns aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do caso concreto; ela implica liberdade a ser exercida nos limites fixados na lei. No entanto, não se pode dizer que exista como poder autônomo; o que ocorre é que as várias competências exercidas pela Administração com base nos poderes regulamentar, disciplinar, de polícia, serão vinculadas ou discricionárias, dependendo da liberdade, deixada ou não, pelo legislador à Administração Pública”. (DI PIETRO, 2006, p. 101).

Dentro desse aspecto, destaca-se que o uso desse Poder Discricionário, ou seja, poder imbuído de vontade, pode ser utilizado de forma incorreta pela Administração Pública. Mesmo havendo certa margem de escolha, que pode ser prevista pela própria Lei, nem sempre a efetiva tomada de decisão pela Administração Pública refletirá na melhor atitude ou na atitude mais justa ou esperada pela coletividade.

Meirelles chama essa possibilidade de “desvio de poder”. Para ele, o desvio de poder nada mais é do que “a violação moral da Lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivo e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal”. (MEIRELLES, 1993, p. 13).

A fim de coibir ou ao menos limitar esses desvios, colocam-se os princípios como fontes de conhecimento a sanar a dúvida do agente da Administração Pública quando no exercícios das funções que a ela competem. Tais princípios, via de regra, não possuem hierarquia entre si. Entretanto, para cada caso concreto, na ausência de Lei ou quando esta permita à Administração Pública usar de seu Poder Discricionário para fazer determinada escolha no campo de suas atividades, pode-se sopesar a importância de cada um, conforme seus conceitos e utilidade, a fim de encontrar um ponto de equilíbrio entre a atividade prestada pela Administração Pública e os interesses da coletividade.

Exemplificando, o princípio da legalidade, que significa a subsunção da Administração Pública à Lei (o dever de observância às regras existentes para cada situação), pode e deve ser combinado com outros princípios, que devem ser avaliados para se chegar ao mencionado equilíbrio, objetivando sempre, a Administração Pública, atingir o seu fim maior, que é a execução de serviços em prol da coletividade[6].

Diante desses fatores, impende destacar que, por meio do estudo dos conceitos dos princípios que norteiam a Administração Pública e pela pesquisa consubstanciada no presente trabalho, é possível se afirmar que a moralidade e a supremacia do interesse público são dois princípios de grande valia à condução dos atos da Administração Pública.

Ora, a Administração Pública tem o dever de observar a Lei, mas também tem o dever de verificar aquilo que é mais vantajoso para a sociedade, numa pretensa e primitiva análise da vontade dos administrados.

A moralidade e a supremacia do interesse público se constituem em princípios que, ao serem efetivamente aplicados quando da execução de um ato, podem traduzir o início da perquirida justiça, tão enfatizada no ambiente do Poder Judiciário.

2. MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO.

Os princípios em destaque – moralidade e supremacia do interesse público – são princípios que se traduzem na mais alta busca pelo efetivo respeito aos direitos de cada indivíduo, ainda que concebidos na coletividade, porque ambos advêm do desejo de organizar e traduzir os anseios da maioria.

As preocupações, por assim dizer, de tais princípios, tem origem na máxima de que o desenvolvimento de uma sociedade só se efetiva de forma eficiente se todos os cidadãos inseridos num determinado contexto puderem gozar de uma vida digna, plena.

A moralidade vem do termo “moral” e apesar da origem incerta, encontra os primórdios da sua significação na medida em que o homem deixa de ser apenas instintivo para ponderar sobre as coisas, especialmente no que tangia à diferenciação entre o bem e o mal.

A moral, em sentido amplo, pode ser definida como a consciência daquilo que se coloca como correto e justo. Tratar-se-ia de um sentimento ou comportamento humano direcionado à benevolência, à busca de um ambiente com valores que norteiem o convívio em sociedade, tornando a convivência coletiva equilibrada.

A moralidade, portanto, estaria vinculada a uma questão de valores, compreendidos e elevados em sua existência pela necessidade humana.

Enquanto tradução de um valor perquirido pela coletividade, a moral pode ser definida como um parâmetro para definir a adequação de um ato, se bom ou justo para determinada sociedade. A moral está vinculada ao conceito daquilo que é justo, a busca pela justiça. Roberto Dromi[7] atenta para o fato de que

“Es habitual que se identifique la ‘justicia’ como el valor y el parámetro al que debe ajustarse el ordenamiento jurídico, y al que deben arribar el juez o el administrador al decidir uma causa. La justicia es um presupuesto del orden socil justo, orientado al bien común, sobre la base de la equidad.”  

Para Paulo Nader[8],

“Ao captar a noção de bem no mundo objetivo, onde a natureza humana é dado fundamental, a Moral limita e condiciona a ação do legislador, levando-o a acatar certos princípios. (…) o direito criado não apenas é irradiação de princípios morais como também força aliciada para a propagação e respeito desses princípios.”

Paulo Dourado de Gusmão[9] se refere à moral como a tradução de um comportamento que leva em consideração os “motivos, intenções ou propósitos”.

No âmbito do direito administrativo, o princípio da moralidade estaria ligado ao conceito de ética pública, que nas palavras de Romeu Felipe Bacellar Filho[10], “a afirmação da moralidade administrativa como princípio da Administração Pública juridiciza a ética na atividade administrativa. Introduz o conceito de boa administração, da moral administrativa especializada em face da moral comum.”.

O princípio da moralidade administrativa traduz um posicionamento que é exigido da Administração Pública como forma de bem executar os seus atos a fim de realizar o bem comum. Algumas características como a licitude e a honestidade são afeitas à moralidade que deve pautar a atuação da Administração Pública.

Sempre que houver, na relação entre Administração Pública e administrados alguma atitude de desonestidade, desequilíbrio ou boa-fé, certamente o princípio da moralidade não terá sido perseguido ou, se intentado num primeiro momento, deixará de aplicado.

Di Pietro atenta para o fato de que, não raras vezes, mesmo sob o pretexto de legalidade de um ato (submissão do mesmo à prescrição legal), a Administração Pública acaba desmerecendo o princípio da moralidade, posto que pratica atos que “atentam contra o sendo comum de honestidade e justiça”. Impende mencionar, por oportuno, que a referida autora considera o princípio da moralidade como um princípio que pode ser concebido de forma autônoma. Isso porque o referido princípio está “justamente na esfera do anseio de certeza e segurança jurídica, mediante a garantia da lealdade e boa-fé da Administração Pública” (BARCELLAR FILHO).  

A moralidade, no Direito Administrativo, está intrinsecamente ligada ao que se considera bom e justo. Trata-se do conjunto de regras que regulam o dever de agir da Administração Pública (GASPARINI), sendo que “o ato e a atividade da Administração pública devem obedecer não só à lei, mas a própria moral, porque nem tudo que é legal é honesto” (GASPARINI).

A supremacia do interesse púbico sobre o privado, por sua vez, está apoiada na dignidade humana. Se a todos deve ser possível e acessível o gozo de uma vida digna, esse gozo deve ser proporcionado através de meios que possam efetivá-lo. O interesse da maioria em detrimento do interesse pessoal de certas pessoas, ou de uma minoria, deve prevalecer, tendo em vista o desenvolvimento de uma sociedade.

Referido princípio possui a peculiaridade de proteger os interesses da coletividade, de forma efetiva, em detrimento de interesses de uma minoria.

“Também chamado de princípio da finalidade pública, está presente tanto no momento da elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda sua atuação. (….) leva em consideração o interesse que se visa proteger; o direito privado contem normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público”. (DI PIETRO)

O interesse ou desejo público deve se sobrepor ao interesse privado pela noção de que o primeiro constitui efetivamente o âmago do sentimento da justiça, que promove a evolução, conduz o desenvolvimento da coletividade ao mesmo objetivo.

Tal condução gera aperfeiçoamento da coletividade, proporcionando um bem estar social, ou seja, de todas ou pelo menos da maioria das pessoas inseridas em determinado contexto.

Celso Antônio Bandeira de Mello[11] fala que o interesse público é o “interesse do todo, do próprio corpo social”, acentuando que esse interesse do todo é a “função qualificada dos interesses das partes, um aspecto, uma forma específica de sua manifestação”.       

A Administração Pública, dentro desse contexto, acaba possuindo como dever/finalidade a busca do interesse da coletividade em todos os seus atos, que, em primeiro plano, estão adstritos à prescrição legal, entretanto, na falta ou omissão de regra expressa, deve agir a Administração em conformidade com preceitos que possam levar a mesma busca do desejo do coletivo.

“É em nome do interesse público – o corpo social – que deve agir, fazendo-o na conformidade da ‘intentio legis’. Portanto, exerce função (…) que se traduz na ideia de um indeclinável atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro”. (MELLO)

Odete Medauar[12] refere, com propriedade, que a supremacia do interesse público é princípio norteador da Administração Pública que pretende compatibilizar os interesses coletivos com a minimização de sacrifícios, tudo em prol do bem da coletividade ou “à percepção geral das exigências da vida em sociedade”.                                

