Resumo: O benefício de prestação assistencial continuada previsto na Lei Orgânica de Assistência Social, conhecida como LOAS, há muito tempo não mais utiliza a definição de incapacidade como requisito para sua percepção. A convenção sobre direitos das pessoas com deficiência, ratificada em 09/07/2008 pelo Congresso Nacional, consolidou no direito pátrio requisitos para definição de impedimentos de longa duração, incorporando na nova avaliação o indivíduo no contexto biopsicossocial. Desta forma, não mais se sustenta a concessão do benefício tão somente baseada na incapacidade do indivíduo, ou ainda somente na sua condição social.
O benefício da Prestação Continuada está definido pela Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742/93, conhecida popularmente como LOAS, com fulcro na Constituição Federal, que em seu art.203, V, dispõe:
“Art. 203: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V- a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.” (Grifos nossos).
Como se pode extrair do artigo acima transcrito, o benefício concedido à titulo de LOAS tem por objetivo garantir a subsistência de pessoas portadoras de deficiência e idosos, pessoas que se encontram desamparadas, em uma situação de hipossuficiência, longe de um convívio social digno e saudável.
Contudo, para que se faça jus a esse benefício, devem ser preenchidos requisitos OBJETIVOS, quais sejam, ser IDOSO ou DEFICIENTE e, ainda, não ter condições de prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.
A Lei 8.742/93 dispõe, em seu art. 20, os critérios objetivos a serem observados e uma definição básica do que seria deficiente, senão vejamos:
“Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011)(…)
§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. (Inclído pela Lei nº 12.470, de 2011). (g.n)”
Ao contrário do requisito “idoso”, que tem natureza extremamente objetiva, posto que o próprio legislador ordinário adotou tanto na legislação específica quanto no próprio Estatuto a idade de 65 anos de idade como critério definidor da condição, o requisito deficiência tem extração mais complexa, uma vez que se refere a todo aquele que possui impedimentos por um longo prazo, de no mínimo 2 anos, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, impossibilitando ou reduzindo sua integração em igualdade de condição com os demais.
A definição de deficiência, nos últimos anos, vem sendo regularmente discutida e sendo foco de grandes mudanças conceituais e estruturais, objetivando uma maior inserção dessas pessoas na sociedade.
Dentre as principais modificações legislativas que motivam a discussão acerca da definição de deficiência, destaca-se a Convenção sobre direitos das pessoas com Deficiência, ratificada em 09/07/2008, pelo Congresso Nacional, por meio do DECRETO LEGISLATIVO Nº 186, de 2008, que dispõe:
“Artigo 1
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.[1]
O referido Decreto[2], que se incorporou ao direito interno como Emenda Constitucional, conforme assegura o art. 5o, § 3o, da Constituição Federal, altera substancialmente a forma de caracterização da deficiência, dispondo acerca do requisito da incapacidade para o trabalho para a vida independente, trazendo ao ordenamento jurídico outro conceito, de acordo com os seguintes elementos:
1. Os impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial; e,
2. Interação com barreiras que possam obstruir a participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Em seu curso de Direito Internacional, Mazzuoli, dispõe que : “É de se observar, porém, que a Convenção não estabelece a metodologia de aplicação da norma no direito interno dos Estados Partes, o que autoriza ao interprete buscá-la nas fontes materiais do Direito Internacional Público: os costumes e os princípios gerais do direito, que ostentam juridicidade, conforme reconhecido pelo Art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.”[3]
Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde – OMS, visando uma melhor definição do conceito de impedimento de longo prazo, promoveu a revisão da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Limitações (ICIDH) e, na 54.ª Assembleia Mundial de Saúde, aprovou a criação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF[2], que unificou, padronizou e classificou a saúde e estados, tendo por definição:
“A CIF é um novo sistema de classificação inserido na Família de Classificações Internacionais da Organização Mundial de Saúde (OMS) (World Health Organization Family of International Classifications – WHO-FIC), constituindo o quadro de referência universal adoptado pela OMS para descrever, avaliar e medir a saúde e a incapacidade quer ao nível individual quer ao nível da população.” [4]
Em complementação a CID – Classificação Internacional de Doenças, a CIF CIF define as possibilidades não apenas do corpo humano, mas também promove uma análise mais aprofundada de sua perspectiva como individuo na sociedade.
Assim, na análise dessa definição de impedimento, deverão necessariamente ser observados três fatores básicos : “Funções e Estruturas do Corpo”; “Atividade e Participação” e “Fatores Ambientais”, que podem ter uma influência negativa sobre o desempenho do indivíduo enquanto membro da sociedade, sobre a sua capacidade de executar ações ou tarefas, ou sobre a função ou estrutura de seu corpo.
A aplicação prática de tal forma analítica de definição de incapacidade, nos termos estritos da Resolução da Organização Mundial da Saúde no 54.21, aprovada pela 54a Assembleia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001, foi expressamente disposta pela nova redação do art. 16 do Decreto 6.214 de 2007, atualizado pelo Decreto n º 7.617 de 2011, que dispõe:
“Art. 16. A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de incapacidade, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde – CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde n.º 54.21, aprovada pela 54.ª Assembléia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001.
§ 1.º A avaliação da deficiência e do grau de incapacidade será composta de avaliação médica e social.
§ 2.º A avaliação médica da deficiência e do grau de incapacidade considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades.”