3. PODER DISCRICIONÁRIO.

O chamado “Poder Discricionário” é um poder conferido à Administração Pública para que esta possa agir com certo grau de vontade, porque possui, em decorrência deste poder, uma margem de escolha na realização de suas atividades.

Impende destacar, entretanto, que o poder discricionário é limitado e residual, surgindo tão somente após a efetiva observância da Lei (princípio da legalidade), quando existente a mencionada pequena margem de escolha à Administração Pública.

Gerson dos Santos Sicca[13] refere o Poder Discricionário como um desejo do administrador decorrente da imposição da própria norma. Para ele, o Poder Discricionário está sempre vinculado ao princípio da legalidade, sendo que é a Lei que define o quanto a Administração Pública poderá ter autonomia na escolha de seus atos ou na forma de executá-los. Dessa forma, para ele, há sempre vinculação do ato com a finalidade, que é pública, por isso a discricionariedade não chega a ser um poder, efetivamente, mas uma forma flexível de agir conferida à Administração Pública pelo legislador.  

Para a autora Maria Zanella Sylvia Di Pietro, trata-se de poder que não existe de forma autônoma, sendo consequência ou atributo de outros poderes da Administração (op. cit. p. 101). José Sergio da Silva Cristovam[14] explica que

“A atividade discricionária deve estar inter-relacionada não apenas à lei que a legitima, mas a todo o ordenamento normativo. Em última análise, todo ato administrativo deve visar o interesse público para ser válido, seja vinculado seja discricionário. Toda atividade discricionária, em verdade, está vinculada ao interesse público, devendo ser adequada, necessária e razoável.”

O Autor Diogo de Figueiredo Moreira Neto[15] refere a discricionariedade como um princípio que orienta a Administração Pública, princípio este que lhe conferiria um “espaço jurídico decisório substantivo”, em que os agentes da Administração Pública poderiam escolher, “conforme a amplitude definida pelo legislador, total ou parcialmente, o motivo e o objeto de seus atos, ou ambos, para realizar a boa administração”.

Sendo princípio ou propriamente um poder – pois confere à Administração Pública um agir em conformidade com a sua margem de escolha, ainda que deva observar os ditames legais, obedecendo, então, ao princípio da legalidade – o fato é que essa pseudo forma de agir com vontade exprimida em escolha, pode orientar a Administração Pública para a consecução correta do interesse público, como pode se desvirtuar e trazer um resultado contrário, alheio às vontades do coletivo.

Malgrado o fato de tal poder estar vinculado ao desejo da norma, como já referido alhures, nem sempre há norma expressa conduzindo a forma de agir da Administração Pública. Somado a isso, tem-se que mesmo a existência de norma que defina a atuação da Administração Pública, esta não é capaz efetivamente de conter certos abusos ou desvios, porque justamente na omissão destas leis é que reside o poder de atuar livremente. Ora, à Administração Pública é conferido poder para agir em conformidade com a Lei e, portanto, conforme os interesses da coletividade, que lhe aprova a gestão de seus valores e bens, a fim de que retornem em proveito da própria coletividade.

Entretanto, não raras vezes, a atuação da Administração Pública, mesmo que pretensamente norteada pela Lei, que lhe dita o que fazer e como fazer, se encontra desvirtuada dessa Lei ou, na inexistência ou omissão de regra, encontra terreno fértil para execução de atos que nem sempre correspondam ao desejo do coletivo.

Moreira Neto (op. cit. p. 98) explica que

“o exercício da discricionariedade, que autoriza ao administrador a escolha de oportunidade e de conveniência de agir, não deve ser confundido com o exercício da faculdade jurídica de se considerar ou não preexistente um pressuposto jurídico de agir, que tenha sido formulado pelo legislador sob a forma de um conceito jurídico indeterminado. Com efeito, quando a lei se vale de um conceito jurídico indeterminado, o que ocorre também na órbita do Direito Constitucional e do Direito Privado, apenas delega ao autor do ato previsto a constatação da realidade e da suficiência de um certo pressuposto de sua prática.”

Impende registrar, contudo, uma terceira hipótese de atuação da Administração Pública com base no poder discricionário que lhe é conferido, quando a própria Lei, mesmo determinando a realização de determinado ato, de determinada forma, acaba não capturando a essência do desejo da coletividade, o que indiretamente confere à Administração Pública uma forma de agir que não necessariamente será moral, conforme os conceitos já exposados acerca da matéria.

Sicca[16] define que essa margem de escolha da Administração Pública é necessária para a efetiva concretização dos interesses coletivos. Segundo seu conceito, a discricionariedade ou o poder discricionário seria um juízo de oportunidade[17] realizado pela Administração, conforme se verifica, in verbis:

“A atividade administrativa está condicionada pelo Direito, não sujeita à voluntas do administrador, nem tampouco plenamente vinculada em todos os seus aspectos, já que o Estado necessita de certa liberdade de conformação para realizar suas tarefas e permitir a manifestação do pluralismo político. O juízo de legalidade atribui sentido e conteúdo para a vinculação positiva à lei, pois traça um sistema de garantias dos Direitos dos cidadãos e do interesse público. Por outro lado, a noção de juízo de oportunidade evidencia que o Estado de Direito é pluralista, capaz de moldar-se a diversas orientações políticas e às novas demandas sociais.”

Enquanto atuação, o Poder Discricionário é resultado do exercício da função estatal, no âmbito da atividade administrativa (CADEMARTORI). 

Ora, se a atuação da Administração Pública fosse sempre pautada pela Lei e esta nem sempre exprime os desejos coletivos, teríamos aí um desvirtuamento dos princípios da supremacia do interesse público e da moralidade. De outro lado, quando do exercício do poder discricionário, que é a margem de escolha e decisão conferidos à Administração Pública, da mesma forma pode ocorrer o desvirtuamento da intenção real do coletivo, este muito mais afeito ao conceito de moralidade.

Como visto, nem sempre um ato, mesmo legal, será moral ou traduzirá efetivamente o desejo de todos os indivíduos inseridos em determinada sociedade. Assim, é de suma importância que os princípios elevados por ocasião da presente pesquisa sejam observados em toda a atuação da Administração Pública.     

Para Blanchet[18], havendo ou não a discricionariedade em um ato da Administração Pública, necessariamente este ato deve estar de acordo com o interesse da coletividade, o que acaba por compatibilizar o referido poder com o princípio da supremacia do interesse público.

4. OS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO CONDUTORES DO PODER DISCRICIONÁRIO.

O chamado “Poder Discricionário” é um poder conferido à Administração Pública para que esta possa agir com certo grau de vontade, porque possui, em decorrência deste poder, uma margem de escolha na realização de suas atividades.

Impende destacar, entretanto, que o poder discricionário é limitado e residual, surgindo tão somente após a efetiva observância da Lei (princípio da legalidade), quando existente a mencionada pequena margem de escolha à Administração Pública.

Não se pode dizer, pelo menos teoricamente, que os princípios da moralidade e da supremacia do interesse público sobre o privado se sobrepõem a outros princípios que conduzam a atuação da Administração Pública, porém, pode-se concluir, pelos seus conceitos e importância, que merecem ser relegados a uma posição superior quando se trata de examinar uma questão a luz dos princípios norteadores da Administração Pública.

A moralidade, sendo o princípio oriundo de padrões éticos, busca a probidade, a lealdade, a boa-fé e a honestidade, adjetivos que bem denotam a importância de tais qualidades à sociedade humana.

Aliado ao princípio da moralidade, o princípio da supremacia do interesse público ressalta que o coletivo, o desejo da maioria deve se sobrepor aos desejos da minoria, a fim de que se persiga um bem estar integral dos indivíduos inseridos em determinado contexto social.

Esses conceitos ganham cada vez maior destaque e se refletem na forma como o indivíduo enxerga e constrói o meio em que vive. Se da atuação dos indivíduos o que se espera é um comportamento moral, que remonta à consciência do próprio ser, o mesmo comportamento se exigirá dos que, investidos em funções públicas, se encontram à frente da condução das atividades pertinentes à Administração Pública.

Como consequência dessa moralidade e do próprio motivo de existência da Administração Pública – gestão dos bens e serviços públicos, em prol da coletividade – tais princípios devem assumir posição de destaque para a Administração Pública, senão com superioridade hierárquica, ao menos com efetiva observância pela mesma.

E como leciona Meirelles[19], “a primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral”.

Os aludidos princípios, aplicados quando da atuação discricionária da Administração Pública, garantem a efetiva observância do interesse público, que é a razão da existência do Poder Público.

Ora, conforme asseverado, mesmo com a existência do princípio da legalidade, ao qual deve se submeter a Administração Pública, agindo conforme expressa determinação legal, a inexistência de Lei determinando a sua atuação ou a omissão legal podem levar à desvios da Administração Pública.

Sicca fala de uma atuação desviada na medida em que a ausência ou omissão da Lei, para determinadas atividades ou atos da Administração Pública, deixam a margem de escolha por completa indeterminação de conceitos expressos.

Além disso, existe um grande abismo entre a teoria e a prática no que pertine aos conceitos que informam a atuação da Administração Pública. Isso porque

“a conflituosa relação entre texto e realidade requer um instrumento à estrutura normativa constitucional e aos princípios gerais de Direito. Exemplo desta visão é a aplicação do princípio da proporcionalidade: evidentemente, as respostas finais (…) não são estabelecidas pela simples menção ao princípio, mas a sua correta aplicação indica um caminho racional e seguro para indagar-se sobre a correção do comportamento da Administração Pública”.[20]      

Dessa forma, depreende-se que, quando da execução efetiva de suas atividades, a Administração Pública, em que pese estar sujeita à Lei, e mesmo sendo mínima sua margem de escolha, decorrente do Poder Discricionário, acaba podendo agir, em muitos casos, conforme a sua preferência, e não necessariamente em conformidade com os desejos da coletividade.

Ora, mesmo a própria Lei pode não ser moral, o que sinalizaria a necessidade de que a Administração Pública se socorresse dos princípios que a norteiam para a prática de seus atos, especialmente porque eles devem estar direcionados à consecução de um fim público.

Na prática, entretanto, o que ocorre é um resultado diverso: munida do Poder Discricionário, desatenta aos princípios, especialmente os da moralidade e supremacia do interesse público e aproveitando brechas legais, ou mesmo a existência de leis que nem sempre traduzem o desejo coletivo, a Administração Pública acaba por se desviar de seu real intento e promover ações que ela própria repute importantes.

Tanto é assim que diariamente se pode vislumbrar as deficiências com a área da saúde pública, entretanto, para o ano de 2014, o Brasil se prepara para sediar a Copa do Mundo (World Cup), movimentando, para esta última finalidade, milhões de reais na construção ou reforma de estádios, aprimoramento da rede hoteleira, incentivo ao nascimento de novos empreendimentos focados na comercialização de produtos para o evento.

Toda essa movimentação não será capaz de angariar fundos à saúde, que continuará precária. 

A situação acima é ilustrativa, e serve para demonstrar que, na prática, existem muitas falhas visíveis da Administração Pública quando da execução de seus atos, motivados por interesses próprios ou de uma minoria. Por isso ações direcionadas à área da saúde, por exemplo, que se reputariam, logicamente, como de primordial importância, acabam sendo relegadas a um segundo plano, porque em primeiro lugar são colocadas em prática políticas públicas que atendam aos citados interesses próprios ou de uma minoria.

A efetiva observância dos princípios norteadores de sua atuação, entretanto, certamente levaria a Administração Pública a resultados que não os nefastos observados na área da saúde, promovendo sempre uma política social de efetiva correspondência ao desejo coletivo.

Assim, impende destacar que na atuação da Administração Pública, deveriam sempre ser observados os princípios norteadores, especialmente os acima destacados, para uma melhor definição e execução de atividades que refletissem, efetivamente, o desejo coletivo.

Para tanto, importante considerar-se a questão da execução de políticas públicas a luz dos citados princípios, primordialmente o da moralidade e o da supremacia do interesse público sobre o privado, como garantidores da efetiva observância do interesse coletivo e como tradução de um maior desenvolvimento social.    

5. DEFINIÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELA OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS: AS ESCOLHAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

Diante de toda a questão apresentada nos tópicos acima, emerge a dúvida que se consubstancia na problemática de que forma haveria aplicação dos citados princípios na prática da Administração Pública e como se refletiriam.

Para o autor Jorge Renato dos Reis, por exemplo, não haveria hierarquia entre princípios e regras, sendo que o sopesamento entre ambos já teria sido realizado pelo legislador. Para ele, ainda, todo o ordenamento jurídico estaria erguido sobre valores de segurança, previsibilidade e estabilidade das relações sociais de justiça, motivo pelo qual haveria sensível preponderância das regras. Entretanto, cumpre refletir acerca dessa questão, à luz da opinião do aludido autor, que não necessariamente reflete a verdade da concepção dos princípios versus regras.

Conforme explicitado alhures, nem todas as regras existentes dão conta de regulamentar todas as situações jurídicas possíveis dentro de uma sociedade organizada. No que tange à Administração Pública, esta deve observar princípios aliados às normas, a fim de bem cumprir o papel para o qual a mesma existe, que é a gestão dos bens, valores e atividades públicas.

Neste sentido, destaca-se que os princípios tem e devem continuar tendo grande relevância na condução das atividades da Administração Pública, a fim de assegurar, não somente a aplicação das leis, mas a efetivação da realização de atividades justas e condizentes com o desejo coletivo.

Para tanto, os princípios, especialmente o da moralidade e da supremacia do interesse público sobre o privado necessitam ser observados pela Administração Pública na realização de todos os seus atos. 

Ora, consoante já exposado, a efetiva observância dos princípios, em especial os da moralidade e da supremacia do interesse público levariam a Administração Pública, indubitavelmente, à execução de políticas públicas voltadas, em primeiro lugar, aos interesses primeiros do coletivo, primordiais aos indivíduos.

A execução das chamadas políticas públicas se voltaria sempre e inevitavelmente para as áreas de maior necessidade do indivíduo, o que conduziria, gradativamente, a uma melhora contínua nessas áreas e, por escalonamento, à melhoria de áreas secundárias.

Impende, primeiramente, verificar o conceito de políticas públicas. As políticas públicas podem ser definidas como um conjunto de ações que são realizadas pelo Estado, no intuito de promover interesses da sociedade, propiciando, assim, o bem estar coletivo. Essas políticas, em que pese a realização pelo Estado, podem ser promovidas em parcerias com organizações não governamentais ou em conjunto com a iniciativa privada.

A definição das políticas públicas que serão desenvolvidas depende da conjugação entre as necessidades coletivas e as possibilidades de a Administração Pública executar tais políticas.

Nas palavras de Carlos Rodolfo Lujan Franco[21],

“As políticas públicas, via de regra, são definidas através da apresentação de um esquema de compromissos políticos adotados em campanha eleitoral, quando promessas são declaradas, muitas delas, desprovidas de qualquer consistência ou factibilidade, tendo como mote o atendimento das necessidades mais urgentes (ou mais visíveis) da população. Como essas necessidades são múltiplas e a cada dia se avolumam pela crescente exclusão social, o gestor, uma vez eleito, seleciona aquelas que serão atendidas de imediato, de modo que as administrações passam a funcionar como gestores de problemas tópicos (…)”.

Impende frisar que inexiste Lei que indique quais as áreas de maior importância em detrimento de outras, para a definição e execução de políticas públicas, resultando que à Administração Pública cabe o papel de definir tais políticas.

Como consequência do desenvolvimento progressivo da sociedade humana, aliado à história do direito brasileiro, verifica-se que a saúde é o setor de maior importância para a população inserida em uma sociedade organizada e, consequentemente, para o Poder Público, pelo menos em tese, pois se trata de direito que possui fundamental importância para as pessoas, na medida em que intrinsecamente ligado ao bem estar individual, ao gozo pleno da conjugação mente, corpo e espírito, inclusive proporcionando a prolongação da vida.

A consciência a respeito da saúde remonta o início das preocupações com o indivíduo, concebido como ator principal do desenvolvimento das sociedades humanas. Trata-se de um direito que obteve o status de fundamental, uma vez que fundamental é aquilo que tem primordial importância, que para o jusnaturalismo é a “concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inalienáveis[22].

Jorge Renato dos Reis conceitua a saúde como “direito primário e absoluto, a partir do qual os demais direitos podem ser exercidos, e por esta razão, inviolável”, e acrescenta que

“Figurando o ser humano como centro de constituição categorial da ideia de saúde, é tal condição que estabelece os elementos necessários a sua definição jurídica, a saber: o direito à saúde dirige-se à proteção da pessoa humana contra quaisquer ameaças ou agressões que derivem das condições próprias dos locais de trabalho, da cidade ou de qualquer outro ambiente do mundo da vida.”[23]   

A Constituição Federal prescreve a saúde como um direito social, em seu artigo 6º[24], elencando também como competência do Poder Público, nas suas três esferas de poder, quais sejam, União, Estados e Municípios, o seu cuidado (artigo 23, inciso II[25], da Carta Magna). Define também, entre outros dispositivos, que haverá aplicação de verbas públicas na saúde (artigo 34, inciso VII, alínea ‘e’[26]) e que o Estado e a União não poderão intervir nos Municípios senão para verificação da não aplicação mínima de verbas na saúde (artigo 35, inciso III[27]).  