Diante disso, o Instituto Nacional do Seguro Social já não mais avalia apenas a incapacidade para o trabalho e/ou a vida independente. A nova avaliação inclui o indivíduo no contexto biopsicossocial. A incapacidade passa a ser vista não como um atributo da pessoa, mas uma sequencia de um conjunto complexo de situações, das quais um número razoável decorre do ambiente social.
Na prática, a análise consiste em avaliar os domínios, que estão representados nas três listas básicas referidas acima, por meio da pontuação dos qualificadores, os quais especificam a extensão ou magnitude da funcionalidade ou incapacidade em cada um dos domínios, sob a forma da extensão de grau de deficiência, dificuldade e extensão de barreiras (0 a 4% – nenhuma -1; 5 a 24%- leve -2; 25 a 49% – moderada – 3; 50 a 95% – grave – 4 e 96 a 100% – completa – 5). Ao final, a conjugação do grau e das circunstâncias analisadas, de caráter experimental, permite identificar ou não a deficiência. Abaixo os qualificadores utilizados pela CIF, que permitem avaliar cada unidade de classificação, domínios e o resultado final, consoante seguinte tabela:[5]
Nesse passo, é preciso deixar bem claro que a existência de deficiência física ou mental, per si, não é incompatível com o trabalho, daí porque se pode observar a necessidade de que os impedimentos da pessoa com deficiência sejam de longo prazo e efetivamente impliquem restrição ao exercício de atividades e à participação social.
Exatamente por isso que não é qualquer incapacidade laborativa que permite a concessão do benefício assistencial. A incapacidade parcial, relativa ou temporária não deve conduzir a concessão do benefício assistencial destinado às pessoas portadoras de deficiência, pois não constitui campo de aplicação da Assistência Social a cobertura do risco incapacidade dos trabalhadores que exercem suas atividades na informalidade, verbis:.
“Em se tratando de benefício assistencial ao deficiente, necessária a comprovação, pela autora, de incapacidade para a vida independente e para o trabalho (art. 20, §2º, da Lei nº 8.742/1993) e, bem assim, de inexistência de meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família (art. 20, caput e §3º, da Lei nº 8.742/1993).
A incapacidade que autoriza a concessão do benefício assistencial é verificável diante de duas diferentes situações: uma em que ela se presume, pela idade, e outra em que ela deve ser provada, pela deficiência. A incapacidade do assistido social, para a vida independente e para o trabalho, de que trata o art. 20, §2º, da Lei 8.742/93, não se confunde com a incapacidade que habilita o segurado da previdência social ao auxílio-doença ou à aposentadoria por invalidez. Esta decorre de um fato (físico ou biológico) que diminui ou fulmina a aptidão do trabalhador para o exercício de atividade laboral; aquela segundo o conceito normativo próprio (art. 3º, inciso I, do Decreto nº 3.298/99), corresponde à “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.”(2.ª TRJEF/PR, Rec. 2006.70.95.004217-5, Voto da Juíza Leda de Oliveira Pinho – Grifos)
O benefício assistencial, portanto, não é substitutivo do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez para aqueles que não contribuíram para a previdência social.
Assim, não havendo a caracterização de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial e ainda de barreiras que possam obstruir a participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, por maiores que sejam as razões de ordem econômica e social que estejam a favor do pretendente do benefício assistencial, não haverá fundamento jurídico para concessão do benefício assistencial.
Embora os requisitos sejam eminente técnico/científicos, não incomumente, observa-se ainda inúmeras sentenças Judiciais e Acórdãos dos Tribunais pátrios, em total desconexão com a legislação em vigor, atribuindo benefícios assistenciais – LOAS, em face de razões meramente sociais e econômicas, razões essas que não militam apenas de alguns, mas que permeia grande parte dos brasileiros.
Por óbvio, embora ainda em muito não observado pela jurisprudência pátria, a falta de trabalho, embora lastimável, não constitui uma situação para a concessão do benefício de LOAS.
Nesse contexto, cabe ainda ressaltar a vigência de políticas públicas de inclusão dos deficientes, dentre elas a reserva de vagas no mercado de trabalho, que devem ser disponibilizadas pelas empresas que possuam mais de 100 empregados, no termos do art. 36 do Decreto n.º 3.298/99, o qual regulamenta a Lei n.º 7.853/89, que trata das medidas de integração social das pessoas portadoras de deficiência. Nesse passo, observe-se que instituições filantrópicas como a APAE costumam manter programas de capacitação de adultos portadores de deficiência a fim de permitir o ingresso no mercado de trabalho, inclusive intermediando os processos de preenchimento das vagas existentes em cumprimento ao citado dispositivo.
Desta forma, fica evidente a caracterização de requisitos próprios de cunho técnico e científico já muito bem definidos na legislação pátria, a não permitir a concessão irrestrita de benefício assistencial, seja pelo INSS ou pelo Poder Judiciário, em critérios outros, que não os parâmetros definidos na legislação.
Assim, a legislação brasileira moderna e atual dispõe e regulamenta os dois requisitos (os impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial; e a interação com barreiras que possam obstruir a participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas) como requisitos únicos para a concessão de Benefício LOAS, não havendo qualquer razão ou fundamento jurídico para extensão ou analogia que traga de volta a já revogada e antiquada definição de incapacidade para concessão deste benefício assistencial.
Informações Sobre o Autor
Gabriela Pereira Franco
Procuradora Federal, Coordenadora Estadual da PFE/IBAMA-DF, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Brasília/DF