Ainda, o artigo 196 da Constituição Federal prescreve que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, que deve garantir a sua execução por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução de doenças e possibilitem o acesso igualitário de todos os cidadãos.

Malgrado a importância dada à saúde pela Constituição Federal brasileira, cuja incidência ainda aparece em mais 5 dispositivos, entre eles artigo 7º, incisos IV e XXII e artigo 30, inciso VII, verifica-se que tais normas são de caráter pragmático, dependendo de outras normas, infraconstitucionais, para que se concretizem de forma efetiva, tendo em vista que às regras constitucionais falta a definição da maneira pela qual o direito à saúde será perfectibilizado.

 Ainda, inexiste prescrição legal, mesmo na Carta Magna, sobre a observância, em primeiro lugar, da área da saúde, em detrimento de outras, pela Administração Pública. A educação, o saneamento, também se constituem em direitos individuais, chamados fundamentais pelo ordenamento jurídico, e de importância substancial ao desenvolvimento da sociedade como um todo. Entretanto, a saúde ainda se afigura como setor de maior preocupação, tendo em vista que o indivíduo sadio tem condições de promover-se nessas outras áreas. Se a saúde não for um direito efetivamente executado, escalonadamente as demais áreas não funcionarão como deveriam.

Assim, tem-se que

“O direito à saúde no ordenamento jurídico contemporâneo se afigura como típico direito social (…). Significa dizer que ele se apresenta como direito primário e absoluto, a partir do qual os demais direitos podem ser exercidos, e por esta razão inviolável. (…) A doutrina especializada na abordagem do tema trabalha com a lógica de que ela implica a integridade física e psíquica da pessoa humana.”[28]

Constituindo-se a saúde em direito fundamental, a ensejar a prescrição expressa na Carta Magna de 1988, é corolário lógico que se apresente como preocupação fundamental dos indivíduos inseridos na coletividade e como objetivo primeiro na execução de políticas públicas pela Administração Pública.

Ocorre que, conforme referido, os dispositivos elencados pela Constituição Federal referentes à proteção à saúde, são pragmáticos, ou seja, de eficácia limitada, sendo necessária a conceituação de saúde para que se promova, efetivamente, aos meios indispensáveis ao bem estar do indivíduo e, consequentemente, o seu desenvolvimento próprio, para então projetá-lo ao desenvolvimento coletivo.

Poder-se-ia dizer que no conceito de saúde estão inseridas medidas precipuamente caracterizadas por outras áreas, como a prática de esportes, atrelada a este setor e ao do lazer. Entretanto, muito antes de se definir saúde como um complexo de quesitos que envolvem as atividades físicas, mentais e espirituais ou emocionais do indivíduo, deve ser observada em sua composição orgânica, com tratamentos e prevenções que objetivem o não desencadeamento de doenças.

No que pertine à Administração Pública, a esta cabe a execução de políticas públicas eficazes destinadas ao setor da saúde. Trata-se da exteriorização de um desejo coletivo aplicado com verbas oriundas desse mesmo coletivo.

Importante ressaltar que por mais urgente que se repute o direito à saúde, mas especificamente, no que tange à saúde pública, o setor sempre passou e continua passando por diversas dificuldades, especialmente financeiras, na medida em que reiteradamente a sociedade se depara com notícias da situação de falta de medicamentos, leitos hospitalares, profissionais e estabelecimentos médicos para atender a demanda pública.

Em contrapartida a esse cenário, o Brasil já se prepara para sediar a Copa de 2014 (Fifa 2014 World Cup), com a construção ou reforma de estádios de futebol, investimento na melhoria da infraestrutura dos aeroportos, rodovias e ferrovias, obras que demandam recursos públicos para sua execução. 

Tal situação é, numa análise perfunctória, devida à má gestão de recursos públicos e a inexistência de Lei que determine a precedência da saúde aos demais setores, ficando a critério da Administração Pública a forma de administração desses recursos. Não fosse por isso, empiricamente, a situação acima exposta não estaria evidente.

De acordo com o autor com Campos e Tinoco[29], o setor da saúde pública enfrenta embates frequentes com os demais setores, o que também dificulta a solução da problemática do setor:

“Os recursos destinados à saúde poderão ser incrementados dentro de critérios de racionalização, mas não a um nível de satisfação de todas as necessidades, exatamente porque são limitados, e sofrem um processo de concorrência com os demais setores. Em decorrência dessa situação, o setor saúde terá que estabelecer prioridades e o grau em que devem ser atendidas, bem como deverá determinar o uso mais eficiente dos recursos disponíveis.”

Observa-se que mesmo com a insurgência da questão à Administração Pública, a sua atuação no que tange a consecução de políticas públicas voltadas à saúde tem sido insuficientes e ineficazes. Entretanto, a julgar pela preparação do Brasil para sediar a Copa Mundial de 2014, em que verbas públicas são utilizadas para a execução de melhorias e obras atreladas ao evento, denota-se que mesmo a existência de regras que tutelam a atividade da Administração Pública não são capazes de ilidir a problemática da saúde antes de se atentar ao acontecimento futebolístico.

Assim, a questão que se mostra de fundamental importância é sobre a possibilidade de investimentos públicos em evento de caráter esportivo, quando o setor saúde carece permanentemente de verbas públicas.

Na medida em que se afirma que a saúde é condição que possibilita a efetivação da dignidade humana (REIS), e ante às disposições da Egrégia Carta Magna a esse respeito, em detrimento da utilização de verbas públicas para setores consideradamente secundários, como o de obras para turismo e lazer, no caso da Copa Mundial, torna-se indispensável que o assunto seja refletido à luz dos princípios norteadores da Administração Pública, em especial os da moralidade e da supremacia do interesse público sobre o privado, como forma de demonstrar a aparente solução ao problema.

Ora, a efetiva observância dos princípios norteadores conduziriam, inevitavelmente, a Administração Pública a sempre tomar decisões baseada nesses princípios, porque eles próprios norteiam a elaboração de muitas leis e muito embora nem todas as leis observem, necessariamente, os princípios, estes são anteriores à norma.

O que se tem, hodiernamente, na prática, são atuações da Administração Pública voltadas à execução de políticas públicas que nem sempre traduzem as necessidades ou interesses coletivos, execução esta propiciada pela omissão ou inexistência legal a certos fatos, aliada ao Poder Discricionário conferido à Administração Pública.

Se constitucionalmente e doutrinariamente a saúde é um direito de primordial importância, não haveria razão para que fosse relegado a patamares subalternos a outros direitos/setores igualmente previstos na Constituição Federal.

O evento futebolístico da Copa envolve, com mediana clareza, o setor de turismo, porque este será o setor mais beneficiado. O investimento em obras para o evento não é destinado à promoção da educação, não levantará fundos à saúde, nem mesmo pode ser visto como uma incitação à prática de esportes, já que o resultado esperado é a obtenção de lucros, que beneficiarão o setor privado, por meio da rede hoteleira, restaurantes e agências de turismo. Os impostos pagos pela iniciativa privada, nessas áreas, certamente não corrigirão a precariedade da saúde após o evento.

Impende registrar que os gastos que já estão sendo expendidos com a realização do evento de 2014, não foram submetidos à análise prévia da coletividade.

No anexo do presente trabalho, depreendem-se diversas reportagens sobre a questão dos gastos com verbas de natureza pública para obras destinadas à Copa de 2014. Para o integrante do Comitê Popular da Copa de Curitiba, Thiago Hoshino, “as obras da Copa estão violando os direitos humanos e representam um ‘retrocesso na garantia dos direitos coletivos e sociais fundamentais’ [30].

O jogador Romário, eleito recentemente Deputado Federal, também exteriorizou a questão em entrevista à Agência Brasil[31], referindo que considera abusivos os gastos expendidos com a preparação da Copa de 2014. Impende destacar o trecho em que o ex-jogador informou que

“Está havendo um exagero nos gastos em relação à Copa do Mundo, em todos os sentidos. A Copa do Mundo não vai custar o que foi divulgado há dois anos. E esse dinheiro que será gasto, infelizmente, não vai nos trazer nenhum tipo de legado positivo, a não ser no futebol e, talvez, no turismo. Nossa saúde, nossa educação e nosso esporte, infelizmente, pelo que tenho visto, não vão mudar em nada”, disse o deputado, durante evento no Rio de Janeiro.”

  Verifica-se, portanto, que em vista dos preparativos ao evento mundial futebolístico de 2014, que será sediado no Brasil, existem gastos públicos que estão sendo dispendidos em detrimento da permanência da situação calamitosa de outros setores que são de interesse público e geridos pela Administração Pública, como a saúde.

Ocorre que, como mencionado, a saúde é um setor de grande, senão primeira preocupação da coletividade, pois se preocupa e reflete a condição de bem estar individual, e consequentemente, bem estar coletivo, promovendo maior desenvolvimento social.

Nas palavras de John Bryant[32],

“(…) la inversión en recursos humanos como la salud y la enseñanza, desempeña un papel importante en el proceso de desarrollo. Una opinión razonable es que la salud es parte indispensable del proceso de desarrollo, porque es a la vez un instrumento de desarrollo y un producto del mismo. Hay relaciones recíprocas muy complejas entre la salud y otros factores sócio-económicos: su reacción recíproca com la enseñanza, la nutrición y el crecimiento de población son ejemplos importantes.”

 Diante do contexto apresentado denota-se que a saúde é elemento primordial no desenvolvimento das sociedades humanas, o que resulta na sua importância imediata sobre outras áreas de interesse da sociedade, razão pela qual as políticas públicas visadas e elaboradas pela Administração Pública devem observar esse setor primeiramente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade se organiza de modo que seus anseios sejam expressados em uma coisa ou uma classe de coisas consideradas importantes para ela. Disso se extrai que essa sociedade, a coletividade, busca construir ou ter como retorno a preponderância de certas atividades que lhe sejam importantes, que lhes constituam garantia de um maior bem estar, a fim de propulsionar o seu desenvolvimento.

Nesta seara, a Administração Pública, enquanto gestora das atividades que são de natureza pública, cumpre um importante papel no desempenho das coisas ou da classe de coisas que são importantes para a coletividade.

Veja-se, à Administração Pública compete, por meio de suas atividades, a organização dos bens, serviços e dinheiro públicos, transformando-os em atividades concretas que serão usufruídas pela coletividade. Essas atividades concretas são as denominadas políticas públicas, que devem refletir os anseios da sociedade conjugados com a aplicação dos recursos públicos.

Pela pesquisa efetuada, conclui-se que as políticas públicas, as atividades desenvolvidas pela Administração Pública, devem estar em consonância com o desejo coletivo, entretanto, é sabido que em respeito a esse desejo público, a Administração Pública não pode realizar atos desvinculados da Lei, por exemplo.

Para isso, existem princípios que informam e instruem a Administração Pública, auxiliando na condução de suas atividades. Desses princípios, extraíram-se os da moralidade e da supremacia do interesse público sobre o privado, como princípios máximos da tradução dos anseios da coletividade aliados à existência das normas.

Isso porque as normas ou leis, em que pese prescrições expressas da forma pela qual se efetivará determinada questão em sociedade, nem sempre preveem todas as situações possíveis. As leis possuem lacunas (omissão) ou nem sempre existem para todo e qualquer caso. Para tanto, também foi conferido à Administração Pública o princípio da discricionariedade, que para muitos doutrinadores se confunde com um poder relegado a mesma, a fim de que possa bem realizar as atividades que lhe são inerentes, mesmo na falta ou omissão legais.

Esse poder, contudo, é residual e apenas confere à Administração Pública certa margem de escolha entre a realização desta ou daquela atividade, da aplicação deste ou daquele recurso público em determinada área, sempre se reportando à Lei (princípio da Legalidade). Como referido, entretanto, nem sempre há Lei regulando certas ocorrências, assim como, mesmo na sua existência, pode haver omissão quanto a pontos específicos sobre os quais a Administração Pública pode se debruçar. Além disso, nem sempre a Lei pode ser considerada moral, ficando, muitas vezes, aquém dos desejos ou das reais necessidades públicas.

Para tais situações é que foi propiciado à Administração Pública observar princípios, dentre os quais o da moralidade e da supremacia do interesse público, com o fim de procurar sempre aplicar, em suas políticas públicas, as atitudes que reflitam o interesse coletivo.

Assim, a margem de escolha que é conferida à Administração Pública por meio do Poder Discricionário pode e deve conduzir a sua atuação sempre visando o interesse coletivo.

Neste sentido, impende destacar que na efetiva observância dos princípios da moralidade e da supremacia do interesse público, os anseios coletivos restariam sempre, indubitavelmente, observados, garantindo, consequentemente, um maior desenvolvimento da sociedade como um todo.

Na execução de políticas públicas, a Administração Pública deve se reportar à Lei, entretanto, inexiste Lei que defina quais as áreas de maior ou menor importância para a sociedade, ficando ao crivo da doutrina, precipuamente, realizar essa ponderação de prioridades.

Verificou-se que a saúde é um setor/área de grande importância para a sociedade, pois reflete diretamente o desenvolvimento da mesma, proporcionando o progresso da nação, já que a saúde é o conjunto de elementos que conferem a cada cidadão, individualmente, bem estar físico, mental e espiritual e que projetam o mesmo bem estar à coletividade, levando, indubitavelmente, à melhores condições de vida e, portanto, a um melhor desenvolvimento da sociedade, beneficiando a todos mutuamente.

Se a saúde é setor de grande importância para a coletividade, a sua promoção e/ou recuperação deve figurar como elemento de grande importância para a Administração Pública, que deve pautar sua atuação na direção dos anseios da sociedade. Se assim o é, a saúde pública jamais poderia ser relegada a um segundo plano, ficando sempre acima de outras áreas, não somente pela sua importância individual, mas porque garante a consequente e escalonada propulsão dessas demais áreas, como lazer, esporte, segurança, entre tantas outras.

Na execução de políticas públicas, a Administração Pública deveria observar a máxima da importância com a saúde, visando o bem estar coletivo, a fim de assegurar a justa inserção de todos os cidadãos na sociedade, o que promoveria o desenvolvimento de todos.

Os princípios que norteiam a Administração Pública, neste sentido, em especial os da moralidade e supremacia do interesse público, garantiriam a efetiva execução de políticas públicas que sempre refletissem as necessidades coletivas, elevando a saúde como a primeira delas.

Com a observância de tais princípios, os gastos públicos com a Copa do Mundo de 2014 certamente seriam repensados, ou pelo menos relegados a uma posição secundária de preocupação da Administração Governo. Ou, ainda, seria relegada à iniciativa privada, a fim de não consumir dinheiro público com as atividades em torno do evento.

Com isso não se pretende, de um todo, afrontar a ideia de promover o lazer, também de grande valia ao cidadão, mas de chamar a atenção para o desvirtuamento das ações públicas, a má condução de políticas públicas, que, malgrado serem respaldadas por determinada Lei, nem sempre podem ser consideradas políticas morais ou de relevância para a coletividade.

Em atribuindo aos princípios condutores da atuação da Administração Pública, especialmente no que tange ao seu poder discricionário, peso razoavelmente maior do que da Lei, especialmente os princípios que garantem a efetividade de preceitos de ordem moral, quando da escolha de determinadas políticas públicas, a Administração Pública se reportaria aos mesmos, a fim de sempre conduzir as atividades ao interesse público.

 

Anexos
Copa do Mundo: ''o interesse público está sendo desvirtuado''. Entrevista especial com Thiago Hoshino. Disponível em http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=19993&cod_canal=41. Acesso em 22 de junho de 2012.
O país do futebol prepara-se para ser o anfitrião da Copa do Mundo 2014 e investe dinheiro público em obras de infraestrutura sem submeter a verba utilizada ao debate coletivo, "a mecanismos de transparência e controle social, ou mesmo às prioridades elencadas nos Planos Diretores dos municípios", alerta Thiago Hoshino na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line. De acordo com ele, o relatório do Tribunal de Contas da União – TCU revela que, "dos quase R$ 24 bilhões de investimentos federais divulgados, apenas 1,4% corresponde à parcela da iniciativa privada".
Em sua avaliação, os projetos e os investimentos destinados à vigésima edição da Copa do Mundo não "dialogam com as demandas sociais locais, mas respondem unicamente a exigências de infraestrutura e maquiagem urbana de organismos como a FIFA, assumidas de forma unilateral pelos gestores nas três esferas da federação".
Integrante do Comitê Popular da Copa de Curitiba, Hoshino participou da elaboração do Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, e afirma que as obras da Copa estão violando os direitos humanos e representam um "retrocesso na garantia dos direitos coletivos e sociais fundamentais". "Nesse contexto, ganham destaque as violações do direito à moradia digna, com previsão de mais de 150 mil pessoas compulsoriamente deslocadas devido a obras e intervenções urbanas diversas, as quais se justificam – ao menos ideologicamente – pela preparação desses grandes eventos", relata.
Hoshino também comenta a Lei Geral da Copa e enfatiza que ela "interessa apenas como caso de estudo teratológico, pois consiste numa verdadeira aberração jurídica".
Thiago Hoshino é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR e assessor jurídico da Organização Terra de Direitos. A entrevista a seguir foi realizada em parceria com os colegas do Centro de Pesquisa e Apoio ao Trabalhador – Cepat.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A Articulação Nacional de Comitês Populares da Copa acaba de lançar o dossiê intitulado Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil. Dentre as várias denúncias, qual delas é mais reincidente?
Thiago Hoshino – A recepção dos megaeventos esportivos no Brasil, assim como ocorreu nas edições anteriores da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, representa um processo de profunda reconfiguração do território com vistas à expansão de novas fronteiras de acumulação do capital. A espetacularização das cidades e sua transformação em mercadoria de consumo para poucos exige a intensificação da segregação étnico-social e produz uma espécie de "estado de exceção" que desrespeita e mesmo desconstitui garantias estabelecidas em nossa legislação interna, produto que são de lutas e conquistas históricas.
Nesse contexto, ganham destaque as violações do direito à moradia digna, com previsão de mais de 150 mil pessoas compulsoriamente deslocadas devido a obras e intervenções urbanas diversas, as quais se justificam – ao menos ideologicamente – pela preparação desses grandes eventos. Mas os problemas não se resumem a isso: são reiterados os casos de precarização das condições de trabalho, criminalização de trabalhadores informais e da população em situação de rua, falta de participação popular e de acesso às informações, degradação do meio ambiente, hipermilitarização e flexibilização do planejamento urbano. Vários exemplos disso são enfocados pelo dossiê. A elitização do próprio esporte é outra grave consequência desse modelo, obviamente.
IHU On-Line – O governo afirma que a Copa será um instrumento de ganhos para o conjunto das cidades nas áreas de transporte coletivo, urbanização, moradia, etc. Isso tem se verificado?
Thiago Hoshino – Na análise dos movimentos sociais, estamos mais próximos do oposto: um retrocesso na garantia de direitos coletivos e sociais fundamentais. Ações concentradas em áreas já bem qualificadas e ameaças de privatização fazem parte dos fatores negativos da equação. Há uma proposta de passar o próprio Maracanã para a iniciativa privada, depois de receber investimentos públicos. Transporte público? Vias inteiras estão sendo concebidas para a mobilidade de automóveis individuais ou para tímidos alguns modais coletivos que não integram a cidade, mas conectam ilhas de riqueza entre si. O caso do Veículo Leve Sobre Trilhos em Fortaleza é emblemático. Seu traçado é incoerente, desviando de bairros de classe média, mas avançando diretamente sobre comunidades carentes e ocupações irregulares. Urbanização?  Parques, áreas de preservação permanente, espaços públicos estão sendo engolidos sem pena e sem Estudo de Impacto Ambiental – EIA e Relatório de Impacto Ambiental – RIMA pelas obras.
Moradia? As remoções em massa falam por si. Segurança pública? A marca de nossa política criminal repressora são cordões de isolamento em pontos estratégicos, permitindo o trânsito livre de turistas e restringindo acesso ao povo. Literalmente, para inglês ver. A Copa do Mundo é como uma festa que darão na sua sala, porém você terá de sair de casa para deixar a visita à vontade. Afinal, que "legado" é esse de que estamos falando?
IHU On-Line – Há espaço para participação popular no debate sobre a preparação da Copa ou a organização do evento é refratária à participação das organizações sociais?  As críticas têm sido acolhidas, há correção e revisão de projetos ou a organização da Copa se faz de forma autoritária?
Thiago Hoshino – Infelizmente, não. Não há qualquer abertura para a participação popular. As prioridades eleitas não passam por discussão prévia com a coletividade. Segmentos sociais e comunidades atingidos não são consultados, nem há o que se chama Estudos de Impacto de Vizinhança. E mesmo que houvesse, como ter uma incidência qualificada se não são publicizadas as informações? A Matriz de Responsabilidades não contempla todos os projetos que serão executados e, muitas vezes, encontra-se desatualizada. Poucas são as audiências públicas realizadas e, quase sempre, meramente pró-forma. Os espaços tradicionais de gestão democrática, como os Conselhos da Cidade ou de Política Urbana, foram abandonados ou aparelhados. O padrão é o autoritarismo e o discurso tecnocrático, além do argumento dos "prazos" e do "fato consumado". Isso enseja absurdos, como notificações para desocupação de áreas com prazo de "zero dias", no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – O fato de o futebol ser uma paixão nacional dificulta a divulgação das críticas e mesmo a participação popular nos protestos?
Thiago Hoshino – Nas mobilizações e no trabalho de base que temos realizado nos Comitês Populares da Copa, ativos nas 12 cidades-sede, vemos que, longe do que se imagina, o amor do brasileiro pelo futebol não impede que se constitua um espaço de reflexão crítica sobre o conjunto de arbitrariedades que acompanha os megaeventos. Ao contrário, o interesse geral pelo tema, o descrédito em que caíram as instituições promotoras dos jogos e os nítidos impactos sofridos pelos próprios torcedores em seus direitos – que vão do encarecimento dos ingressos até a descaracterização do patrimônio histórico-cultural esportivo – contribuem para gerar um sentimento de indignação compartilhado e a politização desse debate.
IHU On-Line – A Copa do Mundo no Brasil é um negócio privado bancado com recursos públicos? Qual a percentagem do investimento público? Os recursos do BNDES são a fundo perdido?
Thiago Hoshino – Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União – TCU de julho deste ano, dos quase R$ 24 bilhões de investimentos federais divulgados, apenas 1,4% corresponde à parcela da iniciativa privada. Mais de 50% dos recursos advêm de linhas de financiamento do BNDES ou da Caixa Econômica Federal. Ainda que se tente caracterizar essas operações como simples empréstimos, é preciso lembrar que elas são subsidiadas pelo Estado, isto é, trata-se de concessões a juros mais baixos do que os normalmente praticados. Além disso, não raro as garantias oferecidas para acessá-las são também títulos públicos, numa arriscada engenharia financeira. É o que tem ocorrido com os Certificados de Potencial Adicional de Construção oferecidos pelo município de Curitiba ao Clube Atlético Paranaense, que, por sua vez, poderá fornecê-los ao Fundo de Desenvolvimento Econômico do estado para a reforma do estádio Joaquim Américo Guimarães, ou seja, uma obra particular.
O suposto "legado" da Copa do Mundo e das Olimpíadas, portanto, está sendo construído majoritariamente com dinheiro público, em ações que já são ou deveriam ser de responsabilidade do Estado. E há estudos que apontam orçamentos ainda mais arrojados, ultrapassando R$ 100 bilhões. Contudo, o destino de toda essa verba não está submetido ao debate coletivo, a mecanismos de transparência e controle social, ou mesmo às prioridades elencadas nos Planos Diretores dos municípios. Observamos uma completa inversão de valores, pois esses projetos tampouco dialogam com as demandas sociais locais, mas respondem unicamente a exigências de infraestrutura e maquiagem urbana de organismos como a Fifa, assumidas de forma unilateral pelos gestores nas três esferas da federação. Tudo isso avalizado por alterações nas regras de responsabilidade fiscal, como a Resolução n. 3.831/2010 do Conselho Monetário Nacional, que ampliou os limites de endividamento do setor público para obras da Copa.
IHU On-Line – A partir da perspectiva econômica, já se pode afirmar quem serão os grandes ganhadores com a Copa do Mundo no Brasil?
Thiago Hoshino – Existe uma aliança transescalar forjada entre interesses políticos, tanto do Brasil por projeção internacional como o das cidades-sede, por competitividade e capital simbólico, assim como corporativos da FIFA, do Comitê Olímpico Internacional e seus parceiros em geral; da indústria cultural; de empresas do setor construtivo; de agentes de especulação imobiliária, etc. As grandes empreiteiras, por exemplo, serão fartamente beneficiadas por projetos megalomaníacos e despropositados em todo o país. Lembrando ainda que, à margem do procedimento licitatório convencional, o Regime de Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, aprovado para esses empreendimentos, contém uma série de incertezas, contradições e brechas, já questionadas pelo próprio Ministério Público Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Mesmo numa perspectiva puramente economicista, não há razões para se comemorar: estamos apostando muito alto numa expectativa de aquecimento pouco provável de se concretizar. A África do Sul é prova dessa fantasia desfeita e a crise que a Grécia vive hoje nos remete aos gastos fenomenais dos Jogos Olímpicos de Atenas. De qualquer modo, o importante é frisar que, quaisquer que sejam os ônus e bônus dos megaeventos esportivos, eles são desigualmente distribuídos. Os ganhadores são poucos. Os perdedores são todo o povo.
IHU On-Line – Há risco de grandes estádios ficarem subutilizados após a Copa? Quais seriam essas praças esportivas?
Thiago Hoshino – Não apenas os estádios de futebol tendem a tornar-se enormes elefantes brancos. Inúmeros outros complexos esportivos e até mesmo obras de mobilidade urbana têm sido pensados e implementados sem que se levem em consideração as realidades locais, o que certamente produzirá equipamentos que serão abandonados ou subutilizados futuramente. Seguindo o modelo de Pequim, que já começou a demolir parte das estruturas de 2008, a cada dia surgem relatos de projetos absolutamente desnecessários ou superfaturados. As recentes denúncias sobre o Veículo Leve sobre Trilhos – VLT de Cuiabá confirmam essa preocupação. Ainda, conforme parecer da Brunoro Sport Business, "arenas" coma a de Manaus, Brasília e Natal demorariam, mantendo seu nível atual de rentabilidade, 198, 167 e 155 anos para serem pagas, respectivamente.
IHU On-Line – Come está a relação entre o governo federal, a Confederação Brasileira de Futebol e a Federação Internacional de Futebol? Quem mais ganhou na queda de braço da Lei Geral da Copa?
Thiago Hoshino – Há, é verdade, alguns pontos de divergência. Mas são questões localizadas.
A concepção perversa que toda a lógica de gestão empresarial dos eventos encerra não está sendo colocada em xeque. O governo federal alega que assumiu compromissos desde o momento da candidatura do país, que agora devem ser honrados. Isso significa, na prática, exigir que mudemos nossas leis para atender a contratos privados. Se é assim, para que ter Poder Legislativo na República? O conceito de "interesse público" está sendo completamente desvirtuado. É trágico notar que a queda de braço está se tornando progressivamente um caloroso aperto de mão.
IHU On-Line – O que há de interessante e de equivocado na Lei Geral da Copa?
Thiago Hoshino – A Lei Geral interessa apenas como caso de estudo teratológico, pois consiste numa verdadeira aberração jurídica. Na esteira de outras medidas similares, como a Lei do Ato Olímpico, n. 12.035/09, trata-se de um contrassenso em nossa legislação, com dispositivos flagrantemente inconstitucionais. No começo do mês, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa lançou também uma nota pública de repúdio e questionamento ao Projeto de Lei n. 2330/2011. Entre os tópicos mais problemáticos do texto original estavam os abusivos direitos de "exclusividade comercial" da FIFA, o desrespeito ao Código do Consumidor e ao Estatuto do Idoso, a liberação incondicional de vistos de entrada a convidados e clientes da Federação, os crimes temporários criados ad hoc, as justiças especiais para o evento e a responsabilidade objetiva da União por danos e prejuízos da entidade. Nas alterações que serão debatidas terça-feira próxima (20 de dezembro) na Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados, pouco melhorou até o momento. As justiças especiais tornaram-se um procedimento administrativo junto à Advocacia Geral da União – AGU, uma porcentagem pequena dos ingressos será destinado à "categoria D", foi inserida a liberação de venda e consumo de bebidas alcoólicas nos estádios e até se propôs alterar o calendário escolar para não coincidir com os jogos. Vamos aceitar esse cavalo de troia?
Fonte: Unisinos
Romário considera exagerados os gastos públicos com a preparação da Copa do Mundo de 2014. Em 04/07/2011 – 18h42. Esporte. Por Vitor Abdala – Repórter da Agência Brasil. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-07-04/romario-considera-exagerados-os-gastos-publicos-com-preparacao-da-copa-do-mundo-de-2014. Acesso em 01 de julho de 2012.
Rio de Janeiro – O vice-presidente da Comissão de Turismo e Desporto da Câmara dos Deputados, Romário (PSB-RJ), disse hoje (4) que os gastos públicos com a preparação da Copa do Mundo de 2014 estão sendo “exagerados e desnecessários”. Segundo ele, os investimentos para a Copa não deixarão nenhum legado positivo nas áreas de educação, saúde e esporte.
“Está havendo um exagero nos gastos em relação à Copa do Mundo, em todos os sentidos. A Copa do Mundo não vai custar o que foi divulgado há dois anos. E esse dinheiro que será gasto, infelizmente, não vai nos trazer nenhum tipo de legado positivo, a não ser no futebol e, talvez, no turismo. Nossa saúde, nossa educação e nosso esporte, infelizmente, pelo que tenho visto, não vão mudar em nada”, disse o deputado, durante evento no Rio de Janeiro.
O ex-jogador de futebol disse esperar que as pessoas comecem a prestar atenção nos gastos com a preparação do evento esportivo, que será no Brasil, e que também atentem para aquilo que não é gasto em setores essenciais, como saúde e educação.
Recentemente, os gastos da Copa do Mundo do Brasil foram alvo de polêmica entre o governo e a oposição. Um dos pontos do Regime Diferenciado de Contratações (RDC) para obras da Copa do Mundo, das Olimpíadas e eventos esportivos de grande porte previa o sigilo de informações. Pelo texto, o orçamento das contratações só poderia ser divulgado após a licitação e não previamente, na fase de apresentação de pré-projeto.
Procurado pela Agência Brasil para comentar as declarações de Romário, o Ministério do Esporte não se pronunciou.
Edição: Nádia Franco
Copa do Mundo no Brasil custará o dobro do valor do Mundial na África do Sul.
17 de fevereiro de 2010. Postado por wianey_carlet, às 13:00. Disponível em http://wp.clicrbs.com.br/wianeycarlet/2010/02/17/copa-do-mundo-no-brasil-custara-o-dobro-do-valor-do-mundial-na-africa-do-sul/. Acesso em 02 de julho de 2012.
Não deve causar espanto algum a notícia de que a Copa do Mundo do Brasil custará, no mínimo, 120% mais do que a da África do Sul. Os sul-africanos gastarão cerca de R$ 7,968 bilhões enquanto os brasileiros desembolsarão mais de R$ 17 bilhões. E esta é apenas uma previsão de momento. Sabemos que até o final dos trabalhos, este número engordará muito. Não estão incluídas neste orçamento, por exemplo, despesas com segurança, tecnologia e infraestrutura esportiva.
Admitamos que o custo desta copa. No Brasil, chegue a R$ 20 bilhões, sem desvio de dinheiro, uma improbabilidade. Mesmo assim, será que o Brasil não tem outras prioridades para investir esta fortuna? Provocar esta discussão é chover no molhado. Os brasileiros sabem que a saúde do país é um desastre.
Recentemente, órgãos internacionais apuraram que a qualidade da educação coloca o Brasil atrás de países como Paraguai e Bolívia. Mesmo assim, arrotamos grandeza e vamos fazer, não apenas um Mundial mas, também, uma Olimpíada. E o pior é que existem muitas pessoas que aprovam esta gastança irresponsável. Nunca antes neste país… bah!
Desafios brasileiros
Mais dinheiro, a mãe de todas as promessas para a saúde. Por Daniel Jelin. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/saude/mais-dinheiro-a-mae-de-todas-as-promessas-para-a-saude. Acesso em 02 de julho de 2012.
O tucano José Serra, a petista Dilma Rousseff e a verde Marina Silva são todos favoráveis à regulamentação da emenda constitucional 29, que eleva os níveis de investimento na área de saúde. Mas isso não diz muita coisa. Lula e a oposição tampouco discordaram nesse particular, e isso não bastou: o assunto se arrasta no Congresso lá se vão dez anos, e o que se conseguiu até agora foram redações diversas que chegaram a rachar até a bancada da saúde. O impasse se deve a uma pergunta sem resposta: de onde sai o dinheiro?
A última batalha foi travada em 2008. O projeto saiu do Senado prevendo a aplicação de 10% da receita bruta da União em saúde. Na Câmara, a base governista derrubou o piso de 10% e quis criar um novo tributo, batizado de CSS, que reeditava a extinta CPMF. A oposição chiou – como, aliás, a maioria dos brasileiros, segundo as pesquisas da época -, e o governo acabou recuando: após uma vitória inicial apertada, por apenas dois votos de diferença, desistiu de votar o destaque final da emenda, que definiria – ou eliminaria, em caso de derrota – a fonte da arrecadação. "Não dá mais para aumentar a carga tributária", diz o deputado federal Rafael Guerra (PSDB-MG), médico e ex-presidente da Frente Parlamentar da Saúde. “Se tem dinheiro para o trem-bala, por que não tem para a saúde?”
Lula afirma ser impossível aumentar os recursos para a saúde sem nova tributação específica e creditou o fim da CPMF à “maldade” da oposição. "Por mesquinharia, o Senado me tirou R$ 40 bilhões do orçamento da Saúde", discursou. Há aí um exagero, algumas omissões e muito cálculo político. O exagero: dos R$ 40 bilhões da CPMF, apenas R$ 24 bilhões seriam destinados à saúde e menos ainda, R$ 11 bilhões, sob a forma da CSS. A primeira omissão: mesmo sem novos impostos, a arrecadação vem batendo recorde atrás de recorde, e foi uma decisão de governo comprometê-la com o aumento temerário das despesas com a máquina – em particular o gasto com a folha de servidores, que cresceu 54% nos anos Lula. Outra omissão: com mais ou menos receita, recai sobre o presidente a responsabilidade pelo Orçamento, e se é verdade que boa parte (90%) já nasce carimbado – os chamados gastos obrigatórios -, foi dos 10% restantes – as despesas 'discricionárias' – que saíram, por exemplo, as prioridades Bolsa-Família e PACs. Não saiu foi o PAC da Saúde, que emperrou justamente porque o governo preferiu vinculá-lo à receita extra da CPMF.
 “A regulamentação da emenda 29 é desejada”, diz o professor e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Unifesp, Marcos Bosi Ferraz. “Porém, mais do que isso, seria interessante que o governo federal assumisse de fato um compromisso com o financiamento da saúde.”  Carlos Schneider, do Movimento Brasil Eficiente, acrescenta: "É preciso separar o que é gasto em saúde do que é a manutenção da máquina. Hoje a máquina pública virou um fim em si mesmo, e não um serviço à sociedade".
Embora a regulamentação da emenda 29 esteja fora dos palanques, como se fosse um aborrecimento burocrático, reforçar e estabilizar o caixa dessa área é uma espécie de promessa-mãe nessa área. É o que pode dar consistência a uma série de outras promessas, de maior ou menor impacto sobre o Orçamento. Isso porque o cobertor da saúde é notadamente curto – e ainda partilhado pela assistência social e seu primo rico, a previdência social, todos parte de uma peça de ficção chamada Orçamento da Seguridade Social.
Ao todo, o dinheiro que o estado e as famílias gastaram com saúde em 2007 equivaleu a 8,4% do PIB, conforme a última apuração do IBGE. Desses gastos, 41,6% saíram dos cofres do estado, 57,4% do cofrinho das famílias e o restante 1% de instituições sem fins lucrativos. Em países como França e Inglaterra, onde vigoram, como no Brasil, sistemas de saúde que se pretendem universais, o setor público arca com 70% a 75% dos gastos.
O governo federal não apenas gasta pouco. Ele tem empurrado parte da conta para os estados e municípios. Sua participação no financiamento da saúde caiu de 60% há dez anos para cerca de 50% hoje. Isso porque a lógica do dinheiro carimbado para a saúde já vale para estados e municípios, embora não valha para a União. Assim, cada vez que a arrecadação de impostos aumenta – como tem aumentado nos últimos anos – o investimento em saúde cresce junto nos âmbitos estadual e municipal.
Mas é preciso obrigar o governo a investir em saúde? Para os críticos da emenda 29, é contraproducente engessar ainda mais o Orçamento. Além disso, pode-se também argumentar que, para um certo município ou região, investir em saneamento básico ou em segurança do trânsito tem mais efeito sobre a saúde que a construção de pum ambulatório. São argumentos que não convencem Carlos Vital Corrêa Lima, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. “Não pode haver mais manobra, não pode haver mais desvio”, diz. Para ele, é justamente esse conceito alargado de saúde que empobreceu o setor. “Se nossos gestores tivessem responsabilidade, não seria preciso regulamentar o que é saúde e o que não é”, concorda Ferraz. “Mas, como a média deles não tem, a regulamentação será positiva”.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. Romário considera exagerados os gastos públicos com a preparação da Copa do Mundo de 2014. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-07-04/romario-considera-exagerados-os-gastos-publicos-com-preparacao-da-copa-do-mundo-de-2014. Acesso em 01 de julho de 2012.
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Notas:
[1] Trabalho orientado por Prof. Brena Tamegão Lopes de Noronha
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 101.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 68.
[4] Segundo Rousseau, a liberdade natural do homem, a sua garantia de bem estar e segurança só seriam possíveis com a instituição de um poder que fosse escolhido pela coletividade, a fim de administrar seus interesses. “para Rousseau, o caos teria vindo pela desigualdade, pela destruição da piedade natural e da justiça, tornando os homens maus, o que colocaria a sociedade em estado de guerra. Na formação da sociedade civil, toda a piedade cai por terra, sendo que “desde o momento em que um homem teve necessidade do auxílio do outro, desde que se percebeu que seria útil a um só indivíduo contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, a propriedade se introduziu, o trabalho se tornou necessário” (WEFFORT, 2001, p. 207). Daí a importância do contrato social, pois os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural (quando o coração ainda não havia corrompido, existindo uma piedade natural), necessitariam ganhar em troca a liberdade civil, sendo tal contrato um mecanismo para isso. O povo seria ao mesmo tempo parte ativa e passiva deste contrato, isto é, agente do processo de elaboração das leis e de cumprimento destas, compreendendo que obedecer a lei que se escreve para si mesmo seria um ato de liberdade.”. Trecho disponível no site http://www.brasilescola.com/sociologia/rousseau-contrato-social.htm. Acesso em 01 de maio de 2012, às 17 horas e 56 minutos.
[5] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 06.
[6] Impende ressaltar que esse fim é o objetivo principal da Administração Pública, sendo que Luiz Alberto Blanchet define que “toda vontade, efetivamente, pressupõe a existência de uma necessidade (…) demanda representação e elaboração mentais que devem processar-se em função de um interesse (simples ou complexo) e orientar-se em direção a um objetivo (…) capaz de satisfazer a necessidade que provocou o processo todo.”. p. 87.
[7] DROMI, Roberto. Sistema y valores administrativos. Buenos Aires – Madrid: Ciudad Argentina, 2003. p. 31.
[8] NADER, Paulo. Filosofia do Direito.13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 53.
[9] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
[10] FILHO, Romeu Felipe Bacellar.  A estabilidade do ato administrativo criador de direitos à luz dos princípios da moralidade, da segurança jurídica e da boa-fé.  A&C – Biblioteca Digital Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr./jun. 2010. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=67732>. Acesso em: 13/08/2011. Material da 3ª aula da disciplina Direito Administrativo, ministrada no Curso de Pós-Graduação Televirtual de Direito Público–Anhanguera-Uniderp | Rede LFG, 2011.
[11] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 69 e 70.
[12] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 130.
[13] SICCA, Gerson dos Santos. Discricionariedade Administrativa. Conceitos Indeterminados e Aplicação. Curitiba: Juruá, 2006.
[14] CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A evolução do princípio da legalidade e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 804, 15 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7257>. Acesso em: 8 maio 2012.
[15] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Parte Introdutória. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 97.
[16] SICCA, Gerson dos Santos. Op cit, p. 227.
[17] Nesse mesmo sentido, MORÓN, Miguel Sánchez apud CADEMARTORI, in “Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito”: “Así como afirma la generalidade de la doctrina, la discrecionalidad administrativa no solo existe, sino que está justificada y es necesaria; comporta um elemento de oportunidad, netamente distinto (em el plano de la teoria al menos) del de la legalidade.”.
[18] BLANCHET, luiz Alberto. Curso de Direito Administrativo. Curitiba: Juruá, 2004.
[19] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004, página 101.
[20] SICCA, op.cit. p. 197.
[21] FRANCO, Carlos Rodolfo Lujan. Artigo: Política e Políticas Públicas. Disponível em http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1535&Itemid=99. Acesso em 23 de junho de 2012, às 17 horas e 38 minutos.
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 38.
[23] REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta.Direitos Sociais e Políticas Públicas. Desafios Contemporâneos. Tomo 6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. p. 1526.
[24]Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”.
[25]Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…)
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; (…)”.
[26]Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…)
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: (…)
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”.
[27]Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: (…)
III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; (…).”.
[28] REIS, Jorge Renato dos. Direitos Sociais e Políticas Públicas. Desafios Contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. P. 1526.
[29] CAMPOS, J. Q., TINOCO, A.F. Política e Planejamento de saúde. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1984. p. 137-153, apud BORDIN, Ronaldo. Definição de Prioridades em Saúde. Porto Alegre: Dacasa Editora, 2002. p. 27-28.
[30] Copa do Mundo: ''o interesse público está sendo desvirtuado''. Entrevista especial com Thiago Hoshino. Fonte: Unisinos. Disponível em http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=19993&cod_canal=41. Acesso em 22 de junho de 2012.
[31] Romário considera exagerados os gastos públicos com a preparação da Copa do Mundo de 2014. Entrevista por Vitor Abdala, Repórter da Agência Brasil. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-07-04/romario-considera-exagerados-os-gastos-publicos-com-preparacao-da-copa-do-mundo-de-2014
[32] BRYANT, John. Mejoramiento mundial de la salud publica. México: Impresora Galve S.A., 1971. p. 346.

Informações Sobre o Autor

Mariana Rocha Bernardi

Advogada especialista em Direito Público e Direito da Tecnologia da Informação. Pós-graduada em Direito Público Lato sensu pela Universidade Anhanguera e Rede LFG. Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS


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Equipe Âmbito Jurídico

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